LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ
DOLO
NEGLIGÊNCIA GRAVE
Sumário

I - A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.
II - A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros e inequívocos para por ela se concluir, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência e fundada segurança.
III - A sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei e aplicação do direito não implica, em regra, por si só, a litigância de má fé por quem as sustenta.
IV - Exige-se, para se concluir pela litigância de má fé, que a parte actue com dolo ou negligência grave na dedução da pretensão infundada ou na deturpação da factualidade relevante à decisão.
V - O conceito de negligência grave que a censura da litigância de má fé pressupõe caracteriza-se pela exigência do extraordinário desleixo na actuação da parte no cumprimento do dever de indagação que sobre si impende – indagação dos fundamentos de facto e/ou de direito atinentes à pretensão que defende no processo.

Texto Integral

Apelação nº 305/09.5TBOVR.P1


Relator: João Ramos Lopes
Adjuntos: Márcia Portela
Lina Castro Baptista


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Acordam no Tribunal da Relação do Porto.

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Apelante: AA (administrador de insolvência substituído).

Juízo de comércio de Aveiro (lugar de provimento de Juiz 2) – Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro.


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No âmbito da tramitação dos autos de insolvência a que se apresentara BB, já depois de em acórdão de 24/02/2022 proferido no apenso da prestação de contas de administrador (apenso G) se ter decidido ser devida ao administrador de insolvência requerente desses autos (administrador de insolvência substituído) e ao administrador de insolvência em exercício de funções no processo a remuneração variável que viesse a ‘ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos[1], viria a ser proferido em 16/09/2022 despacho a fixar a remuneração variável devida nos autos aos administradores de insolvência no montante indicado em proposta apresentada em requerimento junto em 30/06/2022 e, posteriormente (como nesse despacho já se anunciara), por despacho de 8/02/2023 (depois ouvido sobre a questão o administrador substituído) foi decidido repartir o montante da retribuição variável fixada nos autos em ¾ para o administrador da insolvência em exercício de funções e em ¼ para o administrador da insolvência substituído.

De tal decisão apelou AA, administrador de insolvência substituído, concluindo:

i. Vem o presente recurso interposto do douto Despacho de 09/02/2023 que decide “a fixação da remuneração variável, no valor já decidido, em ¾ para o Sr. administrador da insolvência em exercício de funções, e em ¼ para o Sr. administrador de insolvência substituído”, com base nos seguintes pressupostos:

“a) ambos os Srs. administradores da insolvência participaram nas diligências de liquidação; b) porém, foi o Sr. administrador da insolvência em exercício de funções quem concluiu tais diligências, e c) o Sr. administrador da insolvência em exercício de funções foi nomeado para estes autos por duas vezes e teve ainda o encargo de proceder às diligências de rateio, da maior importância, na prossecução do escopo essencial do processo, de satisfação dos credores (art. 1.º/1 do CIRE).”

ii. O recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, como se irá tentar demonstrar. Senão Vejamos:

iii. Por sentença datada de 04/03/2009, proferida ao abrigo do presente processo, foi declarada a Insolvência de BB, tendo sido nomeado como Administrador de Insolvência o Sr. Dr. CC.

iv. Por Despacho de 12/10/2017, o supra mencionado Administrador de Insolvência foi substituído pelo Recorrente, por nomeação aleatória, a qual foi aceite.

v. Neste seguimento, por requerimento de 28/01/2018 junto ao apenso de liquidação (apenso D) o Recorrente informou os autos que “Com o intuito de promover à venda do imóvel (único bem apreendido) apreendido como um todo, nos termos do art. 141º do CIRE e do artº 781.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código do Processo Civil, promover-se-á à notificação da irmã do devedor e comproprietária do imóvel, aguardando-se resposta à solicitação sobre o eventual conhecimento da sua morada.”

vi. Isto posto, o Recorrente notificou a comproprietária nos termos do art. 141º do CIRE e do artº 781.º, n.ºs 1, 2 e 4, do Código do Processo Civil, para que no prazo de 20 (vinte) dias fosse requerido a separação de bens ou junção de certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida;

vii. efetuou contactos junto da sua carteira de investidores no sentido de verificar o   interesse em adquirir metade indivisa de um imóvel habitacional, mas sem sucesso (cfr. requerimento de 21/07/2019), propondo a venda do mesmo através de uma leiloeira (cfr. requerimento de 22/07/2019);

viii. foram ainda realizadas deslocações ao imóvel para aferir da sua ocupação e da veracidade do usufruto invocado (cfr. requerimento de 01/09/2020) e contactos com a comproprietária no sentido de proceder à venda da metade indivisa do imóvel.

ix. Ainda no desempenho das suas funções, a comproprietária apresentou uma proposta de € 18.000,00, a qual foi levada à comissão de credores e posteriormente adjudicada, tendo a proponente procedido ao depósito de 20% (€ 3.600,00) em 14/10/2020 e do montante remanescente (€ 14.400,00) em 20/10/2020, em conformidade com o requerimento de 05/11/2020.

x. De salientar que o Recorrente desempenhou funções de Administrador de Insolvência no presente processo no período que medeia 12/10/2017 e 27/10/2020 (data em que foi destituído).

xi. Face ao exposto, resulta forçoso concluir que todo o resultado da liquidação (€ 18.000,00) foi depositado na conta da Massa Insolvente no período em que o Recorrente ainda se encontrava a desempenhar funções de Administrador de Insolvência.

xii. Em referência à remuneração variável, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 25/02/2022, proferido à margem do presente processo no apenso G (Proc. n.º 305/09.5TBOVR-G.P1), determinaram os Senhores Doutores Juízes Desembargadores que:

“Como vimos, o valor da remuneração variável depende de outros fatores, tais como o resultado da liquidação da massa insolvente. Segundo o n.º 4 do citado artigo 23.º do EAJ, para efeitos do n.º 2 do mesmo preceito, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com excepção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data da declaração de insolvência. Carvalho Fernandes e João Labareda entendem que a fórmula “montante apurado para a massa insolvente”, em si mesma ambígua, tem de ser entendida em correlação com o resultado da liquidação e, por isso, corresponde ao montante apurado na realização do activo da massa insolvente. Segundo o n.º 5 do artigo 29.º do EAJ, a remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo. Como já acima dissemos, quanto à remuneração variável nos casos em que há liquidação da massa insolvente, pode igualmente ser aplicada a Portaria 51/05, designadamente as tabelas publicadas nos seus anexos I e II. E conforme resulta do que também já escrevemos, a repartição da remuneração por dois administradores está prevista apenas para a remuneração variável no caso de o administrador da insolvência nomeado pelo juiz ter sido substituído pela assembleia de credores nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do CIRE (citado artigo 24.º, n.º 2 do EAJ).

No caso de o administrador da insolvência nomeado pelo juiz ter cessado funções por outra causa, tal como se entendeu para a atribuição de remuneração fixa, a atribuição de remuneração variável ao administrador cessante encontra o seu fundamento na norma do artigo 22.º do EAJ. Se o administrador efectuou diligências que resultaram na obtenção de produto para a massa insolvente, terá de ser remunerado por esse facto. Não se vê razão para que assim não seja mesmo no caso de destituição por justa causa, nos termos do artigo 56.º, n.º 1 do CIRE, sendo que entre as possíveis consequências da destituição não está prevista a perda de remuneração pela actividade já desenvolvida (cfr. o artigo 21.º do EAJ). Assim, no caso, ainda que venha a ser confirmada, em recurso, a decisão de destituição do Administrador da Insolvência, não poderá o mesmo deixar de receber a remuneração variável devida pela sua contribuição para o produto da massa insolvente – estando provado que foi em resultado das diligências efectuadas pelo Administrador da Insolvência que foi apreendida ½ indivisa de um bem para a massa insolvente que veio a ser vendida pelo valor de € 18.000,00. Como a remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo (citado n.º 5 do artigo 29.º do EAJ), será fixada oportunamente no processo principal, cabendo ao juiz da 1ª Instância, nessa altura, definir os critérios para essa fixação.”

xiii. Assim e por forma a verificarmos os critérios de fixação da remuneração variável, atentemos à legislação em vigor.

xiv. Resulta do art. 60º, n.º 1 do CIRE que “O administrador da insolvência nomeado pelo juiz tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.”

xv. Isto posto, resulta do art. 23º n.º 4 do Estatuto do Administrador Judicial (EAJ) que os administradores judiciais referidos no número anterior auferem ainda uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente.

xvi. Pelo que dúvidas não existem que a remuneração variável respeita única e exclusivamente ao apenso de liquidação, carecendo de sentido a menção às diligências de rateio, as quais não cabem na liquidação (título VI do CIRE), mas sim do processo principal e do título VII do CIRE, ou seja, do pagamento aos credores.

Mais,

xvii. Dispõe o art. 2º da Portaria 51/2005 que: “São aprovadas, em anexo à presente portaria, as tabelas que estabelecem a remuneração variável do administrador da insolvência, nos termos dos n.os 2 a 4 do artigo 20.º da Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, que aprovou o estatuto do administrador da insolvência.”

xviii. E pagas, nos termos do art. 29º, n.º 5 do EAJ: “A remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo”.

xix. Ora, a verdade é que entre o acórdão de 25/02/2022 e o Despacho em análise, entrou em vigor a Lei n.º 9/2022 de 11 de Janeiro, cujo art. 10º, n.º 1 (regime transitório) dispõe que é imediatamente aplicável aos processos pendentes.

xx. Assim sendo, deveria o tribunal a quo ter aplicado o disposto no art. 23º, n.º 11 do EAJ que dispõe que “No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.”

xxi. Isto posto, dúvidas não há de que o resultado da liquidação à data da destituição (27/10/2020) era de €18.000,00, a totalidade do produto da liquidação, pelo que lhe deverá ser fixada a totalidade da remuneração variável.

Sem prescindir,

xxii. Ainda que assim não se entenda, o que apenas por mero exercício académico se concebe, a verdade é que sempre deveria o tribunal a quo ter em consideração que todo o produto da liquidação foi obtido no período em que o Recorrente foi Administrador de Insolvência, em resultado direto do trabalho realizado pelo mesmo.

xxiii. Sendo que, com o devido e merecido respeito, as três circunstâncias elencadas pelo douto tribunal são inócuas face à finalidade/animus da remuneração variável, não sendo bastantes para a fixação de qualquer critério de repartição de remuneração.

xxiv. Até porque a remuneração variável (como já vimos) é calculada sobre o produto da liquidação e o produto da liquidação é a quantia recebida pela Massa Insolvente pela venda dos seus bens, a qual ocorreu no período em que o recorrente desempenhou funções de Administrador de Insolvência.

xxv. Por tudo o que vem de referir-se, o despacho recorrido para além de violar um dos princípios elementares do nosso estado de direito (art. 59º, n.º 1, al. a) do CRP), violou o disposto nos artigos 60º, n.º 1 do CIRE, 23º, n.º 2 e 11, e 29º, n.º 2, 3 e 8 do EAJ e os art. 1º, 2º e 3º da Portaria 51/2005, pelo que deverá ser revogado e substituído por outro que julgue devido ao Apelante a totalidade da remuneração variável respeitante às quantias por si recuperadas em sede de liquidação (€18.000,00) e em conformidade com a legislação aplicável.

Ponderando a possibilidade de o recurso dever ser rejeitado (em razão da regra da sucumbência), determinou-se, no tribunal a quo, a notificação do recorrente para que sobre tal questão se pronunciasse, tendo-se ainda considerado e determinado:

Por outro lado, com o referido recurso, pretende o Sr. administrador da insolvência substituído de funções, em suma, e citando, que o despacho recorrido (…) deverá ser revogado e substituído por outro que julgue devido ao Apelante a totalidade da remuneração variável (respeitante à liquidação no valor de € 18.000,00, sendo nosso o sublinhado).

No entanto, e o recorrente não o menciona no recurso, omitindo-o, a verdade é que, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022, tirado no apenso G, foi decidido, e passa-se a citar, “Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos” (destaque e sublinhado nosso).

Ou seja, foi determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que a  remuneração variável fosse repartida entre os dois Srs. administradores da insolvência intervenientes nestes autos.

Repartição que, para além disso, está agora, desde 11/4/2022, expressamente prevista no art. 23.º/11 do EAJ.

Assim sendo, é possível que venha a ser considerado que o recorrente, através do recurso, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, tal como é possível que venha a ser considerado que omitiu factos relevantes para a decisão dessa pretensão.

O que, sendo o caso, acarretará a respectiva condenação como litigante de má-fé, nos termos do art. 542.º/1 e 2, als. a) e b), do CPC.

Situação que, no entanto, pela sua importância, também justificará o prévio cumprimento do contraditório (art. 3.º/3 do CPC).

Pelo exposto, ponderando a eventualidade de condenar o recorrente a título de litigância de má-fé, e ao abrigo do princípio do contraditório, determino a notificação do Sr. administrador da insolvência destituído de funções, na pessoa da il mandatária, e do Sr. administrador da insolvência em exercício de funções para, em dez dias, emitirem pronúncia, querendo, ou requererem a esse respeito o que for tido por conveniente.

Manifestou-se o apelante, quer pela admissibilidade do recurso, quer pela inexistência de fundamento para o considerar (e como tal o condenar) litigante de má fé, pois não omite nas alegações de recurso qualquer matéria relevante à apreciação da questão nem deduz pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar.

Proferiu então o tribunal despacho com o seguinte teor (além do segmento em que não admitiu o recurso, em razão do valor da sucumbência - decisão mantida na reclamação que, nos termos do art. 643º do CPC, dela interpôs o reclamante):

(…), com o referido recurso, pretende o Sr. administrador da insolvência substituído de funções, em suma, e citando, que “o despacho recorrido (…) deverá ser revogado e substituído por outro que julgue devido ao Apelante a totalidade da remuneração variável” (respeitante à liquidação no valor de €18.000,00, sendo nosso o sublinhado).

No entanto, e o recorrente não o menciona no recurso, omitindo-o, a verdade é que, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022, tirado no apenso G, foi decidido, e passa-se a citar, “Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos” (destaque e sublinhado nosso).

Ou seja, foi determinado pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto que a remuneração variável fosse repartida entre os dois Srs. administradores da insolvência intervenientes nestes autos, de acordo com os critérios a definir pelo Tribunal de primeira instância.

Repartição que, para além disso, está agora, desde 11/4/2022, expressamente prevista no art. 23.º/11 do EAJ.

Assim sendo, deve concluir-se, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o recorrente, através do recurso, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, por estar expressamente afastada, seja no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022 proferido no apenso G, seja por força do disposto no art. 23.º/11 do EAJ.

Veja-se que, segundo o recorrente, entende que foi decidido pelo Tribunal da Relação do Porto é que o tribunal de 1ª Instância fixaria a remuneração variável aos Administradores de Insolvência, nos termos a fixar por si, não que seria uma solução 50%/50% ou 70%/30% ou 0%/100%, podendo muito bem fixar a totalidade para um e nada para o outro (requerimento de 22/5/2023).

Todavia, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022 é muito claro no sentido de é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que for fixada em primeira instância.

Razão pela qual, é evidente que, segundo o referido douto aresto, ambos os Srs. administradores de insolvência que intervieram nestes autos têm direito ao recebimento da remuneração variável, no valor e na proporção definidos em primeira instância.

Impondo-se a conclusão que a pretendida atribuição da remuneração variável na totalidade ao recorrente é frontalmente contrária à determinação do referido acórdão.

Tal como, aliás, essa pretensão é contrária à lei expressa do art. 23.º/11 do EAJ, segundo o qual, no caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data.

Ora, uma vez que, como foi salientado no despacho recorrido, ambos os Srs. administradores da insolvência participaram nas diligências de liquidação, mas foi o Sr. administrador da insolvência em exercício de funções quem concluiu tais diligências, ou seja, quem celebrou a escritura de compra e venda do único bem apreendido, tem de concluir-se que, se acaso fosse de atribuir a totalidade da remuneração variável, sem repartição, a algum dos Srs. administradores de insolvência intervenientes, ela teria de ser atribuída ao Sr. administrador da insolvência em exercício de funções.

Razões pelas quais, sendo a pretensão do recorrente frontalmente contrária à decisão do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022 e ao disposto no art. 23.º/11 do EAJ, entendemos que não podia ignorar a sua manifesta falta de fundamento, e cuja dedução, nestas circunstâncias, resultou, pelo menos, de negligência grave.

Da mesma forma, no requerimento de 27/2/2023, o recorrente omitiu o referido dispositivo do douto aresto de 24/2/2022 (Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos”).

O que significa, a nosso ver, e salvo o devido respeito por outra opinião, que omitiu, pelo menos por negligência grave, factos de acentuada relevância para a decisão a proferir sobre a pretensão deduzida.

O que tudo acarreta, se bem pensamos, a respectiva condenação como litigante de má-fé, nos termos do art. 542.º/1 e 2, als. a) e b), do CPC, considerando-se para a fixação concreta da sanção, entre os limites previstos no art. 27.º/3 do RCP, sobretudo, o estatuto de auxiliar da justiça que o recorrente ostenta, e com funções de elevada responsabilidade, como administrador judicial, e também o valor não especialmente elevado que se encontrava em dissídio.

Pelo exposto, condeno o Sr. administrador da insolvência destituído de funções, como litigante de má-fé, na multa de 12 UC.

De tal despacho apela o administrador de insolvência substituído, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

i. Vem o presente recurso interposto do Douto Despacho de 03/10/2023 (o qual não foi notificado à signatária), que condenou o Recorrente em litigância de má-fé em multa de 12 UC, nos termos do art. 542º, n.º 1 e 2, als. a) e b) do CPC.

ii. O recurso merece – com o devido respeito – inteiro provimento, como se irá tentar demonstrar.

iii. Por despacho de 08/02/2023, o tribunal a quo decidiu que “a fixação da remuneração variável, no valor já decidido, em ¾ para o Sr. administrador da insolvência em exercício de funções, e em ¼ para o Sr. administrador da insolvência substituído.”

iv. Não concordando com o despacho supra, em 27/02/2023 o Recorrente recorre de tal decisão alegando em suma que o mesmo põe em causa os Direitos, Liberdades e Garantias mais elementares do nosso Estado de Direito, e que todo o resultado da liquidação (€ 18.000,00) foi depositado na conta da Massa Insolvente no período em que o mesmo ainda se encontrava a desempenhar funções de Administrador de Insolvência.

v. Mais referiu que por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 25/02/2022, proferido à margem do presente processo no apenso G (Proc. n.º 305/09.5TBOVR-G.P1), determinaram os Senhores Doutores Juízes Desembargadores, quanto a esta matéria, que: “(…) a repartição da remuneração por dois administradores está prevista apenas para a remuneração variável no caso de o administrador da insolvência nomeado pelo juiz ter sido substituído pela assembleia de credores nos termos do n.º 1 do artigo 53.º do CIRE (citado artigo 24.º, n.º 2 do EAJ). No caso de o administrador da insolvência nomeado pelo juiz ter cessado funções por outra causa, tal como se entendeu para a atribuição de remuneração fixa, a atribuição de remuneração variável ao administrador cessante encontra o seu fundamento na norma do artigo 22.º do EAJ. Se o administrador efectuou diligências que resultaram na obtenção de produto para a massa insolvente, terá de ser remunerado por esse facto. Não se vê razão para que assim não seja mesmo no caso de destituição por justa causa, nos termos do artigo 56.º, n.º 1 do CIRE, sendo que entre as possíveis consequências da destituição não está prevista a perda de remuneração pela actividade já desenvolvida (cfr. o artigo 21.º do EAJ). Assim, no caso, ainda que venha a ser confirmada, em recurso, a decisão de destituição do Administrador da Insolvência, não poderá o mesmo deixar de receber a remuneração variável devida pela sua contribuição para o produto da massa insolvente – estando provado que foi em resultado das diligências efectuadas pelo Administrador da Insolvência que foi apreendida ½ indivisa de um bem para a massa insolvente que veio a ser vendida pelo valor de € 18.000,00. Como a remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo (citado n.º 5 do artigo 29.º do EAJ), será fixada oportunamente no processo principal, cabendo ao juiz da 1ª Instância, nessa altura, definir os critérios para essa fixação.” (negrito e sublinhado nosso)

vi. Ora, como refere o douto acórdão e o 29º, n.º 5 do EAJ, a remuneração variável vence-se na data de encerramento do processo.

vii. Pelo que, terá de se atender que entre a data do acórdão (25/02/2022) de que vem de transcrever-se e a decisão de fixação da remuneração variável (08/02/2023) entrou em vigor a Lei 9/2022 de 11 de janeiro, cujo art. 10º, n.º 1 (regime transitório) dispõe que é imediatamente aplicável aos processos pendentes.

viii. Pelo que a decisão de aplicação da remuneração variável tinha obrigatoriamente de atender às alterações efetuadas por tal dispositivo legal.

ix. Em reposta ao Recurso apresentado pelo Recorrente em 27/02/2023, o Tribunal a quo por despacho de 11/05/2023 ordena a notificação do Recorrente para exercer contraditório sobre a sua intenção de não admitir o recurso e de o condenar em litigância de má-fé.

x. Em resposta, o Recorrente defendeu que no recurso de 27/02/2023 o que estava em causa era o cumprimento de um dispositivo legal, nomeadamente a fixação da remuneração integral, nos termos do nº 1, do art. 23º, do EAJ e não o decaimento de um pedido do Apelante, pelo que não existia sucumbência;

xi. Até porque a questão não está dependente de um qualquer pedido que possa ser   formulado pelo Apelante, mas sim o cumprimento de um dispositivo legal.

xii. De salientar que o Apelante entendia que este tribunal partilharia do mesmo entendimento, uma vez que por despacho de 20/12/2021, admitiu o recurso respeitante à remuneração, fixando o valor da ação, para efeitos de recurso, em € 18.000,00.

xiii. De todo o modo, e segundo o entendimento da jurisprudência (o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido ao abrigo do Proc. n.º 4568/16.1T8VNF-B.G1, em 19/01/2017; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa , proferido ao abrigo do Proc. n.º 1371/17.5T8SNT.L1-7, em 07/11/2016; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido à margem do Proc. n.º 4270/17.7T8SNT.L1-6, em 09/11/2017; o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido à margem do Proc. n.º 258/14.8TBPDL.L1-6, em 02/07/2015, entre outros, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.

xiv. Sendo que, no despacho de que se recorre, o tribunal de 1ª instância manteve a decisão de não admissão do Recurso, a qual não foi notificada à mandatária do Recorrente, no entanto foi objeto de Reclamação nos termos do art. 643º do CPC, assim que mesma teve conhecimento.

xv. No que respeita à pretensão (ora concretizada) do tribunal a quo condenar o Recorrente como litigante de má-fé, tenhamos em consideração que o mesmo baseia-se essencialmente em dois factos:

I – “o recorrente não o menciona no recurso, omitindo-o, a verdade é que, no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24/2/2022, tirado no apenso G, foi decidido, e passa-se a citar, “Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos” (destaque e sublinhado nosso).”;

II – é do conhecimento do Recorrente que o acórdão supra mencionado e o art. 23º/11 do EAJ estabelecem que a remuneração variável seja dividida pelos dois administradores de insolvência, pelo que “a pretendida atribuição da remuneração variável na totalidade ao recorrente é frontalmente contrária à determinação do referido acórdão”.

xvi. No que respeita à questão da omissão (facto I), não entende o Recorrente como pode o tribunal a quo manter este ponto no seu despacho de 02/10/2023, quando sabe (até porque já foi alertado para o efeito no requerimento de 22/05/2023) que no recurso de 27/02/2023 o Recorrente requereu que o acórdão em questão fosse uma das peças que deveriam instruir o recurso.

xvii. No mais, no ponto xii. das conclusões do Recurso apresentado em 27/02/2023, o Recorrente transcreve parte do acórdão que agora é acusado de omitir, a saber: “xii. Em referência à remuneração variável, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto datado de 25/02/2022, proferido à margem do presente processo no apenso G (Proc. n.º 305/09.5TBOVR-G.P1), determinaram os Senhores Doutores Juízes Desembargadores que:

“(…) No caso de o administrador da insolvência nomeado pelo juiz ter cessado funções por outra causa, tal como se entendeu para a atribuição de remuneração fixa, a atribuição de remuneração variável ao administrador cessante encontra o seu fundamento na norma do artigo 22.º do EAJ. Se o administrador efectuou diligências que resultaram na obtenção de produto para a massa insolvente, terá de ser remunerado por esse facto. Não se vê razão para que assim não seja mesmo no caso de destituição por justa causa, nos termos do artigo 56.º, n.º 1 do CIRE, sendo que entre as possíveis consequências da destituição não está prevista a perda de remuneração pela actividade já desenvolvida (cfr. o artigo 21.º do EAJ). Assim, no caso, ainda que venha a ser confirmada, em recurso, a decisão de destituição do Administrador da Insolvência, não poderá o mesmo deixar de receber a remuneração variável devida pela sua contribuição para o produto da massa insolvente – estando provado que foi em resultado das diligências efectuadas pelo Administrador da Insolvência que foi apreendida ½ indivisa de um bem para a massa insolvente que veio a ser vendida pelo valor de € 18.000,00. Como a remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo (citado n.º 5 do artigo 29.º do EAJ), será fixada oportunamente no processo principal, cabendo ao juiz da 1ª Instância, nessa altura, definir os critérios para essa fixação.

xviii. Com o devido e natural respeito, não se vislumbra, como bonus pater familias, o porquê de o tribunal a quo, após ter sido alertado para o efeito, manter a sua decisão quanto a este ponto, insistindo pela “negligência grave” que em boa verdade não existe.

xix. No que respeita ao facto II, nomeadamente que a pretensão de obtenção da totalidade da remuneração variável é manifestamente contrária ao que foi decidido pelo douto acórdão (Apenso G) de 25/02/2022, entendemos que não se encontram preenchidos os requisitos da litigância de má-fé.

xx. Com o devido respeito por opinião diversa, entendemos que o que se verifica no presente caso é que o tribunal de 1ª instância e o Recorrido, têm interpretações divergentes do acórdão, bem como do art. 29º, n.º 11 do EAJ (pela alteração da Lei 9/2022), pelo que seria de salutar o conhecimento de tal matéria por Tribunal Superior. Vejamos,

xxi. No acórdão (Apenso G) de 25/02/2022 concluem os Senhores Juízes Desembargadores que “Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos

xxii. Do exposto, entende o Recorrente que o que foi decidido pelo Tribunal da Relação do Porto é que o tribunal de 1ª Instância fixaria a remuneração variável aos Administradores de Insolvência, nos termos a fixar por si, não que seria uma solução 50%/50% ou 70%/30% ou 0%/100%, podendo muito bem fixar a totalidade para um e nada para o outro, caso entendesse que dos critérios por si definidos, um deles não colaborou nada para a liquidação.

xxiii. Ou seja, entende o Recorrente que segundo o acórdão em apreço, interpretado na sua totalidade e não apenas nas suas conclusões (à semelhança da interpretação da lei – art. 9º do CC), seria o Tribunal de 1ª Instância a fixar a remuneração variável que caberia a cada um dos administradores.

xxiv. Ora, não viola a decisão proferida a fixação da totalidade da remuneração variável ao Recorrente, quando o acórdão refere que em conformidade com o art. 29º, n.º 5 do EAJ: “A remuneração variável relativa ao produto da liquidação da massa insolvente é paga a final, vencendo-se na data de encerramento do processo”.

xxv. Pelo que, os critérios de fixação da remuneração variável apenas podem ser equacionados a final e de acordo com as normas vigentes a essa data.

xxvi. Neste sentido, não pode o Recorrente deixar de dar nota de que a Lei n.º 9/2022 entrou em vigor após o acórdão supra analisado, aplicando-se aos processos pendentes, nomeadamente o mencionado 23º, n.º 11 do EAJ que refere que “No caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data”

xxvii. No que respeita à aplicabilidade do mencionado artigo, parece que tanto o Recorrente, como o douto tribunal estão de acordo, diferindo na sua interpretação, dado que entende o Recorrente entende que a remuneração variável é um modelo de sucess fee devido pelas quantias efetivamente recuperadas e a quem as recupera.

xxviii. Pelo que se entende que a alteração da lei não visa fixar uma proporção, mas sim o cálculo de uma percentagem sobre as quantias recuperadas, remuneração essa devida a quem as recuperou.

xxix. Sendo facto assente (como resulta do acórdão sobejamente transcrito e referido) que foi o Recorrente que recuperou os € 18.000,00, isto é, a totalidade do produto da liquidação.

xxx. Isto posto, nos termos do n.º 2, do artigo 542º do CPC, sempre se dirá que a litigância de má-fé exige uma atuação processualmente desonesta, consubstanciando uma espécie de "utilização maliciosa e abusiva" do processo – cfr. Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1956, página 341.

xxxi. Em suma, a responsabilização e condenação da parte como litigante de má-fé só deverá ocorrer quando se demonstre, de forma manifesta e inequívoca, que a parte agiu, conscientemente, com dolo ou negligência grave, de forma manifestamente censurável, com vista a impedir ou a entorpecer a ação da justiça, ou, a deduzir pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, o que não é o caso!

xxxii. No caso, mais não fez o Recorrente do que fazer-se valer de um direito que lhe assiste, pedindo a remuneração que entende ser justa pela aplicação da lei.

xxxiii. Pelo que é forçoso concluir que a conduta do mesmo não preenche os requisitos legais da litigância de má-fé, previstos no n.º 2, do artigo 542º do CPC.

xxxiv. Neste sentido e em questão idêntica, vejamos o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 17/09/2020, no âmbito do Proc. n.º 6495/18.9T8BRG.G1 (disponível em www.dgsi.pt), que se cita:

Entendeu o tribunal a quo que os Recorrentes não podiam ignorar que a pretensão era ilegal e não tinha fundamento na medida em que desrespeitava o caso julgado que se havia formado e que se não o fizeram com dolo, fizeram-no pelo menos com negligência grave ou grosseira, mediante a adoção de comportamentos especialmente censuráveis e reprováveis.

(..)

Porém, logo na petição inicial fizeram expressa referência à acção anterior e à improcedência da mesma, juntando ainda como documento a sentença e o acórdão proferidos.

Entendemos que a defesa convicta de uma perspetiva jurídica, ainda que diversa daquela que que vem a ser acolhida, não implica, por si só, litigância censurável que justifique a condenação como litigantes de má fé; tal só deverá ocorrer se na postura adotada não forem observados os deveres de probidade, de cooperação e de boa-fé que devem nortear a conduta das partes.

xxxv. Assim, o Douto Despacho recorrido violou, nomeadamente, o disposto no artigo 9º e 542º do CC, art. 247º do CPC e art. 23º, n.º 5 e 11 do EAJ, pelo que deverá ser revogado.

Não houve contra-alegações.


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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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Da delimitação do objecto do recurso.


Considerando, conjugadamente, a decisão recorrida e as conclusões das alegações (por estas se delimita o objecto dos recursos, sem prejuízo do que for de conhecimento oficioso - artigos 608º, nº 2, 5º, nº 3, 635º, nºs 4 e 5 e 639, nº 1, do CPC), identifica-se linearmente a questão a decidir: apurar se o apelante pode ser considerado (e condenado) como litigante de má fé


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FUNDAMENTAÇÃO

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            Fundamentação de facto

A matéria a considerar é que se expôs no precedente relatório.


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            Fundamentação de direito

O instituto da litigância de má fé, previsto nos arts. 542º e segs. do CPC, constitui sanção civil para o inadimplemento gravemente culposo ou doloso do dever de cooperação e das regras da boa fé[2] (ou probidade) processual (arts. 7º e 8º do CPC).

A condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, com o marcado intuito de moralizar a actividade judiciária.

O instituto acautela um interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça (esse o seu fundamento ético), destinando-se a assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça – destina-se a combater a específica virtualidade da má fé processual: a de transformar a irregularidade processual em erro ou irregularidade judicial[3].

A litigância de má fé tanto pode ser substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável, com qualquer das finalidades assinaladas na alínea d) do nº 2 do preceito) – a má fé material (ou substancial) ‘relaciona-se com o mérito da causa: a parte, não tendo razão, atua no sentido de conseguir uma decisão injusta ou realizar um objectivo que se afasta da função processual’; a má fé instrumental ‘abstrai da razão que a parte possa ter quanto ao mérito da causa, qualificando o comportamento processualmente assumido em si mesmo.’[4]

Em ambas as modalidades – mesmo na má fé substancial (infracção, pela parte, do dever de não formular pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava ou não devia ignorar e violação do dever de verdade, ou seja, de não alterar a verdade dos factos ou de não omitir factos relevantes para a apreciação da causa/questão[5]) – está em causa sempre ‘um uso manifestamente reprovável do processo ou dos meios processuais’ com uma das finalidades apontadas no nº 2 do art. 542 do CPC, circunscrevendo-se o âmbito de aplicação do instituto ‘às situações configuradoras de meras violações de deveres e ou obrigações processuais’[6].

Entre as actuações ilícitas elencadas no nº 2 do art. 456º do CPC configuradoras da litigância de má fé encontram-se a ‘dedução de pretensão ou oposição com manifesta falta de fundamento, por inconcludência ou inadmissibilidade do pedido ou da exceção (alínea a))’ e ‘a apresentação duma versão dos factos, deturpada ou omissa, em violação do dever de verdade (alínea b))’[7].

A afirmação da litigância de má fé depende da análise da situação concreta, devendo o processo fornecer elementos seguros para se concluir pela sua verificação, exigindo-se no juízo a realizar uma particular prudência, necessária não só perante o natural conflito de interesses, contrário, normalmente, a uma ponderação objectiva, e por vezes serena, da respectiva intervenção processual, mas também face ao desvalor ético-jurídico em que se traduz a condenação por litigância de má fé[8] – a ‘lide processual arrasta um afrontamento/conflito de interesses, pouco propício a uma ponderação serena e objectiva das intervenções processuais, obnubilando o todo processual e deixando «ver» apenas a «verdade» do «seu» caso’[9].

Exige-se, pois, particular prudência e fundada segurança para se afirmar a litigância de má fé, a qual depende sempre de uma apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a afirmação, a negação ou a omissão são feitas[10].

Para se concluir pela verificação de uma tal conduta dolosa ou gravemente negligente deverá o processo revelar, de forma segura e inequívoca, que a parte deduziu (se não propositadamente, pelo menos com grave desleixo e incúria) pretensão ou oposição inconcludente ou inadmissível ou deturpou a factualidade relevante à questão a apreciar e decidir (mormente omitindo factos), factualidade que conhecia ou não podia deixar de conhecer (de acordo com o padrão de conduta exigível a um litigante normalmente prudente, diligente, sagaz e sensato).

A dedução de pretensão ou oposição que venha a ser julgada sem fundamento, não constitui, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente bastante para afirmar a litigância de má fé[11] – a falta de razão com que uma das partes litiga não basta para justificar a má fé, apenas podendo provocar a improcedência da sua pretensão. A ‘lei não coloca entraves irrazoáveis à introdução em juízo de pretensões ou de meios de defesa, nem consente que se faça do direito de ação uma interpretação correspondente a uma verdadeira petição de princípio, segundo a qual o acesso aos tribunais estaria reservado aos que tivessem razão’, pois se é objectivo do direito de acção o ‘reconhecimento de uma situação jurídica tutelável, o recurso legítimo aos tribunais não pode restringir-se àqueles que inequivocamente tenham a razão do seu lado’[12]: para ‘se imputar a uma pessoa a qualidade de litigante de má fé, imperioso se torna que se evidencie, com suficiente nitidez, que a mesma tem um comportamento processualmente reprovável, isto é, que com dolo ou negligência grave, deduza pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar ou que altere a verdade dos factos ou omita factos relevantes[13].

O direito à tutela jurisdicional efectiva (que compreende a garantia de amplo acesso aos tribunais e a defesa de direitos e interesses legalmente protegidos através do direito de acção), próprio do Estado de Direito, é incompatível com interpretações apertadas do art. 542º do CPC, ‘nomeadamente no que respeita às regras das alíneas a) e b) do nº 2’, pelo que não é por ‘se não ter provado a versão dos factos alegada pela parte e se ter provado a versão inversa, apresentada pela parte contrária, que se justifica, sem mais, a condenação da primeira como litigante de má fé’[14].

Tem de atentar-se que a mera sustentação de posições jurídicas porventura desconformes com a correcta interpretação da lei e aplicação do direito não implica, em regra, por si só, a litigância de má fé de quem as sustenta (o limite entre o que é razoável e o que é inverosímil no que concerne à interpretação e aplicação da lei e do direito nem sempre é claro – a ‘certeza jurídica é meramente tendencial’)[15] – a defesa convicta de uma perspectiva jurídica dos factos ou de construção jurídica que se venha a ter e julgar como errada (diversa da acolhida pela decisão judicial), não implica, por si só, litigância censurável a despoletar a aplicação do art. 542º, nº e 2 do CPC[16], não podendo confundir-se a litigância de má fé com a ‘discordância na interpretação e aplicação da lei aos factos, a diversidade de versões sobre os factos ou a defesa convicta e séria de uma posição’ que não se logra impor[17].

Exige-se, pois, para se concluir pela litigância de má fé, que a parte actue com dolo ou negligência grave, na dedução da pretensão infundada ou na deturpação da factualidade relevante à decisão.

O conceito de negligência grave que a censura da litigância de má fé pressupõe caracteriza-se pela exigência do extraordinário desleixo na actuação da parte – cabendo à parte que se dirige a juízo para formular pretensão (ou para contestar pretensão contra si deduzida) indagar do seu concreto fundamento, no plano do facto e do direito, pratica a mesma ‘um ato desconforme e provocador de um dano num bem juridicamente protegido’ se não observou tais deveres de indagação (sendo-lhe assim imputável o desconhecimento quanto à falta de fundamento), consubstanciando-se o parâmetro de aferição do dever de diligência da parte (nessa indagação) nos seguintes termos: ‘a generalidade das pessoas ou todas as pessoas, pertencentes à categoria social e intelectual da parte real, colocadas naquela situação em concreto, ter-se-iam abstido de litigar, uma vez que, cumpridos os seus deveres de indagação, teriam concluído’ não ter a pretensão fundamento[18].

O tipo de ilícito previsto nas diversas alíneas do nº 2 do art. 542º do CPC demanda, pois (no que ao ilícito negligente concerne), não o desleixo caracterizador da negligência (consciente ou inconsciente), mas o extraordinário desleixo que eleva a respectiva gravidade, tornando-a grosseira (negligência grave).

A decisão apelada entendeu que o apelante, ao menos com grave negligência:

- através do recurso que interpôs da decisão que repartiu o montante da retribuição variável fixada nos autos, deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, por expressamente afastada em acórdão de 24/02/2022 proferido no apenso G e, bem assim, pelo art. 23º, nº 11 do Estatuto do Administrador Judicial (Lei 22/2013, de 26/02, com as alterações introduzidas pela Lei 9/2022) – sustenta-se na decisão apelada que aquele acórdão é muito claro no sentido de ser devida a ambos os administradores (o substituído e o que se encontra no exercício de funções) a remuneração que for fixada em primeira instância e, por isso, porque intervieram nos autos, ambos têm direito ao recebimento da remuneração variável, no valor e proporção definidos; por outro lado, a pretensão formulada no recurso é contrária à solução, expressa, do nº 11 do art. 23º do EAJ, de acordo com o qual no caso de o administrador judicial cessar funções antes do encerramento do processo, a remuneração variável é calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação naquela data;

- na peça processual em que interpôs o recurso omitiu o dispositivo daquele acórdão de 24/02/2022 (no segmento em que nele se refere deliberar-se ser devida ao administrador de insolvência substituído e ao administrador de insolvência em exercício de funções ‘a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos’), o que significa ter omitido ‘factos de acentuada relevância para a decisão a proferir sobre a pretensão deduzida’.

Não se tem por seguro que as alegações do apelante consubstanciem deturpação da realidade, designadamente que nessa peça o recorrente tenha omitido ou escamoteado o que nos autos fora decidido no acórdão de 24/02/2024 desta Relação, proferido no apenso G – pelo contrário, tal acórdão é expressamente referido nas conclusões das alegações, com transcrição de longo excerto da sua fundamentação, precisamente na parte relativa à questão da remuneração variável a fixar nos autos (veja-se a conclusão xii.), donde se não pode concluir da simples circunstância de não ter sido transcrito o dispositivo da decisão que esta (a decisão) tenha sido omitida ou escamoteada. De arredar, pois, tanto mais em matéria cuja aquisição está ao dispor do tribunal (como é a respeitante a anteriores decisões proferidas nos autos – trata-se de decisão proferida no âmbito do presente processo e, por isso, o que ali foi decidido consta dos autos e está disponível não só às partes como ao tribunal), que o administrador da insolvência destituído, no recurso interposto da decisão de 8/02/2023, tenha deturpado (tenha omitido ou escamoteado) factualidade relevante.

Não permitem também os autos alicerçar a convicção segura e inequívoca de que o apelante se apresentou a recorrer da decisão de 8/02/2023 quando tinha de saber da inconcludência sua pretensão (no caso não pode falar-se de dolo – a decisão apelada quedou-se pela imputação negligente).

Não discutindo da sua concludência (ou inconcludência), tem de reconhecer-se que a pretensão recursória deduzida pelo apelante no recurso interposto do despacho que repartiu entre si e o administrador de insolvência em exercício de funções (ser-lhe atribuída, exclusivamente a si, a totalidade da remuneração variável respeitante às quantias por si recuperadas em sede de liquidação) não pode ser tida por juridicamente infundamentada e, muito menos, que se mostre assente e sustentada numa extraordinariamente desleixada e descuidada apreciação e interpretação do decidido no acórdão de 24/02/2022 proferido no apenso G e/ou interpretação (e proposta de aplicação) da solução normativa prescrita no nº 11 do art. 23º do EAJ.

A pretensão recursória formulada pelo administrador substituído foi no sentido de lhe ser a atribuída a totalidade da remuneração variável respeitante às quantias por si recuperadas em sede de liquidação – não que lhe fosse atribuída a totalidade da remuneração variável fixada, mas tão só (o que se conclui por actividade interpretativa – as peças processuais e as pretensões nelas formuladas, como qualquer outra acto jurídico, estão sujeitas a interpretação) a totalidade da remuneração variável respeitante às quantias recuperadas durante o período em que exerceu funções.

Pretensão que se alicerça em posição (fundamentação) jurídica exposta nas conclusões xx. a xxiv. daquele recurso (dever a remuneração variável do administrador que cessa funções antes do encerramento do processo ser calculada proporcionalmente ao resultado da liquidação à data da cessação de funções – o resultado da liquidação à data da destituição deveria ser o único critério a adoptar para a repartição da remuneração variável entre ambos os administradores e seguindo tal critério, a si teria de ser atribuída a totalidade da remuneração variável fixada) que, sendo porventura inconcludente e desconforme ao melhor direito, não traduz, só por si, litigância de má fé, sendo que não pode ter-se por seguro (com a particular prudência e fundada segurança exigíveis para tanto) que tal pretensão e fundamentos que a alicerçam sejam manifestamente inconcludentes e que só por extraordinária incúria, descuido e desleixo no dever de indagação e estudo que se lhe impunham, o administrador substituído tomou a atitude de recorrer (de formular a referida pretensão recursória com base na mencionada fundamentação).

Como se afirmou, a litigância de má fé acautela o interesse público de respeito pelo processo, pelo tribunal e pela justiça, visando assegurar a moralidade e eficácia processual, com reforço da soberania dos tribunais, respeito pelas suas decisões e prestígio da justiça. O indelével dever traçado às partes pelo instituto da litigância de má fé é o do cumprimento da probidade, da boa fé e da cooperação – tem-se em vista evitar que comportamentos eivados de má fé processual se transformem em erros ou irregularidades judiciais, com o prejuízo que daí advém para a justiça.

Não tendo em vista colocar entraves ao direito de acção ou de defesa, impõe o instituto que as partes indaguem do fundamento (factual e/ou jurídico) das suas pretensões, censurando-as (para lá das situações em que actuem dolosamente) nos casos em que se demonstre, de modo seguro e inequívoco, que a dedução da pretensão infundada (de facto e/ou de direito) teve a sua causa no extraordinário desleixo empregue na observância do dever de indagação.

Não revelam os elementos colhidos nos autos que o administrador substituído tenha sido extraordinariamente desleixado (esse o grau de desleixo característico da negligência grave) no cumprimento do dever de estudo e apreciação da juridicidade que o caso convoca – mesmo concedendo faltar concludência à sua pretensão (e não ser de acolher a posição jurídica por si defendida), não pode considerar-se que, com grave negligência, tenha deduzido pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar (ou seja, que só por grave desleixo concluiu ser defensável posição que, se cumprido, sem vício, o dever de indagação - a procura da juridicidade - teria como irrazoável e insusceptível de ser levada a juízo).

Não podendo concluir-se, numa análise prudente e objectiva, que com grave negligência apresentou versão deturpada ou omissa da realidade relevante à apreciação do recurso que interpusera e/ou deduziu pretensão (recursória) infundada, não pode censurar-se o aqui apelante como litigante de má fé.

Procede, pois, a apelação, podendo sintetizar-se a argumentação decisória nas seguintes proposições:

…………………………….

…………………………….

…………………………….


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DECISÃO

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Pelo exposto, acordam os Juízes desta secção cível em julgar procedente a apelação e, em consequência, em revogar a decisão que condenou o apelante em multa e indemnização enquanto litigante de má fé.

Custas (que se circunscrevem à taxa de justiça) pelo apelante (não havendo vencido, as custas ficam a cargo do apelante, que do recurso tira proveito – nº 1 do art. 527º do CPC).


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Porto, 19/03/2024


(por opção exclusiva do relator, o presente texto não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem)
João Ramos Lopes
Márcia Portela
Lina Castro Baptista
___________________
[1] É do seguinte teor a proposição injuntiva da decisão em questão: ‘Delibera-se que é devida ao Administrador da Insolvência requerente destes autos e ao Administrador da Insolvência actualmente em exercício de funções a remuneração variável que vier a ser fixada nos autos principais, segundo critério a definir nos mesmos.’
[2] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, I Vol. (2ª edição revista e ampliada), p. 97.
[3] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade processual por litigância de má fé, abuso de direito e responsabilidade civil em virtude de actos praticados no processo: a responsabilidade por pedido infundado de declaração da situação de insolvência ou indevida apresentação por parte do devedor, Almedina, 2006, pp. 55 e 56.
[4] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª edição, p. 457.
[5] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2018, p. 593.
[6] Pedro de Albuquerque, Responsabilidade processual por litigância de má fé (…), p. 49.
[7] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código (…), p. 457.
[8] Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ de 14/03/2002 (Joaquim de Matos) e 15/10/2002 (Ferreira Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[9] Citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
[10] Ainda o citado acórdão do STJ de 15/10/2002.
[11] Acórdão do STJ de 18/01/2015 (Silva Salazar), no sítio www.dgsi.pt.
[12] A ‘lei confere uma vasta amplitude ao direito de acção ou de defesa, de maneira que, para além da repercussão no campo das custas judiciais, não retira do decaimento qualquer outra consequência a não ser que alguma das partes aja violando as regras e princípios básicos por que devem pautar a sua atuação processual’ - Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.
[13] Acórdão do STJ de 28/05/2009 (Álvaro Rodrigues), no sítio www.dgsi.pt.
[14] Acórdão do STJ de 11/12/2003 (Quirino Soares), no sítio www.dgsi.pt.
[15] Acórdão do STJ de 4/12/2003 (Salvador da Costa), no sítio www.dgsi.pt.
[16] Acórdão do STJ de 13/01/2015 (Fonseca Ramos), no sítio www.dgsi.pt.
[17] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.
[18] Paula Costa e Silva, A Litigância de Má Fé, pp. 394 e 395, apud Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código (…), p. 593.