APOIO JUDICIÁRIO
PEDIDO
OPORTUNIDADE
Sumário

Não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão.

Texto Integral

Proc. n.º 6783/18.4T8VNG.P1





Acordam no Tribunal da Relação do Porto


I. Relatório
AA, residente na Rua ..., ..., concelho de Vila Nova de Gaia, requerente nestes autos em que foi declarada a sua insolvência e lhe foi concedida a exoneração do passivo restante, foi notificado da conta e do valor das custas pelas quais é responsável por correio registado de 10.08.2023.
Por requerimento de 29.08.2023 veio o mesmo informar que não possui rendimentos para efetuar o pagamento das custas e despesas apuradas e que, por esse motivo, deu entrada de requerimento de concessão de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos com o processo, juntando cópia desse requerimento e protestando juntar a decisão que seja proferida pelo ISS, assim que seja notificado da mesma.
Os autos foram com vista ao Ministério Público, que se pronunciou no sentido de o pedido de apoio judiciário não poder ser atendido nestes autos, por ser extemporâneo.
O Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho:
(…) No que concerne ao incidente de exoneração do passivo restante, quanto às custas, em especial as taxas de justiça, é concedido o diferimento do respetivo pagamento até que seja proferida decisão final sobre o pedido – artº 248º do CIRE.
No que tange à declaração de insolvência e consequências no património de quem a requereu, sabemos que o devedor insolvente fica numa situação de inibição relativamente à prática de atos de natureza patrimonial (art.º 81.º, nº 1, do CIRE), sendo o património gerido, em primeira linha, pelo Administrador de Insolvência e, numa fase subsequente, em casos de deferimento liminar da exoneração do passivo restante, pelo Fiduciário, cabendo a cada um deles, na respetiva fase, efetuar o pagamento de dívidas, principalmente de dívidas resultante de custas processuais (art.ºs 55.º, nº 1, al. a), e 241.º, n.º 1, al. a), do CIRE).
A norma especial prevista no artigo 248º do CIRE visa proteger o devedor que deduz o pedido de exoneração de passivo restante mas impondo-lhe, em troca de uma dispensa meramente temporária e delimitada no tempo, a obrigatoriedade inultrapassável de ter que pagar os encargos tributários com o referido pedido mais adiante.
A filosofia subjacente ao instituto da exoneração do passivo restante é no sentido de não sobrecarregar o devedor com o encargo adicional de quaisquer custas enquanto estas pudessem ser cumpridas pela massa e pelo rendimento disponibilizado ao fiduciário com a cessão, permitindo àquele um “fresh start”, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade.
Por isso, proferido despacho, devidamente transitado, no qual se determinou a extinção dos créditos, sem excepção sequer dos que tenham sido reclamados e que ainda subsistam após tal período, encontram-se, ultrapassadas as razões que justificaram o diferimento do pagamento das custas, deixa de fazer sentido a aplicação do regime dos nºs 1 e 4 do art.º 248º do CIRE.
A partir de agora, tudo se passa como sempre ocorre no regime geral; ao cidadão a quem foi conferido o dito “fresh start” caberá cumprir com os seus deveres tributários nos mesmos moldes de qualquer outro.
Dessa obrigação apenas estará eximido caso, como ocorreria com qualquer outra pessoa, lhe tenha sido concedido pela segurança social o benefício de apoio judiciário nomeadamente na modalidade de dispensa de pagamento de custas.
No caso concreto, os requerentes só após ter sido proferida decisão final de concessão da exoneração do passivo restante e serem notificados da conta de custas, é que solicitaram ao ISS o beneficio de apoio judiciário.
A questão que agora se coloca é de saber se, uma vez publicitado o despacho de encerramento da ação de insolvência e o despacho final do incidente de exoneração do passivo restante, ainda assim o insolvente poderia, requerer o benefício de apoio judiciário para dispensa total do pagamento das custas.
Neste aspecto, concordamos plenamente com a promoção do Ministério Público.
O apoio judiciário agora concedido ao insolvente, destina-se a assegurar que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos e não para, findo o processo, se eximirem ao pagamento das custas que a sua atividade deu lugar.
In casu, o insolvente exerceu plenamente a defesa dos seus direitos e o pedido de apoio judiciário surge numa circunstância apurada em que a situação jurídica em causa já estava juridicamente decidida.
No fundo, visar-se-ia uma “isenção de custas”, no momento processual de iniciar aquele pagamento, o que o regime de apoio judiciário não contemplaria.
A insolvência está encerrada, a exoneração do passivo restante terminou e, portanto, os créditos sobre os insolventes estão extintos, estando assegurado o dito “fresh start”.
O único interesse em causa é o de eximir-se ao pagamento das custas já contadas, a partir de uma situação de comprovada insuficiência económica.
Alegou o devedor que o pedido efectuado nos autos decorreu do facto de as suas condições económicas não terem melhorado, porém, não nos parece, s.m.o., que tal situação afecte ou altere os pressupostos acima enunciados.
O instituto do apoio judiciário visa obstar a que, por insuficiência económica, seja denegada justiça aos cidadãos que pretendem fazer valer os seus direitos nos tribunais; a sua criação é um corolário do imperativo constitucional plasmado no art.º 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Quer isto dizer que o benefício de apoio judiciário, conferindo um direito especial a um dado cidadão, apenas se justifica enquanto não estiver dirimido o litígio; uma vez julgado o pleito ou esgotado o interesse em agir do requerente, não mais este terá o direito de requerer tal prerrogativa.
O apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado.
In casu, o pedido de apoio judiciário foi apresentado em 29.08.2023, em data posterior à da conta de custas (04.08.) e notificação ao devedor com a respectiva guia de pagamento, pedido que entendemos formulado com o propósito de não pagar as custas.
Deste modo e pelo exposto, entendemos que o pedido de apoio judiciário formulado em 29.08.2023, é extemporâneo por ter sido apresentado após a prática dos referidos actos, pelo que, não pode ser atendido no âmbito dos presentes autos (vd. decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto no Processo nº 101/15.2T8VNG-B.P1, de 31/05/2022, e Ac. RP de 21.04.2022 proferido no proc. n.º 5481/16.8T8VNG-J6).

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Inconformado, o requerente insolvente apelou desta decisão, formulando as seguintes conclusões:
«I. Em primeiro lugar a meritíssima juíza a quo desconsiderou que o pedido de apoio judiciário foi requerido pois ocorreu encargo excecional superveniente.
II. Depois, desconsiderou o Tribunal “a quo” Acórdão do Tribunal Constitucional nº 480/2020 que declarou a inconstitucionalidade do nº4 do artº 248º do CIRE “na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica, por violação dos arts. 20º, nº1 e 13º, nº2, da Constituição”.
III. No caso dos autos, e no entendimento da decisão recorrida, a norma legal deve ser tida como aplicável a casos como o presente, e interpretada como vedando, de forma absoluta e liminar, o benefício do apoio judiciário ao requerente de exoneração do passivo restante, salvo na modalidade de nomeação e pagamento de honorários de patrono, incluindo nos casos previstos no n.º 1 do mesmo preceito, ou seja, nas hipóteses em que, proferida a decisão final sobre esse pedido, persistem em dívida montantes de taxa de justiça e encargos.
IV. Ora, cabe observar que a aplicabilidade desse regime a tais casos, designadamente da norma restritiva da primeira parte do n.º 4 do preceito, tem sido discutida na jurisprudência, obtendo resposta maioritariamente negativa.
V. Um tal sentido normativo ofende os princípios da igualdade e do acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, com referência aos artigos 13.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição, por comportar denegação de acesso à justiça e tratamento discriminatório do requerente de exoneração de passivo restante que padeça de insuficiência de meios económicos para satisfazer a tributação e encargos processuais, face aos requerentes da declaração de insolvência que não formulem idêntico pedido.
VI. A esta luz, a interpretação normativa efetuada pelo tribunal a quo do preceituado no n.º 4 do artigo 248.º do CIRE oferece motivos de censura pela desproteção – e decorrente afastamento material do acesso ao sistema de justiça – que acarreta para o devedor exonerado do passivo, mantendo-se a situação de insuficiência económica, ser obrigado a pagar custas no valor de €4.128,59 euros.
VII. Pelo contrário, o funcionamento do mecanismo de cedência, e a sua imputação nos termos estipulados no artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, é de modo a fazer esperar que a condição de melhor fortuna permitirá extinguir pelo pagamento o remanescente da taxa de justiça e encargos da responsabilidade do devedor insolvente.
VIII. Quanto tal não sucede, sendo parco ou inexistente o rendimento disponível suscetível de cessão (artigo 239.º, n.º 3), estamos, como os presentes autos ilustram, perante a manutenção de um quadro de baixos rendimentos, nos limites do razoavelmente necessário para sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar [artigo 239.º, n.º 3, alínea b), i)].
IX. Exigir, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente de custas e encargos que a massa insolvente e o período de cinco anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições para uma nova vida económica, a que está votada a exoneração do passivo restante, o que constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos.
X. É assim válida a conclusão de que a decisão em exame não garante o acesso à justiça, com referência ao incidente de exoneração do passivo restante, por parte daqueles que careçam de meios económicos suficientes para suportar os encargos inerentes ao respetivo desenvolvimento processual, ofendendo a garantia de não denegação de justiça por insuficiência de meios económicos, e comportando tratamento discriminatório ilegítimo fundado na situação económica do sujeito, violando os artigos 20.º, n.º 1, e 13.º, n.º 2, da Constituição e o direito a um processo equitativo consagrado no artigo 6.º, 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem Violadora flagrante dos Princípios da Justiça consagrada na Constituição da República Portuguesa e princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa».
Terminou pugnando pela revogação da decisão recorrida.
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O Ministério Público respondeu à alegação do recorrente, pugnando pela integral improcedência da apelação.
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II. Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, como decorre do disposto nos artigos 635.º, n.º 4, e 639.º do Código de Processo Civil (CPC), não podendo o Tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (cfr. artigo 608.º, n.º 2, do CPC). Não obstante, o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do citado diploma legal).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, consiste em saber se, tendo requerido – e tendo-lhe sido concedida – a exoneração do passivo restante, o devedor insolvente pode beneficiar do eventual deferimento do pedido de apoio judiciário que deduziu já depois de ter sido notificado da conta e se, por isso, deve ser suspenso o prazo de pagamento das custas devidas por aquele.
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III. Fundamentação

1. A factualidade a considerar na apreciação do presente recurso corresponde às seguintes ocorrências processuais:
- Em 29.08.2018 AA veio requerer a declaração da sua insolvência e a exoneração do passivo restante, invocando a dispensa do pagamento prévio da taxa de justiça decorrente do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE);
- Por sentença proferida em 17.09.2018 foi declara a sua insolvência;
- Por despacho proferido em 16.01.2019 foi declaro encerrado o presente o processo, por insuficiência da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230º, nº. 1, alínea d), e 232.º, n.º 2, do CIRE, e liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante;
- Por requerimento de 29.01.2019, a administrador da insolvência e fiduciário nomeado veio informar que foi apreendido o saldo bancário de uma conta de depósitos a prazo de que o insolvente era titular, no valor de 78,10 €, e propor que esse saldo seja utilizado para pagamento das custas do presente processo, o que foi deferido por despacho de 30.04.2019 e considerado na conta;
- Nos relatórios anuais relativos a cada um dos três anos do período de cessão, o fiduciário nomeado informou que nenhum valor lhe foi cedido, porque os rendimentos auferidos pelo insolvente não ultrapassaram o valor fixado para o seu sustento, acrescentando no último desses relatórios nada ter a opor à concessão da exoneração do passivo restante;
- Por decisão proferida em 27.06.2023 foi concedida ao devedor a exoneração do passivo restante, com custas pelo mesmo;
- Elaborada a conta, foi apurado um total a pagar pelo insolvente, a título de custas, de 4.128,59 €;
- O insolvente foi notificado para proceder ao pagamento das custas da sua responsabilidade por correio registado de 10.08.2023:
- Por requerimento de 29.08.2023 veio juntar aos autos comprovativo do pedido de apoio judiciário na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo apresentado no ISS nesse mesmo dia.
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2. Tendo o devedor insolvente solicitado e tendo-lhe sido concedida a exoneração do passivo restante, mas não se tendo mostrado possível pagar integralmente as custas do processo (aí se incluindo as geradas durante o período de cessão) por via da liquidação da massa insolvente ou da cessão do rendimento disponível, coloca-se agora a questão de saber se aquele poderá beneficiar do eventual deferimento do pedido de apoio judiciário que deduziu já depois de ter sido notificado da conta final e do valor das custas que lhe incumbe pagar.
Para melhor enquadrar esta questão importa analisar, ainda que em traços muito gerais, o quadro legal em que a mesma se inscreve.
a. Nos termos do disposto no artigo 303.º do CIRE, para efeitos de tributação, o processo de insolvência abrange o processo principal, a apreensão dos bens, os embargos do insolvente, ou do seu cônjuge, descendentes, herdeiros, legatários ou representantes, a liquidação do activo, a verificação do passivo, o pagamento aos credores, as contas de administração, os incidentes do plano de pagamentos, da exoneração do passivo restante, de qualificação da insolvência e quaisquer outros incidentes cujas custas hajam de ficar a cargo da massa, ainda que processados em separado.
Dispõe, por sua vez, o artigo 304.º do CIRE, que as custas do processo de insolvência são encargo da massa insolvente ou do requerente, consoante a insolvência seja ou não decretada por decisão com trânsito em julgado.
Na primeira hipótese, para além da responsabilidade da massa insolvente, o CIRE consagra, em diversas das suas disposições, a precipuidade das custas do processo e das despesas da liquidação (em linha com o que sucede no processo executivo por força do disposto no artigo 541.º do CPC).
Desde logo por via do conceito de massa insolvente plasmado no seu artigo 46.º. De acordo com o n.º 1 deste preceito, a massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, nomeadamente as que se encontram discriminadas nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 51.º do CIRE, entre as quais surgem, logo à cabeça, as custas do processo de insolvência, a remuneração do administrador da insolvência (AI) e outras despesas de liquidação.
Em consonância com estas normas, o n.º 1 do artigo 172.º do CIRE preceitua que, antes de proceder ao pagamento dos créditos sobre a insolvência, o administrador da insolvência deduz da massa insolvente os bens ou direitos necessários à satisfação das dívidas desta, incluindo as que previsivelmente se constituirão até ao encerramento do processo.
Esta regra da precipuidade mantém-se nas situações em que é requerida a exoneração do passivo restante, caso em que passa a abranger também os próprios encargos inerentes ao procedimento de exoneração.
Na verdade, o artigo 241.º, n.º 1, do CIRE, dispõe que, no final de cada ano em que dure a cessão, o fiduciário afecta os rendimentos do devedor por si recebidos:
a) Ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida;
b) Ao reembolso ao organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça (actualmente o IGFEJ – Instituto de Gestão Financeira e dos Equipamentos da Justiça) das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas;
c) Ao pagamento da sua própria remuneração já vencida e despesas efectuadas;
d) À distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.
Os pagamentos são feitos por esta ordem, como decorre da expressão “distribuição do remanescente” constante da al. d), surgindo em primeiro lugar as custas do processo de insolvência que ainda permaneçam em dívida, seguidas do reembolso das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o IGFEJ haja suportado.
b. As regras da responsabilidade pelo pagamento das custas e da precipuidade antes expostas são corroboradas pelo artigo 248.º, n.º 1, do CIRE, quando aí se alude às custas e aos reembolsos para cujo pagamento se tenha revelado insuficiente a massa insolvente e o rendimento disponível durante o período de cessão.
Mas, concomitantemente, o referido artigo 248.º introduz significativas alterações no que concerne à responsabilidade pelo pagamento das custas do processo de insolvência e das despesas de liquidação que não saiam precípuas do produto da liquidação do património da massa insolvente e/ou do rendimento disponível durante o período de cessão, no caso de ter sido requerida a exoneração do passivo restante, bem como quanto à forma de pagamento desses montantes e dos demais reembolsos que sejam devidos ao IGFEJ.
Na data em que foi proposta esta acção e deduzido o pedido de exoneração do passivo restante, era a seguinte a redacção dessa norma:
Artigo 248.º
Apoio judiciário
1 – O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respetivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o organismo responsável pela gestão financeira e patrimonial do Ministério da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que o organismo tenha suportado.
2 – Sendo concedida a exoneração do passivo restante, o disposto no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais é aplicável ao pagamento das custas e à obrigação de reembolso referida no número anterior.
3 – Se a exoneração for posteriormente revogada, caduca a autorização do pagamento em prestações, e aos montantes em dívida acrescem juros de mora calculados como se o benefício previsto no n.º 1 não tivesse sido concedido, à taxa prevista no n.º 1 do artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais.
4 – O benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.
Posteriormente, na sequência das alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, em vigor a partir de 11.04.2022, foi revogado o n.º 4 do artigo 248.º do CIRE e este artigo passou a ter a seguinte epígrafe: Custas. Tais alterações são de aplicação imediata aos processos pendentes, por força do regime transitório previsto no artigo 10.º da referida Lei n.º 9/2022.
Do disposto no artigo 248.º do CIRE, nas suas diversas versões, decorre que, no caso de ter sido requerida a exoneração do passivo restante, a responsabilidade pelas custas do processo de insolvência e demais despesas de liquidação, que não sejam satisfeitas pelo produto da massa insolvente ou pelo rendimento disponível durante o período de cessão, passa a ser do próprio devedor insolvente, independentemente de a exoneração vir a ser concedida ou não (cfr. ac. do TRG, de 17.09.2020, proc. n.º 1262/12.6TBESP.G1, rel. Margarida Almeida Fernandes; acs. do TRC, de 15.06.2021, proc. n.º 520/13.7TBPMS.C1, rel. Freitas Neto, e de 07.09.2021, proc. n.º 2165/14.5TBVIS.C1, rel. Maria João Areias; ac. do TRL, de 28.09.2021, proc. n.º 104/14.2T8BRR.L1-1, rel. Renata Linhares de Castro; ac. do TRP, de 08.03.2022, proc. n.º 2656/15.0T8STS.P1, rel. Anabela Miranda).
Mais decorre da mesma norma que o devedor beneficia do diferimento do pagamento das custas e dos reembolsos ao IGFEJ até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante, ou seja, até à altura em que recupera a plena disponibilidade dos seus rendimentos.
Como se escreve no ac. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 418/2021, de 23 de Julho (publicado no Diário da República n.º 142/2021, Série I de 23.07.2021), «[a] ratio de tal normação radica no propósito de reforçar a proteção jurídica do devedor insolvente que requeira a exoneração do passivo restante, em atenção à forte compressão de recursos financeiros que o próprio e o seu agregado familiar passa a estar sujeito. Entendeu o legislador do CIRE que a exigência do pagamento imediato de taxa de justiça ou encargos ao próprio devedor (e não à massa insolvente ou ao acervo patrimonial gerado pela cedência de créditos futuros), significaria uma restrição adicional de recursos, e inerente acréscimo de dificuldades em fazer face às despesas comuns, em antinomia com o princípio da salvaguarda dos meios de sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, consagrado no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), inciso i), do CIRE».
De outra perspectiva, o referido diferimento está em total consonância com a regra da precipuidade antes analisada, mal compaginável com a exigência, ao devedor insolvente, do pagamento das custas e reembolsos devidos antes de excutido o produto da liquidação e o rendimento disponível durante o período de cessão.
Sendo concedida a exoneração – como sucedeu no presente caso –, o devedor tem automaticamente direito ao pagamento em prestações dos montantes ainda em dívida, nos termos previstos no artigo 33.º do Regulamento das Custas Processuais (RCP), o que deve ser oficiosamente determinado pelo juiz, ou seja, sem necessidade de requerimento (cfr. ac. do TRC de 07.09.2021, antes citado).
No caso contrário, aqueles montantes passam a ser imediatamente exigíveis.
Na versão anteriormente vigente, o n.º 4, do artigo 248.º do CIRE preceituava que o benefício previsto no n.º 1 afasta a concessão de qualquer outra forma de apoio judiciário ao devedor, salvo quanto à nomeação e pagamento de honorários de patrono.
A redacção desta norma, designadamente a expressão “outra forma de apoio judiciário” inculcava a ideia de que o benefício do diferimento do pagamento das custas concedido pelo n.º 1 correspondia a uma forma de apoio judiciário, embora esta qualificação fosse controversa.
Perante esta norma, associada à própria epígrafe originária do artigo 248.º (Apoio judiciário), gerou-se consenso na jurisprudência a respeito da impossibilidade de o devedor poder prevalecer-se, durante o período de tempo compreendido entre a dedução do pedido de exoneração do passivo restante e a decisão final desse período, do apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo de que já beneficiasse ou que, entretanto, lhe tivesse sido concedido. A jurisprudência ia mesmo mais longe, entendendo que estava vedado ao devedor requerer e obter o benefício do apoio judiciário naquela modalidade durante esse período (cfr. ac. do TRP, de 06.02.2018, proc. n.º 749/16.6T8OAZ.P2, rel. Lina Batista; ac. do TRE, de 19.12.2019, proc. n.º 582/13.7TBABF.E1, rel. Vítor Sequinho).
Mas o consenso cessava aí. A jurisprudência dividiu-se, desde logo, a respeito da vigência ou eficácia das limitações impostas pelo n.º 4 do artigo 248.º do CIRE para além do limite temporal acima referido.
Parte da jurisprudência defendeu que o afastamento de “qualquer outra forma de apoio judiciário” previsto naquela norma era definitivo, mantendo-se após a decisão final do pedido de exoneração do passivo restante. Nestes termos, não tendo sido pagas todas as custas e reembolsos devidos por insuficiência da massa insolvente e do rendimento disponível durante o período de cessão, o devedor insolvente nunca poderia ser dispensado desse pagamento, beneficiando apenas do pagamento em prestações previsto no artigo 33.º do RCP, por remissão do artigo 248.º, n.º 3, do CIRE, no caso de ter sido concedida a exoneração do passivo restante.
Neste sentido se pronunciou o ac. do TRC de 15.06.2021, já antes citado, argumentando que «requerido e admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, há um regime de benefícios tributários automático e específico que se sobrepõe ou impede o processamento normal do apoio judiciário previsto na LADT (Lei de Acesso ao Direito e aos Tribunais que é a Lei nº 34/2004 de 29 de Julho), salvo no que toca à modalidade prevista na parte final daquele nº 4. Temos, portanto, como bem patente na aludida disposição, que, tendo presente as limitações do insolvente, o legislador quis facilitar ou simplificar a respectiva situação tributária, contemplando-o com o diferimento da obrigação do pagamento das custas e de reembolso dos valores devidos com remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário. (…) Mas os nºs 2 e 3 do mesmo art.º 248 são igualmente claros quando estatuem as consequências desse diferimento: se a decisão final for de concessão o devedor está obrigado a pagar os aludidos valores apenas tendo o benefício de o poder fazer em prestações nos moldes aí previstos; se for de não concessão todos os benefícios cessam sem mais. Estas consequências são inexoráveis, pelo que não pode ser atribuído, antes ou depois, qualquer outra forma de apoio judiciário no que concerne às custas. Caso o tenha sido, ressalvada a nomeação de patrono e pagamento dos respectivos honorários, essa atribuição não poderá surtir qualquer efeito. Aliás, mal se perceberia que o legislador tivesse previsto um especial pagamento em prestações dos aludidos montantes e, simultaneamente, o devedor ainda pudesse prevalecer-se da dispensa do pagamento das custas por efeito do apoio judiciário».
Esta jurisprudência acabou por ser abandonado na sequência do acórdão do TC n.º 418/2021, de 23 de Julho, já antes citado, que declarou «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 4 do artigo 248.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, na parte em que impede a obtenção do apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, aos devedores que tendo obtido a exoneração do passivo restante e cuja massa insolvente e o rendimento disponível foram insuficientes para o pagamento integral das custas e encargos do processo de exoneração, sem consideração pela sua concreta situação económica».
Mas, mesmo antes da prolação deste acórdão do TC, a jurisprudência maioritária já vinha defendendo que, decorrendo as limitações previstas no n.º 4 do artigo 248.º do benefício (do diferimento do pagamento das custas e dos reembolsos devidos ao IGFEJ) consagrado no n.º 1 do mesmo artigo, aquelas limitações cingiam-se ao período de vigência deste benefício, pelo que cessavam após a decisão final do pedido de exoneração do passivo restante. Consequentemente, após tal decisão, o devedor insolvente podia prevalecer-se da dispensa do pagamento das custas e demais encargos com o processo de que já beneficiasse, em conformidade com o disposto no artig0 17.º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 9 de Julho, ficando assim dispensado do pagamento das custas e dos reembolsos que ainda fossem devidos (cfr. acs. do TRE, de 29.11.2019, proc. n.º 1780/13.9TBOLH.E1, rel. Tomé de Carvalho, de 19.12.2019, já antes citado, e de 23.04.2020, proc. n.º 3030/19.5T8STB.E1, rel. Emília Ramos Costa).
Segundo este entendimento, diferente interpretação violaria o princípio constitucional da igualdade no acesso ao direito e aos tribunais, consagrado nos artigos 13.º e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP), pois comprometeria a possibilidade desse acesso em virtude, exclusivamente, da situação económica do requerente da exoneração do passivo restante, sendo incompreensível e injustificável tal discriminação, mais argumentando que «não faz qualquer sentido que um regime que foi criado para proteger de maneira mais intensa o devedor que interpôs o pedido de exoneração de passivo restante, tornasse a situação desse devedor, quanto ao pagamento das custas, bastante mais gravosa do que a de qualquer outro devedor ou qualquer pessoa que interpusesse uma acção judicial» (cfr. o já referido ac. do TRE de 23.04.2020, que cita no mesmo sentido o ac. do TRP de 11.09.2018).
Todavia, mesmo entre os partidários do limite temporal do regime previsto na norma em apreço, surgiram divergências (que persistiram para além da publicação do acórdão do TC antes aludido) quanto à possibilidade de o devedor insolvente poder requerer o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de custas e demais encargos do processo após a decisão final do pedido de exoneração do passivo restante e beneficiar do seu eventual deferimento.
Uma parte da jurisprudência defendeu que poderia fazê-lo mesmo depois do trânsito em julgado da decisão sobre o pedido de exoneração do passivo restante, só assim se garantindo o acesso ao direito previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Nesse sentido se pronunciou o ac. do TRP, de 08.03.2022 (proc. n.º 2656/15.0T8STS.P1, rel. Anabela Miranda), argumentando que «só após a decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo restante, é que o devedor estará em condições de saber se, face aos rendimentos disponíveis e valor referente a custas, poderá proceder ao respectivo pagamento mesmo faseado ou, se pelo contrário, não tem meios económico-financeiros para o fazer. Nesta última hipótese, poderá solicitar apoio judiciário para esse efeito, sob pena de se frustrarem os objectivos almejados com a exoneração do passivo (fresh start)». Mais invocou o acórdão do TC acima citado, nos seguintes termos: «Na fundamentação do mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional, no sentido acima defendido, esclarece-se que “…decorrido o período de cessão, não existem garantias de que o devedor insolvente tenha melhorado substancialmente a sua capacidade de obter rendimentos, ao menos em termos equivalentes aos que legitimam, no âmbito do regime do apoio judiciário, o cancelamento da protecção jurídica e exigências ao beneficiário do pagamento das custas de que foi dispensado, integral ou parcialmente, a saber, a aquisição superveniente, pelo requerente ou respectivo agregado familiar, de “meios suficientes” para dispensar o benefício.” E, com interesse, acrescenta-se que “Exigir, mesmo que em prestações, perante tal quadro de carência de rendimentos, ao sujeito processual, o pagamento do remanescente das custas e encargos que a massa insolvente e o período de 5 anos não permitiu satisfazer, significa recolocar o devedor na mesma situação de incapacidade que fundou a sua apresentação à insolvência, e inviabilizar o desiderato de criação de condições económicas (fresh start) a que está votada a exoneração do passivo restante, o que, constitui, materialmente, frustração do seu direito à justiça por motivo de insuficiência de meios económicos”».
Não cremos, todavia, que da jurisprudência do TC se possa extrair a total ausência de limites temporais para a dedução do pedido de apoio judiciário com efeitos no processo, pelas razões que melhor explanaremos supra, tanto mais que, na situação que deu origem aquele aresto do TC, o devedor havia requerido e obtido o benefício do apoio judiciário ainda antes de proposta a acção e apenas se discutia se este benefício podia valer depois de ter sido decidido o pedido de exoneração do passivo restante.
Mas outra parte da jurisprudência considerou que o benefício do apoio judiciário é intempestivo e, por isso, inatendível se for deduzido já depois de o processo estar findo, visando apenas uma “isenção de custas” e não verdadeiramente o acesso ao sistema de justiça e a uma tutela judicial efectiva garantido no artigo 20.º da CRP. Nesse sentido se pronunciou o ac. do TRP, de 12.01.2021 (proc. 5135/14.0TBVNG.P1, rel. José Igreja Matos), onde se afirma que «o apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, prosaicamente, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado». No mesmo sentido se pronunciou o recente ac. do TRE, de 30.03.2023 (proc. n.º 988/18.5T8OLH.E1, rel. Isabel de Matos Peixoto Imaginário).
Entretanto, como já referimos, o legislador revogou o n.º 4, do artigo 248.º, do CIRE, e alterou a epígrafe deste artigo.
Embora esta alteração esteja relacionada com a declaração de inconstitucionalidade antes referida (cfr. Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8.ª ed., 2022, Coimbra, pp. 410 e 411; ac. do TRE, de 30.03.2023, proc. n.º 988/18.5T8OLH.E1, rel. Isabel Imaginário), confirmando a jurisprudência aí preconizada, cremos que vai mais além, eliminando da ordem jurídica o regime especial que regulava o benefício do apoio judiciário do devedor requerente do pedido de exoneração do passivo restante.
Julgamos que esta eliminação teve subjacente o reconhecimento de que o próprio benefício do diferimento do pagamento das custas e demais encargos previsto no n.º 1 do artigo 248.º do CIRE, associado ao princípio da precipuidade das custas e dos reembolsos devidos ao IGFEF, previsto na mesma norma e no artigo 241.º, n.º 1, também do CIRE, que se mantiveram inalterados, já tornavam espúrio o apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, até à decisão final do pedido de exoneração do passivo restante. Como se afirmou no ac. do TC que vimos citando, «a limitação à concessão do benefício do apoio judiciário mostra-se racionalmente justificada nos casos em que o devedor não se encontra obrigado a pagar qualquer taxa de justiça ou encargos, designadamente pela atuação do mecanismo de diferimento do pagamento das custas até à decisão final do pedido de exoneração passivo restante. Como é bom de ver, afastada a exigibilidade de qualquer pagamento a título de taxa de justiça ou encargos, o devedor que requeira simultaneamente a declaração de insolvência e a exoneração do passivo restante não carece do benefício do apoio judiciário nas modalidades em que a prestação consiste, justamente, na dispensa, total ou parcial, de tais pagamentos. A mesma solução preside, aliás, aos casos em que o legislador estabelece isenção de custas (artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais), relativamente aos quais não tem cabimento, por desnecessidade, a concessão ao interveniente processual isento do benefício do apoio judiciário na modalidade de dispensa ou pagamento faseado das custas. Permanece, apenas, a carência da modalidade de apoio judiciário tendo com objeto a representação forense, sem a qual estaria impedida de pleitear em juízo a parte desprovida de meios económicos, incluindo o pagamento pelo Estado dos respetivos honorários».
Seja como for, cremos que, com a eliminação do referido regime especial, perdeu sustentação legal a afirmação de um impedimento à dedução do pedido de apoio judiciário, na modalidade de dispensa do pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo, durante o período de cessão do rendimento disponível, ainda que os efeitos desse benefício sejam inócuos durante esse período. E faz sentido que assim seja pois, citando de novo o acórdão do TC, ao contrário do que acontece com os casos de isenção, «o benefício concedido ao devedor insolvente que deduziu pedido de exoneração do passivo restante é apenas temporário, comportando não mais do que um diferimento; projeta, desse modo, o legislador, a exigibilidade e o cumprimento de tais obrigações de cariz pecuniário para momento posterior, uma vez concedida a exoneração do passivo restante e retomada a sua habilitação legal para a prática de atos que atinjam o seu património (o seu património é gerido em primeira linha pelo administrador de insolvência e, subsequentemente, pelo fiduciário, cabendo a cada um deles, na fase respetiva, efetuar o pagamento de dívida, mormente de dívidas resultantes de custas judiciais, nos termos do artigos 55.º, n.º 1, alínea a), e 241.º, n.º 1, alínea a), ambos do CIRE), mas fá-lo sem margem de aferição da suficiência da situação económica do devedor nessa fase da sua vida patrimonial para fazer face ao remanescente das custas judiciais». Ora, prevendo o devedor que as custas e os reembolsos em dívida não serão integralmente satisfeitos durante o período de cessão e antevendo – ou tendo já como certa – a sua carência de meios económicos para satisfazer essas dívidas após o encerramento definitivo do processo, é perfeitamente justificável que opte por requerer o benefício do apoio judiciário, caso não o tenha feito anteriormente.
Assim, no caso concreto, tendo a referida alteração legislativa entrado em vigor no dia 11.04.2022 e sendo a mesmo aplicável imediatamente aos processos pendentes, cremos que nada impedia o recorrente de, a partir dessa data, requerer o benefício do apoio judiciário, fosse em que modalidade fosse.
Mas, ainda que se entendesse que a lei continua a vedar ao devedor, até à decisão do pedido de exoneração do passivo restante, a dedução e obtenção do apoio judiciário na modalidade de dispensa de custas e demais encargos, sempre teríamos de concluir que, como já sucedia durante a vigência do artigo 248.º, n.º 4, do CIRE, essa limitação cessou com a decisão final do pedido de exoneração do passivo restante. Assim, pelo menos a partir desse momento, não ocorrem razões que afastem a aplicação do regime geral do apoio judiciário, nomeadamente no que concerne à sua oportunidade, ficando sujeito ao regime do apoio judiciário na sua essência, tal qual se conforma para aplicação, de igual modo, a todo e qualquer processo judicial (ac. do TRE, de 30.03.2023, antes citado).
c. Em consonância com o artigo 8.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos e com o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da CRP, o artigo 20.º deste texto fundamental preceitua que a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
O sistema de acesso ao direito e aos tribunais consagrado na Lei n.º 34/200, de 29 de Julho – que compreende a informação jurídica e a protecção jurídica, revestindo esta as modalidades de consulta jurídica e de apoio judiciário – visa concretizar aquele comando constitucional, assegurando que a ninguém seja dificultado ou impedido, em razão da sua condição social ou cultural, ou por insuficiência de meios económicos, o conhecimento, o exercício ou a defesa dos seus direitos (cfr. artigo 1.º, n.º 1, do referido diploma legal).
Considerando este objectivo legislativo, o Tribunal Constitucional vem afirmando, de forma uniforme e reiterada, que o benefício do apoio judiciário apenas se justifica enquanto não estiver dirimido o litígio para que é solicitado, deixando de assistir esse direito ao cidadão cujo pleito já foi julgado. Neste sentido, diz-se o seguinte no ac. do TC n.º 215/12 (publicado no DR, 2.ª Série, n.º 102, de 25.02.2012, p. 18907): «no que respeita à questão da oportunidade do pedido de apoio judiciário, o Tribunal Constitucional tem vindo a considerar, em jurisprudência uniforme, que o apoio judiciário tem sobretudo em vista evitar que qualquer pessoa, por insuficiência de meios económicos, veja impedido, condicionado ou dificultado o recurso aos tribunais para defesa dos seus direitos ou interesses legítimos, não podendo, contudo, ser visto como meio destinado a obter, após o julgamento da causa e a condenação em custas, a dispensa do pagamento dos encargos judiciais a que a participação no processo deu causa. Por esta razão se tem considerado que não fere os princípios constitucionais a solução segundo a qual não é admissível a dedução de pedido de apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão final do processo, quando se tem apenas como objetivo o não pagamento das custas em que a parte veio a ser condenada por efeito dessa decisão (cf., neste sentido, entre outros, os acórdãos n.ºs 508/97, 308/99, 112/2001, 297/01 e 590/2001)».
Em consonância com esta jurisprudência, afirma-se no ac. do TRP, de 12.01.2021, antes citado, que «o apoio judiciário não existe para isentar os cidadãos com carências económicas do pagamento de custas, sem mais; o instituto foi criado para que esses cidadãos possam aceder ao sistema judicial independentemente dessas carências económicas; não estando em causa o exercício de qualquer direito através de um procedimento jurisdicional, tratando-se apenas, prosaicamente, de evitar pagar as custas já determinadas no âmbito de um processo findo o acionamento desse mecanismo não pode ser validamente desencadeado».
A respeito da oportunidade do pedido de apoio judiciário, o artigo 18.º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, preceitua que este deve ser requerido antes da primeira intervenção processual, salvo se a situação de insuficiência económica for superveniente, caso em que deve ser requerido antes da primeira intervenção processual que ocorra após o conhecimento da situação de insuficiência económica. Se se verificar insuficiência económica superveniente, suspende-se o prazo para pagamento da taxa de justiça e demais encargos com o processo até à decisão definitiva do pedido de apoio judiciário, aplicando-se o disposto nos n.ºs 4 e 5 do artigo 24.º (n.º 3, do mesmo artigo 18.º). Significa isto, como se afirma no ac. do STA, de 05.12.2012 (processo n.º 01096/12, rel. Valente Torrão), que o pedido de apoio judiciário só vale para o futuro, abrangendo apenas os actos processuais que ocorram após o conhecimento da situação de insuficiência económica superveniente. «Então, se no momento da apresentação da petição o recorrente não beneficiava de apoio judiciário, por nem sequer o ter requerido, ainda que agora lhe venha a ser concedido, apenas valerá para os atos posteriores ao pedido. Ou seja, não pode, como pretende o requerente, haver lugar a efeito retroativo».
A respeito do regime legal assim descrito, sem prejuízo da sua conformidade constitucional, a jurisprudência dos tribunais comuns e dos tribunais administrativos vem problematizando a hipótese de a insuficiência económica ter como fundamento o surgimento, no decurso do processo, de um encargo excepcional, circunstância que também justificaria a suspensão do pagamento desse encargo até decisão do pedido de apoio judiciário.
Citando o acórdão do TRP de 15.11.2010, diz-se o seguinte no acórdão do Tribunal Central Administrativo do Norte, de 17.12.2020 (proc. n.º 02015/14.2BEBRG-S1, rel. Manuel Escudeiro dos Santos): «O n.º 2 do artigo 18.º permite que o apoio judiciário seja requerido depois da primeira intervenção no processo se ocorrer uma situação de insuficiência económica superveniente ou se, em virtude do decurso do processo, ocorrer um encargo excecional, caso em que se suspende o prazo de pagamento da taxa de justiça e demais encargos até decisão definitiva do pedido de apoio judiciário». Acrescenta-se de seguida, parafraseando Jorge Miranda e Rui Medeiros, que «o conceito de insuficiência económica é um conceito relativo, não podendo ser dissociado do valor das custas (…) A incapacidade económica que justifica a concessão de apoio judiciário deve, concretamente, ser aferida tendo em conta os custos concretos de cada ação e a disponibilidade da parte que o solicita, não estando excluído que seja concedido, em maior ou menor medida, se o valor da causa assim o justificar». E conclui-se, ainda com base no mesmo acórdão, que «existe insuficiência económica superveniente quer nas situações de decréscimo dos rendimentos do requerente, como nas situações de manifesto aumento da despesa, sendo que o aumento inusitado dos custos de uma ação se reporta a casos de aumento da despesa. Por outro lado, a ocorrência de encargo excecional pode traduzir-se num aumento manifesto dos custos de uma ação face ao valor que lhe foi atribuído na petição inicial, conjugado com os valores da taxa inicial e subsequente já paga».
d. Feito este excurso legal e jurisprudencial, importa reverter ao caso concreto.
Decorre da factualidade relevante acima descrita que o ora recorrente propôs a presente acção sem, previamente, requerer o benefício do apoio judiciário, invocando o diferimento do pagamento das custas previsto no artigo 248.º do CIRE.
Mais decorre que apenas requereu o benefício do apoio judiciário após o trânsito em julgado da decisão que lhe concedeu a exoneração do passivo restante, depois de ter sido notificado da conta e das custas por cujo pagamento é responsável. Mas se é assim, como se remata no ac. do TRE de 30.03.2023, já citado, «[s]e apenas requereu o benefício do apoio judiciário após ter-se verificado o desfecho do processo, então não está já em causa o acesso ao direito; pretende só eximir-se do pagamento das custas, o que não encontra acolhimento do instituto do apoio judiciário».
E não se argumenta que só após a decisão final relativa ao pedido de exoneração do passivo restante é que o devedor estará em condições de saber se, face aos rendimentos disponíveis e valor referente a custas, poderá proceder ao respectivo pagamento, mesmo faseado, ou, se pelo contrário, não tem meios económico-financeiros para o fazer.
Recorde-se que, depois de encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente, foi elaborada a conta do processo e apurado o valor que cabia à massa insolvente pagar – 2.257,28 € – o que naturalmente lhe foi notificado. O recorrente também não desconhece que, para além do valor do saldo da conta de depósitos a prazo de que era titular, no valor de 78,10 €, nenhuma outra quantia foi imputada nas custas em dívida, dada a ausência de qualquer rendimento disponível cedido ao longo do período de cessão, tal como não pode desconhecer as dificuldades económicas de que alegadamente continua a padecer. O recorrente não pode, igualmente, desconhecer que o procedimento de exoneração também gera encargos, pelo que o valor das custas em dívida apurado a final – 4.128,59 € – não podia constituir uma surpresa para si, nem configurar um encargo excepcional gerador de uma insuficiência económica superveniente, pois de forma alguma traduz um aumento inusitado dos custos da acção.
Pelo contrário, perante o cenário acima descrito, afigura-se manifesto que o recorrente estava em condições de saber se, face aos seus rendimentos e ao valor previsível das custas, poderia proceder ao respectivo pagamento, mesmo faseado, ou, se pelo contrário, não carecia de meios económico-financeiros para o fazer.
Não obstante, absteve-se de requerer o benefício do apoio judiciário após a entrada em vigor a alteração legislativa aprovada pela Lei n.º 9/2022 (11.04.2022, como vimos), postura que manteve após a própria decisão que lhe concedeu a exoneração do passivo restante, só o tendo feito depois de esta transitar, de ter sido elaborada a conta final e de esta lhe ter sido notificada para os efeitos legais, designadamente para proceder ao pagamento voluntário das custas pelas quais é responsável, ou seja, quando nada mais havia a decidir, pelo que aquele benefício apenas poderia servir para o dispensar daquele pagamento.
Fica, assim, claro que o deferimento da pretensão do recorrente se traduziria numa verdadeira retroactividade dos efeitos do pedido de apoio judiciário que formulou tardiamente, pelo que bem andou o Tribunal a quo ao não atribuir efeitos a esse pedido.
Pelas razões expostas, importa negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida, mais importando condenar o recorrente nas custas da apelação, dado o seu total decaimento, nos termos do disposto no artigo 527.º do CPC.
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IV. Decisão
Pelo exposto, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto julgam improcedente a apelação e, consequentemente, confirmam a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.

Registe e notifique.

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Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
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Porto, 19/3/2024.
Artur Dionísio Oliveira
Anabela Dias da Silva
Alberto Taveira