INSOLVÊNCIA
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário

Para que se conclua pelo carácter culposo da insolvência, além da culpa grave, ainda que presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer das obrigações previstas nos nºs 1 e 3 do artigo 186º do CIRE, exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade adequada entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor. A posição maioritária era no sentido de que as presunções não abrangiam o nexo causal, posição que veio a ser acolhida pela redação dada pela Lei 9/2022, de 11.12, ao introduzir a palavra “unicamente”, pondo termo à controvérsia existente.

Texto Integral

Apelação nº 869.17.0T8AVR-B.P2






Acordam no Tribunal da Relação do Porto




“Em 08/03/2017, A..., Lda. requereu a insolvência da sociedade B..., S.A.
Por sentença proferida em 29/06/2017 foi declarada a insolvência da referida sociedade com carácter limitado, tendo tal sentença sido posteriormente complementada, em 11/08/2017, com abertura do incidente de qualificação da insolvência, com carácter pleno.

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O Sr. administrador da insolvência veio apresentar o seu parecer, concluindo pela qualificação da insolvência como culposa, com afectação de AA, BB e CC, na qualidade de administradores da insolvente.
Para tanto sustentou, em síntese, que a insolvência foi requerida pela A..., Lda. e não pelo próprio devedor, o que revela a presunção de culpa grave dos administradores da empresa (artigo 186º nº 3 alínea a) do CIRE).
Mais alegou que a insolvente não entregou as contas em 2014 e 2016.
O Sr. administrador da insolvência sustentou ainda que o ROC foi notificado para dar alguma informação sobre a empresa, mas a carta veio devolvida e os administradores da insolvente foram convocados para uma reunião para as moradas fixadas, mas as cartas vieram devolvidas, sendo que nenhum entrou em contacto, tendo existido assim violação do dever de apresentação e colaboração previsto nos artigos 83º e 186º nº 2 alínea i) do CIRE.
Mais alegou que se deslocou à sede da empresa e constatou que a mesma está ao abandono, daí decorrendo que terá cessado a sua actividade há muito tempo e ainda desconhecer o paradeiro de todo o património da sociedade, designadamente matérias-primas, material acabado, máquinas e os vários veículos registados em seu nome.
Tendo constatado que o imóvel foi vendido a uma outra sociedade em 17/02/2014.
O Sr. administrador da insolvência alegou ainda que a insolvente tem várias participações noutras sociedades com sócios e administradores em comum.
Tendo concluído, face ao exposto, que se mostra preenchida a presunção a que alude a alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
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A credora C..., S.A. veio apresentar alegações, pugnando pela qualificação da insolvência como culposa, com a afectação de todos os administradores por si identificados que, desde 8 de Março de 2014 até ao início do processo de insolvência, exerceram funções de administração da insolvente.
Para tanto sustentou, em síntese, ser uma sociedade comercial criada em cumprimento de imposições legais específicas, cuja actividade consiste na comercialização de energia eléctrica exclusivamente enquanto comercializadora de último recurso, exercendo as atribuições previstas na lei e na regulamentação do sector eléctrico, com exclusão de quaisquer outras actividades.
Mais alegou que, por imperativo legal, está obrigada a adquirir a electricidade produzida pelos produtores em regime especial com remuneração garantida, nas condições estabelecidas em legislação complementar.
Sendo que a insolvente exerceu a actividade de fabrico e comércio de telhas e outros produtos cerâmicos, sendo que, além de produzir cerâmica, era produtora de electricidade em regime de cogeração, tendo-lhe sido concedidas licenças para tanto.
Mais alegou que a aquisição de energia eléctrica gerada pela Central de Cogeração da B... era paga através de um regime bonificado, com a obrigação de obter tal energia através de aproveitamento térmico.
A credora C..., S.A. (C...) alegou ainda que, até Dezembro de 2014, adquiriu e pagou à insolvente a energia eléctrica líquida produzida por esta, com base no referido regime bonificado, quando, pelo menos desde o início do ano de 2014, a mesma já não estava a fazer o kaproveitamento térmico para o processo industrial.
Mais alegou que a qualificação deverá seu qualificada como culposa por estar verificada a presunção ínsita na alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, na medida em que os administradores da insolvente ocultaram e fizeram desaparecer quase todo o património da mesma, que era condição necessária para que a energia eléctrica fosse considerada de cogeração e, nessa medida, pudesse beneficiar do regime especial bonificado.
Tendo a insolvente alienado as máquinas que compunham a sua central de cogeração, para a produção de energia eléctrica e térmica pelo processo de cogeração, com um valor de mercado, no seu conjunto, superior a € 1.000.000,00.
Mais alegou que, pelo menos até 16 de Setembro de 2014, data em que teve lugar uma acção de fiscalização feita pela Direcção Geral de Energia e Geologia às instalações da insolvente, tais máquinas encontravam-se ainda nas instalações e em funcionamento (ainda que sem aproveitamento térmico).
Sendo que, pelo menos até essa data, também ainda ali se encontrava toda a maquinaria industrial destinada ao fabrico de abobadilhas de cerâmica a que se dedicava, apesar de, nessa data, já ter desmantelado o seu processo produtivo.
A credora C... alegou ainda que, em data não concretamente apurada, entre 16 de Setembro de 2014 e 8 de Março de 2017, os administradores da insolvente removeram das instalações fabris da mesma os equipamentos que compunham a central de cogeração e a maquinaria industrial destinada ao fabrico das abobadilhas de cerâmica, sem que tenham feito ingressar no património da insolvente qualquer contrapartida, monetária ou outra, por essa remoção.
Por outro lado, ao removerem aqueles equipamentos e maquinarias, os administradores da insolvente desmantelaram, definitivamente, o processo produtivo (principal e acessório) da empresa, impossibilitando a sua recuperação ou retoma das actividades da empresa, única forma susceptível de gerar rendimentos aptos a solver as suas obrigações.
A mesma credora alegou ainda que o Sr. administrador da insolvência, durante o mês de Agosto de 2017, deslocou-se à sede da empresa, onde funcionava a unidade fabril, tendo verificado que o imóvel se encontrava abandonado e vandalizado e sem que ali estivesse a maquinaria referida.
Por outro lado, a insolvente é proprietária de seis veículos automóveis com um valor não concretamente apurado, mas que se estima terem, no seu conjunto, um valor de mercado de, pelo menos, €200.000,00, sendo o paradeiro de cinco destes seis veículos também desconhecido,
Por outro lado, a credora C... sustentou ainda que, independentemente de qualquer presunção, a insolvência também terá de se considerar culposa, nos termos previstos no artigo 186º nº 1 do CIRE, no essencial, porque os administradores da insolvente, nos 3 anos anteriores ao início do processo de insolvência, abandonaram a actividade produtiva, mantendo a produção exclusiva de electricidade em violação das disposições legais e do objecto das licenças de que a mesma era titular e que vieram a determinar a revogação das mesmas.
Sendo que, em Setembro de 2014, a DGEG teve conhecimento de que, pelo menos desde o final de 2013, os administradores da insolvente tinham cessado a actividade da empresa, mas mantendo em funcionamento as instalações da cogeração sem aproveitamento térmico, limitando-se a produzir energia eléctrica. O que fizeram, pelo menos, durante todo o ano de 2014.
Sabendo que a insolvente não estava habilitada a produzir electricidade em regime ordinário e que os montantes que, por referência ao ano de 2014, a C... entregou à mesma, como contrapartida pela aquisição da energia eléctrica gerada pela Central de Cogeração da Requerida, no valor total de € 2.167.929,89 (com IVA a 23% incluído), não era devido.
E disso sabendo, emitiram, entre Janeiro e Dezembro de 2014, 12 facturas no montante global de 2.167.929,89 € (com IVA de 23% incluído) e receberam o respectivo pagamento em contrapartida pela energia eléctrica gerada na Central de Cogeração, embora sem o devido aproveitamento térmico.
Concluindo que os administradores da insolvente fizeram-na desenvolver uma actividade produtiva sem que esta estivesse dotada da respectiva licença, colocando-a em situação de ilegalidade administrativa e na posição de ter de restituir o que indevidamente recebeu da C..., gerando um passivo nesse exacto montante.
O que determinou que as licenças fossem revogadas e impediu que a sociedade continuasse, através da sua actividade, a obter um rendimento anual bruto de aproximadamente € 2.000.000,00.
Por outro lado, a credora C... alegou ainda que os administradores da sociedade não só não requereram a insolvência, como mantiveram e agravaram a situação até o presente momento, com violação do dever de apresentação à insolvência e do dever de elaboração e depósito das contas relativas aos exercícios de 2014 e de 2016.
Estando preenchido o pressuposto da alínea h) do nº 2 do artigo 186º do CIRE.
Ao que acresce que os administradores da insolvente também não facultaram ao Sr. administrador da insolvência os elementos da contabilidade e demais documentos por este solicitados, com violação do dever de colaboração.
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O Ministério Público pronunciou-se igualmente no sentido da qualificação da insolvência como culposa, com afectação dos administradores AA, BB e CC, sustentando, grosso modo, que se encontra preenchida a presunção inilidível prevista na alínea a) do nº 2 do artigo 186º do CIRE, pelas razões indicadas pelo Sr. administrador da insolvência e pela credora C....
Mais sustentou que, atendendo ao reportado pelo Sr. administrador da insolvência no seu parecer, existe violação do dever de colaboração, independentemente da devolução das cartas, considerando que a indisponibilidade dos requeridos para serem contactados pelo administrador da insolvência corresponderá a um incumprimento reiterado do seu dever de colaboração.
Sendo certo que o requerido BB foi citado da sentença de declaração de insolvência, obtendo assim conhecimento da existência de um processo em curso; porém, não se preocupou em estar a par do mesmo ou fornecer quaisquer elementos, mantendo-se ao invés “desligado” do presente processo.
E para além disso, os administradores teriam conhecimento (quanto mais não seja pela função exercida) da sucessiva acumulação de dívidas da sociedade, tendo por isso percepção da real situação da devedora, tendo que conjecturar que mais tarde ou mais cedo a sociedade iria culminar numa situação de insolvência. Tanto assim é, que previamente à declaração de insolvência, procederam ao desmantelamento do processo produtivo, ocultando património da mesma.
Donde, face às sucessivas tentativas por parte do AI de obtenção de elementos, verificou-se o incumprimento dos deveres de apresentação e colaboração, de acordo com o artigo 186º nº 2 alínea i) do CIRE (por violação do disposto no nº 1 alíneas a) e c) do artigo 83º CIRE).
Por outro lado, no que respeita ao nº 3 do artigo 186º do CIRE, verifica-se que, em Setembro de 2014, ocorreu uma acção de fiscalização pela Direcção Geral de Energia e Geologia às instalações, altura em que a entidade verificou que “a empresa desmantelou o seu processo produtivo, não tendo qualquer produção”, tendo cessado a sua actividade, mantendo simplesmente em funcionamento as instalações de cogeração, limitando-se a produzir energia eléctrica.
Mostrando-se assim preenchida a presunção a que alude a alínea a) do nº 3 do artigo 186º do CIRE, tendo a insolvente violado o seu dever de se apresentar à insolvência.
Ao que acresce que não apresentou contas no ano de 2014, nem em 2016, não tendo o Sr. administrador da insolvência conseguido obter quaisquer elementos contabilísticos através da empresa que faria a contabilidade, ou pelos próprios administradores, apesar dos contactos estabelecidos, razão pela qual se encontrará preenchida a disposição da alínea b) do nº 3 do artigo 186º do CIRE.
Por outro lado, o Ministério Público sustentou ainda ser de autonomizar o facto de os administradores terem actuado dolosamente, contribuindo para a criação e agravação da situação de insolvência, de acordo com o disposto no nº 1 do artigo 186º do CIRE.
Isto porque tendo em consideração, quer o mencionado no referido dispositivo legal, quer o alegado pela credora C..., no caso concreto, a sociedade, em data não concretamente apurada (mas antes de Setembro de 2014), deixou de ter qualquer produção.
Contudo, foram mantidas em funcionamento as instalações de co-geração, limitando- se à produção de energia eléctrica, sabendo que não o podiam fazer em regime ordinário, e que, estando já parado o processo produtivo da empresa, não havia o aproveitamento térmico para o processo industrial que havia assim cessado, continuando a auferir uma tarifa bonificada durante esse período, a qual sabiam não poder beneficiar, por não se encontrarem a desenvolver o processo de produção de electricidade em sistema de co-geração de acordo com os requisitos e termos exigidos pela lei (a produção de energia em cogeração permite uma poupança de energia e redução de emissões de dióxido carbono, tendo uma legislação favorável e um regime remuneratório subsidiado ou bonificado, pago à sociedade pela aqui C...).
Por ter sido mantida a referida produção, entre Janeiro e Dezembro de 2014, a insolvente recebeu indevidamente, o montante de € 2.167.929,89, através da venda de energia à credora C..., agravando por isso culposamente a sua situação insolvencial.
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Foram citados os requeridos AA, BB e CC, sendo que este último através de éditos.
De entre os requeridos, apenas o requerido AA deduziu oposição.
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O requerido AA, na sua oposição, alegou, em síntese, ter sido nomeado vogal do conselho de administração apenas em 21 de Setembro de 2015 e presidente do conselho de administração em 22 de Dezembro de 2015, nunca tendo deliberado a alienação ou vendido qualquer bem móvel ou imóvel propriedade da sociedade insolvente.
Mais alegou que nunca contraiu qualquer financiamento em nome da insolvente e nem contratou com qualquer dos credores reclamantes no processo de insolvência, nunca tendo sido citado da declaração de insolvência da insolvente e desconhecer por completo quais os factos que foram dados como provados.
Sendo que, no que concerne às presunções invocadas, o Sr. administrador da insolvência não indica em que data se deslocou às instalações da insolvente e nenhum dos factos que as fundamentam lhes pode ser imputado por terem alegadamente ocorrido em data muito anterior à sua nomeação como administrador.
O requerido sustentou ainda que, quando foi nomeado para o órgão de administração da insolvente, nas instalações da mesma não existia qualquer veículo automóvel e nem os mesmos lhe foram entregues e a insolvente não tinha qualquer bem móvel ou imóvel, funcionando em instalações arrendadas e utilizando bens e equipamentos de terceiros.
O que está de harmonia com o alegado pela credora C... quando refere que, em Setembro de 2014, a insolvente já havia desmantelado o seu processo produtivo.
O requerido alegou ter conhecimento de que a insolvente foi objecto de vários furtos, assaltos e actos de vandalismo às suas instalações, e que terão sido objecto de participação às autoridades policiais e ainda que, contra a insolvente corriam diversos processos executivos, em que se encontravam penhorados bens móveis e imóveis. Desconhecendo quais os bens móveis vendidos ordem desse processo, porque é o mesmo anterior à sua nomeação.
Mais alegou, no que diz respeito à central de cogeração, que os componentes existentes à data em que foi nomeado para a administração, são exactamente os que se encontram nas instalações da insolvente à data da declaração de insolvência.
Sendo que, no momento em que foi nomeado para os órgãos de administração da insolvente, foi-lhe transmitido pela anterior administração que os equipamentos ainda existentes nas instalações eram pertença de outra sociedade.
Já quanto à violação do dever de colaboração que lhe é imputada, o requerido AA alegou que, conforme resulta dos documentos pelo administrador da insolvência, este tentou contactar os responsáveis pela administração da insolvente apenas por uma vez. Não tendo a carta que lhe foi remetida recepcionada porque não se encontrava em Portugal, nem tão pouco tomou conhecimento por qualquer via da declaração de insolvência.
O requerido alegou ainda que as dividas existentes já existiam antes de ter assumido a administração da insolvente e não foram contraídas nos 3 anos que antecederam o processo de insolvência.
Mais alegou que aceitou assumir a administração da empresa, com intuito de a revitalizar, e reactivar a licença de co-geração propriedade da insolvente e que tinha sido revogada em Dezembro de 2014, estando à data a negociar as dividas com vista à recuperação da sociedade, daí decorrendo que não existiria o dever de apresentação à insolvência.
Sendo que, quanto à não apresentação de contas, nos anos de 2014 e 2016, desconhece porque não foi realizada a prestação de contas, dado que ainda não se encontrava em funções.
Tendo já sobre a égide da sua administração promovido a apresentação de contas referentes ao ano de 2015, tendo para o efeito contactado um novo Contabilista Certificado.
E quanto ao ano de 2016, antes de partir para Angola, disponibilizou todos os elementos contabilísticos da insolvente à contabilidade para a competente apresentação.
Alegou ainda que, pese embora seja verdade que o processo produtivo se encontrava parado, motivado pela apreensão de bens nos processos executivos, também é verdade que quando assumiu a administração, a insolvente não se encontrava a beneficiar da produção de energia em co-geração.
Sem prejuízo de ser falso que a insolvente tenha recebido da C..., de Janeiro a Dezembro de 2014, a quantia de € 2.167.929,89, uma vez que é do seu conhecimento que essa quantia apesar de auto facturada pela C..., nunca foi paga pela mesma e muito menos recebida pela insolvente.
Termos em que pugnou pela qualificação da insolvência como fortuita e subsidiariamente pela sua não afectação.
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Foi proferida sentença, em 10/01/2022, qualificando como fortuita a insolvência da Sociedade B..., S.A. e não atribuindo culpa pela sua ocorrência a nenhum dos requeridos.
Tal sentença proferida foi anulada pelo Venerando Tribunal da Relação de Porto, ao abrigo do disposto nos artigos 662º nº 2 alínea c) e 6º do Código de Processo Civil, por se mostrar indispensável a ampliação da matéria, com observância da alínea c) do nº 3 do mesmo artigo.
Em cumprimento do determinado realizou-se nova audiência de julgamento, com observância das formalidades legais, para apurar os factos aditados.
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Oportunamente foi proferida sentença na qual se decidiu:
“Pelo exposto, qualifico como fortuita a insolvência da sociedade B..., S.A., não atribuindo culpa pela sua ocorrência a nenhum dos requeridos.
Custas a cargo da massa insolvente.
Registe e notifique.”
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C..., S.A. (“C...” ou “Recorrente”), Requerente do incidente de qualificação da insolvência, apelou desta sentença concluindo nas suas alegações:
1.ª Vem o presente recurso interposto pela Recorrente da decisão do Tribunal de Primeira Instância, proferida em 06 de fevereiro de 2023, que julgou a insolvência da B... fortuita não atribuindo culpa pela sua ocorrência a nenhum dos propostos afetados pela qualificação.
V.1. No que respeita à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no artigo 615.º, n.º 1 d) do CPC
2.ª O tribunal recorrido, à semelhança do que fizera na sentença proferida em 10/01/2022, não apreciou, como era seu mister, do preenchimento da cláusula geral do n.º 1 do artigo 186.º do CIRE.
3.ª No requerimento para abertura do incidente de qualificação da insolvência, a C... havia requerido ao tribunal recorrido que, caso não considerasse verificada qualquer das presunções iure et de iure ou iuris tantum dos n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE, qualificasse a insolvência como culposa pelo preenchimento, face aos factos alegados e provados, da cláusula geral do n.º 1 do mesmo preceito, com afetação dos anteriores administradores, aqui Recorridos.
4.ª O n.º 1 do artigo 186.º do CIRE tem autonomia face às presunções previstas nos n.ºs 2 e 3 do mesmo preceito, que não o sonegam, pelo que, mesmo considerando não verificados os pressupostos de aplicação dos mencionados n.ºs 2 e 3 do artigo 186.º do CIRE (sem razão), o tribunal recorrido deveria ter aferido do preenchimento dos pressupostos de aplicação do n.º 1 do mesmo artigo.
5.ª Contudo, não o fez, não tendo, sequer, cuidado de justificar esta omissão.
6.ª O poder judicial não pode demitir-se, sem quaisquer consequências, da sua função, isto é, apreciar/sindicar o que lhe for exposto pelas Partes e o que deva conhecer oficiosamente, e, com base em tudo quanto for alegado e provado, decidir, subsumindo a matéria de Direito aplicável à concreta matéria de facto.
7.ª Quando o tribunal se demite de tal função (como sucede nos autos), ou a exerce, deficientemente, viola o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do CPC, ferindo de nulidade a sentença recorrida, nos termos da alínea d), do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
8.ª Nestes termos, requer-se que o Tribunal da Relação julgue nula a sentença recorrida com base em “omissão de pronúncia”, por não apreciação pelo Tribunal a quo do preenchimento da cláusula geral do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, o que se faz ao abrigo dos artigos 608.º, n.º 2 e 615.º, n.º 1 alínea d), ambos do CPC, nos termos e com os fundamentos acima.
V.2. Quanto à impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
9.ª Os factos f) a i) da lista de factos não provados da sentença recorrida, relacionam-se se com a circunstância de os Recorridos saberem que ao desmantelar o processo industrial da Insolvente não estavam a produzir energia em cogeração, saberem que não podiam vender essa energia como se tivesse sido produzida em cogeração, muito menos, ao abrigo do regime remuneratório bonificado e que foram os requeridos, em nome da Insolvente, que receberam a quantia de € 2.167.929,89 pela energia fornecida.
10.ª Com efeito, DD, Diretor de Vendas da C..., identifica expressamente no seu depoimento, de 10/01/2023, minutos 00:27:24 a 00:29:38, o Requerido AA como tendo sido um dos interlocutores da Insolvente e tendo chegado a reunir-se com o mesmo.
11.ª É razoável presumir, de acordo com as regras normais de experiência, que se AA, enquanto interlocutor da Insolvente, reuniu com o Diretor de Venda de Energia da C..., então aquele tinha conhecimento de como é que a Insolvente produzia energia e quais eram os pressupostos segundo os quais a Insolvente podia vender tal energia à C....
12.ª Assim sendo, devem considerar-se provados os factos f), g) e h) da lista de factos não provados, pois é de presumir, de acordo com as regras normais de experiência, que os Requeridos sabiam que não estavam a produzir energia em cogeração e que sabiam que não podiam vender essa energia, muito menos ao abrigo de um regime bonificado.
13.ª Também deve ficar provado o facto i) da lista de factos não provados, pois se DD, que era o diretor de venda de energia da C... referiu que se reuniu com o Requerido AA, então eram os Requeridos aqueles que, em nome da Insolvente, recebiam as quantias auferidas pela venda de eletricidade. Veja-se o depoimento de DD, de 10/01/2023, minutos 00:27:24 a 00:29:38, onde afirmou ter “trat[ado] [com o Recorrido AA] de assuntos relacionados com a faturação.”
V.3. Quanto ao aspeto jurídico da causa:
V.3.1O preenchimento da hipótese legal do artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CIRE
14.ª O tribunal recorrido, julgou que não foram demonstrados factos suficientes para preencher a hipótese legal do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CIRE.
15.ª Porque apesar de ter constatado e ter dado como provado que todo o património da insolvente desapareceu (de tal forma que o único bem que foi apreendido para a massa insolvente foi um veículo automóvel que foi vendido por €12.500,00…),
16.ª O Tribunal entendeu que, para preencher a hipótese do artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CIRE, era necessário alegar e provar como e em que circunstâncias é que esses bens desapareceram do património da insolvente: se foram alienados a um preço justo, se pereceram por facto natural, se foram removidos sem contrapartida.
17.ª Esta interpretação do artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CIRE está errada e contraria não só a letra do preceito como o seu espírito, de modo que vai frontalmente contra a jurisprudência existente a este respeito.
18.ª Para o preenchimento da hipótese legal importa apenas que a situação de todos ou de parte considerável dos bens da insolvente se tenha alterado, de tal forma que “impeça ou dificulte a sua identificação, acesso ou accionamento pelo credor”.
19.ª De resto, é essa a única interpretação consentânea com o elemento literal, sendo que o vocábulo desaparecer significa, justamente, “deixar de aparecer ou de ser visto” e “não poder ser encontrado”.
20.ª Portanto, ao contrário do que considerou o tribunal recorrido, o simples facto de não se ter podido encontrar nem os geradores nem os automóveis da insolvente, e nem sequer se ter podido, por recurso à contabilidade da Insolvente, saber que destino foi dado a esses bens, já é suficiente para preencher a hipótese legal da al. a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
De todo o modo,
21.ª É de excluir a hipótese de os bens terem deixado o património da insolvente por terem sido vendidos (ou, pelo menos, de o terem sido em proveito da insolvente ou dos credores desta), por duas ordens de razão.
22.ª Em primeiro lugar, porque se os bens em causa tivessem sido vendidos, ter-se-ia gerado um fluxo de caixa a favor da Insolvente, eventualmente, depositado numa conta aberta em nome desta.
23.ª Mas a verdade é que não foram apreendidos para a massa quaisquer depósitos à ordem da insolvente.
24.ª Em segundo lugar, quanto aos veículos, estes continuam registados em nome da Insolvente (excepto o que acabou por ser apreendido e vendido) e não é crível que um terceiro (de boa-fé) adquira um veículo e não queira que o mesmo fique registado em seu nome.
Ainda assim,
25.ª Mesmo que os bens tivessem sido vendidos, tal não obstaria a que se preenchesse a hipótese da norma em equação, em linha com o decidido pelo acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 07/09/2020, relatado pelo Desembargador Moreira Dias.
26.ª Desde que o resultado dessa putativa venda tenha sido – como foi in casu – o de tornar desconhecido o paradeiro desses bens e pô-los a cobro da atuação dos credores, a hipótese é, não obstante, preenchida.
Aliás,
27.ª Ainda que os bens da Insolvente tivessem sido vendidos e o produto dessa venda tivesse chegado a integrar o património desta, ou mesmo que tivesse sido usado para pagar a alguns credores, isso não afastaria o preenchimento da hipótese do artigo 186.º, n.º 2, al. a) do CIRE porquanto “se desconhece o destino dado a esse dinheiro, já que o mesmo não foi encontrado e apenas foi apreendida para a massa insolvente [um automóvel] ”
28.ª De todo o modo, a prova coligida nos autos não permite sequer dizer que os bens tenham sido vendidos para pagar a algum(ns) credor(es) porque:
a. Por um lado, até ao final de 2015 – data em que a Insolvente ainda tinha no seu património os bens cujo desaparecimento está em causa –, esta tinha um passivo inscrito contabilisticamente no valor de € 2.413.475,90; e
b. Por outro lado, foram julgados verificados no processo de insolvência créditos de capital sobre a insolvência no montante total de € 4.376.655,03 34 Idem, ibidem. (que corresponde a quase o dobro do que estava inscrito contabilisticamente).
29.ª Portanto, não se pode, segundo as regras da experiência comum, ponderar que aqueles ativos tenham sido vendidos para fazer face às obrigações vencidas da Insolvente (tendo, especialmente, em conta que não estariam, desde 2015 a ser gerados novos passivos de exploração, dado o desmantelamento da actividade produtiva).
30.ª Também não é de molde a afastar o preenchimento da hipótese legal o facto conjetural de os bens poderem ter perecido “por causas naturais” como se diz na decisão recorrida.
31.ª É que, se acaso esses bens tivessem perecido por alguma causa natural, haveria omissão do dever dos administradores de zelarem pela conservação do património da sua administrada, o que seria de enquadrar esse resultado na hipótese do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CIRE.
32.ª Donde, e em suma, seja por que via for, mas essencialmente porque não foi possível encontrar nem saber qual o destino dado à quase totalidade dos bens que compunham o património da Insolvente, devia o tribunal recorrido ter julgado verificada a hipótese legal do artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CIRE.
33.ª Assim não tendo decidido, o tribunal recorrido violou aquela norma e, por isso, deve a decisão proferida ser revogada e substituída por outra que, interpretando corretamente aquele preceito e aplicando-o ao caso dos autos, julgue verificada a presunção inilidível de culpa dos administradores da Insolvente, prevista no artigo 186.º, n.º 2, al. a), do CIRE,
34.ª e, por consequência, qualifique como culposa a insolvência da B... e afetados por essa qualificação os Recorridos Administradores desta, condenando-os, solidariamente, a indemnizarem os credores pelo montante dos créditos destes que não fiquem satisfeitos no processo de insolvência.
Sem conceder,
V.3.2O preenchimento da cláusula geral de qualificação da insolvência do artigo 186.º, n.º 1, do CIRE:
35.ª Mesmo que, sem conceder, não seja possível preencher a alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE deve, ainda assim, qualificar-se a insolvência como “culposa” pelo preenchimento da cláusula geral inscrita no n.º 1 daquele preceito.
Isto porque,
36.ª Está preenchido o pressuposto de que tenha havido prévia declaração de insolvência transitada em julgado: A B... foi declarada insolvente com carácter limitado por sentença proferida em 29.06.2017, que, entretanto, transitou em julgado.
37.ª Quanto às condutas, ativas ou omissivas, do devedor ou de terceiro, nomeadamente um administrador, de facto ou de direito, ocorridas nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, temos, em síntese, que:
a. Estes desmantelaram o processo produtivo principal, de fabrico e comércio de telhas e outros produtos cerâmicos, pelo menos em data anterior a 08.03.201435,
b. e, não obstante, mantiveram a produção de eletricidade, porém, sem aproveitamento térmico, “[…] pelo menos, [até] Abril de 2015”36, em violação das licenças atribuídas, cuja normal exploração afiançava, até então, à Insolvente uma retribuição anual, aproximadamente, de € 2.000.000,00.
c. Com isso, fizeram com que a Insolvente incorresse na obrigação de restituir à Recorrente, o valor de € 2.167.929,8937, em face da cobrança indevida pela Insolvente, porque ilegal, durante o ano de 2014, de uma tarifa bonificada38 em contrapartida da eletricidade (veja-se, sem aproveitamento térmico) vendida à Recorrente.
38.ª Portanto, devia o tribunal a quo ter julgado que os administradores da Insolvente sabiam que o processo produtivo principal tinha sido desmantelado e a produção de energia se fazia à revelia das licenças atribuídas à Insolvente.
39.ª E que, com isso, privaram a Insolvente das receitas que a produção de energia em cogeração lhe gerava, no montante de 2 milhões de euros por ano.
40.ª Simultaneamente, a cobrança ilegítima pelos administradores Recorridos à C... de valores bonificados, durante o ano de 2014, redundou num passivo para a Insolvente superior a dois milhões de euros, em concreto de € 2.167.929,89, igual ao montante faturado à Recorrente, naquele ano, pela eletricidade vendida como se tivesse sido produzida em cogeração.
41.ª Quanto ao nexo causal, tem de se considerar que o desmantelamento do processo produtivo principal, a colocação de uma sociedade numa situação de ilegalidade administrativa pelos administradores e a constituição de um passivo que ascende os € 2.167.929,89 são “antecedente[s] normalmente apto[s] (adequado[s]), […] segundo a ordem natural das coisas e a experiência da vida.” a espoletar ou, pelo menos, agravar uma situação de insolvência da B....
42.ª Donde, estão, pois, preenchidos quatro dos requisitos que delimitam a previsão do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, a saber
a. a prévia declaração de insolvência (da aqui Insolvente) transitada em julgado;
b. a existência de comportamentos ativos dos administradores da Insolvente, ocorridos nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência,
c. dos quais sobressai a sua ilicitude,
d. e, bem assim, a existência de nexo causal entre os ditos comportamentos e a criação e/ou agravamento da situação insolvencial da B....
43.ª Acresce que, em face dos elementos probatórios produzidos nos autos, os administradores da Insolvente atuaram com culpa grave.
44.ª Porquanto, o bom pai de família, colocado na posição dos administradores da Insolvente, desde logo, não atuaria de modo a colocar a sociedade da qual era administrador numa situação de ilegalidade administrativa e não cobraria uma tarifa bonificada, sabendo que o fazia em violação das licenças atribuídas e que com isso geraria um passivo para a sociedade, correspondente ao montante indevidamente faturado.
45.ª Preenchidos todos os requisitos para que se conclua, no caso, pela insolvência culposa da B... e respetiva afetação dos administradores Recorridos ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, ou, pelo menos, do artigo 186.º, n.º 1 do CIRE, deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que decida nesses precisos termos, o que, desde já, se requer.
Sem prejuízo,
V.3.3As erradas (e despropositadas) considerações sobre a conduta e o crédito da C...
46.ª Não se bastando com o facto de, erradamente, ter julgado a insolvência da B... fortuita, o tribunal recorrido tece, no final da decisão recorrida (pp. 45 a 48), considerações a despropósito sobre a conduta da C... cuja verdade importa repor.
47.ª Primeiro, a atividade de produção de energia em cogeração é uma coisa; a actividade (ilícita) de produção de energia como se fosse em cogeração, mas sem o aproveitamento térmico de um processo industrial principal, é outra.
48.ª Portanto, é ostensivamente incorreta a afirmação do tribunal recorrido de que vender energia (mesmo que produzida sem aproveitamento térmico) era uma atividade geradora de receitas para a Insolvente: a energia vendida como se fosse produzida em cogeração, mas sem o ser não gerava receitas, gerava passivos.
49.ª Segundo, é absolutamente falso que não tenha sido “suscitada a questão do seu [da energia vendida e produzida sem aproveitamento térmico] pagamento indevido e reconhecido o direito à devolução de tais quantias”.
50.ª De tal maneira foi suscitada a questão que o tribunal inclusivamente a incluiu como tema de prova (h) no despacho saneador.
51.ª Por outro lado, a circunstância de a C... não ter requerido a declaração de insolvência em nada reduz ou exclui o resultado da atuação dos administradores desta: o de que tendo vendido ilicitamente energia como se tivesse sido produzida em cogeração, colocaram a insolvente na posição de ter de restituir as quantias recebidas a esse título, gerando-lhe um passivo.
52.ª A C... não tinha nenhuma obrigação de requerer a insolvência – os Recorridos é que a tinham e não a cumpriram – e, portanto, nenhuma consequência pode ser extraída de uma “não-obrigação”, ao contrário do que pretende o tribunal recorrido.
53.ª Também para excluir a responsabilidade dos administradores pela insolvência da B... por terem-na feito enveredar pela atividade ilícita de produção e venda de energia como se fosse em cogeração, sem o ser, diz erradamente o tribunal recorrido que:
a. “parte das quantias facturadas sempre seriam devidas”; e que
b. “sempre existirá um enriquecimento sem causa por parte da credora C..., na parte em que, no montante reconhecido, não foram relevados os valores de mercado equivalentes a tal rendimento que obteve”.
54.ª Ambas as afirmações estão erradas.
55.ª A primeira porque, sendo a atividade em que os Recorridos fizeram a Insolvente enveredar uma atividade ilícita, nenhumas quantias podiam ter sido faturadas pela venda de eletricidade em termos ilegais.
56.ª Isto mesmo foi explicado na audiência de discussão e julgamento de 30/11/2021 pela testemunha M.ª EE, da DGEG, que disse perentoriamente que “nem devia ter sido faturado nada, a questão é essa”, assim como também depôs na audiência de julgamento de dia 10/01/2023 (minutos 00:27:00 a 00:27:24)
57.ª A segunda porque, de acordo com o regime legal aplicável, a C..., na sua função de CUR, não obtém qualquer rendimento da comercialização de energia elétrica que obrigatoriamente tem de comprar aos preços fixados pelo Estado aos produtores em regime especial (como era o caso da Insolvente):
a. A C... não aufere qualquer rendimento da compra e venda de eletricidade.
b. Os custos e as receitas da compra e venda de energia elétrica são custos e receitas do sistema elétrico nacional, e não da C....
c. Mais: os proveitos permitidos da C... não são influenciados por energia injetada na rede não adquirida pela mesma.
d. São, portanto, apenas os proveitos permitidos definidos administrativamente pela ERSE, com exclusão de quaisquer outros, que constituem as receitas da C....
58.ª Portanto, a C... nada ganhou (i.e. não tem qualquer proveito) com a eletricidade que, ilegalmente, a Insolvente injetou na rede e que cobrou à tarifa bonificada, como se a eletricidade vendida tivesse sido produzida em cogeração, quando o não foi.
59.ª Pelo simples facto de que os proveitos da C... são fixados administrativamente.
60.ª Donde, são erradas as considerações finais tecidas pelo tribunal recorrido para afastar a conclusão de que, ao terem feito a Insolvente enveredar pela actividade ilegal de produzir e vender energia produzida sem aproveitamento térmico, como se fosse produzida em cogeração, causaram ou agravaram a situação de insolvência da B....
61.ª Por conseguinte, por não colherem os pretensos argumentos em detrimento da culpa na criação da insolvência, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue que a insolvência foi culposamente causada ou agravada pelos Recorridos.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que, julgando a insolvência culposamente causada pelos Recorridos, os condene a indemnizar os credores pelos montantes dos créditos não pagos no processo de insolvência, com as demais consequências legais.
*
A matéria de facto fixada na sentença recorrida.
Os factos provados.
1) Em 08/03/2017, A..., Lda. requereu a insolvência da sociedade B..., S.A.
2) Por sentença proferida em 29/06/2017 foi declarada a insolvência da referida sociedade com carácter limitado, tendo tal sentença sido posteriormente complementada, em 11/08/2017, com abertura do incidente de qualificação da insolvência com carácter pleno.
3) A sociedade B..., S.A. alterou a sua sede, em 25/01/2012, para a Estrada ....
4) Por deliberação de 25/05/2010, foram nomeados os seguintes administradores da B..., S.A., para o quadriénio 2010/2013:
- FF (presidente);
- GG;
- HH.
5) Em 30/08/2013, FF renunciou a tal cargo, tendo sido nomeada para completar o quadriénio, nessa mesma data, II.
6) Por deliberação de 31/07/2014, foram nomeados os seguintes administradores da B..., S.A., para o quadriénio 2014/2017:
- II (presidente);
- HH;
- JJ.
7) Em 31/07/2015, II renunciou a tal cargo.
8) Em 22/12/2015, HH e JJ também renunciaram a tais cargos.
9) Por deliberação de 31/07/2015, AA foi nomeado como vogal do Conselho de Administração da B..., S.A., para o quadriénio 2014/2017.
10) Por deliberação de 22/12/2015, AA foi nomeado presidente do Conselho de Administração da B..., S.A., para o quadriénio 2014/2017 e foram ainda nomeados para o cargo de vogal do Conselho de Administração da B..., BB e CC.
11) Além de produzir cerâmica, a sociedade B..., S.A. era produtora de electricidade em regime de cogeração, tendo-lhe sido concedidas licenças de estabelecimento por despacho de 9 de Agosto de 2005 e posteriormente, por despacho de 18 de Julho de 2007.
12) Em 13/06/2006, a C..., S.A. e a sociedade B..., S.A., por escrito, declararam celebrar entre si o contrato denominado de compra de energia eléctrica, nos termos e com as cláusulas constantes do documento junto a fls. 128 a 132 dos autos (documento junto com as alegações da credora C... sob o nº 7), cujo teor se reproduz na íntegra.
13) Posteriormente a C..., S.A. declarou ceder a sua posição contratual à sociedade C..., S.A. (C...), o que comunicou à sociedade B..., S.A., por carta datada de 18/01/2007.
14) A sociedade B..., S.A. dedicou-se à actividade de fabrico e comércio de telhas e outros produtos cerâmicos até data concretamente não apurada, mas anterior a 08/03/2014, altura em que parou tal actividade e desmantelou o processo produtivo.
15) Além da referida actividade, a B... tinha uma central de cogeração, para a produção de energia eléctrica e térmica pelo processo de cogeração, que era composta por:
- um gerador com a potência de 1400kW (1500kVA), accionado por um motor de combustão a gás natural, com um valor de mercado estimado, em 2017, entre os € 70.000,00 e os € 148.750,00, consoante o seu estado de degradação;
- um gerador com a potência de 1394 kW (1550kVA), accionado por um motor de combustão a gás natural, com um valor de mercado estimado, em 2017, entre os € 70.000,00 e os € 148.750,00, consoante o seu estado de degradação;
- um transformador com 4000kVA, 0,4/15kV, com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 25.000,00; e
- os respectivos equipamentos de comando, corte, protecção e medição, com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 7.500,00.
16) Não obstante ter cessado a sua actividade, nos termos referidos em 14), a insolvente continuou o processo de cogeração sem aproveitamento térmico até data concretamente não apurada, mas pelo menos até Abril de 2015, mantendo os equipamentos referidos em 15) nas suas instalações.
17) Na sequência de inspecção, nos termos que resultam do documento junto a fls. 133v a 134 dos autos (documento junto com as alegações da credora C... sob o nº 9), a Direcção Geral de Energia e Geologia (DGEG), por carta datada de 21/10/2014, comunicou à B..., S.A. a intenção de revogação das licenças de produção que lhe haviam sido concedidas, nos termos constantes do documento junto a fls. 245 a 245v dos autos (documento junto com as alegações da credora C... sob o nº 14), cujo teor se reproduz na integra.
18) Por decisão proferida em 03/12/2014, o Director Geral da DGEG proferiu decisão a revogar as mencionadas licenças nos termos constantes do documento junto a fls. 246 a 247 dos autos (documento junto com as alegações da credora C... sob o nº 15), cujo teor se reproduz na íntegra.
19) Em data concretamente não apurada, mas depois de 16 de Setembro de 2014, os equipamentos referidos em 15) foram retirados das instalações onde se encontravam e onde a B..., S.A. havia exercido a sua actividade, não tendo sido possível ao administrador da insolvência encontrar o seu paradeiro e nem apurar que destino lhe foi dado.
20) Em data também concretamente não apurada, foram também retirados das referidas instalações todos as máquinas, equipamentos e matérias-primas que se destinavam à actividade de fabrico e comércio de telhas e outros produtos cerâmicos, não tendo sido possível ao administrador da insolvência encontrar o seu paradeiro e nem apurar que destino lhe foi dado.
21) Por documento escrito, outorgado em 01/02/2014, HH, em representação da B..., S.A. e JJ, em representação da sociedade D..., Unipessoal, Lda. declararam, respectivamente, prometer vender e prometer comprar, os prédios ali identificados, nos termos e condições constantes do documento junto a fls. 290v a 292 dos autos (documento junto com a oposição do requerido AA), cujo teor se reproduz na íntegra.
22) Tendo, entre o mais, sido ali consignado que a D..., Unipessoal, Lda. se obrigaria a permitir que os equipamentos de cogeração instalados ali permanecessem e o preço global de venda de tais prédios seria de € 1.010.000,00, deduzido do valor de € 510.000,00, como contrapartida da referida obrigação.
23) Por escritura pública, outorgada em 10/02/2014, HH, em representação da B..., S.A. e JJ, em representação da sociedade D..., Unipessoal, Lda. declararam, respectivamente, vender e comprar, os prédios ali identificados, nos termos e condições constantes da certidão junta a fls. 296 a 299 dos autos (junta com a oposição do requerido AA), cujo teor se reproduz aqui na íntegra.
24) Por escritura pública, outorgada em 06/05/2014, HH, em representação da B..., S.A. e JJ, em representação da sociedade D..., Unipessoal, Lda. declararam, respectivamente, vender e comprar, os prédios ali identificados, nos termos e condições constantes da certidão junta a fls. 292v a 295v dos autos (junta com a oposição do requerido AA), cujo teor se reproduz aqui na íntegra.
25) Os prédios referidos em 23) e 24) correspondem aos prédios identificados em 21).
26) O administrador da insolvência, durante o mês de Agosto de 2017, deslocou-se às instalações acima referidas e verificou que o imóvel se encontrava abandonado e vandalizado.
27) Encontram-se registados a favor da B..., S.A. os seguintes veículos:
a. Tractor Agrícola, ..., matrícula JH-..-.., com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 3.000,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento;
b. Veiculo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-AC com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 650,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento;
c. Veiculo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-..-ZO com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 7.500,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento;
d. Veiculo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-HR-.. com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 15.000,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento; e
e. Veiculo pesado de mercadorias, com a matrícula ..-..-MN com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 25.000,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento.
28) O Sr. administrador da insolvência não logrou encontrar os referidos veículos e nem apurar que destino lhes foi dado.
29) Além dos acima referidos encontra-se registado a favor da B..., S.A. o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-LI-.. com um valor de mercado estimado, em 2017, em € 27.500,00, caso estivesse em condições normais de funcionamento, veiculo esse que foi apreendido para a massa insolvente e vendido por € 12.500,00.
30) A C..., não obstante o referido em 16), pagou à B..., S.A., em 2014, um valor total € 2.167.929,89 (com IVA a 23% incluído), tendo a electricidade fornecida sido paga a uma tarifa bonificada, no pressuposto de que a mesma mantinha a produção de electricidade em sistema de cogeração.
31) Os administradores da B..., S.A., à data, não informaram que o processo produtivo da empresa estava parado e que por isso não havia aproveitamento térmico para o processo industrial e produção de energia em cogeração. Tendo emitido, entre Janeiro e Dezembro de 2014, 12 facturas no montante global de € 2.167.929,89 (com IVA de 23% incluído).
32) A B..., S.A. não procedeu ao depósito das contas relativas a 2014, mas aprovou as contas relativas a 2014.
33) A B..., S.A. não aprovou as contas de 2016 e nem procedeu ao seu depósito.
34) O Sr. administrador da insolvência, em 12/07/2017, remeteu aos requeridos as cartas com o teor constante dos documentos juntos a fls. 22 a 29 dos autos, que aqui se dá por reproduzido, tendo tais cartas sido devolvidas por não terem sido reclamadas.
35) Os requeridos não contactaram o administrador da insolvência.
36) Na sentença de declaração de insolvência fixou-se a residência dos administradores da insolvente, AA, na Quinta ..., ..., ... ...; BB, na Estrada ..., ..., ..., ... Águeda; e CC, na Rua ..., ... Matosinhos.
37) As cartas para citação dos requeridos após a sentença complementada, referida em 2), foram devolvidas por não terem sido reclamadas.
38) De harmonia com as IES apresentadas pela insolvente, relativas aos exercícios de 2014 e 2015, o valor do activo, nos referidos anos, respectivamente, era de € 2.884.211,03 e € 3.089.062,65.
39) De harmonia com as IES apresentadas pela insolvente, relativas aos exercícios de 2014 e 2015, o valor do passivo, nos referidos anos, respectivamente, era de € 2.155.756,71 e € 2.413.475,90.
40) De harmonia com as IES apresentadas, a B..., S.A. apresentou, nos exercícios de 2014 e 2015, respectivamente, um resultado líquido do exercício de € 17.661,22 e de € 30.473,48.
41) Na IES apresentada, relativa ao exercício de 2015, o activo não corrente apresenta um valor de € 623.478,06, referente a activos fixos tangíveis, um valor de € 270.513,61, referente a participações financeiras e um valor de € 792.969,16, referente a outros activos financeiros.
42) Em Março de 2017, a insolvente tinha dívidas fiscais no valor total de € 73.023,44 e dívidas à Segurança Social no valor de € 3.833,54.
Factos aditados:
43) Por ofício datado de 02/02/2015, recebido pela C... em 04/02/2015, a DGEG deu conhecimento à C... da revogação da licença de estabelecimento referente à central de cogeração da B... referida em 18).
44) A C... remeteu à B... a carta, com data de 07/12/2015, com o teor que resulta do documento nº 3 junto, com a resposta apresentada em 29/07/2019, que aqui se dá por reproduzido, solicitando a devolução, no prazo máximo de 20 dias, de todas as quantias constantes das 12 facturas ali indicadas, não tendo até à data sido efectuado qualquer pagamento.
45) A C... remeteu à B... a carta, com data de 20/01/2016, com o teor que resulta do documento nº 4, junto com a resposta apresentada em 29/07/2019, enre o mais declarando o seguinte: “se não nos for apresentada uma proposta de regularização da situação em apreço no prazo de 15 dias, contemplando, designadamente, um plano de pagamento das quantias em causa, seremos forçados a acionar todos os meios ao nosso dispor por forma a proceder à cobrança coerciva do referido crédito, bem como dos respetivos juros de mora, custos judiciais e outros que incrementarão o montante referido”.
46) B... não procedeu ao pagamento do montante de € 2.167.929,89 (Iva incluído) e nem respondeu às cartas de interpelação enviadas pela C....
47) Na IES de 2015, no quadro referente a quantia escriturada e movimentos do período em activo fixos tangíveis, foram ali inscritos, a título de quantia liquida escriturada final, os seguintes valores:
a. Equipamento básico: € 593.723,42;
b. Equipamento de transporte: € 27.291,67;
c. Equipamento administrativo: € 212,97
48) Na IES de 2015, no quadro 4-A (balanço), referente a activos fixos tangíveis, encontra-se inscrito na coluna N o valor de € 623.478,06, mostrando-se a coluna N-1 em branco.
49) Na IES de 2015 foi inscrito um passivo total de € 2.413.475,90.
50) O administrador da insolvência, em 19/10/2017, apresentou a lista definitiva dos créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos que resultam da cópia junta a estes autos em 11/10/2022, que aqui se reproduz, ali reconhecendo créditos de capital (excluindo juros) no montante total de € 4.359.918,48.
51) Tal lista foi impugnada pelo credor KK, pretendendo o reconhecimento de dois créditos comum, um no valor global de € 14.510,55 relativo a créditos laborais em divida e outro no valor global de € 2.226,00, a título de compensação prevista no disposto no artigo 366º do Código do Trabalho, com natureza privilegiado, com fundamento na sua indevida exclusão.
52) O Sr. administrador da insolvência foi notificado da impugnação e apresentou resposta, em 28/11/2017, reconhecendo tais créditos.
53) Em 25/06/2020 foi proferida sentença de reconhecimento e graduação de créditos, nos termos que resultam da certidão junta em 11/10/2022, homologando a lista definitiva de créditos apresentada pelo administrador da insolvência e reconhecendo ainda o crédito de KK, nos precisos termos em que foi impugnado e reconhecido posteriormente pelo administrador da insolvência.
54) Foram reconhecidos créditos no valor total de € 4.835.193,98, sendo que à C..., S.A. foram reconhecidos créditos, com o valor de capital de € 2.167.929,89, num total com juros de € 2.397.570,09.
55) O administrador da insolvência não logrou apreender efectivamente para a massa insolvente qualquer outro bem ou direito para além do veículo referido em 29), que foi vendido pelo montante de € 12.500,00, tendo sido este o único bem liquidado.
*
Não se provou o seguinte:
a) Os geradores referidos em 15), em bom estado de conservação, teriam um valor de mercado, no seu conjunto, até € 1.000.000,00 e no caso de se apresentarem em mau estado de conservação um valor de mercado, no seu conjunto, de pelo menos € 50.000,00.
b) Os veículos acima referidos teriam, no seu conjunto, um valor de mercado de, pelo menos, € 200.000,00.
c) As máquinas, equipamentos e matérias-primas que se destinavam à actividade de fabrico e comércio de telhas e outros produtos cerâmicos ainda se encontravam nas instalações em Setembro de 2014.
d) A B..., S.A. não recebeu qualquer contrapartida pela remoção dos equipamentos, matérias-primas e equipamentos de cogeração acima referidos.
e) O requerido AA, antes de partir para Angola, disponibilizou todos os elementos contabilísticos da insolvente à contabilidade para a competente apresentação das contas referentes a 2016.
Factos aditados:
f) Durante o ano de 2014, os requeridos AA, BB e CC sabiam que, tendo desmantelado o processo industrial principal da empresa e não havendo, por isso, aproveitamento térmico desse processo industrial para a produção de energia, não estavam a produzir energia em cogeração.
g) Durante todo o ano de 2014, os requeridos AA, BB e CC sabiam que não podiam vender a energia que estavam a produzir sem aproveitamento térmico à tarifa bonificada.
h) Apesar de saberem que não podiam vender essa energia, nem beneficiar do preço bonificado, os requeridos AA, BB e CC mantiveram, durante todo o ano de 2014, a produção de energia sem aproveitamento térmico e venderam essa energia à tarifa bonificada, de que sabiam não poder beneficiar.
i) Foram os requeridos AA, BB e CC que, em representação da B..., S.A., em 2014, receberam o valor total € 2.167.929,89 (com IVA a 23% incluído), pela electricidade fornecida.
*
Os factos, o direito e o recurso.
A apelante veio impugnar a matéria de facto sendo que quanto a este recurso temos de observar o que preceitua o art.º 640.º n.ºs 1 e 2 do C. P. Civil, ou seja, que é ónus do apelante que pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto, isto é, não basta ao apelante atacar a convicção que o julgador formou sobre cada uma ou a globalidade das provas para provocar uma alteração da decisão da matéria de facto, sendo ainda indispensável, e “sob pena de rejeição”, que:
a) - Especifique quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
b) - Indique quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa da recorrida sobre cada um dos concretos pontos impugnados da matéria de facto; indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
c) – Indique a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
A apelante satisfez estes requisitos.
A impugnação tem o seguinte fundamento:
9.ª Os factos f) a i) da lista de factos não provados da sentença recorrida, relacionam-se se com a circunstância de os Recorridos saberem que ao desmantelar o processo industrial da Insolvente não estavam a produzir energia em cogeração, saberem que não podiam vender essa energia como se tivesse sido produzida em cogeração, muito menos, ao abrigo do regime remuneratório bonificado e que foram os requeridos, em nome da Insolvente, que receberam a quantia de € 2.167.929,89 pela energia fornecida.
10.ª Com efeito, DD, Diretor de Vendas da C..., identifica expressamente no seu depoimento, de 10/01/2023, minutos 00:27:24 a 00:29:38, o Requerido AA como tendo sido um dos interlocutores da Insolvente e tendo chegado a reunir-se com o mesmo.
11.ª É razoável presumir, de acordo com as regras normais de experiência, que se AA, enquanto interlocutor da Insolvente, reuniu com o Diretor de Venda de Energia da C..., então aquele tinha conhecimento de como é que a Insolvente produzia energia e quais eram os pressupostos segundo os quais a Insolvente podia vender tal energia à C....
12.ª Assim sendo, devem considerar-se provados os factos f), g) e h) da lista de factos não provados, pois é de presumir, de acordo com as regras normais de experiência, que os Requeridos sabiam que não estavam a produzir energia em cogeração e que sabiam que não podiam vender essa energia, muito menos ao abrigo de um regime bonificado.
13.ª Também deve ficar provado o facto i) da lista de factos não provados, pois se DD, que era o diretor de venda de energia da C... referiu que se reuniu com o Requerido AA, então eram os Requeridos aqueles que, em nome da Insolvente, recebiam as quantias auferidas pela venda de eletricidade. Veja-se o depoimento de DD, de 10/01/2023, minutos 00:27:24 a 00:29:38, onde afirmou ter “trat[ado] [com o Recorrido AA] de assuntos relacionados com a faturação.”
Analisamos toda a prova produzida nos autos e concluímos que a apelante tem razão. Resulta da prova que a B... injetou energia na rede no ano de 2014, não obstante o processo produtivo já estar desmantelado, não existindo aproveitamento em cogeração, energia que a C... estava obrigada a comprar a preço bonificado. Os co-geradores sabem que isto é ilegal. A B... sabia que não podia produzir energia sem ser em cogeração. Isto posto se os referidos AA (que inclusivamente era a pessoa que estava à frente desta relação comercial com a C...) o BB e CC foram nomeados para a administração do quadriénio de 2014 /2017, conforme factos nºs 9 e 10, temos de concluir que tinham conhecimento de todo o processo de produção de energia ilegal nos termos dos artºs 349º e 351º do C. Civil, ou seja, dos factos provados nos nºs 9 e 10 retira-se por presunção judicial a ocorrência dos factos impugnados nas alíneas f) a i) do rol dos factos não provados. De igual modo temos de presumir que foram os próprios que receberam o preço de acordo com a i).
Na realidade além da posição particular do administrador AA no processo de co geração, também o BB e o CC ao assumir as funções de administradores tinham a obrigação de ficar cientes de todo o processo produtivo, ativo, passivo, etc.
Atento o exposto julgam-se provados os factos constantes das alíneas f) a i) constantes do rol de factos não provados, que assim devem transitar para a lista de provados.

Delimitado o recurso pelas conclusões das alegações as questões que se colocam consistem em saber:
1.se ocorre a nulidade da sentença por omissão do conhecimento no tocante aos factos que se deram como provados á previsão do disposto no nº 1 do artigo 186º do CIRE, nos termos do artº 615º, nº1 d) do CIRE
2.se os factos provados permitem a qualificação da insolvência como culposa.
Refere a sentença recorrida, com a qual concordamos, que,
“Nos termos conjugados do disposto nos artigos 185º e 186º nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, sendo culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
Sendo que o legislador consagrou presunções legais, em regra, nos casos em que a insolvência não recaia sobre pessoas singulares, mas aplicáveis, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações (artigo 186º nº 4 do CIRE).
Nuns casos presunções iuris et de iure, insusceptíveis de serem ilididas (artigo 186º nº 2 do CIRE) e noutros casos, meras presunções iuris tantum, consubstanciando meros factos-indice que fazem presumir a actuação culposa, sendo, porém, susceptíveis de ilisão mediante prova em contrário (artigo 186º nº 3 do CIRE).
Importa, à partida, ter presente, na delimitação da causa, que a análise da actuação do requerido se há-de circunscrever aos três anos que antecederam o início do processo de insolvência, por decorrência expressa do citado artigo 186º nº 1 do CIRE.
Nesta medida, temos por garantido que os únicos factos relevantes para qualificar a insolvência em causa serão apenas os que ocorreram após 8 de Março de 2014.”
No caso dos autos ocorre a impossibilidade de pagamento das obrigações que, pelo seu significado no conjunto do património do devedor, e pelas circunstâncias específicas envolventes do não cumprimento, tornaram patente, a impotência económica da devedora para garantir a satisfação da generalidade das suas obrigações, caracterizando-se o estado de insolvência nos termos do artº 3º, nº1 do CIRE.
De acordo com do disposto no já citado artº 185º do CIRE a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos que caracteriza o estado de insolvência, pode, ser meramente casual, ou fortuita e culposa, lato sensu.
A insolvência é culposa quando esse estado tiver sido criado ou agravado em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência -artº 186 nº 1 do CIRE.
O n.º 2 do art.º 186 do CIRE contém um conjunto de comportamentos e circunstâncias, no lapso de tempo enunciado no nº 1 que se consubstanciam em situações em que a insolvência deverá ser sempre considerada culposa, feita a prova da factualidade às mesmas subsumível, não sendo necessário a prova do nexo de causalidade.
A qualificação da insolvência como culposa pressupõe uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores.
“A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objectivos e subjectivos.
O elemento objectivo afere a ilicitude da actuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência. O elemento subjectivo valora a conduta pelo conhecimento e vontade do devedor ou dos seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência, i.e., pelo dolo ou pela negligência daquele ou destes. Mas não releva uma qualquer negligência – mas apenas uma negligência grave ou grosseira, quer dizer, uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso” – Ac Rel. Coimbra de 07-02-2012, in www.dgsi.pt.
O demérito subjacente à ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores, está no resultado que desse mesmo comportamento pode advir, ou seja, a criação ou agravamento da situação de insolvência declarada. Assim a ilicitude diz respeita a um resultado antijurídico, impondo-se averiguar, não só que esse resultado ocorreu, mas também se pode ser imputado à conduta do devedor ou administradores. Caímos no domínio da causalidade adequada. Para que se conclua pelo carácter culposo da insolvência, além da culpa grave, ainda que presuntiva, dos seus administradores na omissão do cumprimento de qualquer das obrigações previstas nos nºs 1 e 3 do artigo 186º do CIRE, exige-se a prova da relação ou nexo de causalidade adequada entre a conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência do devedor – Ac. STJ de 15-02-2023, in www.dgsi.pt e CIRE Anotado, 2ª edição, págs. 265 e 266, Raposo Subtil, Matos Esteves, Maria José Esteves e Luís Martins. Cfr. Ac. STJ de 28-09-2022, in www.dgsi.pt a propósito da querela jurisprudencial e doutrinária, no sentido de saber se a presunção do nº 3 abrange ou não o nexo causal exigível. A posição maioritária era no sentido de que as presunções não abrangiam o nexo causal, posição que veio a ser acolhida pela redação dada pela Lei 9/2022, de 11.12, ao introduzir a palavra “unicamente”, pondo termo à controvérsia.
Desta feita e em conclusão, além de factos que traduzam culpa grave, efectiva ou presumida, é indispensável que seja provado que a conduta com culpa grave criou ou agravou a situação de insolvência, isto é, o nexo de causalidade, face ao disposto no n.º 1, do art.º 186 do CIRE, com exceção do nº 2 nos termos que referimos.
Analisemos os autos.
Os créditos em dívida são no valor de € 4 359 918, 48 excluindo os juros- factos nºs 48 e 54.
O valor do crédito da apelante proveniente de actividade de produção de energia é de €2 167 929,89 (iva incluído) - factos nºs 46 e 54.
Esta energia deveria ser produzida em regime de cogeração pela insolvente B... – nº 15 dos factos provados-, que não obstante ter cessado o processo produtivo principal continuou a produzir eletricidade nessa modalidade durante o ano de 2014 –nº 16 dos factos provados- traduzindo-se numa actividade ilícita – nºs 17 e 18 -, com consequente recebimento de preço aumentado, preço ilícito – factos nºs 30 e 31. Na verdade esta energia foi paga indevidamente a tarifa bonificada, no pressuposto de que a mesma se mantinha em sistema de cogeração (pressupondo o processo de produção principal em funcionamento), o que significou um agravamento do estado de insolvabilidade em quase metade dos créditos, aumento do passivo, bem sabendo a insolvente e os seus administradores que tal actividade era proibida por lei (nºs 17, 30, 45 e 46), o que se materializa em conduta praticada após o dia 8 de março de 2014, configurando culpa grave no contexto em que foi praticada (já o equipamento do processo principal e matérias primas haviam desaparecido “misteriosamente” em data não apurada conforme deflui dos factos nºs 14 e 19, encontrando-se em Agosto de 2017 as instalações vandalizadas, o que pressupõe desde logo um comportamento doloso, por omissão do dever de guarda inerente à sociedade e aos seus administradores, e, abandonadas, facto nº 26), factos integrantes da previsão do artigo 186º, nº1 do CIRE, conduta que se mostrou adequada à agravação do estado de insolvência em termos de causalidade adequada, que demanda a qualificação da insolvência como culposa. Não só o processo produtivo foi desmantelado, sem que a devedora se apresentasse à insolvência, como mantiveram a produção de energia como se funcionasse em cogeração, gerando dívidas acrescidas à devedora – um “continuum” de produção de dívidas – o qual teve como contrapartida a dissipação do material de produção – nºs 15 e 19 – desta energia, e, no geral de todo o património da devedora garantia comum dos credores como dispõe o artigo 616º do CC.
Com esta conduta a insolvente e os seus administradores agravaram de forma acentuada a situação de insolvência da B..., concluindo-se assim que a insolvência deve qualificar-se como culposa face à previsão do artigo 186º, nº 1 do CIRE, suprindo-se assim a omissão de conhecimento de acordo com o disposto no artº 665º, nºs 1 e 2 do CC.
Se esta sobredita conduta agravou a situação de insolvência em termos de causalidade adequada, a montante a insolvente praticou atos relevantes, isto é, posteriormente a 8 de março de 2014, que integram presunções inilidíveis da culpa e do nexo de causalidade, previstas no artigo 186º, nº 2 a), h) e i), ou seja, de criação da situação de insolvência, demandando desde logo, a sua qualificação como culposa, e bem assim a previsão do nº 3 deste preceito nas alíneas a) e b), as quais se traduzem em presunções juris tantum de culpa grave.
Dispõe o nº3 do artigo 186º do CIRE, “Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial”.
Decorre dos autos que se encontra preenchido a previsão da a).
A devedora com todo o seu historial factual descrito na matéria assente não cumpriu o seu dever de requerer a declaração da sua insolvência - “o devedor deve requerer a declaração da sua insolvência dentro dos 60 dias seguintes à data do conhecimento da situação de insolvência, tal como descrita no nº 1 do art.º 3º, ou à data em que devesse conhecê-la”, artigo 18º nº 1 do CIRE, cfr. também o nº3 – o que se traduz na presunção de culpa a qual não foi ilidida nos termos e do artº 350º, nº 2 do CC, mostrando-se tal conduta adequada ao agravamento da situação de insolvência, atenta a dissipação do património de cogeração e dos veículos e a criação de dívidas.
A devedora B... não procedeu ao depósito das contas em 2014 e não aprovou as contas de 2016 nem procedeu ao seu depósito – nºs 32 e 33 -, o que configura a situação prevista na b). Esta situação faz igualmente presumir a existência de culpa grave e nexo de causalidade, a qual de igual modo, não foi ilidida e se mostra em termos adequados ao agravamento do estado de insolvência dada a impossibilidade de fiscalização patrimonial.
A insolvente manteve as instalações ao abandono, e, mais do que isso permitiu que fossem vandalizadas – nº 26. Neste contexto desapareceram as viaturas identificadas no facto nºs 27, os quais o administrador da insolvência não consegue encontrar – nº 28-, nem os administradores dão resposta para isso como lhe impunham os deveres estatutários. Acresce que a insolvente e os seus administradores fizeram desaparecer o equipamento de produção de energia em cogeração – nºs 15 e 19.
Estes factos preenchem a alínea a) do nº 2 do artº 186º do CIRE que constitui presunção iuris et de iure de insolvência culposa.
A insolvente não apresentou contas – depósito e aprovação – em 2016, nem as depositou em 2014, o que no contexto da situação patrimonial da insolvente, desaparecimento do seu património, inclusivamente de veículos que desapareceram fisicamente, só se sabendo da sua existência por serem bens sujeitos a registo (também sabemos das transacções dos imóveis por serem bens sujeitos a registo, e, cuja transacção requer formalidades exigidas na lei), constitui uma irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira da devedora, além de constituir um incumprimento substancial da obrigação de manter contabilidade organizada.
A contabilidade organizada “deve reflectir todas as operações realizadas pelo sujeito passivo e ser organizada de modo que os resultados das operações e variações patrimoniais sujeitas ao regime geral do IRC possam claramente distinguir-se dos das restantes” -cfr. artigo 17º, nº3, alínea b), do Código de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas-, e cuja execução, segundo o nº2 do artigo 123º do mesmo código, exige que “todos os lançamentos devam estar apoiados em documentos justificativos, datados e susceptíveis de serem apresentados sempre que necessário”, e que “as operações sejam registadas cronologicamente, sem emendas ou rasuras”.
A matéria de facto provada demonstra mais do que desorganização de contabilidade em termos substanciais. Existe uma total omissão da mesma no ano de 2016, bem como omissão do depósito em 2014 – cfr artº 42º Código de Registo Comercial.
Os membros da administração das sociedades comerciais, v.g., os gerentes, estão vinculados ao dever de elaborar e de submeter aos órgãos competentes da sociedade designadamente as contas do exercício, dever que deve ser cumprido no prazo de três meses, contado da data do encerramento de cada exercício anual -artº 65 nºs 1 e 5, 1ª parte, do Código das Sociedades Comerciais – CSC.
Esta situação configura a presunção inilidível de insolvência culposa prevista na h) no nº2.
Também nos autos está patente a previsão da i) n0 nº 2 do CIRE, incumprimento, de forma reiterada, dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
Dispõe o artigo 83, nº 3 que a recusa de prestação de informações e colaboração é apreciada livremente pelo tribunal, designadamente para efeitos de qualificação da insolvência como culposa.
As cartas enviadas para a residência dos administradores foram devolvidas por não reclamadas, e, estes não contactaram o administrador da insolvência – artigos 34 e 35. Resulta ainda dos nºs 36 e 37 que os administradores não foram citados da sentença de declaração de insolvência, uma vez que as cartas foram devolvidas apesar de enviadas para sua residência. Todos administradores de insolvência se colocaram em posição de incontactáveis nos autos de insolvência, demonstrando grave inércia – é o caso para se dizer que desapareceram os bens e os administradores – materializando-se numa recusa da obrigação de prestação de informações sobre a situação patrimonial da insolvente e colaboração com o administrador – é isso que se averigua na insolvência.
Conclui-se assim, que estão demonstrados factos que suportam a qualificação da insolvência como culposa, pelo que, deve a mesma ser qualificada como tal.
O incidente de qualificação afeta a administradora AA, BB e CC nomeados em 22.12.2015 para o quadriénio 2014/2017 pelas razões supra expostas. Ao serem nomeados administradores tinham a obrigação de se inteirar de toda a situação económico financeira da sociedade, e tomar as medidas adequadas. O legislador, através do DL 53/2004, de 18 de Março que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas teve como objectivo, de acordo com o seu preâmbulo nº 40, uma “mais eficaz responsabilização dos titulares de empresas e dos administradores, como finalidade do novo incidente de qualificação da insolvência, atendendo até ao propósito de evitar insolvências fraudulentas, “o que ficaria seriamente prejudicado” … “caso não sobreviessem quaisquer consequências para os administradores que tivessem contribuído para as situações”.
Na procedência das alegações de recurso, revoga-se a sentença recorrida e qualifica-se a insolvência da B..., S.A. culposa, declarando-se afectados AA, BB e CC nomeados em 22.01.2015 para o quadriénio 2014/2017, declarando-se a sua inibição para administrar patrimónios de terceiros e para o exercício do comércio, para ocupação de qualquer cargo para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão social da sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa pelo período de 2 (dois) anos, condenando-se solidariamente os afetados a indemnizar os credores da insolvente em montante a liquidar em sentença nos termos do art. 189º, nº 4 do CIRE.

Custas pela massa insolvente, artigos 303º e 304º do CIRE.


Sumário:
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Porto 19/3/2024.
Maria Eiró
João Proença
Fernando Vilares Ferreira