CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
CONDENAÇÃO
PENA DE SUBSTITUIÇÃO
REENVIO PARCIAL
Sumário

I - Ocorre erro notório na apreciação da prova se dos elementos fácticos dados como provados e da motivação, o tribunal a quo deveria ter dado como provado que ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei.
II - Ocorre vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão se os factos relativos ao processo de socialização, à personalidade e caracter, às condições pessoais do arguido e à sua conduta anterior e posterior aos factos são relevantes não só para a determinação da medida da pena mas também e sobretudo, para a decisão de aplicação, ou não, de uma pena de substituição.
III – Tais vícios determinam o reenvio parcial do processo para uma reabertura da audiência, pelo mesmo tribunal, a incidir exclusivamente sobre aquelas questões.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Processo nº 3424/20.3T9MAI.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal da Maia - juiz 1

Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Singular) em epígrafe identificado do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal de Maia, Juiz 1, foi proferida sentença com o seguinte:
Nestes termos, julgo a acusação improcedente e, em consequência, decido absolver o arguido AA da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
Proceda ao depósito da sentença – artigo 372.º n.º 5 do Código de Processo Penal.
Pague-se o relatório enviado pela DGRSP.
Notifique e deposite.

Inconformado, veio o M.P. interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação, e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. O arguido AA foi acusado, pelo Ministério Público, da prática de um crime de “desobediência”, previsto e punido pelo art.º 348.º, n.º1, al. b), do Código Penal.
2. Na sentença, o tribunal a quo considerou como não provado que “Ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei” e absolveu o arguido.
3. Ao assim decidir, o tribunal incorreu em erro notório da apreciação na prova, previsto no art.º 410.º, n.º2, al. c), do Código de Processo Penal.
4. Com efeito, decorrendo dos factos provados que o arguido deveria ter entregado a sua carta de condução no processo n.º 61/17.3GTMAI até ao dia 30.09.2019 (último dia do prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença) e tendo sido apurado e provado que a carta de condução do arguido esteve apreendida à ordem do processo n.º 56/18.0PTVIS desde 30-04-2019 até 30-09-2019, daqui se impõe concluir que, no dia 30.09.2019, o arguido poderia e deveria ter levantado a carta de condução neste último processo e tê-la entregado no processo n.º 61/17.3GTMAI.
5. Conforme o despacho judicial proferido no processo n.º 56/18.0PTVIS, cuja certidão eletrónica se encontra junta aos autos – certidão de sentença eletrónica com a referência Citius n.º 37054008, datada de 24.10.2023 – a carta de condução deveria ser devolvida ao arguido a partir do dia 30.09.2019.
6. Pelo que não pode concluir-se, como o fez a sentença de que se recorre, que o arguido não tivesse disponibilidade da carta de condução dentro do prazo de 10 dias previsto para a sua entrega no processo 61/17.3GTMAI, porque, efetivamente, teve essa disponibilidade ainda no último dia deste prazo.
7. Ademais, conforme resulta da motivação da sentença, “o arguido defendeu-se alegando não ter procedido à entrega da carta por esquecimento”, não tendo sido alegada qualquer impossibilidade de facto na entrega atempada – no dia 30.09.2019 – da carta naqueles autos.
Pelo exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, devendo, em conformidade, ser proferido douto acórdão que revogue a sentença sindicada e condene o arguido, assim se fazendo inteira JUSTIÇA.”

Admitido o recurso, o arguido veio responder pugnando pela improcedência do recurso, e pela confirmação da decisão recorrida, concluindo:
“1. A douta decisão recorrida deverá manter-se, por ser de direito e de justiça que assim suceda, não merecendo qualquer censura.
2. Não ocorreu erro notório na apreciação da prova, não merecendo a douta decisão a quo qualquer censura.
3. A carta de condução do arguido encontrou-se apreendida à ordem do processo n.º 56/18.0PTVIS desde 30-04-2019 até 30-09-2019. Daqui decorre que somente a partir de 01-10- 2019, inclusive, é que o arguido poderia ter levantado a carta de condução, sendo que o prazo para entrega da mesma no processo 61/17.3GTMAI, a 01-10-2019, já se havia esgotado.
4. O arguido não teve pois a disponibilidade da carta de condução dentro do prazo de 10 dias previsto para a sua entrega no processo 61/17.3GTMAI pois quando poderia ter levantado a sua carta de condução no processo 56/18.0PTVIS (o primeiro dia foi a 01-10-2019), já se havia esgotado o prazo para a sua entrega no processo 61/17.3GTMAI (o último dia para o efeito foi 30-09-2019).
5. Tanto basta para que não se verifique o tipo subjetivo doloso que no caso se exige, nomeadamente no que respeita ao elemento volitivo.
6. O arguido, mesmo que quisesse, não poderia ter obedecido ao comando que lhe foi dirigido para entregar a sua carta de condução, na medida em que este documento apenas passou a estar à sua disposição em data posterior ao termo do prazo para a sua entrega.
7. Não se pode pois considerar que a não entrega da carta de condução pelo arguido se devesse a um comportamento livre, voluntário e consciente.”

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso apresentando argumentação própria para o efeito.

No âmbito do artigo 417.º, n.º 2 do CPP, nada foi requerido.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objeto a questão seguinte:
- se o tribunal não incorreu em erro notório na apreciação da matéria de facto.

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões devendo considerar-se como pertinentes ao seu conhecimento, os factos provados que levaram à determinação da sanção e o teor da motivação da decisão recorrida, que se transcrevem:
Factos provados
1. No âmbito do Processo Comum Singular n.º 61/17.3GTMAI, que correu termos no Juízo Local Criminal da Maia – Juiz 1, o arguido foi condenado, por sentença de 03-07-2019, transitada em julgado em 18-09-2019, pela prática de um crime de “condução em estado de embriaguez”, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de 6,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias.
2. O arguido foi notificado da sentença proferida em 03-07-2019, e expressamente advertido de que deveria fazer a entrega da sua carta de condução na secretaria deste Tribunal ou em qualquer Posto Policial, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado de tal decisão, sob pena de, não o fazendo, incorrer na prática de um crime de desobediência.
3. O arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução naquele prazo, vindo aquela a ser apreendida, pela PSP, em 18-01-2021.
4. A carta de condução do arguido encontrou-se apreendida à ordem do processo n.º 56/18.0PTVIS desde 30-04-2019 até 30-09-2019.
5. O arguido apresenta os seguintes antecedentes criminais, além daquele referido no facto provado 1:
a) Em 15-05-2018, por factos de 31-10-2016, foi condenado, por sentença transitada em julgado em 22-01-2019, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa à taxa diária de € 10,00, já extinta pelo cumprimento em 11-12-2019 (processo n.º 768/16.2GCVIS);
b) Em 19-06-2018, por factos de 18-06-2018, foi condenado, por sentença transitada em julgado em 01-10-2018, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 5,00, extinta pelo cumprimento em 21-01-2019, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 3 meses, extinta pelo cumprimento em 29-11-2018 (processo n.º 119/18.1GFPRT);
c) Em 27-09-2018, por factos de 09-09-2018, foi condenado, por sentença transitada em julgado em 27-09-2018, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 7,00, extinta pelo cumprimento em 26-11-2018, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados por um período de 5 meses, extinta pelo cumprimento em 30-09-2019 (processo n.º 56/18.0PTVIS);
d) Em 25-03-2021, por factos de 11-04-2018, foi condenado em Espanha, por sentença transitada em julgado em 25-03-2021, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez (PAB-402/2019);
e) Em 30-04-2019, por factos de 04-10-2018, foi condenado, por acórdão transitado em julgado em 31-05-2019, pela prática de um crime de ameaça agravada e um crime de resistência e coação sobre funcionário, na pena única de 3 anos de prisão, suspensa na sua execução por 4 anos, com regime de prova (processo n.º 1336/18.0PBVIS);
f) Em 07-06-2022, por factos de 22-05-2022, foi condenado, por sentença transitada em julgado em 07-07-2022, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada e de um crime de resistência e coação sobre funcionário, na pena única de 1 ano e 8 meses de prisão, em regime de permanência na habitação (processo n.º 179/22.0GAMGL).

*
Factos não provados
§) Ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei.
*
Motivação
O tribunal sedimentou a sua convicção relativamente aos factos provados 1 a 4 e ao facto não provado §), desde logo, na certidão extraída do processo n.º 61/17.3GTMAI, que se mostra junta a fls. 3 e ss., pela qual se atesta que, tendo o arguido sido condenado nesse processo em pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, foi advertido para entregar a sua carta de condução no prazo de 10 dias contados do trânsito, sob pena de incorrer em crime de desobediência. Ora, perante esta evidência, o arguido defendeu-se alegando não ter procedido à entrega da carta por esquecimento. Todavia, ainda que tal explicação não se nos parecesse razoável, certo é que, do respetivo registo criminal consta que, no âmbito do processo n.º 56/18.0PTVIS, cumpriu pena de proibição de conduzir veículos automóveis até 30-09-2019. Pelo que, tendo o tribunal atentado nesse facto, solicitou que fosse remetida certidão do processo n.º 56/18.0PTVIS donde resulta, sem margem para dúvidas, que o arguido teve aí a sua carta apreendida desde 30-04-2019 até 30-09-2019. Vale isto por dizer que, no período de 10 dias subsequente ao trânsito da sentença proferida no âmbito do processo n.º 61/17.3GTMAI, que se iniciou 19-09-2019 (dia imediatamente posterior ao do trânsito) e que terminou em 30-09-2019 (primeiro dia útil subsequente ao décimo dia posterior ao do trânsito, que terminava num domingo), o arguido, mesmo que quisesse, não poderia ter obedecido ao comando que lhe foi dirigido para entregar essa carta, na medida em que tal documento apenas passou a estar à sua disposição, no termo daqueloutra pena acessória, que se verificou, precisamente, no dia 30-09-2019. Dito doutra forma, não se pode considerar que a não entrega da carta de condução pelo arguido se devesse a um comportamento livre, voluntário e consciente, porquanto o último dia de que dispunha para entregar a carta de condução no processo n.º 61/17.3GTMAI era, simultaneamente, o último dia de cumprimento de pena acessória no processo n.º 56/18.0PTVIS, onde esse mesmo documento se mostrava apreendido.
Os antecedentes criminais do arguido (facto provado 5) provaram-se a partir do respetivo certificado de registo criminal, junto a 15-09-2023.

II.2. Do recurso

Nas suas motivações recursivas vem o recorrente alegar que o tribunal errou notoriamente ao na apreciação da prova, dando origem ao vício do artigo 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.
Refere que decorrendo dos factos provados que o arguido deveria ter entregado a sua carta de condução no processo n.º 61/17.3GTMAI até ao dia 30.09.2019 (último dia do prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da sentença) e tendo sido apurado e provado que a carta de condução do arguido esteve apreendida à ordem do processo n.º 56/18.0PTVIS desde 30-04-2019 até 30-09-2019, daqui decorre que, no dia 30.09.2019, o arguido poderia e deveria ter levantado a carta de condução neste último processo e tê-la entregado no processo n.º61/17.3GTMAI.
Com efeito, o despacho judicial proferido no processo n.º 56/18.0PTVIS, em 3 de julho de 2019, cuja certidão eletrónica se encontra junta aos autos – certidão de sentença eletrónica com a referência Citius n.º 37054008, datada de 24.10.2023 – determinou que a carta de condução fosse entregue ao arguido a partir do dia 30.09.2019.
Em conformidade, não pode concluir-se, como o fez a sentença de que se recorre, que o arguido não tivesse disponibilidade da carta de condução dentro do prazo de 10 dias previsto para a sua entrega no processo 61/17.3GTMAI, porque, efetivamente, teve essa disponibilidade ainda no último dia deste prazo.
Ademais, conforme resulta da motivação da sentença, “o arguido defendeu-se alegando não ter procedido à entrega da carta por esquecimento”, não tendo sido alegada qualquer impossibilidade de facto na entrega atempada da carta naqueles autos.
E, deste modo, deveria o tribunal a quo ter dado como provado que “Ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei” e, consequentemente, condenar o arguido pela prática do crime pelo qual foi acusado.

Efetivamente o arguido, mesmo que quisesse, não poderia ter obedecido ao comando que lhe foi dirigido para entregar a sua carta de condução, na medida em que este documento apenas passou a estar à sua disposição a partir do dia 30.09.19.
Da leitura do despacho constante de certidão de 24.10.23, pode concluir-se que o dia 30.09.19 foi data inclusive pois iniciou o cumprimento da medida acessória de cinco meses em 30.04.19 ref. 37054008, conclui-se que o dia 30.09.10 ainda estava dentro do período de inibição.
De todo o modo, o arguido sabia que tinha que entregar a carta de condução pois disso foi expressamente advertido. Estando objetivamente impedido de o fazer nos 10 dias após o trânsito em julgado da decisão por a carta estar apreendida à ordem doutro processo, não podendo por isso ser assacado de qualquer tipo de responsabilidade, nada impedia o arguido de informar o tribunal dessa impossibilidade. Mas mesmo que não o tenha feito e estando objetivamente impedido de entregar uma carta que não estava na sua disponibilidade e sabendo que a tinha de entregar à ordem do processo Comum Singular n.º 61/17.3GTMAI, poderia tê-lo feito logo que passou a dispor a mesma e se a tivesse entregado no último dia dos 10 dias contados a partir do fim daquela indisponibilidade, aí poderia colocar-se a questão da sua intenção dolosa, podendo nós adiantar que não existiria dolo. A partir do momento em que passou a ter a disponibilidade da carta e não a entregou naquele prazo ou noutro próximo, invocando inclusive que se esqueceu, tendo a mesma sido apreendida em 18-01-20, ou seja, decorridos 16 meses e 18 dias contados do dia 01.08.19, não temos dúvidas que o arguido desobedeceu. Ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei.

Em face do exposto, cometeu o tribunal a quo erro notório na apreciação da prova quando refere que “…não ficou demonstrado que o arguido tivesse incumprido a ordem do tribunal por querer desobedecer à mesma no período de 10 dias posterior ao do trânsito, visto que nesse hiato temporal, que terminou em 30-09-2019, a carta de condução do arguido estava apreendida, para cumprimento de outra pena acessória de proibição de conduzir, no processo n.º 56/18.0PTVIS.
Como bem se refere no seu parecer o Sr. PGA “nos termos do artº 348º nº 1 do Código Penal “Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente…”.
E qual foi a ordem dada?
A entrega da carta de condução.
O prazo de dez dias será, tão somente, o modo de executar tal entrega.
E, nem se diga que o arguido não cometeu o crime de desobediência, porque no referido prazo, de dez dias, a sua carta de condução estava apreendida à ordem de outro processo. Trata-se, apenas, de um mero impedimento de entregar a carta de condução, em tal prazo.
O que o arguido teria simplesmente de fazer era proceder à sua entrega, nos presentes autos, após cessar tal impedimento.
O que manifestamente não fez, dado que tendo cessado tal impedimento, em 30.09.2019, terá continuado a fazer uso dela: até que a mesma lhe foi apreendida, em 18.01.2021, pela entidade policial competente.
O mesmo é dizer, faltou à obediência devida a ordem regularmente comunicada e emanada de autoridade judicial, qual seja proceder à entrega da carta de condução para cumprir a pena acessória de inibição em que foi condenado.

No caso do vício de erro notório na apreciação da prova previsto no art. 410º, n º 2, al. c) exige-se a evidência de um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores da decisão recorrida e que se traduza em uma conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem. Ou seja, que perante os factos provados e a motivação explanada se torne evidente, para todos, que a conclusão da decisão recorrida é ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum. Cfr. Ac. do STJ de 22/10/99 in BMJ 490, 200.

Devendo antes dar-se como provado que ao agir da forma descrita, tinha o arguido a vontade livre e a perfeita consciência de estar a desrespeitar uma decisão judicial e de se estar a abster de cumprir a ordem nela consubstanciada, a que sabia dever obediência, por legítima, emitida por autoridade competente e regularmente comunicada, bem sabendo, além do mais, que tal conduta era proibida e punida por Lei.

Tendo presente o disposto nos arts. 426º e 431º do CPP, esta instância superior não pode apreciar os factos dados como provados e não provados, porquanto não houve impugnação da matéria de facto nos termos do art 412º, n º 3 do CPP, renovação de prova e inexistirem quaisquer elementos de prova e de facto atinentes às condições sociais do arguido, exigência acrescida em face dos antecedentes criminais do arguido que pudessem permitir a determinação da pena ao mesmo.
Não ignoramos o assento n º 4/2016 de 22 de fev. que dispôs: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.” Que consideramos sempre aplicável quando o tribunal a quo tenha feito constar da matéria de facto as condições de vida do arguido.

Contudo, no caso dos autos o tribunal a quo ignorou completamente essa matéria, ou seja, não chegou à fase de determinação da sanção, por haver decidido antes que a ela não havia lugar, não tendo decidido toda a matéria de facto relevante para a determinação da pena concreta. E tinha de o fazer, pois deveria contar com um eventual recurso da sua decisão.
Com efeito, a circunstância de não ter sequer se pronunciado no sentido positivo ou negativo sobre factos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena, antecipando por isso uma absolvição, não dispensa o tribunal de 1.ª instância de emitir decisão sobre os factos que sejam relevantes para a determinação da pena concreta, pois a possibilidade de condenação não está ainda arredada. “Efetivamente, da decisão absolutória pode haver recurso e o tribunal superior pode substituir a absolvição por condenação. E a decisão de facto deve ser suficiente para qualquer das decisões de direito plausíveis. Não apenas para aquela que o tribunal de 1.ª instância perspetiva. O vício da alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º verifica-se quando o tribunal não decidiu toda a matéria de facto com relevo para a correcta decisão de direito.” Voto vencido de Manuel Joaquim Braz, proferido naquele assento que se subscreve.
E de facto o tribunal da Relação, enquanto tribunal de recurso, reexamina decisões pronunciadas pelo tribunal de 1.ª instância, mantendo-as, revogando-as, modificando-as ou invalidando-as, mas não profere decisão onde ela não existe. Os recursos não se destinam efetivamente a obter uma decisão sobre matéria nova.
Se a Relação, em recurso, passa de uma absolvição para uma condenação e verifica que a decisão recorrida não decidiu toda a matéria de facto relevante para determinar a pena concreta, só terá um caminho a seguir: declarar a verificação daquele vício e decretar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente aos pontos de facto não decididos, ao abrigo do artigo 426.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
Acresce que o STJ só decide matéria de direito, art. 434º do CPP e conhece oficiosamente dos vícios do art. 410º do CPP, pelo que o STJ está impedido de apreciar a matéria de facto fixada na Relação em sede de recurso, o que violaria o princípio constitucional da dupla jurisdição e do direito ao recurso, coartando os direitos de defesa dos arguidos que têm o direito de ver reapreciadas as questões novas.
Pelo que “Um recurso de uma decisão absolutória só pode versar, naturalmente, a questão da culpabilidade pois foi só essa que o tribunal recorrido analisou e sobre a qual decidiu.
É apenas com essa questão que o tribunal da relação é confrontado pois a decisão recorrida não se debruçou, claro está, sobre a determinação da sanção…
(…)“Sendo certo que, no modelo do CPP, a relação, enquanto tribunal de segunda instância, não é um tribunal de julgamento e não lhe compete prosseguir ou completar o julgamento iniciado em primeira instância.” Voto vencido de Nuno Gomes da Silva, salvo quando profere decisões em 1ª instância art. 432º, n º 1, al.a) do CPP.
De todo o modo ainda que não se considerasse uma situação de insuficiência de matéria fáctica, vício do art. 410º do CPP, sempre poderia colocar-se a questão da violação por parte do tribunal a quo do disposto no art.379º, n º 1, al. a) do CPP, porquanto em nosso entender o tribunal a quo não se pronunciou sobre questões que devia ter apreciado.
Omissão esta que configuraria uma nulidade de sentença e que este tribunal poderia conhecer oficiosamente dado que o art. 379º, nº 1 do CPP tem em nosso entender um regime próprio e diferenciado do regime geral das nulidades dos restantes atos processuais, vide Ac. STJ de 13.01.10 in www.dgsi.pt e nessa medida a sentença a quo seria nula.
Contudo e não obstante ser um facto que o CPP consagra um sistema (mitigado) decisão (“césure”) na fase decisória do processo, que se processa em duas fases: a da “questão da culpabilidade” (art. 368º do CPP), em que se fixam os factos; e a da “questão da determinação da pena” (art. 369º do CPP), em que se procede à determinação da pena, se for caso disso. É nesta segunda fase que devem ser conhecidos e valorados os elementos referentes à pessoa do arguido, nomeadamente o CRC, a perícia de personalidade e o relatório social e que, por isso, haja quem entenda que nenhuma nulidade existe.
Contudo, fazemos nossas as palavras que se transcrevem do Ac. STJ de 13-02-2008, relato Maia Gonçalves “estas duas fases, embora logicamente, e também normativamente, ordenadas em sequência, consubstanciam-se numa única decisão: a sentença. Não há, contrariamente ao que acontece, no processo civil, nas acções ordinárias, ou, como acontecia no CPP de 1929, nos julgamentos realizados pelo júri, uma decisão inicial quanto à matéria de facto, devidamente publicitada, seguida da decisão de direito. A cisão operada pelo legislador não separou de facto aqueles dois momentos (as duas “questões”) em duas fases processuais distintas, cada uma com a sua decisão, aberta à publicidade. Na realidade, a “césure” separou apenas logicamente, mas não materialmente, as duas “questões”, tornando ténues as possibilidades de controlo efectivo pelas partes da sua efectivação.
Assim, como de todo o processo decisório o único “testemunho” é a sentença, pois a acta de julgamento nada pode referir sobre a discussão e a deliberação, por força do art. 367º do CPP, ela deve obedecer aos cânones estabelecidos no art. 374º do mesmo diploma, que estabelece uma sistematização da sentença em termos de fundamentação de facto e de direito, a qual remete necessariamente as informações sobre a pessoa do arguido, nomeadamente as constantes do CRC, para a matéria de facto, como factos que são (isto é, circunstâncias da vida real), a par dos factos inerentes à infracção imputada.
Estando embora incluídas na matéria de facto, tal não significa que essas informações tenham sido tidas em conta juntamente com as provas atinentes aos factos referentes ao crime imputado; tal significa apenas que, na sistematização da sentença, elas aparecem enquadradas na matéria de facto, a que normativamente pertencem.”
Importando que o tribunal tenha na sua mão factos relativos à personalidade e condições pessoais necessárias para aferição de um juízo de prognose favorável ou desfavorável a conclusão é a de que a falta destes elementos configura em primeira mão um vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.
A orientação do STJ sobre esta questão está também espelhada no acórdão de 05.09.2007 (Relator: Cons. Sous Fonte), disponível em www.dgsi.pt, quando nele se expende que independentemente de se considerar ser ou não obrigatória a requisição do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social aos quais alude o artigo 370º, nº 1 do CPP para aplicação de uma pena de prisão efetiva a letra da lei sugere francamente que se trata de uma faculdade do tribunal e o TC no seu acórdão nº 182/99, de 22.03.1999, já decidiu não ser inconstitucional a norma do nº 1 do artigo 370º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatória essa solicitação, entendemos, na esteira da jurisprudência mais comum do STJ, que a falta desse relatório ou informação ou a falta de produção de qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos dos artigos 410°, nº 2 al. a) e 426º, ambos do CPP.
Ora, os factos relativos ao processo de socialização, à personalidade e carácter, às condições pessoais do arguido e à sua conduta anterior e posterior aos factos são relevantes não só para a determinação da medida da pena mas também e sobretudo, para a decisão de aplicação, ou não, de uma pena de substituição.

Estamos, assim, também perante um vício traduzido na insuficiência a que se reporta a alínea a) do nº 2 do artigo 410° d CPP dado que para a determinação da medida da pena é necessário que o tribunal disponha de elementos ou averigue as condições pessoais e situação económica ou até que justifique explicando a impossibilidade de as incluir.
Neste sentido Ac RC. De 01.06.22 -I - A matéria sobre as condições pessoais do arguido e sua situação económica – [cf. al. d), do n.º 2, do artigo 71º do Código Penal], é essencial para as próprias opções, em sede de penas, tomadas pelo tribunal.
II - Esse relatório não é obrigatório mas é peça essencial para a operação da determinação da medida da pena, sobretudo em casos em que se cogita a aplicação de penas privativas de liberdade relativamente a um arguido não presente em audiência e estando ele à completa revelia do processo.
III - A não realização de relatório social não acarreta o cometimento de qualquer nulidade ou mesmo de qualquer irregularidade.
IV - Porém, a falta de elementos probatórios bastantes, que pudessem ser veiculados através desse relatório social aos autos, por forma a poderem vir ancorar a espécie e medida da pena a aplicar, poderá constituir o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada [artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP].
Ora, não tendo o Tribunal de 1ª instância procedido à indagação necessária à determinação da personalidade e situação pessoal, económica e social do arguido, a sentença enferma, nesta parte, do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 06/11/2003, Proc. nº 03P3370; Ac. R. de Lisboa de 10/02/2010, Proc. nº 372/07.6GTALQ.L1-3; Acs. R. de Guimarães de 05/06/2006, Proc. nº 765/05-1 e de 11/06/2012, Proc. nº 317/11.9GTVCT.G1; Acs. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 268/08.4GELSB.C1 e de 23/02/2011, Proc. nº 83/09.8PTCTB.C1; Acs. R. do Porto de 18/11/2009, Proc. nº 12/08.6GDMTS.P1 e de 02/12/2010, Proc. nº 397/10.4PBVRL.P1; Ac. R. de Évora de 20/11/2012, Proc. nº 186/09.9GELL.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A locução do 410º, nº2, al. a) do CPP insuficiência para a decisão da matéria de facto provada consente duas leituras possíveis com duas consequências distintas.

Correntemente lê-se insuficiência para a decisão tomada a quo da matéria de facto provada a quo que é determinante de ordem ad quem reenvio para novo julgamento por outro Tribunal a quo tal como vulgarmente sucede nos casos do art 410º, n º2, a), b) e c).

Mas também se pode ler insuficiência para a decisão a tomar ad quem da matéria de facto provada a quo que é determinante apenas de ordem ad quem de remessa à primeira Instância para a Decisão Final - uma vez revogado ad quem o segmento decisório de absolvição - ser complementada com o julgamento provado de factos objetivos e ou juízos de facto que competirem para concretização de pena.

Vício que este Tribunal da Relação pode conhecer oficiosamente, mas não pode suprir por falta de elementos que constem do texto da decisão, não podendo recorrer a outros elementos para além do texto porquanto não houve impugnação nos termos do art. 412º, nº 3 do CPP.
Aqui chegados, comungamos da opinião dos relatores do Acórdão da Relação de Lisboa de 23/5/2017 (Pº 307/14.0PEAMD.L1-5), segundo a qual:
«Constatada a existência deste vício, é entendimento maioritário na jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores que importa determinar o reenvio do processo para novo julgamento, cingido à investigação dos factos relativos à situação pessoal e económica do arguido, nos termos dos artigos 426º, nº 1 e 426º-A, do CPP.
Salvaguardando o devido respeito por tal entendimento que, obviamente, é muito, perfilhamos porém a posição sustentada pelo Conselheiro Simas Santos expressa na declaração de voto lavrada no Ac. do STJ de 29/04/2003, Proc. nº 03P756, disponível em www.dgsi.pt, em que se afirma “a meu ver impunha-se a anulação do acórdão e a reabertura da audiência para a determinação da sanção (art. 371º do CPP), a realizar pelo mesmo Tribunal. O reenvio tem por objectivo evitar a repetição do julgamento perante o mesmo Tribunal que já tomou posição anterior sobre a valia da prova produzida.
Ora, no caso, trata-se de prova suplementar, ainda não produzida e em relação à qual o tribunal recorrido ainda não assumiu posição” – perfilando-se também com esta posição os Acórdãos da Relação de Guimarães supra mencionados e bem assim o Acórdão deste Tribunal da Relação e Secção de 10/09/2013, Proc. nº 58/12.0PJSNT.L1-5, consultável no mesmo sítio, por nós relatado».
Também artigo de Helena Morão in A REVISTA PENAL EM REVISTA, do STJ vai neste mesmo sentido quando refere:
De acordo com o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 4/2016: “Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena” [13]. Todavia, como se sabe, uma corrente jurisprudencial posterior das Relações tem vindo a precisar que esta jurisprudência uniforme só pode abranger as hipóteses em que a Relação dispõe de toda a factualidade necessária à decisão sobre a sanção e não também as situações em que os factos provados são insuficientes para esse efeito, devendo o processo, neste último caso, ser remetido ao tribunal recorrido para escolha da pena e eventual produção da prova suplementar imprescindível a esse fim, ao abrigo dos artigos 369.º a 371.º [14] .
Tende a concordar-se com esta orientação jurisprudencial das Relações. Efectivamente, se, em tais hipóteses, a Relação reabrisse ela própria a audiência em segunda instância, ex vi n.º 2 do artigo 424.º, ou recorresse analogicamente à renovação da prova (artigo 430.º) para averiguar dos elementos em falta para a decisão sobre a pena, poderia acrescentar ao rol de factos apurados outros desfavoráveis à defesa, quando desta decisão somente pode caber, em princípio, recurso de revista alargada para o Supremo e não um pleno recurso sobre matéria de facto. Tal levaria a que definisse, em primeiro e último grau, a vertente probatória da questão de facto decisiva para a determinação da sanção, preterindo tanto o direito fundamental ao recurso do arguido quanto a garantia constitucional do duplo grau de jurisdição. Assim, ainda que o n.º 1 do artigo 426.º não contemple textualmente a possibilidade de reenvio restrito à resolução da questão da pena, em situações de primeiras condenações no tribunal ad quem, quando este não possua dados bastantes para a decidir, nenhum princípio constitucional se opõe, neste conjunto de casos, a uma analogia in bonam partem (porque ampliadora do direito de recurso do arguido) [15] .
(…)ilustrativamente, o Acórdão da Relação de Évora de 5.7.2016 (M. L. ESTEVES), processo n.º 145/13.7GAMCQ.E1, www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I – O acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2016 ‘não abrange os casos em que o tribunal de primeira instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena.’; II – Nesses precisos casos, os autos devem ser devolvidos à 1.ª instância para que desenvolva as diligências pertinentes com vista a apurar a factualidade relativa às condições de vida, comportamento e personalidade do arguido, a fim de lhe permitir a subsequente prolação de decisão condenatória”); e A. J. Latas, “O AFJ 4/2016 e a determinação da pena nos casos em que foi revogada a sentença absolutória proferida pelo tribunal recorrido, que não apurou e fixou factos relativos à vida pessoal e personalidade do arguido”, 2016, pp. 1 e ss., disponível em www.tre.mj.pt.
E ainda teor daquele Ac. da Relação de Évora, cujo teor se transcreve na parte pertinente e cujos argumentos se subscrevem:
Em casos como o presente [em que foi revogada a sentença absolutória proferida pelo tribunal recorrido – que não apurou e fixou factos relativos à vida pessoal e personalidade do arguido - decidindo-se agora, em substituição, verificarem-se os elementos constitutivos do crime de que foi absolvido e, consequentemente, haver lugar à sua condenação do arguido como autor desse mesmo crime], temos entendido que o processo deve ser devolvido à 1ª Instância para que continue aí a deliberação sobre a determinação da pena a que se reporta o art. 369º do CPP, com eventual reabertura da audiência, nos termos do art. 371º do CPP, para apuramento e eventual discussão dos factos necessários, com subsequente determinação da medida da pena a aplicar.
No entanto, face ao dispositivo e fundamentação do recente AFJ 4/2016, do STJ, colocou-se-nos a questão de saber se a fixação de jurisprudência nele decidida abrange os casos, como o presente, em que o tribunal de primeira instância não apurou e fixou factos relativos à situação pessoal do arguido, necessários à escolha e determinação concreta da medida da pena, o qual é diferente das situações processuais verificadas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, podendo enunciar-se esquematicamente as três hipóteses verificadas, nos seguintes termos:
- 1. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de todos os crimes pelo qual foi julgado e, face ao disposto no art. 369º do CPP, não apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena (situação verificada no presente acórdão);
- 2. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de todos os crimes pelo qual foi julgado mas, não obstante o disposto no art. 369º do CPP, apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena a aplicar ao arguido (situação do acórdão recorrido, do TRG);
- 3. O tribunal de julgamento absolvera o arguido de alguns dos crimes pelos quais foi julgado, condenando-o por outros, e, face ao disposto no art. 369º do CPP, apurou e fixou os factos necessários para a determinação da pena ou penas que aplicou (situação do acórdão fundamento, do TRC).
Ora, apesar de, numa primeira leitura, aquele Dispositivo e partes da fundamentação do AFJ 4/2016 parecerem apontar para que na fixação de jurisprudência se encontrem abrangidos todos os casos em que, revogando decisão absolutória da 1ª instância, a relação concluir pela condenação do arguido, uma leitura mais circunstanciada impõe-nos a conclusão de que aquela fixação de jurisprudência não abrange os casos em que o tribunal de primeira instância não procedeu ao apuramento e fixação dos factos necessários à determinação da pena - e é justamente o que se verifica nos presentes autos.
2.
São as seguintes as razões que nos conduzem àquela conclusão:
Em primeiro lugar, uma leitura da fixação de jurisprudência que considerasse nela abrangida os casos em que o tribunal de primeira instância não apurou todos os factos necessários à determinação da sanção, sempre se mostraria desconforme com os pressupostos do acórdão de fixação de jurisprudência concretamente verificados, pois em nenhum dos casos a que se reportam os acórdãos em oposição o tribunal de 1ª instância deixara de apurar os factos necessários à determinação da pena, pelo que a fixação de jurisprudência com tal amplitude decidiria questão de direito que não foi apreciada ou decidida pelos acórdãos das relações em oposição
No acórdão recorrido (Ac R.G. de 06.05.2013, proc. 93/02.6TAPTB.G1, acessível em dgsi.pt), apenas relativamente a uma das arguidas que fora absolvida em 1ª instância (Paula G.) foi ordenado o reenvio para determinação da pena, descrevendo-se relativamente a ela diversos factos relevantes para a determinação da pena, sob os nºs 38 a 46 da factualidade provada, sem que se mencione em passo algum do acórdão recorrido que aqueles factos eram insuficientes para o efeito.
Relativamente ao acórdão fundamento (Ac RC de 19.09.2012), diz-se no AFJ 4/2016: «No acórdão fundamento, estava em causa a prática de vários crimes de furto e de um crime de condução de veiculo sem habilitação legal, tendo o arguido sido condenado por esse e por alguns crimes de furto; interposto recurso pelo Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio este Tribunal a revogar em parte a decisão recorrida, condenando o arguido por outros crimes de furto de que tinha sido absolvido e aplicando as penas correspondentes, reelaborando também o cúmulo jurídico. Conforme se diz ainda na fundamentação do AFJ 4/2016, «Nessa decisão, aprovada por maioria com voto do presidente da secção e voto de vencida da Senhora Desembargadora adjunta, considerou-se expressamente que “ao tribunal ad quem, ao reexaminar a causa, tal como lhe assiste a faculdade de passar de uma decisão condenatória para uma absolutória, assistir-lhe-á́ a de passar de uma decisão absolutória para uma decisão condenatória e, neste ultimo caso, dispondo dos necessários elementos, fixar a espécie e medida da pena”».
Ou seja, no caso a que respeita o acórdão fundamento o arguido havia sido condenado por alguns dos crimes pelos quais foi julgado e foi absolvido por outros, sendo relativamente à revogação de alguns destes que o T.R. de Coimbra - dispondo dos elementos factuais necessários para fixar a espécie e medida da pena, máxime os descritos sob os nºs 85 e 86 da factualidade provada (vd o citado Ac TRC de 19.09.2012 em www.dgsi.pt) - decidiu proceder à determinação da pena e não devolver o processo ao tribunal de 1ª instância.
A oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento verifica-se, pois, na parte em que, dispondo ambos de factos suficientes para a determinação da pena, o acórdão recorrido entendeu caber ao tribunal de 1ª instância proceder à determinação da pena e o acórdão fundamento considerou que competia ao tribunal da relação proceder a essa mesma operação. Nada dizendo este acórdão quanto à solução a seguir caso não dispusesse de factos suficientes, o que se verifica igualmente quanto ao acórdão recorrido, nada permite concluir que existiria oposição de julgados entre ambos os acórdãos caso os respetivos tribunais de 1ª instância tivessem deixado de apurar os factos necessários à determinação da sanção. Pelo contrário, poderá mesmo dizer-se que tanto o acórdão recorrido como o acórdão fundamento entenderão que nessas hipóteses o processo deve ser devolvido à primeira instância, pelo que não existiria sequer oposição de julgados que conduzisse à fixação de jurisprudência com o referido objeto.
Em segundo lugar, apenas são feitas referências explícitas aos casos em que o tribunal de primeira instância não apurou todos os factos necessários à determinação da sanção na fundamentação do AFJ, a qual detém apenas valor doutrinário ou argumentativo, devendo o objeto da fixação de jurisprudência constar do Dispositivo do acórdão, conforme cremos ser entendimento comum. No entanto, o Dipositivo do AFJ 4/2016 não refere textualmente que a fixação de jurisprudência abrange os casos em que o tribunal de primeira instância deixou de apurar os factos pessoais necessários para a determinação da sanção, sendo certo que a remissão para as disposições legais citadas naquele Dispositivo não tem inequivocamente esse sentido, pois envolve alguma indeterminação e ambivalência, na medida em que os preceitos citados tanto podem referir-se à definição do objeto da fixação de jurisprudência, como à fundamentação do decidido ou mesmo a finalidade diversa, como sucederá com a referência ao art. 368º, que respeita à questão da culpabilidade.

Em terceiro lugar, a leitura mais ampla da fixação de jurisprudência contraria o que resulta dos termos da declaração do senhor conselheiro Manuel J. Braz, (“Concordo com a jurisprudência proposta. Mas não com parte da fundamentação”), que é igualmente adotada pelo senhor conselheiro Francisco Manuel Caetano, e da designação com que a mesma foi integrada no Acórdão, pois só a consideração de que aquela declaração se reporta à fundamentação do acórdão e não à decisão nele proferida, explica que seja ali designada de Declaração de voto e não de voto de vencido
O mesmo se diga relativamente à declaração do senhor conselheiro Raúl Borges “(Voto o acórdão de acordo com a posição assumida em 09.11.2011 no processo 43/09.9PAAMD.L1.S1)”, pois também neste acórdão considerou-se, explicitamente, que o poder de substituição da decisão recorrida não abarca a escolha da espécie e fixação da medida da pena (…) se a decisão em exame não contiver os elementos necessários para a determinação da medida da pena, cuja ausência se poderá explicar em virtude da decisão absolutória em 1.ª instância fazer esquecer essa indagação, conduzindo à verificação do vício previsto no art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP.” – vd ponto VI do sumário; itálico nosso.
Em quarto lugar, afigura-se-nos que uma leitura mais ampla da fixação de jurisprudência poderia pôr em causa a reserva de lei da AR consagrada em matéria de processo penal no artigo 165º al. c) da CRP, por se traduzir numa alteração significativa do regime legal dos recursos em processo penal, através de decisão do STJ proferida fora dos pressupostos da fixação de jurisprudência propriamente dita, quanto a esta matéria específica, e com a especial força vinculativa que resulta dos artigos 445º e 446º, do CPP. Na verdade, independentemente da questão estrita da separação de poderes, a atribuição inovadora de competência às relações para julgar e decidir factos novos em via de recurso, mesmo que se tratasse de recurso a ser julgado em conferência, parece longe de poder dispensar o debate transparente, participado e aprofundado que a reserva de lei permite, pois, com todo o respeito, é passo que o legislador certamente não dará sem sopesar bem vantagens e desvantagens, mesmo no plano da política legislativa, dadas as implicações de tal opção em diversos pontos dos modelos de julgamento e de recurso.
Por último, sempre fica em aberto a questão de saber em que medida a determinação da pena em primeira mão pelas relações, na sequência de recurso interposto pelo MP ou pelo assistente de sentença totalmente absolutória de arguido, não viola efetivamente o princípio constitucional das suas garantias de defesa, maxime o seu direito ao recurso, caso se consolide no nosso ordenamento positivo a inadmissibilidade de recurso para o STJ de algumas das decisões das relações que apliquem pena a arguido absolvido em primeira instância do crime ou crimes pelos quais foi sujeito a julgamento.
Falamos em absolvição total contrapondo-a à absolvição do arguido em 1ª instância por apenas alguns dos crimes pelos quais foi sujeito a julgamento, pois nessas hipóteses de prévia condenação do arguido em 1ª instância por alguns dos crimes que lhe vinham imputados, sempre entendemos não haver lugar à devolução dos autos à primeira instância, por tal não ser imposto pelo regime processual de determinação da sanção nem pelo princípio do duplo grau de jurisdição, cabendo ao tribunal de recurso proceder à determinação da nova pena.
Na verdade, quando o arguido é julgado por vários crimes e foi absolvido só por alguns deles, isso significa que das deliberações e votações do tribunal de julgamento sobre a questão da culpabilidade resultou dever ser aplicada ao arguido uma pena ou medida de segurança – a correspondente aos crimes em que foi condenado -, pelo que o tribunal de julgamento deve concluir o procedimento legalmente previsto para a determinação da sanção nos artigos 369º e 371º do CPP, independentemente do número e espécie de penas a aplicar, mostrando-se assim previamente cumprido o regime processual aplicável mesmo que o arguido só venha a ser condenado em primeira mão na relação, por algum dos crimes.
Por outro lado, também a exigência de um segundo grau de jurisdição se mostra respeitada nesses casos, pois no caso de recurso contra decisão só parcialmente absolutória, o arguido pode efetivamente pronunciar-se sobre os factos (já) apurados e os considerandos tecidos pelo tribunal de julgamento, com relevância para a determinação da sanção, contrariamente ao que sucede nos casos de absolvição total. Nestes casos, o tribunal de julgamento não apurou sequer os factos que apenas relevem para a determinação da sanção, ou, mesmo que tal se verifique, não teceu quaisquer considerações na sentença sobre a relação entre eles e os critérios para determinação da pena, o mesmo sucedendo em regra com os recursos do MP ou do assistente, que não têm que pronunciar-se sobre a escolha ou medida da pena a aplicar no caso de o arguido vir a ser condenado em via de recurso e raramente o fazem.
Daí entendermos, como referido, que nos casos em que o arguido é condenado em primeira instância por todos ou alguns dos crimes (como sucedeu no acórdão fundamento), não há lugar à devolução dos autos à 1ª instância, pois desde que tenha sido aplicada pelo menos uma pena ou medida de segurança teve já lugar o procedimento a que se reportam os arts 369º e 371, do CPP, ao mesmo tempo que o 2º grau de jurisdição se mostra suficientemente assegurado, como vimos, tudo se passando no tribunal de recurso em termos semelhantes aos verificados quando este apenas decide pena diferente ou medida mais grave para a pena antes aplicada em primeira instância.
Sendo consensual o nosso entendimento relativamente à questão acima enunciada, só nos resta concluir no sentido de que os autos devem ser devolvidos à 1ª instância para que desenvolva as diligências pertinentes com vista a apurar a factualidade relativa às condições de vida, comportamento e personalidade do arguido, a fim de lhe permitir a subsequente prolação de decisão condenatória em conformidade com o que acima expusemos.

Deste modo, enferma a sentença recorrida do vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, isto é, para uma decisão jurídica criteriosa [artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP] – [cf., entre outros, os acórdãos do STJ de 17.10.2002, CJ, ASTJ, X, T. III, pág. 207; de 29.04.2003, proc. n.º 03P756; 06.11.2003, proc. n.º 03P3370; 11.11.2004, proc. n.º 3261/04], o que determina o reenvio – parcial - do processo para uma reabertura da audiência, a incidir exclusivamente sobre as questões supraidentificadas, e a poder contar com a presença do arguido.
Note-se que o prazo de 30 dias do artigo 328º/6 do CPP não se aplica no caso vertente em que se determina o reenvio parcial do processo para uma mera reabertura da audiência, sendo válida a prova produzida anteriormente.
Assim, o tribunal a quo deverá reabrir a audiência, e considerando a alteração fáctica operada nesta instância, tudo fazer para que, aquando da prolação da nova sentença, tenha nos autos informação suficiente sobre as condições de vida (laborais, económicas e familiares) do arguido que possa justificar de forma mais cabal a pena que irá enfim escolher e aplicar ao mesmo.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em conceder provimento ao recurso, julgando o arguido AA como autor da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal por se verificar o vício do erro notório na apreciação da prova do art. 410º, n º 2, al. c) do CPP, alterando-se a matéria fáctica nos termos supramencionados, cujos elementos típicos a factualidade dessa forma alterada preenche e por se verificar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada do artigo 410º, n.º 2, al. a) do CPP –, e em anular a sentença, ordenando a remessa do processo ao Tribunal a quo, a fim de aí, com intervenção do mesmo juiz, se reabrir a audiência para apurar apenas dos factos em falta relativos às condições socio-familiares-profissionais-laborais do arguido tendo presente que se deve dar como provado o elemento subjetivo do crime em causa.
Após o que deverá ser proferida nova sentença complementada com os novos dados que se conseguir apurar sobre a situação económica, familiar e financeira do mesmo e, posteriormente, em face deles, determinar penas a aplicar.

Sem custas por não serem devidas pelo M.P.

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 20 de março de 2024
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Castela Rio

(Elaborado e revisto pelo relator - artigo 94º, n.º 2, do CPP)