LIBERDADE CONDICIONAL
PREVENÇÃO GERAL POSITIVA
Sumário

I - A concessão de liberdade condicional ao meio da pena pressupõe a verificação de dois pressupostos: a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.
II - O primeiro requisito remete-nos para considerações de prevenção especial positiva, exigindo um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido quando retomar a liberdade, sendo de esperar, com probabilidade séria, que este adopte um comportamento socialmente correcto, e o segundo associa-se a considerações de prevenção geral positiva, limitativas do primeiro (tal como ocorre na fixação concreta das penas), ligadas à confiança da sociedade na norma jurídica violada.
III - Quanto maiores as exigências de prevenção geral positiva, como ocorre com a situação dos autos atenta a natureza dos crimes em causa – um crime de homicídio qualificado na forma tentada, um crime de roubo agravado e um crime de sequestro –, mais difícil se mostra reconhecer que as mesmas já se encontram atenuadas, ou seja, mais difícil se mostra concluir num período de tempo limitado que a liberdade do condenado é compatível com a defesa da ordem e da paz social.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 3/17.6TXPRT-O.P1

Tribunal de origem: Tribunal de Execução das Penas – Juízo de Execução das Penas do Porto – Juiz 2

Sumário:

………………………………

………………………………

………………………………

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

Por decisão de 18-12-2023 foi apreciada e decidida a não concessão de liberdade condicional ao meio da pena (renovação nos termos do art. 180.º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, doravante, CEPMPL) que cumpre o condenado AA.

Inconformado, o condenado interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão proferida, com a consequente concessão de liberdade condicional.

Apresenta em abono da sua posição as seguintes conclusões (transcrição):

«1-) Da factualidade assente, na opinião do Recorrente, resulta que o pressuposto previsto na alínea a-) do nº2 do artº.61 do C. Penal, se encontra cumprido.

2-) O Recorrido não tem outras condenações criminais registadas e é a primeira vez que cumpre pena de prisão, alínea a-) e n-) pelo que, em termos de vida anterior, sempre respeitou a lei.

3-) Durante a execução da pena de prisão, o Recorrente teve saídas precárias, sem incidentes, resultado negativo ao teste de despistagem, ocupação laboral, denotando uma evolução positiva à sua personalidade.

4-) Assume a prática de crimes e resputa justa a condenação, demonstrando arrependimento.

5-) Demonstra integração social, tem apoio de familiares e amigos e prespectiva de ocupação laboral.

6-) No que respeita ao pressuposto previsto na alínea b-) do nº2 do artº.61 do C. Penal, o Recorrente entende que o mesmo também está preechido;

7-) Entende o Recorrente que a factualidade provada supra referida na alínea i-) preenche o pressuposto da alínea b-) do nº2 do artº.61 do C. Penal.

8-) Entende ainda o Recorrente, que o facto de não existir rejeição à presença do Recorrente no seu meio social, familiares, amigos e vizinhos, tem de ser encarado como uma não repugna pela comunidade pela libertação do Recorrente.

9-) Pois é no seu meio social que o Recorrente vai viver e trabalhar e a existir alarme social pela sua libertação, seria na sua comunidade local.

10-) Entende assim o Recorrente que a decisão ora recorrida violou o disposto no artº.61 nº2, alínea b-) do C. Penal.

11-) Uma correcta interpretação do artº.61 nº2, determinaria que o Recorrente fosse colocado em liberdade condicional.

12-) Deve por isso a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que decida colocar o Recorrente em liberdade condicional, assim se fazendo a habitual

Justiça»


*

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso, pugnando pela respectiva improcedência, apresentando nesse sentido as seguintes conclusões (transcrição):

«1 - Mantemos a posição processual negativa quanto à libertação do recluso nesta fase de cumprimento da pena.

2 – Em que, antes de mais, são de ponderar as necessidades de prevenção geral, quer positiva quer negativa.

3 – Um dos fins visados com a aplicação das penas é a protecção de bens jurídicos, entendida como a tutela da confiança da comunidade na ordem jurídico-penal, ou seja, a prevenção geral positiva. Esta protecção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo quer como dissuasor da prática de crimes, através da intimidação dos outros perante o

sofrimento que a pena inflige ao delinquente – prevenção geral negativa – quer para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela dos bens jurídicos, e, dessa forma, no ordenamento jurídico-penal – prevenção geral positiva. Nesse sentido, J. Figueiredo Dias, in “Actas e Projecto da Comissão de Revisão” (MJ-

1993, acta nº 7, de 17/04/1989).

4 - Na situação em concreto, a dimensão da necessidade de prevenção geral positiva e negativa, tendo em conta a quantidade e o tipo de ilícitos praticados, é muito elevada.

5 - Por tudo o que acima expusemos, não assumimos a existência de garantias mínimas de que já estão cumpridos os objectivos da prevenção geral, como um dos fins das penas.

6 – Pelo que entendemos que, bem andou a Mª Juiz a quo, na sua bem fundamentada e douta decisão em não conceder essa medida de flexibilização de cumprimento de pena, por ora.

7 - Termos em que nada justifica, por não se verificarem quaisquer erros ou omissões na apreciação da matéria de facto e/ou de direito, e nenhuma norma legal foi violada, a revogação do douto despacho da Mª Juiz a quo.

8 - Pelo exposto e mantendo dessa forma a posição assumida processualmente, manifestamo-nos pela improcedência do recurso interposto.

Porém, V. Exªs melhor decidirão, fazendo a habitual JUSTIÇA!»


*

Nesta Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, sufragando o entendimento e considerações expendidas pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido na resposta ao recurso que apresentou, considerando, «[s]em prejuízo do regime da liberdade condicional poder ser reponderado numa patamar seguinte, caso se mantenha a evolução positiva na trajectória pessoal do arguido, entende-se que, para já, é a mesma ainda prematura, pelo que foi assertiva a decisão de não concessão da liberdade condicional ao Recorrente.»

*

Notificado nos termos do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPPenal, o recorrente não apresentou resposta.

*

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.

*

II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].

A única questão a decidir consiste em saber se se verificam no caso concreto os pressupostos de concessão ao recorrente da liberdade condicional no âmbito da apreciação realizada com o cumprimento de metade da pena de prisão que o recorrente cumpre.

Na decisão objecto do recurso foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):

«1. O recluso cumpre à ordem do Proc. 3861/15.5JAPRT a pena única de 13 (treze) anos e 2 (dois) meses de prisão, pela prática de 1 crime de homicídio qualificado na forma tentada, 1 crime de roubo agravado e 1 crime de sequestro (nas circunstâncias e modo descritos na factualidade dada como provada na respetiva decisão condenatória, que aqui se dá por integrada).

2. Atingiu o meio da pena em 23.07.2022, atingirá os 2/3 em 3.10.2024, os 5/6 em 13.12.2026 e termo em 23.02.2029.

3. É a primeira vez que cumpre pena de prisão.

4. No decurso da reclusão sofreu uma sanção disciplinar, por factos de abril de 2019.

5. Beneficiou de três licenças de saída jurisdicional, datando a última de junho de 2023, e de três licenças de curta duração, sem registo de incidentes; está em R.A.I. desde outubro de 2022.

6. Foi sujeito a teste de despistagem de consumo de estupefacientes em preparação do Conselho Técnico, com resultado negativo.

7. No E.P. procurou sempre manter ocupação laboral e em formação, tendo concluído o 3º ciclo e um Curso profissional de Mecânica, com equivalência ao 12º ano de escolaridade, trabalhado como faxina e encontrando-se, atualmente, integrado nas oficinas “A...”.

8. Gere de forma criteriosa o salário que aufere, destinando-o às suas despesas no EP e no gozo de licenças de saída e ao pagamento de pensão de alimentos a filho menor.

9. Apresenta comportamento adequado e colaborante para com todos os intervenientes do meio prisional e adaptado ao contexto.

10. No exterior tem apoio consistente de familiares, namorada e amigos, dos quais recebe visitas e com quem estabelece contactos telefónicos regulares.

11. Perspetiva integrar o agregado familiar composto pelos pais e pela irmã mais nova, com adequadas condições financeiras e de habitabilidade.

12. No meio social de inserção não são percecionados sentimentos de rejeição à sua presença, sendo o condenado bem conotado socialmente.

13. A vítima encontra-se emigrada em França, deslocando-se pontualmente a Portugal.

14. O condenado assume a prática dos crimes pelos quais cumpre pena e reputa justa a condenação, verbalizando arrependimento e lamentado os danos causados a vítimas diretas e indiretas; manifesta disponibilidade para pagamento de indemnização, ainda que não tenha sido condenado a tal.

15. Perspetiva integração laboral na empresa onde trabalhava antes da reclusão, como servente de construção civil.

16. O condenado prestou consentimento à aplicação de liberdade condicional.

17. Não tem outras condenações criminais registadas.»

E com base neste conjunto factual o Tribunal a quo realizou a seguinte análise (transcrição):

«III.

A liberdade condicional constitui-se como a fase da transição da reclusão para a liberdade, cujo escopo primacial é proporcionar ao condenado melhores condições de reintegração na sociedade e recuperação das suas competências sociais, naturalmente enfraquecidas pela ação da reclusão.

Nas palavras de FIGUEIREDO DIAS (in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Noticias, 1993, pág. 528) “Foi uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização que conformou a intenção político-criminal básica da liberdade condicional desde o seu surgimento”.

O art. 61.º, do Código Penal, consagra nos n.ºs 2, 3 e 4 a liberdade condicional em sentido próprio (também chamada liberdade condicional facultativa), assente numa duplicidade de pressupostos: formais e materiais. Estes últimos, de natureza eminentemente subjetiva, correlacionados ao comportamento e à personalidade do condenado.

Constituem pressupostos formais:

a) O consentimento do condenado (art. 61.º, n.º 1, do Código Penal);

b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas (arts. 61.º, n.º 2 e 63.º, nº 2, ambos do Código Penal);

c) O cumprimento de 1/2, ou de 2/3 da pena de prisão (ou da soma das penas de prisão) que se encontram a ser executadas (arts 61.º, n.º2 e 63.º, n.º2, do Código Penal).

Constituem pressupostos de natureza material:

a) o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade (arts 61.º, nº 2, al a), do Código Penal);

b) o juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade (juízo atinente à prevenção geral positiva) ou, dito de outro modo, sobre o seu impacto nas exigências de ordem e paz social (art. 61.º, nº2, al b), do Código Penal).

Reunidos os pressupostos formais, a concessão da liberdade condicional estará sempre dependente, em primeiro lugar, de um pressuposto subjetivo essencial, caracterizante da facies político-criminal do instituto: o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente no meio social.

A expectativa de que o condenado, uma vez em liberdade, “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes” configura-se como pressuposto inultrapassável, por expressa previsão legal: a sua inexistência é um obstáculo inexorável à concessão da liberdade condicional.

O juízo de prognose, favorável ou desfavorável, será auxiliado por fatores como: a) as concretas circunstâncias do(s) crime(s);

b) a vida anterior do condenado;

c) a sua personalidade;

d) a evolução desta durante a execução da pena de prisão.

Concluindo-se por um juízo favorável sobre o comportamento futuro do delinquente, a liberdade condicional só não será concedida se tal se revelar incompatível “com a defesa da ordem e da paz social”.

Este requisito material reflete o endurecimento das teses doutrinais quanto à execução das penas e à necessidade de ponderar o alcance social da concessão da liberdade condicional.

Embora mantendo, como regra geral, a libertação após o cumprimento de parte relevante da pena, o legislador faz depender o funcionamento do instituto do respeito por exigências de prevenção geral de integração, a que se liga, em decorrência do disposto no art. 40.º, n.º 1, do Código Penal, uma ideia de proteção de bens jurídicos.

A concessão «facultativa» da liberdade condicional depende materialmente, portanto, da adequação da libertação do condenado com as necessidades preventivas do caso concreto, sejam necessidades de prevenção especial – art. 61.º, n.º 2, al. a) –, sejam necessidades de prevenção geral – art. 61.º, n.º 2, al. b), do Código Penal.

Cumpre atentar, por isso, além dos requisitos formais - claramente preenchidos atentos os marcos temporais enunciados supra e o consentimento prestado – nas exigências de prevenção especial e no juízo de prognose sobre o comportamento futuro do condenado, designadamente sobre a possibilidade de reiteração criminosa ou sobre a sua capacidade de manutenção de comportamento normativo e socialmente adequado, e nas exigências de prevenção geral, ponderando o crime em causa e o alarme social que suscita.

Trata-se, neste âmbito da prevenção geral – art. 61º, nº 2, al. b) do Código Penal – de preservar a ideia de reafirmação da validade e vigência das normas penais violadas com a prática dos crimes e da sua compatibilização com a aplicação do regime da liberdade condicional nesta fase do cumprimento da pena de prisão (meio da pena).

Em caso de conflito entre a prevenção especial e a prevenção geral, prevalece esta última.

Na realidade, estando em causa o meio da pena, a prevenção geral surge como limite, não permitindo a concessão da liberdade condicional – mesmo que o prognóstico sobre a vida futura do condenado seja favorável – se não estiverem realizadas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, pois, caso contrário, estaremos a olvidar a tutela dos bens jurídicos, banalizar a prática de crimes – de gravidade muito significativa – e a negar as legítimas expectativas da comunidade, criando na mesma um justificado sentimento de insegurança e conduzindo ao descrédito da justiça e dos tribunais (cfr. Ac. TRP de 14.07.2010, proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Recurso n.º 2318/10.5TXPRT-C.P1, do 1.º Juízo deste TEP do Porto).

No caso, os ilícitos praticados, designadamente contra o supremo bem jurídico da vida humana, revestem-se de elevadíssima gravidade, tendo o condenado atentado, em coautoria, contra o património, liberdade e, por fim, contra a vida de uma pessoa sua conhecida, de cuja relação de confiança se aproveitou, não se concretizando o dano contra a vida por mero acaso, tal foi a gravidade dos factos, revelando, assim, o condenado uma personalidade violenta, eticamente deficitária e profundamente insensível ao outro, o que suscita forte necessidade de intervenção e acentuado alarme social.

O condenado, tal como resulta dos relatórios técnicos apresentados e das suas próprias declarações, admite a prática dos crimes, revela consciência crítica e manifesta empatia pela vítima, que até admite indemnizar apesar de não ter sido condenado a tal.

Além disso, apresenta um percurso prisional positivo, com comportamento adequado, normativo, investido em formação e ocupação laboral, estando em R.A.I. e tendo já beneficiado de licenças de saída, que decorreram com regularidade.

Tem, ainda, em meio livre, apoio de familiares e amigos e perspetiva de integração laboral.

Ora, não obstante este percurso positivo e o contexto familiar apoiante que o esperará em meio livre, há que ressaltar que o condenado, embora jovem, tinha já vinte e quatro anos aquando da prática dos factos e beneficiava já, nessa altura, desse contexto social normativo e de ambiente familiar estruturado, nada disso tendo sido suficientemente protetor do comportamento desviante que adotou.

Apesar de ter verbalizado a disponibilidade para ressarcir a vítima, o certo é que já anteriormente nos autos havia manifestado tal disponibilidade, que nunca concretizou, pelo que tal facto não pode ser sobrevalorizado.

Note-se, ainda, que a ausência de rejeição à presença do condenado no seu meio social de inserção, composto pelos seus familiares, amigos e vizinhos, por um lado, e a circunstância de a vítima não residir permanentemente em Portugal, não se confunde com a circunstância de à comunidade, como um todo, repugnar a sua libertação condicional nesta fase da pena.

A continuação da intervenção prisional permitirá a replicação dos contactos do recluso com o meio exterior, e consequente validação do comportamento então adotado, bem como um maior apaziguamento social, com reforço do efeito intimidatório da pena e do sentimento de segurança face à violação das normas jurídicas em causa, tudo de molde a garantir que o seu reingresso na comunidade não põe em causa a defesa da ordem jurídica e a paz social, além de manter reduzidos os fatores de risco de recidiva criminal.

Conforme se considerou no Ac. TRP de 10.09.2014, proferido no Processo n.º 1330/12.4TXPRT-G.P1, “nos crimes contra a vida, a liberdade condicional gera sempre na comunidade um compreensível sentimento de incompatibilidade entre a liberdade condicional e a necessária defesa da paz e ordem social”.

Já no Ac. TRP de 17.01.2018, proferido no Processo n.º 29/17.0TXPRT-D.P1, entendeu-se que “(…) cumpre recordar que são a vida e a sua inviolabilidade que conferem sentido ao princípio da dignidade da pessoa humana e ao direito à liberdade que estruturam e densificam o Estado de Direito, razão que motivou o legislador a estabelecer aqui a mais forte tutela penal. Nesta perspetiva, ao atacar o bem jurídico primordial, o homicida manifesta sentimentos antissociais que, em regra, provocam acentuada censura ético-social, a exigir forte reação punitiva e repressiva, mesmo nos casos em que o resultado não se verificou por motivos alheios à sua vontade. Assim, ainda que em concreto não sejam evidentes quaisquer sinais de rejeição da comunidade de onde o condenado é natural relativamente à sua pessoa, não pode olvidar-se que, nesta sede, estão em causa exigências de prevenção geral positiva ou seja de ‘integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida’ (Figueiredo Dias, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, pág. 815)”.


*

Apreciando.

Como se enunciou, a única questão a decidir consiste em saber se se verificam no caso concreto os pressupostos de concessão ao recorrente da liberdade condicional no âmbito da apreciação realizada com o cumprimento de metade da pena de prisão que actualmente cumpre, sendo, aliás, apenas este o objecto da impugnação que pode ser suscitado pelos reclusos, de acordo com o disposto no art. 179.º, n.º 2, da Lei n.º 115/2009, de 12-10 (CEPMPL).

Os pressupostos da concessão da liberdade condicional ao meio da pena mostram-se previstos no art. 61.º do CPenal, ex vi art. 63.º, n.º 2, do mesmo diploma legal, conforme se consignou na decisão recorrida, sendo formais e substanciais.

Não estando em causa a ausência de algum pressuposto formal, importa centrar a análise do presente recurso na verificação dos pressupostos substanciais da concessão da liberdade condicional quando se mostra cumprida metade da pena de prisão, a saber:

a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e

b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.

Estes pressupostos de concessão da liberdade condicional devem ser contextualizados à luz das finalidades de protecção e reintegração que subjazem à aplicação das penas, conforme se estabelece no art. 40.º, n.º 1, do CPenal.

É o que resulta ainda do disposto no art. 42.º, n.º 1, do CPenal e no art. 2.º, n.º 1, do Código da Execução das Penas e Medidas de Segurança Privativas da Liberdade, de acordo com o qual «[a] execução das penas e medidas de segurança privativas da liberdade visa a reinserção do agente na sociedade, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, a protecção dos bens jurídicos e a defesa da sociedade.”

Na verdade, enquanto aquele primeiro requisito nos remete para considerações de prevenção especial positiva, exigindo um juízo de prognose favorável quanto ao comportamento futuro do arguido quando retomar a liberdade, sendo de esperar, com probabilidade séria, que este adopte um comportamento socialmente correcto, o segundo associa-se a considerações de prevenção geral positiva, limitativas do primeiro (tal como ocorre na fixação concreta das penas), ligadas à confiança da sociedade na norma jurídica violada.

Dependendo a análise da concessão da liberdade condicional ao meio da pena destes dois pressupostos, é natural que, no âmbito da execução das penas, quanto maiores as exigências de prevenção geral positiva, como ocorre com a situação dos autos atenta a natureza dos crimes em causa – um crime de homicídio qualificado na forma tentada, um crime de roubo agravado e um crime de sequestro –, mais difícil se mostra reconhecer que as mesmas já se encontram atenuadas, ou seja, mais difícil se mostra concluir num período de tempo limitado que a liberdade do condenado é compatível com a defesa da ordem e da paz social.

Tal reconhecimento, no fundo, pressupõe uma constatação que exige mais tempo para se formar, para se consolidar quando comparada com situações em que estão em causa crimes de menor gravidade.

Nessa medida, o juízo que deve ser proferido depende do caso concreto e varia de caso para caso.

Analisando a decisão recorrida não se vê que o Tribunal a quo tenha em algum momento beliscado qualquer norma ou princípio legal subjacente à apreciação que se impunha que fizesse.

Os crimes em questão são graves e geram sentimentos de insegurança e intranquilidade social, exigindo por parte do Estado uma resposta que obste ao seu desenvolvimento.

Este juízo, que o art. 61.º do Penal impõe, nada tem a ver com a ponderação da gravidade dos factos determinante da medida concreta da pena, correspondendo um e outra a avaliações totalmente diferentes, realizadas em momentos processuais distintos e com finalidades distintas, nada tendo a ver com a violação do princípio ne bis in idem.

Considerando aquela gravidade e o reflexo da mesma no sentir da comunidade, não no sentido do meio onde o condenado se insere mas no da comunidade em geral, não se pode concluir, como pretende o recorrente, que o cumprimento de metade da pena de prisão aplicada, em conjugação com as condições pessoais apuradas, é suficiente para a defesa da tranquilidade e da paz social.

No caso concreto, a confiança na validade da ordem jurídica e da paz social não deixaria de se ressentir, enfraquecendo, com a libertação do arguido cumprida apenas metade da pena, vista a gravidade e danosidade social decorrente da prática dos crimes cometidos e determinantes da pena que o recorrente cumpre.

É, assim, de concluir não se encontrar verificado o pressuposto a que alude a al. b) do n.º 2 do art. 61.º do CPenal, o que, desde logo, obsta ao provimento do recurso, ainda que se reconheça que ao nível da prevenção especial encontramos vários factores que militam em abono do condenado.

A decisão recorrida mostra-se completa e bem fundamentada, analisando as questões que no caso mereciam relevo, fazendo uma ponderada avaliação de todas as circunstâncias a considerar no caso concreto, não ocorrendo através da mesma qualquer violação do art. 61.º, n.º 2, als. a) e b), do CPenal, ou de outras normas legais, não sendo, por isso, merecedora de qualquer censura, antes de confirmação, negando-se, em consequência, provimento ao recurso.

III. Decisão:

Face ao exposto, nos termos e pelos fundamentos aduzidos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Notifique e comunique.


Porto, 20 de Março de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Paulo Costa
Pedro Vaz Pato
________________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.