RECURSO DE REVISÃO
COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
SUSPENSÃO DA CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO
Sumário

I - Os Tribunais da Relação são os competentes para apreciar o recurso extraordinário de revisão de sentença ou de despacho judicial no âmbito de processo de contra-ordenação.
II - O pedido de suspensão da cassação do título de condução com fundamento na al. d) do n.º 1) do art. 449.º do CPPenal, isto é, descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, colide frontalmente com a previsão do n.º 3 do mesmo preceito, que não admite que com tal fundamento seja admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
III - Esta última previsão não tem uma leitura estrita, abrangendo para além da medida concreta da pena, a própria escolha da pena.

(Sumário da responsabilidade da Rrelatora]

Texto Integral

Proc. n.º 2341/20.1T8GDM-A.P1. P1

Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Local Criminal de Gondomar – Juiz 2

Sumário:

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Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo de Cassação n.º 753/2019, a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), por decisão de 14-04-2019, determinou a cassação do título de Condução n.º ... de que é titular o recorrente AA.

Inconformado, o aqui recorrente impugnou judicialmente a decisão da autoridade administrativa, dando origem ao Proc. n.º 2341/20.1T8GDM, tendo, a final, por despacho de 08-06-2021, sido julgada improcedente a impugnação judicial e mantida a decisão da autoridade administrativa.

Ainda irresignado, o recorrente interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 15-12-2021, negou provimento ao recurso e manteve a decisão recorrida.

Desta decisão interpôs o recorrente recurso para o Tribunal Constitucional, tendo ali sido decidido, por acórdão de 09-06-2022, não tomar conhecimento do objecto de recurso.

O trânsito em julgado da decisão mostra-se certificado com referência ao dia 30-06-2022 (cf. certidão de 15-05-2023).

Por requerimento entrado em juízo a 18-04-2023, veio o recorrente AA interpor recurso extraordinário de revisão, nos termos do art. 449.º, n.º 1, al. d), do CPPenal, apresentando para o efeito as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):
«I - O presente recurso tem por objeto o processo em epígrafe já transitado em Julgado e que condenou o arguido AA, por Decisão da ANSR, na Cassação ao arguido, do título de Condução n.º ....
II – Entende o arguido, salvo melhor opinião que existem factos novos, bem como meios de prova, que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, que suscitam graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
III – O recurso de revisão, enquanto recurso extraordinário que é, tem sempre por objeto uma decisão já transitada.
V - Como é sabido, um dos valores fundamentais do direito é o da segurança das decisões judiciais, consubstanciada no instituto do trânsito em Julgado.
VI - Contudo, tal valor não é absoluto, e nem sequer é o mais importante, pois sobreleva o da justiça, particularmente quando estão em causa direitos fundamentais da pessoa humana.
Esse é o caso das condenações penais, onde são, ou podem ser afrontados os direitos à liberdade, à honra e bom nome do condenado, e onde, portanto, a imutabilidade da sentença que decorre do caso julgado tem de ceder, sempre que se torna flagrante que foi contrariado o sentido da justiça.
VII - No confronto desses dois valores, a justiça e a segurança, o legislador em matéria penal optou por uma solução de compromisso, possibilitando, embora de forma limitada, o direito de serem revistas as sentenças e os despachos que tenham posto fim ao processo, ainda que transitados em julgado.
VIII - O recurso de revisão inscreve-se nas garantias de defesa dos cidadãos.
IX - Por isso, o art.º 29.º, n.º 6, da Constituição da República Portuguesa prevê, no domínio dos direitos, liberdades e garantias, sobre a aplicação da lei criminal, que “Os cidadãos injustamente condenados têm direito, nas condições que a lei prescrever, à revisão da sentença e à indemnização pelos danos sofridos”.
X- E, na prossecução desse desiderato, o Código de Processo Penal, entre os recursos extraordinários, prevê de facto o de revisão, no art.º 449.º e seguintes.
XI - Os fundamentos deste recurso extraordinário vêm taxativamente enunciados no art.º 449.º do Código de Processo Penal, e visam o aludido compromisso entre o respeito pelo caso julgado, e com ele a segurança e estabilidade das decisões, por um lado, e a justiça material do caso, por outro.
XII - Em regra, com o trânsito em julgado da decisão, a ordem jurídica considera sanados todos os vícios de que porventura, aquela padecia.
XIII - Ensinava o Prof. Eduardo Correia que o fundamento do caso julgado radica numa concessão prática de garantir a certeza e a segurança do direito, mesmo que com o eventual sacrifício da justiça material. Ou seja, o que está na base do caso julgado é a adesão à segurança com eventual detrimento da verdade (cfr. Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz, Colecção Teses, Almedina, 1983, Reimpressão, 302).
XIV - Porém, em determinadas situações anormais, imperativos de justiça determinam o sacrifício daquela segurança e portanto, do caso julgado, em prol da afirmação da verdade.
XV - E é precisamente neste equilíbrio entre segurança por um lado, e verdade pelo outro, que actua o recurso de revisão, que “se apoia em vícios ligados à organização do processo que conduziu à decisão posta em crise e que tem o seu fundamento essencial na necessidade de evitar sentenças injustas.” (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 2007, 204).
XVI - Concebido como último remédio para as decisões judiciais injustas, o recurso de revisão tem consagração constitucional, no art. 29º, nº 6, da Lei Fundamental.
XVII - O recurso de revisão, ao permitir ultrapassar a intangibilidade do caso julgado, opera não o reexame do anterior julgado, mas uma nova decisão judicial, assente em novo julgamento da causa mas agora com base em novos dados de facto ou seja, a revisão versa apenas sobre a questão de facto (Cons. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., 205 e Ac. do STJ de 06/04/2006, nº 06P657, em http://www.dgsi.pt).
XVIII - A revisão da sentença apenas terá lugar quando o novo facto ou a nova prova alcance o patamar da dúvida grave sobre a condenação.
XIX - Assim, e como se escreveu no Ac. do STJ de 06/04/2006, citado, “Há-de, pois, tratar-se de «novas provas» ou «novos factos» que, no concreto quadro de facto em causa, se revelem tão seguros e (ou) relevantes – seja pela patente oportunidade e originalidade na invocação, seja pela isenção, verosimilhança e credibilidade das provas, seja pelo significado inequívoco dos novos factos, seja por outros motivos razoavelmente aceitáveis – que o juízo rescindente que neles se venha a apoiar, não corra facilmente o risco de se apresentar como superficial, precipitado ou insensato, tudo a reclamar do requerente a invocação e prova de um quadro de facto «novo» ou a exibição de «novas» provas que, sem serem necessariamente isentos de toda a dúvida, a comportem, pelo menos, em bastante menor grau, do que aquela que conseguiram infundir à justiça da decisão revidenda.”.
XX- Os fundamentos do recurso de revisão encontram-se enunciados de forma taxativa no art. 449º, nº 1, do C. Processo Penal.
XXI - No caso em apreço, como já se referiu, estamos perante a descoberta de novos factos ou meios de prova que, de per si ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação – alín. d)..
XXII - Com efeito, não foram tidos em consideração factos relevantes para explanar toda a situação do arguido, nem foram ouvidas testemunhas que poderiam esclarecer os factos, desde logo a Entidade Patronal do arguido.
XXIII - Por outro lado, há factos importantes, nomeadamente a recuperação do arguido do seu problema aditivo, como se constata pelo relatório em anexo.
XXIV - O arguido está a trabalhar como motorista, reorganizou a sua vida e tem um cargo de responsabilidade.
Com efeito, é ele o responsável por obras da empresa no Sul do País, necessitando impreterivelmente da sua carta de condução.
Ora, a cassação da sua carta vai implicar o seu desemprego, uma vez que a sua função é mesmo conduzir!
XXV - Tal situação do ponto de vista da ressocialização é muito negativo, pois ao invés de se apoiar alguém que de facto cometeu erros, mas que conseguiu dar a volta e reorganizar a sua vida em todos os aspetos, vai-se «empurrar» o arguido para o abismo!
XXVI - Ora, tais factos novos, com a devida explanação e contexto, poderão levar à suspensão da cassação da carta do aqui recorrente, com a consequente possibilidade deste poder continuar com a sua vida.
XXVII - Por estes motivos existem sérias dúvidas sobre a justiça da condenação, impondo- se a autorização e revisão da sentença, por força do disposto no art.º 449.º n.º 1 d), do CPP.
XXVIII - O fundamento de direito de que o recorrente lança mão recondu-lo este, de modo expresso, ao enumerado como pressuposto da revisão na al.d), n.º 1, do art.º 449.º, do CPP, para a hipótese de “Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si, ou combinados com os que forem apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação “.
XXIX - Este preceito inspirou –se no art.º 673.º n.º 4, do precedente CPP de 29, mas agora com uma maior latitude na medida em que aquele exigia a configuração de uma grave presunção de inocência do arguido, pois o correspondente pressuposto actual basta-se com a circunstância de que os novos factos ou documentos suscitem uma grave dúvida sobre a justiça da decisão.
XXX - Está pois, justificada a revisão intentada nos termos dos art.ºs 449.º n.º 1 d), do CPP, inteiramente virada, no caso vertente “ pró reo”.
XXXI - Deve assim ser Autorizada a revisão, ordenando-se o reenvio do processo para o Tribunal de composição e categoria idênticas ao que proferiu a decisão revidenda, situado mais próximo dele - art.º 457.º n.º1, do CPP -, seguindo-se os ulteriores trâmites do processo, em vista de novo julgamento.
XXXII - A fim de dar cumprimento ao disposto no art.º. 451º nº 2 e 3 do C.P.P. , o recorrente protesta juntar Certidão do Acórdão Condenatório.»

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Por despacho de 18-12-2023, foi dado cumprimento ao disposto no art. 454.º, parte final, tendo os autos sido remetidos a este Tribunal da Relação do Porto, acompanhados de informação sobre o mérito do pedido, por se ter entendido que, nos termos do disposto no art. 81.º, n.º 4, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (DL 433/82 de 27-10, doravante RGCO), era o competente.
Essa informação é do seguinte teor (transcrição):
«Nos termos previstos no artº 81º, nº 4 do Regime-Geral das Contraordenações e Coimas (DL 433/82 de 27.10), o recurso de revisão de uma decisão judicial proferida no âmbito de uma impugnação judicial em processo de contraordenação é da competência do Tribunal da Relação.
Não está, por isso, corretamente dirigido o recurso que aqui se aprecia.
De todo o modo, não cremos que tal seja fundamento para a sua rejeição liminar, podendo essa falta ser suprida por este Tribunal, dirigindo-o ao Tribunal competente, ou seja, ao Tribunal da Relação do Porto.
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O artº 449º do Código de Processo Penal fixa os fundamentos e a admissibilidade do recurso extraordinário de revisão nos seguintes termos:
1 - A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:
a) Uma outra sentença transitada em julgado tiver considerado falsos meios de prova que tenham sido determinantes para a decisão;
b) Uma outra sentença transitada em julgado tiver dado como provado crime cometido por juiz ou jurado e relacionado com o exercício da sua função no processo;
c) Os factos que servirem de fundamento à condenação forem inconciliáveis com os dados como provados noutra sentença e da oposição resultarem graves dúvidas sobre a justiça da condenação;
d) Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.
e) Se descobrir que serviram de fundamento à condenação provas proibidas nos termos dos n.os 1 a 3 do artigo 126.º;
f) Seja declarada, pelo Tribunal Constitucional, a inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação;
g) Uma sentença vinculativa do Estado Português, proferida por uma instância internacional, for inconciliável com a condenação ou suscitar graves dúvidas sobre a sua justiça.
2 - Para o efeito do disposto no número anterior, à sentença é equiparado despacho que tiver posto fim ao processo.
3 - Com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.
4 - A revisão é admissível ainda que o procedimento se encontre extinto ou a pena prescrita ou cumprida.
O requerente AA, suscita a revisão da sentença contra si proferida, louvado, essencialmente, na seguinte argumentação:
«Não foram tidos em consideração factos relevantes para explanar toda a situação do arguido, nem foram ouvidas testemunhas que poderiam esclarecer os factos, desde logo a Entidade Patronal do arguido.
Por outro lado, há factos importantes, nomeadamente a recuperação do arguido do seu problema aditivo, como se constata pelo relatório em anexo.
O arguido está a trabalhar como motorista, reorganizou a sua vida e tem um cargo de responsabilidade.
Com efeito, é ele o responsável por obras da empresa no Sul do País, necessitando impreterivelmente da sua carta de condução.
Ora, a cassação da sua carta vai implicar o seu desemprego, uma vez que a sua função é mesmo conduzir!
Tal situação do ponto de vista da ressocialização é muito negativo, pois ao invés de se apoiar alguém que de facto cometeu erros, mas que conseguiu dar a volta e reorganizar a sua vida em todos os aspetos, vai-se «empurrar» o arguido para o abismo!
Ora, tais factos novos, com a devida explanação e contexto, poderão levar à suspensão da cassação da carta do aqui recorrente, com a consequente possibilidade deste poder continuar com a sua vida.»
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De acordo com o disposto no artº 453º do CPP:
“1 - Se o fundamento da revisão for o previsto na alínea d) do n.º 1 do artigo 449.º, o juiz procede às diligências que considerar indispensáveis para a descoberta da verdade, mandando documentar, por redução a escrito ou por qualquer meio de reprodução integral, as declarações prestadas.
2 - O requerente não pode indicar testemunhas que não tiverem sido ouvidas no processo, a não ser justificando que ignorava a sua existência ao tempo da decisão ou que estiveram impossibilitadas de depor”.
Vejamos, pois.
Nos autos principais, o requerente impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que, pela verificação dos pressupostos previstos no artº 148º do Código da Estrada, determinou a cassação da sua carta de condução e a proibição de a obter por um período de 2 anos.
Para esse fim, e sintetizando as suas conclusões, invocou a inconstitucionalidade da norma do artº 148º, nº 2, alª c) e nº 10 do Código da Estrada por consagrar o caráter automático da cassação do titulo «definitivo», isto é, a condutores que já tenham ultrapassado o regime probatório, porquanto o artº 30º, nº 4 da Constituição proíbe a perda de direitos como consequência automática de uma pena, já que a proibição de obter um novo título pelo período de 2 anos contradiz um dos princípios basilares do Direito, qual seja o de a pena dever ser graduada em função da culpa do infrator.
A questão da inconstitucionalidade da norma foi proficientemente apreciada pelo Tribunal da Primeira Instância, pelo Tribunal da Relação do Porto e pelo Tribunal Constitucional, tendo sido sempre considerada tal norma conforme à Constituição.
Insiste, porém, o requerente que há factos novos que imporiam uma decisão diferente.
Aqui chegados cabe dizer que, segundo cremos, os factos relevantes tidos em conta na decisão que se pretende ver revista, são apenas, em face da especificidade da decisão administrativa que pela mesma foi confirmada, a titularidade da carta de condução e a condenação do requerente pela prática de dois crimes de condução em estado de embriaguez, p. e p. pelo artº 292º, nº 1 do CP.
Os factos agora invocados, segundo entendemos, dizem respeito apenas, direta ou indiretamente, àquilo a que o requerente chamou de automaticidade da sanção aqui em causa e que já foi apreciada por três diferentes instâncias, sempre em desfavor da sua tese. Por isso, os factos importantes (sic) referidos pelo requerente- i) a sua recuperação do arguido do seu problema aditivo; ii) e a necessidade impreterível da sua carta de condução - , parece-nos que serão sempre intranscendentes para a alteração da decisão proferida.
Ademais, e salvo melhor entendimento, não se lobriga do douto requerimento que instrui este recurso, onde esteja a novidade de tais factos. Ou seja, que a recuperação do seu problema aditivo e a necessidade impreterível da sua carta de condução, sejam supervenientes à decisão revidenda.
Na verdade, o requerente limita-se a invocar esses factos, não indicando a sua data, parecendo, aliás, da economia global dos recursos que foi apresentando que os mesmos seriam já anteriores à decisão judicial que pretende ver revista.
Um outro ponto diz respeito á sua referência a não terem sido produzidos todos os meios de prova necessários, isto é, “testemunhas que poderiam esclarecer os factos, desde logo a Entidade Patronal do arguido”.
Mais uma vez se refere que, segundo entendemos, os factos que aqui interessam são os relativos à titularidade da carta de condução e às condenações judiciai pela prática do crime de condução em estado de embriaguez.
Mas, ainda que assim não fosse, se tais testemunhas não foram ouvidas foi porque o arguido o não quis, já que não indicou qualquer prova testemunhal por ocasião da apresentação da impugnação judicial apresentada.
Mesmo assim, continuaria a falecer-lhe razão neste conspecto, já que, de acordo com o disposto no artº 453º, nºs 1 e 2 do CPP, nesta sede não poderiam ser ouvidas testemunhas que não tivessem sido ouvidas no processo, a menos que justificasse a sua existência ao tempo da decisão ou que estavam impedidas de depor.
Ora, mesmo não identificando concretamente qualquer testemunha, o requerente também não refere que a causa da sua não inquirição no momento processual próprio fosse o desconhecimento ou a impossibilidade previstas na sobredita norma.
Finalmente, o efeito útil do presente recurso, a providência que o requerente anuncia desde já pretender, qual seja a suspensão da cassação da sua carta de condução, não nos parece que tenha consagração legal, porquanto não prevista em nenhuma norma do Código da Estrada.
Com efeito, e mesmo que a cassação da carta de condução não seja em si mesma uma pena, antes o efeito de uma pena, vigorando no nosso ordenamento jurídico o princípio da taxatividade destas últimas, entende-se que os seus efeitos também têm de vir expressamente previstos na lei.
No caso dos autos inexiste norma que preveja tal solução, sendo que a única suspensão com assento no texto legal em causa, é a que vem prevista no artº 141º do diploma atrás referido e diz respeito a sanções acessórias – o que não é o caso da cassação do título – e, mesmo quanto a estas, só relativamente às contraordenações graves e não já às muito graves.
Em suma:
- Entende-se não dever ser produzido qualquer meio de prova suplementar, nomeadamente a inquirição de testemunhas por não estarem preenchidos os pressupostos do artº 453º, nºs 1 e 2 do CPP (sendo que, em rigor, nem sequer foram identificadas testemunhas concretas que pudessem ser notificadas e ouvidas);
- Nos termos do artº 454º do CPP, somos do entendimento que, pelos motivos acima explanados, os fundamentos do presente recurso não têm consagração legal.
Notifique o recorrente e o MºPº.
Após, subam os autos ao Tribunal da Relação do Porto.»

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Neste Tribunal da Relação do Porto, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido de não ser admitido ou autorizado o recurso de revisão, argumentando nos termos seguintes (transcrição):

«Questão prévia:

Torna-se evidente que o recurso de interposto pelo arguido não deverá ser conhecido, não estando preenchidos os pressupostos previstos no artigo 449.º do CPP, concretamente na alínea d) invocada pelo Recorrente- A revisão de sentença transitada em julgado é admissível quando:. Se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.».

Vejamos!

O aqui Recorrente impugnou judicialmente a decisão da Autoridade Administrativa que determinou a cassação da sua carta de condução e a proibição de a voltar a obter durante o prazo de 2 anos.

Por decisão judicial proferida no Juízo Local Criminal de Gondomar, Juíz 2, foi julgado totalmente improcedente a impugnação judicial apresentada, confirmando-se a decisão administrativa proferida.

Por acórdão deste Tribunal da Relação, foi julgado improcedente o recurso interposto da decisão proferida em 1ª instância e apreciada a questão da inconstitucionalidade levantada relativamente ao artigo 148.º do Código da Estrada concluindo-se pela sua constitucionalidade, tendo esse acórdão transitado em julgado.

Foi, entretanto, interposto recurso para o Tribunal Constitucional do acórdão do TRP, tendo sido proferido acórdão no sentido de não se conhecer do recurso.

Finalmente, veio o Recorrente interpor recurso de revisão, ao abrigo do disposto no artigo 449.º, n.º1, d) do CPP ( e artigo 80.º do RGCO).

Ora, como bem se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 20-3-2018, publicado na integra em www.dgsi.pt a propósito da admissibilidade do recurso de revisão baseado na alínea d) do n.º1 do artigo 449.º do CPP,

(…)

Vejamos o fundamento invocado pelo arguido previsto na al. d) do art. 449º do CPPenal.

Esta alínea dispõe que, “a revisão da sentença é admissível quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação”.

Este fundamento da revisão exige a verificação de dois requisitos cumulativos que são: a) a descoberta de novos factos ou meios de prova; b) que tais novos factos ou meios de prova suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Como se refere no Ac. STJ de 18-04-2012 proferido no proc. nº 153/05.1PEAMD-A.S1 “o fundamento de revisão de sentença da al. d) do nº 1 do art. 449ºº do CPP, novos factos ou meios de prova, ou seja, como expressamente consta do texto legal, a descoberta de novos factos ou meios de prova, o que significa que os meios de prova relevantes pra o pedido de revisão terão de ser processualmente

novos, isto é, meios de prova desconhecidos pelo recorrente no tempo do julgamento, que não tenham podido ser apresentados e apreciados na decisão. Se, ao invés, o recorrente conhecia os factos e os meios de prova ao tempo do julgamento e os podia apresentar, tais factos e meios de prova não relevam para efeitos de revisão de sentença”.»

No entanto, os fundamentos apresentados são aqueles já usados na impugnação judicial da decisão administrativa e no recurso para o Tribunal da Relação de tal decisão.

Nenhum facto novo ou meio de prova foi apresentado que possa colocar em causa, por ser manifestamente injusta, a decisão de cassação da licença de condução que ocorreu de modo administrativo.

Conforme se refere, por exemplo, no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-10-2022 «A cassação da carta pelo presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR) tem uma natureza administrativa e funda-se na perda de pontos resultantes da prática das infrações que lhe estão subjacentes».

Deste modo, sou de parecer que não deve o recurso de revisão ser admitido ou autorizado.»


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O arguido tem legitimidade para requerer a presente revisão de sentença e de despacho judicial transitados em julgado de acordo com os arts. 449.º, n.º 2 e 550.º, n.º 1, al. c), do CPPenal.

O recurso encontra-se motivado e instruído.

Este Tribunal é o competente nos termos do art. 81, n.º 4, do RGCO.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, nada obstando ao conhecimento do recurso.


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II. Apreciando e decidindo:

Questões a decidir no recurso

A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se deve ser autorizada a revisão da decisão de cassação da carta de condução do recorrente, com fundamento na existência de novos factos ou novos meios de prova.

Vejamos.

O recurso extraordinário de revisão visa encontrar o equilíbrio desejável, num Estado de Direito, entre a segurança e estabilidade das decisões, por um lado, e a justiça material do caso julgado, por outro.

O seu objectivo não é reapreciar a decisão judicial transitada e nela encontrar erros que possam ter sido cometidos, pois essa finalidade é prosseguida pelos recursos ordinários, mas antes a obtenção de um novo julgamento, tendo em vista apagar uma sentença já inalterável e que representa um erro judiciário, configurando-se como a última via legal de correcção de uma condenação injusta.

Os fundamentos do recurso de revisão mostram-se previstos no art. 449.º do CPPenal, tendo em concreto o recorrente apelado ao previsto na al. d) do n.º 1 do preceito, isto é, quando se descobrirem novos factos ou meios de prova que, de per si ou combinados com os que foram apreciados no processo, suscitem graves dúvidas sobre a justiça da condenação.

Sobre os contornos deste pressuposto, sintetizou-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2009[1] que:

«II - O fundamento a que alude o n.º 1, al. d), da citada norma legal exige que se descubram novos factos ou meios de prova. Essa descoberta pressupõe obviamente um desconhecimento anterior, de certos factos ou meios de prova, agora apresentados; a questão que desde o início se coloca quanto à interpretação do preceito, é a de se saber se o desconhecimento relevante é do tribunal, porque se trata de factos ou meios de prova não revelados aquando do julgamento, ou se o desconhecimento a ter em conta é o do próprio requerente, e daí a circunstância de este não ter levado ao conhecimento do tribunal os factos, ou não ter providenciado pela realização da prova, à custa dos elementos que se vieram a apresentar como novos.

III -A linha seguida, mais recentemente e praticamente sem discrepância, por este Supremo Tribunal é a de que não é necessário esse desconhecimento por parte do recorrente, bastando que os factos ou meios de prova não tenham sido tidos em conta, no julgamento que levara à condenação, para serem considerados novos.

IV -Orientação esta que deverá ser perfilhada, mas com uma limitação: os factos ou meios de prova novos, conhecidos de quem cabia apresentá-los, serão invocáveis em sede de recurso de revisão, desde que seja dada uma explicação suficiente, para a omissão, antes, da sua apresentação. Por outras palavras, o recorrente terá que justificar essa omissão, explicando porque é que não pôde, e, eventualmente até, porque é que entendeu, na altura, que não devia apresentar os factos ou meios de prova, agora novos para o tribunal.»

No seu recurso, o recorrente apesar de apelar a este pressuposto e até invocar, por remissão para acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-04-2006, que a revisão versa apenas sobre a questão de facto, não indicou em concreto factos e meios de prova que pudessem ser produzidos e que demonstrassem a injustiça da condenação e menos ainda justificou a omissão da sua consideração nas anteriores decisões.

Com efeito, de acordo com as alegações do recorrente, no caso em apreço «não foram tidos em consideração factos revelantes para explanar toda a situação do arguido, nem foram ouvidas testemunhas que poderiam esclarecer os factos, desde logo a Entidade Patronal do arguido.

Por outro lado, há factos importantes, nomeadamente a recuperação do arguido do seu problema aditivo, como se constata pelo relatório em anexo.

O arguido está a trabalhar como motorista, reorganizou a sua vida e tem um cargo de responsabilidade.

Com efeito, é ele o responsável por obras da empresa no Sul do País, necessitando impreterivelmente da sua carta de condução.

Ora, a cassação da sua carta vai implicar o seu desemprego, uma vez que a sua função é mesmo conduzir!

Tal situação do ponto de vista da ressocialização é muito negativo, pois ao invés de se apoiar alguém que de facto cometeu erros, mas que conseguiu dar a volta e reorganizar a sua vida em todos os aspetos, vai-se «empurrar» o arguido para o abismo!

Ora, tais factos novos, com a devida explanação e contexto, poderão levar à suspensão da cassação da carta do aqui recorrente, com a consequente possibilidade deste poder continuar com a sua vida.»

Não são apresentadas testemunhas, nem junto qualquer documento, não obstante se afirmar o oposto.

Como, desde logo, se vê, independentemente da validade da argumentação apresentada, o que o recorrente pretende é a suspensão da cassação da carta de condução, solução que nem vamos discutir quanto à sua admissibilidade legal, pois não é esse o propósito do recurso de revisão.

Tal segmento do recurso é aqui chamado à colação por evidenciar que o objectivo do recorrente ao apresentar este recurso extraordinário de revisão colide frontalmente com a previsão do n.º 3 do art. 449.º do CPPenal, que prevê que com fundamento na alínea d) do n.º 1, não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da sanção aplicada.

E esta previsão não tem uma leitura estrita.

Conforme se perfilhou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-11-2022, relatado por António Gama no âmbito do Proc. n.º 2204/21.3PKLSB-A.L1.S1 – 5.ª Secção, posição que acolhemos, «[n]uma primeira leitura a previsão do art. 449.º/3, CPP, ao estatuir que não é admissível revisão com o único fim de corrigir a medida concreta da pena, parece admitir a revisão para corrigir a escolha da pena. Porém, o art.º 449.º/3, CPP, não pode ser lido desirmanado do precedente n. º1/d, onde relevam as graves dúvidas sobre a justiça da condenação, o que inviabiliza a pretendida subtileza interpretativa, quando está em causa a escolha da pena de prisão que foi substituída por multa.»[2]

Por outro lado, os factos invocados, respeitantes às condições pessoais do recorrente, são aparentemente supervenientes (o recorrente não concretiza qualquer contexto temporal, mas o sentido da alegação, afigura-se-nos, assim o induz), respeitando a acontecimentos posteriores e não contemporâneos da decisão, não podendo, por isso, relevar para ajuizar da sua justeza.

Porém, ainda que respeitassem a momento congruente com a sua utilização na decisão revidenda – a ser possível –, nunca poderiam, pela natureza de factos respeitantes às condições pessoais do recorrente, justificar uma dúvida grave e séria sobre a sua condenação, a ponto de se suscitar fundadamente o dever de absolver o arguido.

E no caso concreto com a agravante de que a decisão da autoridade administrativa, mantida pelas decisões judiciais sequentes, não pressupõe qualquer ponderação como a pretendida pelo recorrente.

Como bem se afirma no despacho de 08-06-2021, proferido no Juízo Local Criminal de Gondomar, Juiz 2, nos presentes autos, «tendo presente a redação do artº 148º do Código da Estrada, resulta claro que a ANSR aplicou escrupulosamente o que da mesma dimana: o arguido dispunha de 12 pontos na sua carta de condução; foi condenado por duas vezes numa pena acessória; perdeu, por cada uma delas, 6 pontos; a perda total de pontos implica a cassação da carta de condução; foi organizado processo autónomo para esse fim; o arguido foi notificado da cassação da sua carta de condução.

Ora, a norma acima referida não exige à autoridade administrativa mais do que isto, nomeadamente que avalie se à cassação corresponde uma dupla penalização do arguido, que pondere a sua culpa ou os efeitos dessa decisão, nomeadamente, para a conservação do seu emprego.»

Por outro lado ainda, as questões de direito associadas à cassação da carta de condução, definitivamente apreciadas no processo, não permitem a revisão de sentença com fundamento na alínea invocada nestes autos, sendo certo que, nessa perspectiva, só a declaração, pelo Tribunal Constitucional, da inconstitucionalidade com força obrigatória geral de norma de conteúdo menos favorável ao arguido que tenha servido de fundamento à condenação, o que não aconteceu, poderia, nos termos da al. f) do n.º 1 do art. 449.º do CPPenal autorizar a pretendida revisão.

Finalmente, mesmo que os “factos” invocados pudessem ter o relevo pretendido, o que manifestamente não ocorre, impunha-se que o recorrente demonstrasse a sua existência.

Ora, não tendo o recorrente identificado e apresentado qualquer novo meio de prova que pudesse conduzir a uma tal solução, e muito menos justificado a sua não produção em momento anterior (aliás, a impugnação judicial da decisão da ANSR versou apenas matéria de direito, concretamente questão de inconstitucionalidade), falece por completo a pretensão apresentada por via deste segmento de recurso.

Na verdade, conforme se estabelece no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-12-2021[3], e para além de todas as deficiências de natureza formal a que já se aludiu, «[p]ara se autorizar a “desconstituição” de uma decisão firme, não basta a existência de novos elementos de prova. Exige-se que tenham tal densidade que, confrontadas com as provas que sustentaram a condenação, se lhe sobrepõem tão manifestamente, que num juízo de prognose sobre a valoração, de umas e das outras, em novo julgamento, se possa perspetivar, fundamentadamente, como praticamente certa a absolvição do condenado».

Sobre os contornos da al. d) do n.º 1 do art. 449.º do CPPenal vejam-se, entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17-12-2009, relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 330/04.2JAPTM-B.S1 – 5.ª Secção (a que já se aludiu), de 06-11-2019, relatado por Maia Costa no âmbito do Proc. n.º 739/09.5TBTVR-C.S1 – 3.ª Secção, de 02-12-2021, relatado por Paulo Ferreira da Cunha no âmbito do Proc. n.º 2592/08.7PAPTM-A.S1 – 3.ª Secção, e de 20-12-2022, relatado por Lopes da Mota no âmbito do Proc. n.º 5/05.5PBOLH-D.S1 - 3.ª Secção, todos acessíveis in www.dgsi.pt.

Impõe-se, em face do que fica enunciado, concluir que no presente recurso de revisão não foram aduzidos nem novos factos, nem novos meios de prova que preenchessem as exigências legais da revisão de sentença, e muito menos que suscitassem graves dúvidas sobre a justiça da condenação, mostrando-se, por isso, o pedido manifestamente infundado.


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III. Decisão:

Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar a revisão solicitada, considerando-se o pedido manifestamente infundado.

Custas pelo recorrente, fixando-se em 1 UC a taxa de justiça devida pelo recurso de revisão (arts. 513.º, n.ºs. 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa), a que acresce a quantia 8 UC ao abrigo do disposto no art. 456.º do CPPenal.


Porto, 20 de Março de 2024
(Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Maria Joana Grácio
Pedro Vaz Pato
Luís Coimbra
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[1] Relatado por Souto de Moura no âmbito do Proc. n.º 330/04.2JAPTM-B.S1 – 5.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.
[2] No mesmo sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-05-2022, relatado por Eduardo Loureiro no âmbito do Proc. n.º 95/18.7GDMTJ-B.S1- 5.ª Secção, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
[3] Relatado por Nuno Gonçalves no âmbito do Proc. n.º 2140/16.5T8VIS-D.S1 – 3.ª Secção, acessível in www.dgsi.pt.