IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
RECURSO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ATO INÚTIL
Sumário

I - Quando se pretende a reapreciação da matéria de facto, tem de se dar cumprimento ao ónus imposto no art.º 640º do CPC de modo minimamente satisfatório.
II - Não cumpre tal ónus, um Recorrente que de forma genérica apenas demonstra insatisfação com o decidido, não referindo os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, nem a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
III - A alteração/modificação/ampliação da matéria de facto terá de comportar algum sentido útil para a sorte da ação, sob pena de se estar a incorrer na prática de atos inúteis, considerados ilícitos pelo art.º 130º do CPC.

Texto Integral

Apelação nº 44654/22.7YIPRT.P1

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I – Resenha do processo
1. Banco 1...-Sucursal em Portugal instaurou procedimento de injunção contra AA pretendendo o pagamento de € 5 473,72 (soma de capital, juros de mora, taxa de justiça), referente a mensalidades não pagas num contrato de crédito coligado para financiamento de aquisição de bens ou serviços.
Frustrada a notificação da injunção, foram os autos enviados para distribuição.
Frustrada também a citação do Requerido no processo judicial, foi determinada a sua citação edital.
Efetuada esta, foi citado o Ministério Público (Mº Pº), nos termos do art.º 21º nº 1 do CPC.
O Mº Pº não contestou.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o Requerido do pedido.

2. Para assim decidir, teve-se em conta a seguinte factualidade:

Factos provados
1) Entre a Autora e o Réu foi celebrado um contrato de crédito pessoal, cuja proposta foi assinada no dia 14 de Janeiro de 2021;
2) Através do contrato referido em 1), a Autora comprometeu-se a entregar ao Réu a quantia de € 5.000,00 e o Réu a pagar tal quantia em 48 prestações;
Factos não provados
a) Que o contrato referido em 1) revestia a forma de um contrato de crédito coligado para financiamento de aquisição de bens ou serviços;
b) A Autora entregou ao Réu o montante de € 5.000,00, correspondente ao crédito pessoal entre os mesmos celebrado.

3. Inconformada com tal decisão, dela apelou a Requerente, formulando as seguintes conclusões [1]:
I- O ora Apelante foi notificado do teor da sentença proferida nos presentes autos, todavia não se pode conformar com a mesma.
II- A sentença proferida pelo Tribunal a quo considerou a ação improcedente por não provada e, consequentemente, absolveu o Réu AA do pedido.
III- Todavia, conforme abaixo se explanará, e salvo o devido respeito, a presente ação deveria ter sido considerada procedente no seu todo.
IV- Conforme consta dos autos, a aqui Apelante, a 02 de maio de 2022, deu entrada de requerimento inicial de injunção.
V- O Réu foi citado editalmente.
VI- O A. veio juntar aos autos: Contrato de Crédito sub judice, 2ªs vias de todos os extratos de conta corrente emitidos, Cartas de integração e de extinção PERSI, Cartas de interpelação e Carta de resolução contratual.
VII- Por sua vez, foi realizada audiência de julgamento, no âmbito da qual foi inquirida a Testemunha BB.
VIII- Atenta douta sentença proferida, foram dados como provados os seguintes factos:
“1) Entre a Autora e o Réu foi celebrado um contrato de crédito pessoal, cuja proposta foi assinada no dia 14 de janeiro de 2021;
2) Através do contrato referido em 1), a Autora comprometeu-se a entregar ao Réu a quantia de €5.000,00 e o Réu a pagar tal quantia em 48 prestações;”.
IX- Atenta douta sentença proferida, foram dados como não provados os seguintes factos:
b) A Autora entregou ao Réu o montante de €5.000,00, correspondente ao crédito pessoal entre os mesmos celebrado”.
X- Sendo que, da fundamentação do Tribunal a quo resulta que:
“No que contende com a factualidade dada como provada em 1) e 2), o Tribunal atendeu ao contrato de crédito pessoal junto pela Autora aos autos.
Quanto aos factos que o Tribunal deu como não provados, refira-se que os mesmos resultaram da inexistência de prova bastante que permitisse aferir da sua verificação”.
XI- Da fundamentação do Tribunal a quo resulta ainda que:
“…No que respeita à entrega da quantia mutuada, embora tenha sido junta prova documental referente ao contrato de mútuo celebrado com o Réu e considerando ainda que a Autora alegou que entregou a quantia de €5.000,00 ao Réu, certo é que, por força do disposto no artigo 574.º, n.º4, do Código de Processo Civil, tal alegação encontra-se impugnada, não tendo a Autora carreado para os autos qualquer outro elemento probatório que permitisse aferir da entrega da quantia de €5.000,00 ao Réu.
Saliente-se, por fim, que a prova testemunhal apresentada pela Autora não se revelou dotada de razão de ciência, uma vez que a Testemunha BB, funcionário da Autora, pautou o seu depoimento pela consulta da documentação que dispunha, não teve qualquer contacto com o Réu ou com o crédito em questão, limitando-se a reproduzir o que constava da documentação já junta aos autos”.
XII- Concluindo o Tribunal a quo que:
“…a Autora não cumpriu com o ónus que sobre si impendia, uma vez que, sendo o contrato de mútuo um contrato real quoad constitutionem que se consuma com a entrega do dinheiro, necessário se tornava que a Autora fizesse prova que entregou a coisa (dinheiro) ao mutuário, o que não aconteceu.
Assim, pelos motivos expostos em sede de motivação de facto, os factos constitutivos do direito da Autora resultaram não provados, motivo pelo qual a presente acção terá necessariamente de improceder in totum…
…o Tribunal julga a presente acção totalmente improcedente, por não provada e, consequentemente, absolve o Réu AA de todos os pedidos formulados pela Autora”.
Ora,
XIII- A testemunha, no seu depoimento, corroborou na íntegra a prova documental junta aos autos, clarificando os factos referentes à celebração do contrato, ao produto financeiro em causa, ao financiamento realizado, aos pagamentos efetuados, ao incumprimento do contrato, às diligências asseguradas pelo A. após incumprimento, à resolução do contrato e aos valores em divida.
XIV- Sendo certo que, atendendo aos documentos juntos aos autos pelo A. (Contrato de Crédito sub judice; 2ªs vias de extratos emitidos na vigência do contrato; Cartas PERSI; Cartas Interpelação e Resolução) e da sua conjugação com o depoimento da testemunha, consideramos que os factos alegados pelo A. se consideram provados na integra.
XV- Pelo que, os factos alegados pelo Apelante se consideram totalmente provados.
Com efeito,
XVI- Os factos alegados pelo Apelante no seu Requerimento Inicial carecem de prova documental.
XVII- Sendo certo que, neste caso, toda a prova documental foi produzida. E corroborada pela testemunha!
XVIII- Assim, o Apelante considera que a prova junta e produzida nos autos é bastante para prova do alegado. Recaindo, assim, um erro na apreciação da prova produzida.
Porquanto,
XIX- A celebração do contrato de crédito sub judice considera-se provado com a junção aos autos do contrato de crédito e com o depoimento prestado pela testemunha.
Ou seja, em 14/01/2021, o Sr. AA (ora Réu) procedeu à subscrição do contrato “...”, ao qual foi atribuído o n.º ..., mediante o preenchimento e assinatura da proposta de adesão junta aos autos.
E, em virtude desse facto, o titular (ora Réu) aceitou sem reservas todas as Condições Gerais contidas na proposta de adesão, tendo ainda ficado com uma cópia integral do documento.
XX- Para pagamento do débito efetuado em sede do presente contrato de crédito, foi preenchido e assinado o respetivo Mandato SEPA, facto que se considera provado com a Autorização de Débito Direto SEPA anexa ao contrato e junta aos autos.
XXI- O montante autorizado de 5.000,00 € foi transferido para a conta bancária associada ao contrato em 20/01/2021 e comunicado ao titular (ora Réu), facto que se considera provado com a junção aos autos do contrato, da 2ª via de extrato emitido em 20/01/2021 e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXII- O montante concedido deveria ser reembolsado em 48 prestações, sendo a primeira no valor de 248,23€ e as restantes no valor de 126,79€, cfr. condições particulares do contrato, facto que se considera provado com a junção aos autos do contrato, das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXIII- Os pagamentos eram feitos ao dia 5 de cada mês através de débito bancário, facto que se considera provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXIV- Durante a vigência do contrato de crédito sub judice foi efetuado o pagamento de 3 prestações, facto que se considera provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXV- Os juros remuneratórios incidem sobre o montante de crédito concedido e em função do saldo de capital em dívida, à taxa de 9,19% (TAN) e 11,90% (TAEG), facto que se considera provado com a junção aos autos do contrato, das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXVI- Em caso de falta de pagamento atempado de qualquer quantia devida pelo titular ao A., incide sobre as quantias em mora a taxa de juro remuneratória prevista no contrato uma sobretaxa anual de 3%, facto que se considera provado com a junção aos autos do contrato, das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXVII- Os extratos de conta corrente foram emitidos e disponibilizados ao titular do contrato (ora Réu) em data posterior ao fecho de extrato de conta corrente (dia 20 de cada mês), facto que se considera provado com a junção aos autos do contrato, das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXVIII- O último pagamento efetuado pelo Réu ocorreu em 05/04/2021, facto que se considera provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXIX- O titular do contrato (ora Réu) foi interpelado para regularização da divida, dentro do prazo legal estabelecido, para obviar à resolução do contrato de crédito celebrado – facto que se considera provado com a junção aos autos da Carta de Interpelação (artigo 20º do Decreto-lei 133/2009 de 02 de junho) e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXX- A resolução contratual, por incumprimento definitivo, foi comunicada por carta datada de 09/03/2022 ao titular do contrato (ora Réu), facto que se considera provado com a junção aos autos da Carta de Resolução e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXXI- Em 01/12/2021 foi considerado resolvido o contrato, pelo valor total da dívida, facto que se considera provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos, com a junção aos autos da Carta de Resolução e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXXII- O valor em divida peticionado – valor de capital utilizado e não pago, valor de juros remuneratórios vencidos até resolução do contrato, valor de impostos e encargos, valor de juros de mora - considera-se provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXXIII- Não se compreendo o motivo pelo qual o douto Tribunal a quo considerou a ação totalmente improcedente, absolvendo o Réu do pedido.
XXXIV- Salvo o devido respeito por opinião diversa, todos os factos alegados resultam provados!
XXXV- Pelo que, deveria ter sido proferida sentença considerando a ação integralmente procedente e, consequentemente, condenando o Réu AA no pedido.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, anulando-se a sentença proferida e, em consequência, a ação ser considerada totalmente procedente, condenando-se o Réu no pedido.
Decidindo em conformidade, farão Vossas Excelências Justiça!»

4. Não houve contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, são as seguintes as questões a decidir:
● Reapreciação da matéria de facto;
● Em função dessa reapreciação, se é de alterar a sorte da ação.

5.1. Reapreciação da matéria de facto
Considera a Apelante que existiu erro na apreciação da prova produzida, convocando à respetiva reapreciação os documentos por si juntos, bem como o depoimento da testemunha BB.
Como se sabe, a sindicância da matéria de facto pelos Tribunais da Relação está absolutamente dependente do cumprimento pelo Recorrente do ónus de alegação que se lhe impõe no art.º 640º do CPC, do seguinte teor:
“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
Perante esse normativo, vários obstáculos se levantam à possibilidade de reapreciação pretendida.
Em 1º lugar, a Apelante nunca identifica claramente quais os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados.
No articulado de recurso, tanto se refere aos “factos não provados”, como aos “factos alegados no requerimento inicial”, sendo que entre uns e outros não existe total correspondência.
Na verdade, no campo do formulário de injunção para a “Exposição dos factos que fundamentam a pretensão”, escreveu-se apenas o seguinte:
«CRÉDITO CLÁSSICO - Incumprimento: Não pagamento das mensalidades devidas por contrato de crédito coligado para financiamento de aquisição de bens ou serviços identificado nas condições particulares. O crédito foi entregue ao fornecedor, confessando-se o Requerendo devedor à Requerente da quantia mutuada. O Requerendo assinou a proposta em 2021-01-20 e obrigou-se a pagar o crédito de 5000 em 48 prestações, através de débito na conta bancária indicada por si em A.D.C. O Requerendo deixou de pagar em 2021-05-08 as mensalidades a que estava vinculado. Acresce ainda tx de indemnização de 3%/ano desde incumprimento. Os 0,54 euros são da emissão da carta de adv. Contrato n....»
Os factos propriamente ditos não constam do requerimento de injunção. Vêm suscitados pela 1ª vez nas conclusões XIX a XXXI deste recurso:
XIX- em 14/01/2021, o Sr. AA (ora Réu) procedeu à subscrição do contrato “...”, ao qual foi atribuído o n.º ..., mediante o preenchimento e assinatura da proposta de adesão junta aos autos.
E, em virtude desse facto, o titular (ora Réu) aceitou sem reservas todas as Condições Gerais contidas na proposta de adesão, tendo ainda ficado com uma cópia integral do documento.
XX- Para pagamento do débito efetuado em sede do presente contrato de crédito, foi preenchido e assinado o respetivo Mandato SEPA (…)
XXI- O montante autorizado de 5.000,00 € foi transferido para a conta bancária associada ao contrato em 20/01/2021 e comunicado ao titular (…)
XXII- O montante concedido deveria ser reembolsado em 48 prestações, sendo a primeira no valor de 248,23€ e as restantes no valor de 126,79 € (…)
XXIII- Os pagamentos eram feitos ao dia 5 de cada mês através de débito bancário, facto que se considera provado com a junção aos autos das 2ªs vias de extratos emitidos e com o depoimento prestado pela testemunha.
XXIV- Durante a vigência do contrato de crédito sub judice foi efetuado o pagamento de 3 prestações (…)
XXV- Os juros remuneratórios incidem sobre o montante de crédito concedido e em função do saldo de capital em dívida, à taxa de 9,19% (TAN) e 11,90% (TAEG), (…)
XXVI- Em caso de falta de pagamento atempado de qualquer quantia devida pelo titular ao A., incide sobre as quantias em mora a taxa de juro remuneratória prevista no contrato uma sobretaxa anual de 3% (…)
XXVII- Os extratos de conta corrente foram emitidos e disponibilizados ao titular do contrato (ora Réu) em data posterior ao fecho de extrato de conta corrente (dia 20 de cada mês)
XXVIII- O último pagamento efetuado pelo Réu ocorreu em 05/04/2021 (…)
XXIX- O titular do contrato foi interpelado para regularização da divida, dentro do prazo legal estabelecido, para obviar à resolução do contrato de crédito celebrado (…)
XXX- A resolução contratual, por incumprimento definitivo, foi comunicada por carta datada de 09/03/2022 ao titular do contrato (…)
XXXI- Em 01/12/2021 foi considerado resolvido o contrato, pelo valor total da dívida (…)
Tais factos não constam do requerimento de injunção. O que deste requerimento consta é um arrazoado conclusivo de uma dívida, a merecer deste logo a improcedência, ou um convite ao aperfeiçoamento. [2] Perante articulados deficientes, designadamente no tocante a “insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada” (art.º 590º nº 4 CPC) que sejam sanáveis, a lei comete ao juiz que ordene o respetivo aperfeiçoamento, por forma a que a ação possa vir a alcançar o seu objetivo, que é o conhecimento do mérito.
Esse convite não foi efetuado, e a Apelante também não reagiu a essa omissão.
Ao contrário, só nesta sede de recurso percebeu a importância da boa discriminação dos factos.
Todas as alegações agora constantes das conclusões acabadas de transcrever, naturalmente que não podem agora ser aqui consideradas, por traduzirem factualidade nova, que não foi sujeita ao escrutínio da 1ª instância, o que importaria violação do duplo grau de jurisdição. [3]

Em 2º lugar, na perspetiva de que se possa pretender que os 2 factos não provados passem a factos provados.
A alteração/modificação/ampliação da matéria de facto terá de comportar algum sentido útil para a sorte da ação, sob pena de se estar a incorrer na prática de atos inúteis, considerados ilícitos pelo art.º 130º do CPC.
Assim, quando confrontado com a reapreciação duma matéria de facto sem nenhuma relevância para o mérito da causa, deve o Tribunal da Relação «abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados». [4]
Relembrando, os factos considerados não provados na sentença são os seguintes:
a) Que o contrato referido em 1) revestia a forma de um contrato de crédito coligado para financiamento de aquisição de bens ou serviços;
b) A Autora entregou ao Réu o montante de €5.000,00, correspondente ao crédito pessoal entre os mesmos celebrado;
Ainda que os pudéssemos vir a considerar provados, eles seriam insuficientes para a procedência da ação.
O facto não provado em a) é absolutamente inútil pois é irrelevante saber se o contrato de mútuo estava ou não coligado para financiamento de aquisição de bens ou serviços. A causa de pedir residia num crédito concedido pela Apelante e que, segundo ela, o Requerido não cumpriu. O que relevava era essa falta de cumprimento, independentemente de uma associação a outra forma de financiamento.
Quanto ao facto não provado em b), já seria de toda a relevância. Na verdade, o contrato de mútuo/crédito é de natureza real, no sentido que só se tem por cumprido quando o dinheiro é efetivamente transferido para a esfera jurídica do mutuário.
Nessa medida, o facto era essencial.
Porém, sempre ficariam a faltar outros factos essenciais, como sejam: (i) quando deixou o Requerido de cumprir; (ii) quanto ficou em dívida; (iii) quais os juros e penalizações contratadas para o incumprimento; (iv) se foi efetuada a resolução do contrato pela Apelante, e quando.
No essencial, o Tribunal só pode condenar alguém ao pagamento, depois de provado que havia a obrigação de pagar, obrigação esta que não foi cumprida.
Ora, mesmo que se dessem agora por provados os factos considerados “não provados” na sentença, sempre ficaria a faltar esse facto essencialíssimo – que o Requerido não pagou.
E, como já atrás se referiu, estes factos não constavam do requerimento de injunção e só no articulado de recurso é que a Apelante veio a elencá-los, referindo os documentos apresentados.
Só que, os documentos constituem meios de prova, e não factos, pelo que os documentos não suprem a falta de alegação factual.
Concluindo, não se mostrando reunidos os pressupostos de índole formal exigidos pelo art.º 640º nº 1 al. a), b) e c) e pelo nº 2 al. a) do CPC, sempre seria de rejeitar parcialmente o recurso na parte respeitante à impugnação da matéria de facto.
Para além disso, a considerar que a impugnação se reposta aos 2 factos tidos por não provados, também é de rejeitar a reapreciação, desta feita por inutilidade dado que, mesmo que vingasse a pretensão da Apelante, não seriam suficientes para a procedência da ação. Sempre faltaria a prova do incumprimento do acordado pelo Requerido.

5.2. Do direito
Como decorre do indeferimento da reapreciação da matéria de facto, a ação terá de improceder.
Numa ação cuja causa de pedir é o incumprimento da obrigação de pagar as mensalidades contratadas ao abrigo de um mútuo/crédito concedido, é absolutamente necessário demonstrar-se esse incumprimento.
No caso, apenas temos provada a concessão do crédito de € 5.000,00 e a obrigação de lhe pagar tal quantia em 48 prestações.
Não se tendo demonstrado quando deixou o Requerido de cumprir, quanto ficou em dívida, nem que a resolução do contrato foi validamente efetuada, a ação sempre teria de improceder.

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
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III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.

Porto, 21 de março de 2024
Isabel Silva
Francisca Mota Vieira
Ana Vieira
__________________
[1] Não podemos deixar de assinalar que, em boa verdade, não estamos perante conclusões. Na verdade, constituem a reprodução integral dos pontos da motivação, tendo-se alterado apenas a numeração decimal pela numeração romana. Enfim…
[2] Acórdão do STJ, de 11/03/2021, processo 1205/18.3T8PVZ.P2.S1, disponível em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem: «I - A enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa da factualidade provada ou não provada, devendo ser expurgada de locuções genéricas ou conclusivas ou de valorações jurídicas.
II - Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam e a prevenir obscuridade, contradição ou incompletude.».
[3] Acórdão do STJ de 04.04.2002, processo 02B749: «Antes de mais, constata-se que esta questão não foi suscitada pelos aqui recorrentes, nem nos articulados da acção, nem mesmo no recurso de apelação interposto da sentença da 1ª instância: trata-se, assim, de questão inteiramente nova.
Ora, o direito português, em matéria de recursos, "segue o modelo do recurso de revisão ou reponderação. Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já pedido e decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este".
"Constitui, assim, jurisprudência assente e indiscutida o entendimento de que não é lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre".
[4] António Abrantes Geraldes, “Recurso em Processo Civil, Novo Regime”, reimpressão, Almedina, 2008, pág. 285.
No mesmo sentido, acórdãos do STJ de 02/06/2020, processo 3278/16.4T8GMR.G1.S1 e do TRC de 08/09/2015, processo 10562/12.4TCLRS.C1.