CASO JULGADO MATERIAL
NORMA IMPERATIVA
SENTENÇA
INTERPRETAÇÃO
Sumário

I – A imperatividade de uma norma e a oficiosidade da sua aplicação não se sobrepõem à força do caso julgado material da sentença. Ainda que padeça de algum erro de julgamento – inclusivamente por não aplicar ou não respeitar uma norma imperativa de conhecimento oficioso – ou de alguma nulidade, a sentença transitada em julgado torna-se inalterável e adquire força obrigatória, nos termos definidos na lei processual, sob pena de se abrir a porta a uma incerteza e uma insegurança jurídicas totalmente intoleráveis.
II – As decisões judiciais constituem verdadeiros actos jurídicos, aos quais são aplicáveis as regras que disciplinam a interpretação da declaração negocial, nos termos do disposto no artigo 295.º do CC. Por conseguinte, a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu conteúdo (cfr. artgo 236.º, n.º 1, do CC). Porém, configurando a sentença um acto jurídico formal e receptício, não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no seu texto, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 238.º, n.º 1, do CC).
III – Mas porque a sentença não constitui um verdadeiro negócio jurídico, nem traduz uma declaração pessoal de vontade, antes exprimindo uma injunção aplicativa do direito a um caso concreto, a sua interpretação não visa reconstituir qualquer declaração pessoal de vontade do julgador, mas sim compreender o resultado final da operação intelectual que conduziu à decisão.
IV – Na interpretação das decisões judiciais não podemos atender apenas ao dispositivo, mas também a todos os antecedentes lógicos e a toda a fundamentação que suporta a decisão final, podendo mesmo relevar circunstâncias posteriores à sua prolação, na medida em que permitam retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar.

Texto Integral

Proc. n.º 2241/12.9TBVCD-D.P1






Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório

1. Por apenso à execução que Banco 1..., S.A. moveu contra AA e BB, na qual A... STC, S.A. foi habilitada como cessionária do crédito exequendo, veio o Ministério Público (MP), em representação do Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira (ATA), reclamar créditos fiscais relativos a IMI não pago, bem como outros créditos fiscais que estavam a ser reclamados noutras execuções fiscais pendentes, cuja pagamento estava garantido pelas penhoras aí efetuadas, no montante global de 30.288,96 €.
Por sentença proferida em 2o.05.2022 no referido apenso (C), já transitada em julgado, foi proferida a seguinte decisão:
Pelo exposto,
- julgo verificados os créditos reclamados pelo Ministério Público, em representação do Estado Português – Autoridade Tributária e Aduaneira, no montante global de 30.288,96 €, já incluindo os respetivos juros de mora vencidos até 09/03/2022, a que acrescem os juros vincendos e como pedido.
- sem prejuízo do pagamento precípuo das custas (da execução e do concurso), para pagamento pelo produto da alienação do bem imóvel penhorado – acima referido em 1.º, al. a) -, graduo os créditos verificados e a quantia exequenda do seguinte modo:
1.º - créditos respetivos de IMI (352,20 €) deste imóvel reclamados pelo Ministério Público e acima verificados.
2.º - crédito exequendo.
3.º - demais créditos fiscais reclamados pelo Ministério Público (garantidos pela primeira penhora (de 23/10/2009) – efetuada na respetiva execução fiscal).
4.º - demais créditos fiscais reclamados pelo Ministério Público (garantidos pela segunda penhora (de 29/04/2011) – efetuada na respetiva execução fiscal).
2. Em 12.06.2023 a agente de execução (AE) juntou aos autos e comunicou às partes “nota discriminativa provisória após venda”, mais notificando a exequente para, no prazo de 10 dias, efetuar o pagamento quer das custas devidas à signatária quer do valor a pagar ao 1.º credor reclamante (MP).
3. O MP veio reclamar, alegando que:
- No requerimento de reclamação de créditos que apresentou, os juros dos créditos de IMI foram contados até ao dia 09.03.2022 e não até ao dia 22.03.2022, pelo que os juros vincendos relativos àquele crédito devem ser contados desde 09.03.2022, e não desde 22.02.2022 como fez a AE;
- Apenas estão garantidas pelas hipotecas os juros sobre o crédito exequendo relativos aos três primeiros anos, nos termos do artigo 693.º, n.º 2, do Código Civil (CC), perfazendo a soma dos créditos garantidos pelas hipotecas a quantia 326.467,65 €; deste modo, para além do crédito de IMI e respectivos juros de mora, graduado em 1.º lugar, deverá ter lugar o pagamento do crédito hipotecário, graduado em 2.º lugar, mas apenas até ao referido limite de 326.467,65 €, aplicando-se o remanescente de, pelo menos, 20.485,37 € para pagamento dos demais créditos fiscais reclamados pelo MP.
Mais requereu se ordene à exequente o depósito à ordem destes autos, para além do montante de 408,00 €, correspondente às custas de parte devidas ao credor Estado/Fazenda Nacional que saem precípuas, do valor correspondente ao crédito graduado em 1º lugar e respectivos juros vincendos a contar desde 09.03.2022 e do apontado remanescente de, pelo menos, 20.485,37 €, para pagamento dos demais créditos fiscais reclamados pelo Ministério Público.
4. A exequente opôs-se, alegando que a nota discriminativa foi elaborada pela AE de acordo com a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso C em 20.05.2022, a qual não foi objecto de qualquer reclamação ou recurso; mais alegou que apresentou proposta de aquisição do imóvel apreendido nos presentes autos pelo valor de 352.000,00 € tendo em conta, além do valor do imóvel, o teor daquela sentença; alegou ainda ser extemporânea a rectificação do requerimento inicial de reclamação de créditos quanto aos juros relativos ao crédito de IMI.
5. Pronunciou-se também a AE, esclarecendo que efetuou o cálculo dos juros de mora tendo em conta a data que consta do início do requerimento de reclamação de créditos, ou seja, 22.03.2023, mas constatou, entretanto, que no ponto 2.º do referido requerimento se refere que os juros de mora estão contabilizados até 09.03.2022, pelo que já efetuou o novo calculo dos juros a favor do 1.º credor reclamante (MP) desde a data de 10.03.2022 até à data da elaboração da nota, 12.06.2023, conforme documento que anexa. Mais esclareceu, no que respeita à limitação dos juros prevista no artigo 693.º do CC, que os juros de mora foram contabilizados e calculados na plataforma informática GPESE na conta do processo, conforme documento que anexa.
6. Foi proferida decisão, onde se afirma que «a Sra. AE veio já retificar o valor dos juros do crédito fiscal de IMI, com a sua contagem desde 10/03/2023, como era devido e como resulta da reclamação de créditos, tal como veio informar a Sra. AE, pelo que deve improceder o requerido a tal respeito pela exequente» e que «não foi respeitada a ordem de pagamento das quantias devidas ao credor reclamante/MP e à exequente, conforme a data das respetivas penhoras e tal como previsto na sentença proferida na reclamação de créditos/apenso-C», terminando com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, defiro a reclamação/requerimento apresentado pelo MP, devendo a conta/nota discriminativa apresentada ser reformada/retificada em conformidade com o acima fixado e tal como promovido pelo MP.
Custas do incidente pela exequente, sendo de 1/2 UC a taxa de justiça (cfr. os arts. 527.º, n.º 1, e 539.º, n.º 1, do CPC, bem como o art.º 7.º, n.º 4, do RCP e respetiva tabela II), sem prejuízo do apoio judiciário.

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Inconformada, a exequente A... STC, S.A. apelou dessa decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. A decisão recorrida não considerou o teor da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso C dos autos;
II. A predita sentença determinou que o crédito exequendo é pago após o crédito de IMI e antes da totalidade dos demais créditos reclamados pelo Ministério Público;
III. Saliente-se que a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso C dos autos transitou em julgado, não tendo sido objecto de qualquer reclamação ou interposição de recurso;
IV. A nota de honorários e despesas elaborada pela Agente de Execução e, diga-se a proposta de adjudicação da Exequente teve em consideração a douta sentença de sentença de verificação e graduação de créditos (apenso C) e, caso não seja este o entendimento, o que por mera hipótese académica se alvitra, deverá a proposta de adjudicação ser desconsiderada.
V. Destarte, o produto da venda do imóvel penhorado nos autos tem de respeitar a sentença de verificação e graduação de créditos, pelo que o crédito exequendo deverá ser pago na sua totalidade após o pagamento do crédito de IMI».
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O MP apresentou resposta, formulando as seguintes conclusões:
«1. O art. 693º do Código Civil determina que a hipoteca assegura tanto o capital, como os acessórios do crédito (que englobam as despesas de constituição da hipoteca e do registo desta, os juros, as cláusulas penais convencionalmente estabelecidas para o caso de incumprimento e ainda outras despesas), desde que estes constem do registo (cfr. também art. 96º do Código do Registo Predial).
2. Contudo, se os acessórios forem juros, o n.º 2 deste artigo estabelece um limite imperativo, nos termos do qual a hipoteca nunca pode abranger os juros superiores ao período de três anos.
3. Trata-se de uma norma de ordem e interesse público, revestindo, assim, carácter imperativo, podendo por isso ser invocada por qualquer legítimo interessado e devendo ser oficiosamente aplicada pelo tribunal. Ou seja, a penhora do imóvel hipotecado não pode afastar as regras prescritas no referido art. 693º, n.º 2, do Código Civil – cfr., neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 08-09-2020 (Proc. 423/15.0T8LOU-B.P1), disponível no sítio www.dgsi.pt.
4. Por outro lado, deve considerar-se que a aplicação de tais regras, consubstancia questão cujo conhecimento oficioso se impõe quer na 1ª instância, quer mesmo no âmbito de recurso (cfr. art. 608º, n.º 2 do Código de Processo Civil) – cfr., neste sentido, o acima citado acórdão da Relação do Porto de 08-09-2020 (Proc. 423/15.0T8LOU-B.P1), disponível no sítio www.dgsi.pt.
5. Como bem se escreveu na sentença proferida nos autos reclamação de créditos n.º 2241/12.9TBVCD-C, apensos aos presentes autos de execução, “os contratos de financiamento/empréstimo objeto desta execução encontram-se garantidos por duas hipotecas registadas em 2007, respetivamente, pelos montantes indicados no registo predial, atenta a natureza constitutiva do registo desta garantia - cfr. o art.º 687º do Cód. Civil”. (sublinhado nosso)
6. Pelo que, conforme consta do registo, só estão garantidos, num caso, ou seja, no caso da hipoteca registada sob a Ap. ...7 de 2007-12-10, o capital de € 71.407,06, três anos de juros à taxa de juro anual de 8,246%, acrescida de 4%, a título de cláusula penal, e despesas no valor de € 2.856,28, o que perfaz, assim, o montante máximo assegurado constante do registo de € 100.496,87.
7. E, no outro caso, ou seja, no caso da hipoteca registada sob a Ap. ...8 de 2007-12-10, o capital de € 162.000,00, três anos de juros à taxa de juro anual de 8,246%, acrescido de 4%, a título de cláusula penal, e despesas no valor de € 6.480,00, o que perfaz, assim, o montante máximo assegurado constante do registo de € 227.995,56.
8. Deste modo, além do pagamento crédito relativo ao IMI, incluindo os respetivos juros vencidos e vincendos, garantido por privilégio imobiliário especial, graduado em 1º lugar, contemplado na “Nota Discriminativa Provisória” objecto de reclamação, deverá ter lugar o pagamento, ali igualmente previsto, do crédito exequendo garantido pela hipoteca, graduado em 2º lugar, mas, obviamente, apenas até ao apontado limite € 326.467,65, aplicando-se o remanescente de, pelo menos, € 20.485,37, para pagamento dos demais créditos fiscais reclamados pelo Ministério Público, nomeadamente do crédito garantido pela primeira penhora (a registada a 23-10-2009) efetuada no Processo de Execução Fiscal n.º 1821200701107208 e Apensos, graduado em 3º lugar.
9. Assim, e em suma, deve ser mantido o douto despacho recorrido que deferiu a reclamação da “Nota Discriminativa Provisória” elaborada pela Agente de Execução».
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II. Fundamentação

A. O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do CPC, não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
Tendo em conta o teor das conclusões formuladas pela recorrente, importa decidir se a “Nota Discriminativa Provisória Após Venda” elaborada pela AE e, por conseguinte, os pagamentos a efectuar com o produto da venda do imóvel penhorado, devem ter em consideração o limite de três anos, previsto no artigo 693.º, n.º 2, do CC, para a garantia hipotecária conferida aos juros.
B. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às ocorrências descritas nos pontos 1. a 6. do relatório deste aresto.
C. A resposta positiva à questão acima enunciada implica considerar que o crédito graduado em 2.º lugar está cingido ao valor correspondente ao capital do crédito exequendo acrescido dos juros vencidos nos três primeiros anos, num total que as partes aceitam ser de 326.467,65 €, e que o remanescente deste crédito, isto é, os juros vencidos depois daqueles três anos, deve ser pago depois do crédito do Estado graduado em 4.º lugar.
A resposta negativa à mesma questão implica considerar que o crédito graduado em 2.º lugar corresponde à totalidade do crédito exequendo, sem qualquer limite temporal quanto aos juros, pelo que o pagamento daquele crédito prefere, na sua totalidade, sobre os créditos do Estado graduados em 3.º e 4.º lugar.
A questão assim colocada neste recurso tem, portanto, como pressuposto saber se o limite legal de 3 anos previsto no artigo 693.º, n.º 2, do CC, foi contemplado na sentença de verificação e graduação de créditos proferida no apenso C, já transitada em julgado, pois foi esta sentença que definiu definitivamente a ordem pela qual devem ser pagos o crédito exequendo e os créditos reclamados e verificados.
Não pretendemos, deste modo, por em causa que aquela é uma norma de ordem e interesse público, que reveste carácter imperativo, que pode ser invocada por qualquer interessado e que deve ser oficiosamente aplicada pelo tribunal, como se decidiu no ac. do TRP, de 08.09.2020 (proc. n.º 423/15.0T8LOU-B.P1, rel. Carlos Portela, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode encontrar a demais jurisprudência citada sem indicação da fonte), invocado pelo MP.
Mas, ao contrário do que parece entender o recorrido, a imperatividade desta ou de qualquer outra norma e a oficiosidade da sua aplicação não se sobrepõem à força do caso julgado material de uma sentença. No que tange à sua apreciação jurisdicional, a imperatividade e a oficiosidade na aplicação das normas são consideradas e respeitadas na decisão do tribunal. Não o sendo, a parte prejudicada tem o ónus de a impugnar, sob pena de deixar transitar em julgado uma decisão que considera violadora de uma norma imperativa e de conhecimento oficioso. O que não pode é, depois do trânsito em julgado da sentença, considerar que não lhe é devida obediência e pretender que o próprio tribunal profira nova decisão que contrarie aquela sentença, com o argumento de que a primeira viola uma norma imperativa de conhecimento oficioso. Mesmo que padeça de algum erro de julgamento ou de alguma nulidade, a sentença transitada em julgado torna-se inalterável e adquire força obrigatória, nos termos definidos na lei processual, sob pena de se abrir a porta a uma incerteza e uma insegurança jurídicas totalmente intoleráveis.
Deste modo, repete-se, a questão decidenda traduz-se em saber se a nota reclamada respeitou ou não a sentença de verificação e graduação de créditos e se, por isso, deve ser mantida ou rectificada.
Desde já adiantamos que, com excepção do lapso respeitante à data até à qual haviam sido contabilizados os juros de mora relativos ao crédito de IMI, prontamente rectificado pela AE – em termos que mereceram a concordância do Tribunal a quo, cuja decisão não foi, nesta parte, impugnada, pelo que transitou em julgado, não integrando o objecto deste recurso – a referida nota discriminativa foi elaborada em consonância com a sentença de verificação e graduação de créditos.
Analisado o dispositivo desta sentença, verifica-se que o crédito exequendo foi aí graduado em segundo lugar, sem qualquer limitação temporal quanto aos juros de mora, não obstante o referido crédito se ter vencido em 14.04.2011 e, por conseguinte, serem devidos, à data em que a sentença foi proferida, juros de mora relativos a mais de 11 anos.
Não tendo sido alvo de impugnação, esta decisão de graduar a totalidade do crédito exequendo em segundo lugar, depois dos créditos de IMI e antes dos demais créditos reclamados pelo Estado, transitou em julgado.
Sobre os efeitos e o alcance do caso julgado material regem os artigos 619.º e seguintes do CPC, preceituando este artigo 619.º que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, acrescentando o artigo 621.º que a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.
Tem-se entendido que esta expressão – “limites e termos em que julga” – significa que a extensão objectiva do caso julgado se afere face às regras substantivas relativas à natureza da situação que ela define, à luz dos factos jurídicos invocados pelas partes e do pedido ou pedidos formulados na acção (cfr. ac. do STJ, de 12.07.2011, proc. n.º 129/07.4TBPST.S1, rel. Moreira Camilo, que aborda a questão ao abrigo do anterior artigo 673.º do CPC).
Compreende-se que assim seja, pois toda e qualquer decisão assenta em concretos pressupostos, quer de facto, quer de direito, sendo o caso julgado referenciado com um âmbito extensivo a certos fundamentos.
Por isso, como se escreve no sumário do acórdão do STJ antes citado, quanto à «questão de saber que parte da sentença adquire, com o trânsito desta, força obrigatória dentro e fora do processo – problema dos limites objectivos do caso julgado –, tem de reconhecer-se que, considerando o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, há que alargar a sua força probatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da condenação firmada» (cfr., no mesmo sentido, os acs. do STJ, de 23.11.2011, proc. n.º 644/08.2TBVFR.P1.S1, rel. Pereira da Silva, e de 22.09.2016, proc. n.º 106/11.0TBCPV.P2.S1, rel. Abrantes Geraldes).
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa (Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 578 e 579), «[n]ão é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão».
Por outro lado, como escreve Lebre de Freitas, citado no ac. do TRC, de 12.12.2017 (proc. n.º 3435/16.3T8VIS-A.C1, rel. Isaías Pádua), «“a determinação do âmbito objectivo do caso julgado postula a interpretação prévia da sentença, isto é, a determinação exacta do seu conteúdo (dos seus “precisos limites e termos”), de que fala o citado artº. 621º», correspondente ao actual artigo 619.º.
A jurisprudência tem entendido unanimemente que as decisões judiciais constituem verdadeiros actos jurídicos, aos quais são aplicáveis as regras que disciplinam a interpretação da declaração negocial, nos termos do disposto no artigo 295.º do CC.
Por conseguinte, a decisão judicial há-de valer com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu conteúdo (cfr. artgo 236.º, n.º 1, do CC).
Porém, configurando a sentença um acto jurídico formal e receptício, não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no seu texto, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 238.º, n.º 1, do CC).
A jurisprudência vem igualmente chamando a atenção para a circunstância de a sentença não constituir um verdadeiro negócio jurídico, nem traduzir uma declaração pessoal de vontade do julgador ou um qualquer propósito subjectivo, antes exprimindo uma injunção aplicativa do direito a um caso concreto, ou seja, pelo que a sua interpretação não visa reconstituir aquela declaração pessoal de vontade do julgador, mas sim compreender o resultado final do percurso que conduziu à decisão, isto é, da operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objetivo a essa situação.
Na esteira da jurisprudência a que vimos aludindo, na interpretação das decisões judiciais não podemos atender apenas ao dispositivo, mas também a todos os antecedentes lógicos e a toda a fundamentação que suporta a decisão final – onde o tribunal faz a concatenação do pedido, da causa de pedir e das normas jurídicas aplicáveis –, podendo inclusivamente relevar circunstâncias posteriores à sua prolação, na medida em que permitam retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar.
A este respeito vide, a título de exemplo, o ac. do TRG, de 19.10.2021 (proc. n.º 606/06.4TBMNC-D.G1, rel. Cristina Cerdeira) e o ac. do STJ, de 01.07.2021 (proc. n.º 726/15.4T8PTM.E1.S1, rel. Rosa Tching), bem como a demais jurisprudência e doutrina aí citadas.
Transpondo estes conceitos e ensinamentos para o caso concreto, verificamos que, não obstante a já mencionada amplitude do crédito exequendo, a fundamentação da sentença não só não faz apelo ao disposto no artigo 693.º, n.º 2, do CC, como não faz qualquer menção a algum limite temporal da garantia decorrente da hipoteca.
Quanto a esta garantia do crédito exequendo, na sentença em análise refere-se apenas o seguinte:
«Por sua vez, como se sabe, a hipoteca confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis com precedência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade no registo - cfr. o art.º 686.º, n.º 1, do Cód. Civil.
Os contratos de financiamento/empréstimo objeto desta execução encontram-se garantidos por duas hipotecas registadas em 2007, respetivamente, pelos montantes indicados no registo predial, atenta a natureza constitutiva do registo desta garantia - cfr. o art.º 687.º do Cód. Civil».
Embora o recorrido pretenda ver na referência aos «montantes indicados no registo predial» uma alusão ao limite temporal previsto no artigo 693.º, n.º 2, discordamos desta leitura.
O que resulta dos registos juntos aos autos de execução é que foi constituída uma primeira hipoteca (Ap. ...7 de 10.12.2009) para garantia do capital de 71.407,06 €, com um montante máximo assegurado de 100.496,87 €, e uma segunda hipoteca (Ap. ...8 de 10.12.2007) para garantia do capital de 162.000,00 €, com um montante máximo assegurado de 227.995,56 €. O montante máximo assegurado pelas duas hipotecas ascende, portanto, a 328.492,43 € (correspondendo 233.407,06 € à totalidade do capital garantido).
Mas nada nesses registos nos permite afirmar que este valor máximo assegurado corresponda ou esteja diretamente relacionado com a norma do artigo 693.º, n.º 2, do CC, limite que também não consta dos contratos de mútuo com hipoteca que serviram de base à realização dos registos constitutivos das hipotecas, sendo certo que naqueles contratos, para além do capital, dos juros remuneratórios e dos juros moratórios, ainda se consideram cobertas pela garantia as despesas emergentes daqueles contratos.
Seja como for, embora se afirme na referida sentença que o cumprimento dos dois contratos de mútuo se encontra garantido por duas hipotecas, «pelos montantes indicados no registo predial», e se acrescente que o crédito exequendo também está garantido pela penhora efectuada nos autos principais, que é posterior às outras duas penhoras que incidem sobre o mesmo imóvel, efecutadas em processos de execução fiscal, conclui-se que o crédito exequendo, garantido pela hipoteca e pela penhora (terceira) efetuada nos autos principais, deve ser graduado na totalidade em segundo lugar, depois do crédito relativo ao IMI, que goza de privilégio imobiliário especial, mas antes dos restantes créditos reclamados pelo Estado, não obstante estes estarem garantidos por penhoras anteriores, já antes referidas, sendo esta conclusão vertida no dispositivo da sentença.
Ainda que esta decisão possa estar em contradição com a fundamentação que a suporta, o seu sentido é inequívoco: gradua a totalidade do crédito exequendo em segundo lugar, logo após os créditos relativos ao IMI e antes de todos os restantes.
Isso mesmo é corroborado pela ausência de qualquer referência à graduação diferenciada da parte do crédito exequendo que não beneficia da garantia decorrente das hipotecas. Na verdade, nenhum crédito foi graduado após os créditos reclamados pelo MP, ainda que com recurso a alguma fórmula genérica alusiva aos créditos não mencionados nos pontos anteriores.
Assim, a afirmação de que os créditos fiscais do Estado graduados em 3.º e 4.º lugar devem ser pagos, pelo produto do imóvel vendido, antes de parte do crédito exequendo, não tem um mínimo de correspondência no texto da sentença de graduação de créditos.
«Ademais, como vem sustentando a doutrina a propósito do problema da função limitativa ou excludente do caso julgado, não é possível à parte que, formulando um pedido global não individualizado, o viu proceder apenas em parte, obtendo um valor ou montante inferior ao pretendido, alcançar, através de decisão jurisdicional ulterior, aquilo que não logrou obter através da sentença primeiramente proferida e transitada em julgado (cfr. Castro Mendes, in Limites Objectivos do Caso Julgado, pág. 277)» - cfr. ac. do TRG antes citado.
No caso concreto, tendo o MP reclamado diversos créditos e tendo a sentença, já transitada em julgado, graduado antes do crédito exequendo apenas os créditos relativos a IMI, graduando todos os restantes depois daquele crédito exequendo, não pode o reclamante pretender que, por via de uma decisão posterior ao aludido trânsito, o Tribunal dê preferência aos créditos reclamados pelo MP sobre parte do crédito exequendo.
Mesmo que se considere que a sentença de verificação e graduação dos créditos não é inteiramente correcta, a verdade é que o Ministério Público não arguiu a sua nulidade, não pediu a sua reforma, nem interpôs recurso da mesma, pelo que tal decisão transitou em julgado, não podendo o tribunal a quo alterar o seu sentido no âmbito de um incidente suscitado a respeito da proposta de liquidação do julgado apresentada pela AE.
Nestes termos, procede totalmente a apelação, pelo que importa revogar parcialmente a decisão recorrida, julgar parcialmente improcedente a reclamação apresentada pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmar a nota apresentada pela AE, sem prejuízo da rectificação operada por esta, confirmada pelo Tribunal a quo e não impugnada neste recurso.
Procedendo a apelação, as custas desta, tal como as custas do incidente deduzido, são da responsabilidade do Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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III. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam procedente a apelação, pelo que revogam parcialmente a decisão recorrida, julgam parcialmente improcedente a reclamação apresentada pelo Ministério Público e, consequentemente, confirmam a nota apresentada pela AE, sem prejuízo da rectificação operada por esta.

Custas da apelação e do incidente a que a mesma põe fim pelo recorrido.

Registe e notifique.


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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 19 de Março de 2024
Artur Dionísio Oliveira
Fernando Vilares Ferreira
Ramos Lopes