PROVA DOCUMENTAL
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
NULIDADE DA DECISÃO
CONTRADIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO
GRAVAÇÃO
FORMA ESCRITA
CONTRATO MISTO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
INCUMPRIMENTO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
SINAL
RESTITUIÇÃO DO SINAL EM DOBRO
Sumário

(artigo 663.º, n.º 7, do CPCivil):
I. Após o encerramento da discussão da causa em 1.ª instância, com a prolação de alegações orais, conforme artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPCivil, a admissibilidade da junção de documento depende da sua pertinência à decisão da causa e da impossibilidade da sua junção em momento anterior, por o documento em causa ser objetiva ou subjetivamente superveniente relativamente ao encerramento da causa, sendo que em sede de recurso é ainda admissível a junção de documento quando tal se mostre necessário em virtude da decisão recorrida.
II. A contradição nos termos da decisão em si mesma, entre as respetivas premissas e as suas conclusões, determina a nulidade daquela.
III. Sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.
IV. Quanto a negócio sujeito por lei a forma escrita, a sua compreensão deve ter uma mínima de correspondência na letra do respetivo texto, salvo relativamente a matéria quanto à qual não se exija a forma prescrita na lei, devendo naquele condicionalismo considerar-se a intenção do declarante e a posição do declaratário, bem como as circunstâncias envolventes do negócio, segundo padrões de Justiça.
V. Um contrato misto é aquele que reúne em si regras de dois contratos total ou parcialmente típicos.
VI. A resolução contratual determina, em regra, a restituição do que haja sido entregue com a celebração do contrato resolvido.
VII. Em caso de resolução do contrato em razão de incumprimento contratual por parte de quem deu um sinal, o contraente incumpridor deve restituir o sinal em dobro ao outro contraente, cumpridor, sendo que no contrato promessa de compra e venda a lei presume terem a natureza de sinal todas as quantias entregues pelo promitente comprador ao promitente vendedor.

Texto Integral

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I.
RELATÓRIO.
A A., AG …, SA, intentou ação comum de declaração contra os RR., MO, JO e TO, pedindo que: (i) seja considerada ilegal e ineficaz a resolução contratual unilateralmente efetuada pelos RR., (ii) seja declarado que os RR. incumpriram definitivamente o contrato promessa de compra e venda, (iii) os RR. sejam condenados a pagar à A. a quantia global de €197.725,94, acrescida de juros vincendos, sob a quantia em dívida, a partir de 01.09.2020 e até integral pagamento, calculados à taxa de 4% ao ano.
Como fundamento do seu pedido, a A. alegou, em suma, que em 19.03.2019 celebrou como os RR. um contrato promessa de compra e venda relativo a dois prédios rústicos, pelo preço de €400.000,00, tendo as partes assumido em tal contrato as posições de promitente comprador e promitente vendedor, respetivamente.
Referiu também que na data da assinatura do contrato promessa a A. pagou a título de sinal e princípio de pagamento do preço a quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), sendo que até 21.01.2020 a A. entregou ao R. JO a quantia total de €18.000,00 a título de reforço de sinal e continuação do pagamento do preço.
A A. alegou igualmente que do referido contrato promessa constava uma cláusula de cessão de posição contratual do promitente comprador a uma futura sociedade a constituir entre A. e RR.
Mencionou ainda que em 21.01.2020 a A. foi surpreendida por uma carta dos RR. na qual estes comunicavam a resolução contratual do referido contrato promessa, sendo que a descrita postura dos RR. colocou-os numa situação de incumprimento definitivo do contrato promessa em causa, conforme carta que endereçou aos RR. em 29.09.2020, os quais constituíram-se em mora em 13.10 seguinte.
Os RR. apresentaram contestação.
Arguiram a ineptidão da petição inicial, por incompatibilidade substancial dos pedidos, bem como entenderam que a restituição do sinal em dobro, enquanto cláusula penal, é excessivamente onerosa, devendo ser reduzida.
Alegaram também estar em causa uma realidade que se assemelha a um consórcio ou parceria entre os outorgantes, sendo que após o contrato em causa, em função de inércia da A. e da consequente quebra de confiança nesta, os RR. resolveram o contrato.
Nestes termos, os RR. concluíram pedindo que as exceções invocadas sejam julgadas procedentes por provadas e, em consequência, o contrato em causa seja dado por resolvido, determinando que as quantias despendidas pela A. sejam restituídas em singelo, acrescido do valor de despesas e encargos comprovadamente pagos pela A.
A A. respondeu à matéria de exceção suscitada pelos RR., pedindo a sua improcedência.
As partes juntaram diversos documentos e arrolaram prova pessoal.
Foi dispensada a audiência prévia, proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a ineptidão da petição inicial e se relegou para final a apreciação de todas as outras questões suscitadas pelas partes, identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
Após as alegações orais, conforme artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPCivil, ainda no mesmo dia daquelas alegações a A. juntou aos autos dois documentos: (i) um documento do INR relativa à Emerging Ocean, Unipessoal, Lda., e (ii) um documento, igualmente do IRN, relativa à Incognitocean, Lda.
O Juízo Central Cível de Almada proferiu sentença cujo dispositivo tem o seguinte teor:
«(…) o Tribunal decide julgar a ação parcialmente procedente e, em conformidade, decide:
1. Declarar a resolução do contrato firmado entre a AG ..., S.A., e os RR. MO, JO e TO, em razão do incumprimento definitivo daquela promessa pelos RR.;
2. Condenar os RR. a pagar à A. €90.000,00, bem como juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal».
Inconformados com tal decisão, dela recorreram os RR. e a A.
Os RR. apresentaram as seguintes conclusões:
«1. Um contrato de cessão de créditos não extingue o crédito cedido; transmite-o.
2. A resolução de um contrato tem – em regra – efeitos retroativos, caso em que dá lugar à obrigação de restituir as prestações recebidas.
3. Apenas pode existir obrigação de restituição quando se recebeu algo, ou quando – de qualquer modo – tenha ocorrido um incremento patrimonial no sujeito obrigado à restituição.
4. Ficando provado que as partes acordaram que a A. adquiriria um crédito de terceiro sobre um dos RR. no valor de €80.000, que seria posteriormente usado pela A. em pagamento (parcial) da futura aquisição do imóvel aos RR., este uso do crédito consistiria numa compensação (parcial) do crédito de €80.000 (nos termos dos arts. 847º e segs. do CC) com a obrigação de pagamento do preço do imóvel, que determinaria a extinção do crédito de €80.000.
5. Não tendo sido transmitido o imóvel, não ocorreu a compensação de créditos, pelo que não se extinguiu – com essa causa – o crédito cedido de €80.000 sobre a R. MO à A..
6. Não se tendo extinguido o crédito de €80.000, nenhum dos RR. obteve um incremento patrimonial.
7. Pelo que não há lugar à restituição do que não foi recebido.
8. Só é possível condenar na restituição do que foi efetivamente recebido.
9. E apenas é possível condenar na restituição quem tiver recebido algo, e não outros sujeitos.
10. Ao condenar na restituição do que não foi recebido, o Tribunal errou na aplicação do art. 434º do CC (resolução), 577º a 588º do CC (cessão de créditos) e o regime da extinção das obrigações, em especial o art. 847º do CC (compensação).
11. Não havendo lugar à restituição dos €80.000, não ocorreu mora, pelo que não há lugar à condenação no pagamento de juros de mora (art. 804º e 806º do CC).
12. Mantendo-se – eventualmente – em vigor o crédito cedido à A., sobre uma das R. e podendo esta recorrer a juízo para obter o seu pagamento.
13. A causa de pedir é constituída pelos factos principais constitutivos da situação jurídica que o demandante pretende fazer valer como justificativa da pretensão deduzida.
14. A A. não veio aos autos pedir a condenação dos RR. no pagamento do crédito que adquiriu a BM.
15. Pelo que os RR. não se defenderam no que respeita a esse crédito.
16. Tendo a A. conformado a causa de pedir de modo que esta se funda no contrato celebrado em 19 de março de 2019, o eventual crédito cedido por BM à A. constitui uma diferente causa de pedir.
17. Não pode o Tribunal condenar no pagamento do eventual crédito cedido, porquanto este constitui uma diferente causa de pedir (art. 609º, nº1 do CPC).
18. Causa de pedir esta que não foi discutida nem decidida nos autos, nada se sabendo da mesma salvo que o valor devido será de €80.000.
19. Como tal, devem ser os RR. absolvidos do pedido no que respeita aos €80.000 (considerando que já foram absolvidos de restituir esta quantia em dobro na douta sentença).
20. Ocorre contradição entre os fundamentos e a decisão, quando nos fundamentos se reconhece como provado que foram já restituídos €8.000 e na decisão são apenas considerados €7.000 para redução ao capital entregue.
21. Ocorrendo contradição (parcial) entre os fundamentos e a decisão, deve ser revogada a douta sentença, por nulidade (art. 615º, nº1 al. c) do CPC) sendo substituída por outra que, considerando que foram já restituídos €8.000, reduza este valor aos €17.000 efetivamente entregues, sendo declarado que o saldo ainda não restituído é de €9.000.
22. Tendo-se acordado que a A. devia entregar ao R. JO €1.000 por mês, o que fez, é sobre o mesmo R. JO que incide o dever de restituir a quantia com fundamento no efeito retroativo da resolução do contrato.
23. Não se tendo acordado que o crédito de €1.000 por mês era um crédito com natureza solidária ativa de todos os RR., apenas o R. credor (e que recebeu a quantia) é responsável pela obrigação da sua restituição decorrente do regime da resolução do contrato.
24. Assim, deve ser apenas condenado o R. JO, no pagamento do saldo de €9.000 (acrescido de juros de mora à taxa civil), e sendo este R. e as demais RR. absolvidas do restante peticionado.
Nestes termos, e nos mais de Direito, deve ser julgado procedente o presente recurso, sendo revogada a douta sentença ora em crise, na parte que condena os RR. no pagamento da quantia de €80.000, acrescida de juros de mora, absolvendo os RR. nesta parte, tudo com as legais consequências.
Mais, deve ser revogada a sentença na parte em que condena os RR. na restituição dos €10.000, acrescida de juros de mora, sendo absolvidas as RR. MO e TO, e sendo proferido douto Acórdão que condene o R. JO no pagamento de €9.000 acrescidos de juros de mora à taxa civil, tudo com as legais consequências».
Por sua vez, a A. apresentou no seu recurso as seguintes conclusões:
«A - A sentença recorrida faz uma errada interpretação do “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA” ao reconduzir-se o contrato promessa de compra e venda de imóveis a um CPCV de constituição de sociedade, o que manifestamente o contrato não contempla.
Afirmar, como se afirma (na penúltima página) que “… é o elemento dominante do negócio, a futura constituição de uma sociedade (…)” revela claramente que não se entendeu estarmos em presença daquilo que foi querido e expresso pelas Partes, isto é, de um “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA” para “pessoa” a nomear – a futura sociedade, com quem viria a ser celebrada a escritura de compra e venda.
B - O contrato promessa de compra e venda contém todas as clausulas essenciais de um típico contrato-promessa de compra e venda de imóveis, a saber:
i. Desde logo identifica as Partes;
ii. Identifica os dois imóveis a vender;
iii. Contém a declaração expressa, clara e inequívoca dos Provenientes Vendedores que declaram prometer vender à Autora/Recorrente;
iv. É estipulado pelas partes o preço de €400.000,00 a pagar pelos dois prédios, livres de ónus ou encargos;
v. É estipulada a forma de pagamento do preço.
A parte do preço remanescente para além do sinal e do reforço de sinal seria pago de duas formas:
a. Para realização (em espécie) da quota dos promitentes vendedores na sociedade que viesse a adquirir o imóvel; e
b. O remanescente ainda em divida seria pago pela sociedade adquirente com as receitas das vendas das frações autónomas.
vi. É clausulado que a prometida compra e venda é para sociedade a nomear (cfr. facto 7, n.º 1).
vii. O contrato prometido seria celebrado com a sociedade a constituir após aprovação dos projetos.
viii. Ficou igualmente clausulada a condição resolutiva do contrato ”No caso, de as autoridades competentes reprovarem o anteprojeto do “Projeto” imobiliário…”
ix. Foi, da mesma forma, estipulado que verificada a condição resolutiva anterior a Autora ora recorrente passaria a ter direito de preferência em futura venda dos imóveis.
Estamos clara e inequivocamente em presença de um Contrato Promessa de Compra e Venda de Imóveis,
C- Trata-se de Contrato-Promessa de Compra e Venda de imóveis para pessoa a nomear, sujeito a condição resolutiva.
D-Adicionalmente, do documento que titula o contrato consta convencionado um direito de referência a favor da Autora/Recorrente.
E - O “Contrato Promessa de Compra e Venda” assinado por Autora e Réus não é um contrato promessa de constituição de sociedade por não comportar os elementos essenciais gerais e específicos que, nos termos do art. 9.º do Código das Sociedades Comerciais, “do contrato de qualquer tipo de sociedade devem constar” os elementos essenciais previstos nas alíneas a) a i) do n.º 1 daquele preceito para além dos elementos obrigatórios de qualquer dos tipos de contrato de sociedade.
Fora, desde logo, e admitindo que todos os promitentes vendedores seriam sócios:
• Não está previsto: “b) o tipo de sociedade”;
• Não está previsto: “c) a firma de sociedade”;
• Não está previsto: “d) o objeto da sociedade”;
• Não está previsto: “e) a sede da sociedade”;
• Não está previsto: “f) o capital social”;
• Não está previsto: “g) a quota de capital e a natureza da entrada de cada sócio”. Está apenas previsto a igualdade de participação (50%/50%) para promitentes vendedores e para Autora/Recorrente;
• Não está inteiramente mencionado a exigência de especificação de valores da alínea h);
• Não está prevista a modalidade de administração ou gerência de sociedade;
• Não está previsto a forma de vinculação da sociedade.
G - Nenhuma alegação ou prova foi produzida no sentido de se poder afirmar que qualquer das partes haja tomado qualquer iniciativa com vista à constituição da futura sociedade, o que é natural face ao grau de incerteza na aprovação dos projetos à data do incumprimento definitivo do contrato pelos RR.
H - No contrato-promessa de compra e venda limitaram-se ao essencial, e o essencial era que a prometida compra e venda era para sociedade a nomear e dela as Partes fariam parte na participação de 50%/50%.
I - Para qualificar um negócio jurídico, atribuir-lhe um “nomen juris” impõe-se fixar-lhe o seu conteúdo, definir o sentido de declaração ou declarações negociais, ou seja, impõe-se interpretá-lo.
Ora, são elementos essenciais de interpretação designadamente:
• a letra do negócio;
• o próprio título negocial;
• e na interpretação também se atende à qualificação dada pelas partes se esta qualificação estiver de acordo com o conteúdo do negócio.
J - Estando em causa um negócio formal, uma vez que foi adotada a forma escrita, deve observar-se na sua interpretação a regra especial inserta no art. 238º n.º 1 do C.C. segundo a qual “a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um princípio de correspondência no texto do respetivo documento”.
L - Ao interpretar, erradamente, o contrato promessa de compra e venda para pessoa a nomear como um contrato promessa de constituição de sociedade, a sentença violou o disposto no nº 1 do art. 238º do CC.
M - Se o nome do contrato não é decisivo, na interpretação e qualificação do contrato, também não é desprezível ao ponto de se considerar indiferente. O nome que as partes atribuem ao contrato, especialmente num contrato típico, indicia a vontade das partes. A irrelevância de dominação do contrato para a sua qualificação apenas é de considerar se tal denominação não é coerente com as suas cláusulas, isto é, com o conteúdo contratual
N - No caso dos autos a denominação dada pelas Partes, de “Contrato Promessa de Compra e Venda”, é totalmente coerente com a vontade das partes expressamente declarada nas suas clausulas.
Logo, no presente caso, a denominação reforça a interpretação da vontade das partes, no sentido da promessa de compra e venda dos imóveis.
O - Na qualificação jurídica do contrato, a sentença recorrida faz “tábua rasa” das declarações de vontade que integram, sem margem para dúvidas, uma promessa de venda de bens imóveis por um determinado preço, para se focar numa sociedade (futura) que viria a ser nomeada para adquirir os imóveis na escritura de compra e venda.
P - Os Réus começaram por fazer as declarações constantes dos FACTOS PROVADOS n.º 2, 3 e 4, nos quais se declaram proprietários dos prédios que identificam e localizam e de seguida, (conforme facto provado 5º), os “… R.R. declaram prometer vender à Autora (Terceira Contraente) os identificados prédios, livres de ónus ou encargos, pelo preço de €400.000,00 .”
Q - Na cláusula quarta do contrato (Factos Provados n.º7) a Autora e Réus clausularam que a adquirente a designar para a aquisição dos prédios prometidos vender seria uma sociedade a constituir, verificada a condição prevista – aprovação do “Projeto” e a propriedade dos imóveis seria adquirida pela sociedade futura.
R - Quanto ao pagamento do preço também a vontade das Partes (Autora e Réus) ficou suficientemente clara, porquanto os €400.000,00 eram pagos aos vendedores do modo convencionado.
S - Ou seja, o preço estipulado de €400.000,00 era, assim, integralmente pago aos Réus vendedores, enquanto a propriedade seria transferida para a sociedade futura a nomear.
T - Na sentença recorrida optou-se, erradamente, pela qualificação de contrato misto com a consideração de Promessa de Constituição de Sociedade como tipo contratual dominante, em completo desalinho com a vontade expressa pelas partes contratantes.
U - A constituição de uma sociedade futura, é pressuposto no Contrato-Promessa de Compra e Venda porque será a entidade adquirente, no contrato definitivo, dos imóveis prometidos vender, mas a promessa de constituição dessa sociedade, com os elementos essenciais que a caracterizariam, conforme art. 9.º do Código das Sociedades Comerciais, para além dos especiais correspondentes ao tipo de sociedade, não se encontra neste contrato em apreciação dos autos.
V - Não existe declaração da Autora nem dos Réus a prometer constituir uma sociedade anónima ou por quotas, com um capital determinado, com um objetivo específico, uma dada sede social, uma dada denominação, na dada forma de administração e fiscalização, etc. etc. Nada! Absolutamente nada!
X - O julgador não pode ignorar a vontade declarada expressamente pelas partes, designadamente quando “… os R.R. declararam prometer vender à Autora (Terceira Contraente) os identificados prédios, livres de ónus ou encargos, pelo preço de € 400.000,00 (cfr. Facto Provado n.º5), para ficcionar, sem sustentação de facto e de direito uma promessa de constituição de uma sociedade.
Z - Ao efetuar tal qualificação, a sentença violou frontalmente o princípio da liberdade contratual e autonomia da vontade, previsto no art. 405º do Código Civil tal como as normas sobre interpretação dos contratos designadamente do art. 238º, nº 1 do C.C.”
AA - Sob a alínea b) dos “FACTOS NÃO PROVADOS” a sentença menciona como não provado o facto de que “Pouco tempo após a celebração do contrato, os R.R. terão começado a negociar com terceiros os mesmos prédios (41º da p.i.). ”apontando na respetiva motivação a testemunha Arquiteta CG como o elemento-chave para o apuramento desta matéria de facto, acrescentando que “No entanto, não possuímos elementos documentais, nem foram produzidos depoimentos que atestem o início dos contactos dos RR. com o atual parceiro de negócios identificado pela Arq. CG, a empresa Emerging Ocean, sendo que a testemunha se limitou a mencionar a aludida indicação que lhe foi dada no sentido de passar a tratar dos assuntos aqui em causa com esta empresa”
É a Arquiteta CG que identifica a empresa Emerging Ocean que assumiu a continuidade dos estudos e projetos que vinham a ser desenvolvidos da Autora, ora recorrente, conforme seu depoimento (Ficheiro Audio 20230131141238_2871145--Tempo:00:01:47) atrás reproduzido.
AB - Esta revelação vem a ser confirmada pela confissão do Réu JO que prestou depoimento de parte em seguida à identificada testemunha Arquiteta CG conforme seu depoimento (constante do Ficheiro Áudio 20230131143430_2871145--Tempo: 00:01:56) atrás reproduzido.
AC - Ora é a revelação do nome da empresa Emerging Ocean, declarada pela testemunha e confessada pelo Réu que conduz a Autora imediatamente após o encerramento da audiência à verificação e junção aos autos, no próprio dia, do requerimento e dos documentos que ora se juntam (de novo) como Doc. 1 e 2 que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais. Tal requerimento e documentos foram notificados ao mandatário dos Réus que sobre eles não se pronunciou
AD - Tais documentos provam que a sociedade Emerging Ocean – Lda, NIPC … foi constituída em 30/12/2019 e é seu gerente único o Réu JO. Por sua vez essa sociedade tem como sócia única a sociedade INCOGNITOCEAN, Lda com o NIPC … da qual também é sócio o Réu JO e cuja gerência lhe compete exclusivamente.
AE - Conforme decorre do depoimento transcrito, da testemunha Arquiteta CG, a referida sociedade Emerging Ocean já seria ( …) “.detentora do terreno em causa”. A partir de tal depoimento, veio a Autora, por consulta ao Registo Predial, a tomar conhecimento que a Ré MO havia feito doação à sociedade Emerging Ocean do terreno de que era proprietária, constante do considerado A do contrato (Facto Provado n.º2).
AF - Essa doação mostra-se registada a favor da EMERGING OCEAN pela AP. … de 2020/07/07, conforme se prova através da certidão permanente que ora se junta como Doc. 3 em complemento da certidão simplificada que constitui o Doc. 2 mencionado.
AG - Pela mesma certidão prova-se o AVERBAMENTO-AP. … de 20/04/2021 do cancelamento da hipoteca voluntária que incidia sobre o prédio, constituída a favor do credor hipotecário BM, pela AP. … de 2016/12/14, (mesmodoc.3).
AH - A instruir o cancelamento da hipoteca, na Conservatória do Registo Predial, o Réu JO apresentou o documento de cancelamento que ora se junta com as presentes alegações, como DOC 4, e aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual BM e sua mulher, com quem é casado no regime de comunhão de adquiridos, RM, declaram:
“-Que para segurança do capital mutuado de 90.000,00 (noventa mil euros) foi lavrada inscrição hipotecária pela Ap. … de 14 de dezembro de 2016, sendo o montante máximo do capital assegurado de 102.000,00 euros, que incide sobre o prédio denominado Quinta … freguesia de Caparica, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob a descrição nº …/…, da dita freguesia de Caparica.”
E declaram ainda
“Que nos termos e para os efeitos dos Artº s 730 e 731 do Código Civil a declarante autoriza o cancelamento das mencionadas inscrições hipotecárias”
A declaração de cancelamento da hipoteca mostra-se assinado por BM e sua mulher, RM e o TERMO DE AUTENTICAÇÃO foi lavrado pelo notário JL, conforme tudo consta desse Doc 4.
AI - Nos termos do artº 425.ºdo CPC ,” Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele”
Por seu lado, o artigo 651º do CPC admite, em caso de recurso, a apresentação de documentos tornada necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.
Ora, como ficou exposto, a apresentação dos identificados documentos decorreu precisamente das revelações da dita testemunha Arquiteta CG e da confissão do Réu efetuadas na última sessão de julgamento e das imediatas averiguações da A/recorrente.
AJ - Os citados documentos 1 e 2 juntos aos autos por requerimento no próprio dia do encerramento da audiência, bem como os documentos 3 e 4 juntos com as presentes alegações, fazem prova plena dos factos registados a que respeitam, sejam no Registo Comercial sejam no Registo Predial.
AL - Tratam-se de registos públicos a que o tribunal tem pleno acesso e uma vez dado conhecimento dos mesmos nos autos, a sua relevância e apreciação não podia ser ignorada na sentença que omitiu pronunciar-se sobre eles, como não podem ser todos eles ignorados na apreciação e valoração da matéria de facto em sede de recurso.
AM -Deste modo, o facto da alínea b) dos “FACTOS NÃO PROVADOS” deveria antes ter sido considerado provado, como facto n.º 39 e com a seguinte redação:
“Factos Provados
39 – Em data indeterminada do próprio ano de 2019, mas não depois de 30/12/2019, os R.R. começaram a negociar com a empresa Emerging Ocean os prédios constantes do Contrato Promessa de Compra e Venda a que se refere o n.º 1 dos factos provados.”
AN - Em função dos factos documentalmente provados, trazidos aos autos deveria a sentença ter considerado, na sequência do facto anterior “39.º”, e do depoimento da testemunha Arquiteta CS e da confissão do Réu JO os seguintes factos:
40º - Em 30/12/2019 foi registada a constituição da sociedade Emerging Ocean Unipessoal Lda cujo capital pertencia integralmente á sociedade Icognitocean Lda e da qual era gerente único o R. JO.
41º - A sociedade Incognitocean Lda é detida em 50% por JO e este, por sua vez, é o seu gerente único.
42º- Os factos anteriormente descritos sob os números 40º e 41º são anteriores á comunicação dirigida á Autora pelos Réus em 21/01/2020 -facto provado 23º.
43º - Em 07/07/2020 foi registada, pela AP. … de 2020/07/07, a favor da sociedade Emerging Ocean a doação que a Ré MO efetuou a favor desta, do seu prédio a que se refere o facto nº2 dos factos provados e identificado no considerando A do contrato promessa.
AO - Em face do doc.4 ora junto e acima mencionado impõe-se, para adequada e correta interpretação do facto provado nº9 e do documento que nesse facto se refere, o aditamento de um novo facto provado com o nº44º e com a seguinte redação:
44º- A instruir o cancelamento da hipoteca, na Conservatória do Registo Predial, constituída a favor de BM, o Réu JO apresentou o documento de
cancelamento, através do qual BM e sua mulher, com quem é casado no
regime de comunhão de adquiridos, RM, declararam:
“-Que para segurança do capital mutuado de 90.000,00 (noventa mil euros) foi lavrada inscrição hipotecária pela Ap. … de 14 de dezembro de 2016, sendo o montante máximo do capital assegurado de 102.000,00 euros, que incide sobre o prédio denominado Quinta … freguesia de Caparica, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob a descrição nº …/…, da dita freguesia de Caparica.”
“Que nos termos e para os efeitos dos Artºs 730 e 731 do Código Civil a declarante autoriza o cancelamento das mencionadas inscrições hipotecárias”
A declaração de cancelamento da hipoteca mostra-se assinado por BM e sua mulher, RM e o TERMO DE AUTENTICAÇÃO foi lavrado pelo notário JL, conforme tudo consta desse doc 4. Junto às presentes alegações.
AP - A sentença faz igualmente uma incorreta interpretação e qualificação da matéria de facto e de direito no que respeita ao pagamento efetuado pela A./Recorrente, na data da assinatura do contrato promessa de compra e venda, do montante de €80.000,00, ao credor hipotecário da Promitente Vendedora e Ré MO.
AQ - Na Parte III – “Fundamentação de Direito”, n.º 2 – resolução, alínea c), a douta sentença considera, como era imperioso considerar, que os Réus incumpriram definitivamente o contrato e em sequência na Parte IV – “Dispositivo” decide: “Declarar a resolução do contrato formado entre a A. AG e Filhos, S.A. e os R.R. MO, JO e TO, em razão do incumprimento definitivo daquela promessa pelos R.R.”
Todavia,
AR - Em contradição com o incumprimento definitivo do contrato pelos Réus não os condena a devolver, em dobro, o sinal e reforços de sinal, acrescidos dos juros, mas, apenas, em singelo. E para chegar a tal conclusão vem a sentença ancorada na errada interpretação e qualificação do contrato, acrescentar outro erro – o de que apesar das partes terem declarado expressamente ter a natureza de sinal e reforços de sinal, tais valores não tinham, no entender da sentença, tal natureza.
AS - Na alínea d) do ponto 2 Resolução, da Parte III – Fundamento de Direito refere a sentença que “os R.R. começam por contestar a qualificação como sinal das quantias entregues pela A. E argumentam de seguida, com a excessiva onerosidade da sanção, pugnando pela sua redução à devolução do sinal em singelo.” Ora, a este respeito, nenhum facto foi alegado e nenhum facto foi provado no sentido de permitir ao julgador afirmar que as quantias entregues pela Autora não tiveram a natureza de sinal quando quer os Promitentes Vendedores quer a Promitente Compradora declaram expressamente, conforme factos provados: facto 9.2. - “Não obstante a cessão de garantia hipotecária, o valor pago de €80.000,00 assume natureza de sinal e princípio de pagamento do preço e não vence juros.”
AT - Também nenhum facto foi alegado e nenhum facto foi provado no sentido de permitir ao julgador concluir, contrariamente aos factos dados como provados – Factos 10 e 11. Com efeito fica provado o facto 10 – “A título de reforço de sinal a A. (Terceira Contraente) obrigou-se a pagar ao R. JO a quantia de €1.000,00 por mês, durante sessenta meses, conforme resulta no n.º3 da clausula segunda do contrato promessa.”
AU - Não obstante o anexo ao Contrato Promessa de compra e venda estar denominado como “Cessão de Créditos com Transmissão de Hipoteca” a verdade é que tal cessão não ocorreu. Tal contrato não foi subscrito pelo cônjuge RM, sendo consequentemente ineficaz como cessão de crédito com transmissão de hipoteca.
AV - Não foi registada a cessão da hipoteca conforme se prova pelo Registo Predial através do “histórico” da certidão junta como Doc. 3 e acima mencionado em complemento do Doc. nº 2, já junto por requerimento aos autos no dia do encerramento da audiência de discussão e julgamento.
AX - O registo da hipoteca, tal como o da sua transmissão, é constitutivo. Como expressamente se estipula no artigo 687º do Código Civil,” A hipoteca deve ser registada, sob pena de não produzir efeitos, mesmo em relação às partes”
AZ - “A cessão de Créditos com Transmissão de Hipoteca” pressupunha a transmissão da hipoteca como resulta das suas cláusulas, designadamente da clausula quarta onde ficou estipulado que “com a cessão de crédito ocorre simultaneamente, e, consequentemente, a cessão da hipoteca constituída pelo contrato de mútuo com hipoteca …”
AAA – E, na verdade, para além de não ter ocorrido a cessão do crédito hipotecário, os RR e o próprio credor BM, também consideraram que tal cessão não ocorrera na data do Contrato Promessa de Compra e Venda nem posteriormente até ao incumprimento definitivo do contrato pelos RR.
AAB - Como resulta do Registo Predial, pelos documentos 3 e 4 ora juntos Os RR, (o R. JO na qualidade de único gerente da sociedade detentora do terreno hipotecado) obteve dos credores hipotecários BM e mulher RM a declaração autenticada para
cancelamento da hipoteca. Jamais poderiam estes autorizar o cancelamento da hipoteca se a tivessem
transmitido. E também os RR não teriam solicitado àqueles tal cancelamento se tivessem considerado ter ocorrido a cessão da hipoteca.
AAC - No denominado Contrato de “Cessão de Créditos com Transmissão de Hipoteca” BM “exonera da obrigação a devedora MO, e declara que esta nada mais lhe deve seja a que titulo for”, em virtude do pagamento pela A da quantia de € 80.000,00 nessa data
AAD- Em síntese conclui-se assim que:
- não ocorreu a cessão do crédito hipotecário;
-a devedora MO ficou exonerada da dívida para com o credor hipotecário;
- A Ré MO obteve, com pagamento efetuado pela A, a titulo de sinal, um incremento patrimonial de € 80.000,00
-o único contrato que persistiu foi o Contrato Promessa de Compra e Venda;
-nenhum outro instrumento jurídico, para além do contrato promessa, constituiu a MO obrigada perante a A. pelos aludidos € 80.000,00 a que foi atribuída a natureza de sinal.
AAE - Sendo o objetivo do sinal delimitar o montante da indeminização decorrente do não cumprimento, a sua estipulação assume a natureza de clausula penal (art. 810º, n.º 1 do C.C.).
E como se decidiu no Acórdão do STJ de 03/07/2008, consultável em www.pgdlisboa.pt, “nessa medida (de clausula penal) o pedido de restituição em dobro do sinal é passível de redução nos casos em que é manifestamente excessivo, por designadamente, o interesse do credor estar em evidente contradição com as exigências de justiça e equidade, face á visível e substancial desproporção entre o valor de clausula penal e o dobro efetivamente causado.”
“A excessiva onerosidade da clausula penal não é do conhecimento oficioso, carecendo de ser deduzida expressamente pelo devedor (por não dar reconvenção ou da exceção.)”
AAF - Nem por via de exceção, nem de reconvenção, os Réus alegaram ou provaram o que quer que seja que permitisse apreciar a questão de onerosidade.
AAG - Ao contrário do que se refere na sentença (resolução, c)) a previsão da restituição do sinal em dobro decorre da expressa estipulação contratual de que o valor de €80.000,00, pago pela Autora, assumia a natureza de sinal, bem como pela expressa atribuição da natureza de reforços às quantias mensais entregues – factos 9, 10 e 11.
AAH - O objetivo do sinal e reforços de sinal é de delimitar o montante da indeminização decorrente do não cumprimento, como se salientou no citado Acórdão do STJ. Do mesmo modo que é absolutamente desnecessário transcrever no texto de um contrato-promessa de compra e venda de imóveis, como é o caso, em que haja sido estipulado sinal, o normativo de art. 442º do Código Civil.
AAI - O recurso à presunção do artigo 441º do C.C. só faz sentido no caso das partes não terem atribuído expressamente, no contrato, a natureza de sinal ou reforço de sinal às quantias entregues. Ora, no caso dos autos, a qualificação de sinal e reforço de sinal, declarada pelas partes foi clara, inequívoca e expressa, como decorre dos factos provados (9,10 e 11).
AAJ - Ao final da antepenúltima página da sentença afirma-se, a propósito do sinal: “Por outro lado, essa quantia e as demais previstas como reforço de sinal não se mostram afetas, na economia global do contrato, à finalidade de contrapartida da transmissão da propriedade do imóvel …”
Tal afirmação não é apenas errada como é absurda tendo em conta estar provado que:
• Os Réus prometeram vender os imóveis por €400.000,00;
• Receberam a título de sinal e princípio de pagamento €80.000,00, logo ficaram ainda credores de €320.000,00;
• Quando fosse constituída a sociedade realizariam uma quota de €1.000,00/€2.000,00, ou que quer que fosse convencionado;
• O remanescente receberiam da compradora – a sociedade a constituir.
• Os Réus receberiam os €400.000,00 do preço convencionado.
AAL - É completamente aberrante afirmar-se, como se afirma na sentença, que “o contrato-promessa de compra e venda e o sinal prestado no seu âmbito destinavam-se a ser completamente absorvidos no momento da constituição e posterior vigência de sociedade.”
Nenhum facto e nenhum fundamento jurídico permitem afirmar, como erradamente faz a sentença, “… não estar em presença de sinal…”
AAM - Como resulta expressamente dos factos provados n.º 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 20 e 21 a Autora desenvolveu diversas diligências com vista à aprovação “… pelas entidades competentes, de um projeto construção para os terrenos que constituem o objeto do contrato prometido.”
Ou seja,
A Autora assumiu no contrato uma “obrigação de meios” traduzida no desenvolvimento do “…  projeto urbanístico que melhor valorização vier a trazer para os prédios deste contrato e para o efeito estabelece-se um prazo de 5 anos, sem prejuízo de prorrogação” – Facto 6.
A Autora estava a cumprir tal obrigação quando foi “apunhalada pelas costas” com o incumprimento definitivo do contrato pelos Réus, de surpresa e sem qualquer aviso.
AAN - O nosso Código Civil contempla no art. 762, n.º 2 os princípios fundamentais que vieram da herança do simples “aperto de mão” no fecho e execução de contratos entre homens sérios. Os deveres acessórios de conduta, impostos pela moral, pela ética e pelo direito estão aí bem consagrados e a sua violação, só por si, pode constituir e constitui fonte da obrigação de indemnizar. A violação dos deveres acessórios de conduta, para além da violação frontal do contrato pelos Réus é no presente caso de tal modo grave que não fora a existência de estipulação de sinal e reforços de sinal, estariam os Réus hoje confrontados com uma ação de indeminização por responsabilidade civil contratual de centenas de milhares de euros para cobrir os múltiplos danos sofridos pela Autora.
AAO - As regras do sinal, são de senso comum, mesmo para as pessoas de menor literacia. Ninguém hoje ignora que as regras do sinal se traduzem na perda do sinal por parte de quem o prestou ou na restituição em dobro por parte de quem o recebeu, conforme o incumprimento definitivo seja do promitente comprador ou do promitente vendedor.
Se nada mais se estipular, para além do sinal, em matéria de incumprimento, já ficam definidas as consequências do incumprimento de uma ou outra das partes.
AAP- Estipulando-se num contrato-promessa de compra e venda de imóveis que determinadas quantias pagas pelo promitente comprador têm a natureza de sinal e reforço de sinal, significa que estão estipuladas as consequências do incumprimento definitivo para ambas as partes, promitente comprador e promitente vendedor.
E nesse sentido o já citado do acórdão do STJ de 03/07/2008, nos termos de qual “sendo o objetivo do sinal delimitar o montante da indeminização decorrente do não cumprimento, a sua estipulação assume a natureza de clausula penal.”
AAQ - O direito ao pagamento do sinal em dobro (art. 442, n.º2 do C.C.) depende do incumprimento definitivo e da resolução do contrato.
AAR - “A restituição do sinal em singelo apenas vigora quando está expressamente prevista no contrato como consequência do incumprimento do contrato-promessa ou quando se verifica concorrência de culpa no incumprimento”, com bem se considera no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/03/2023, proferido no proc. 211/21.5T89MRG1.S1 consultável em www.dgsi.pt.
AAS - A sentença decidiu “declarar a resolução do contrato (…) em razão do incumprimento definitivo daquela promessa pelos R.R.” Daqui decorre, perante o regime indemnizatório dos danos previstos pelo incumprimento do contrato-promessa, por via da norma legal do art. 442º do C.C. e tendo havido sinal e reforços de sinal prestados, que a indeminização corresponde ao valor do sinal e reforços de sinal.
AAT-Pelo que é manifestamente ilegal, a sentença que condena apenas os Réus na devolução em singelo do montante de sinal e reforços de sinal.
AAU - Neste segmento de que se recorre, a sentença afigura-se como um prémio a contraentes que não se pautam pelas normas da moral, da ética e da boa-fé, violadores dos mais elementares princípios da boa-fé no cumprimento dos contratos, e dos deveres acessórios de conduta, (cfr. art. 762, nº2 do C.C.)
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exªs., Excelentíssimos Senhores Juízes Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida na parte em que decide “condenar os RR a pagar à A. € 90.000,00, bem como juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal” substituindo-a por outra que condene os RR no pagamento do sinal e reforços de sinal em dobro como pedido na p.i., Assim se fará justiça».
(Sem negrito, sublinhado e maiúsculas do original).
Com o recurso a A. juntou quatro documentos: (i) um documento do INR relativa à Emerging Ocean, Unipessoal, Lda., (ii) um documento, igualmente do IRN, relativa à Incognitocean, Lda., (iii) uma cópia do Registo Predial quanto ao prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 6563/20100723 e (iv) uma cópia de um intitulado de «Título particular de cancelamento de inscrição hipotecária».   
A A. contra-alegou, juntando três documentos: (i) uma certidão do Registo Predial quanto ao prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 6563/20100723, (ii) uma certidão do intitulado de «Título particular de cancelamento de inscrição hipotecária» e (iii) uma cópia de um intitulado «Contrato de mútuo com hipoteca» e documentos conexos ao mesmo.
Os RR. contra-alegaram, requerendo que não sejam admitidos os documentos juntos pela A. com o recurso.   
No despacho que admitiu o recurso, o Tribunal recorrido pronunciou-se quanto à alegada nulidade decorrente da contradição entre os fundamentos e a decisão, considerando-a improcedente.
Colhidos os vistos, cumpre ora apreciar a decidir.
II.
OBJETO DO RECURSO.
Atento o disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPCivil, as conclusões do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento de questões que devam oficiosamente ser apreciadas e decididas por este Tribunal da Relação.
Nestes termos, atentas as conclusões deduzidas pela A. e pelos RR., nos presentes autos está em causa apreciar e decidir:
· Da admissibilidade dos documentos juntos pela A. após o encerramento da discussão em 1.ª instância;
· Da nulidade por oposição entre fundamentos e decisão;
· Da impugnação da decisão de facto;
· Da qualificação do contrato celebrado entre as partes;
· Do incumprimento contratual e dos seus efeitos.
Assim.
III.
DOS DOCUMENTOS JUNTOS PELA A. APÓS O ENCERRAMENTO DA DISCUSSÃO EM 1.ª INSTÂNCIA.
Conforme artigo 423.º, n.º 1, do CPCivil, «[o]s documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação (…) devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes».
Nos termos do artigo 425.º do CPCivil, «[d]epois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento».
Segundo o disposto no artigo 651.º, n.º 1, do CPCivil «[a]s partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância».
Ou seja, após o encerramento da discussão da causa em 1.ª instância, com a prolação de alegações orais, conforme artigo 604.º, n.º 3, alínea e), do CPCivil, a admissibilidade da junção de documento depende da sua pertinência à decisão da causa e da impossibilidade da sua junção em momento anterior, por o documento em causa ser objetiva ou subjetivamente superveniente relativamente ao encerramento da causa, sendo que em sede de recurso é ainda admissível a junção de documento quando tal se mostre necessário em virtude da decisão recorrida.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, volume I, edição de 2020, páginas 522 e 813, depois do encerramento da discussão da causa «apenas se podem congeminar a junção excecional de documentos nos termos previstos no art. 651.º, n.º 1, em sede de recurso de apelação: para além dos documentos que sejam objetiva e subjetivamente superveniente (tendo em conta o encerramento da discussão na audiência final), são admissíveis aqueles cuja necessidade se revelar em função da sentença proferida, o que pode justificar-se pela imprevisibilidade do resultado (…)».
«No recurso de apelação, é legítimo às partes fazer acompanhar as alegações de documentos cuja apresentação não tenha sido possível até esse momento (superveniência objetiva ou subjetiva) ou quando tal apresentação apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido. A jurisprudência tem entendido, de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitas a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado».
«(…) No que tange à parte final do n.º 1 [do artigo 651.º do CPCivil], tem-se entendido que a junção de documentos às alegações da apelação só poderá ter lugar se a decisão da 1ª instância criar, pela primeira vez, a necessidade de junção de determinado documento, quer quando a decisão se baseie em meio de prova não oferecido pelas partes, quer quando se funde em regra de direito cuja aplicação ou interpretação as partes não contavam (STJ 26-9-12, 174/08, RP 8-3-18, 4208/16 e RL 8-2-18, 176/14)».
No mesmo sentido, Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 3, edição de 2022, página 141, referem que «[a] apresentação de documento em fase de recurso pode tornar-se necessária em virtude da decisão proferida na 1.ª instância, nomeadamente se esta se basear em factos de que o tribunal conheça oficiosamente, nos termos do art. 5-2 (não, evidentemente os factos que hajam sido sujeitos a prova: ABRANTES GERALDES, Recursos cit., p. 286), em meio probatório produzido ao abrigo do princípio do inquisitório (art. 411), ou em solução jurídica com que razoavelmente as partes não contavam, com violação do art. 3-3, e assim se constituindo uma decisão-surpresa. (…)».
Na situação vertente.
1. Relativamente aos documentos juntos pela A. com o requerimento de 31.01.2023, após o encerramento da audiência de discussão e antes da decisão recorrida.
Trata-se de (i) um documento do IRN relativo à Emerging Ocean, Unipessoal, Lda., e (ii) um documento, igualmente do IRN, relativo à Incognitocean, Lda., juntos pela A. após o encerramento da audiência de discussão e julgamento, alegadamente «na sequência da revelação da Sociedade EMERGING OCEAN, UNIPESSOAL LDA, em sede de depoimento de parte» do R. JO prestado na sessão de julgamento de 31.01.2023, conforme requerimento de 31.01.2023 da A., com negrito da autoria dos aqui subscritores.
Tais documentos referem-se à constituição daquelas sociedades, ocorrida antes da propositura da presente ação, instaurada em 22.09.2021.
Ou seja, a junção dos documentos em causa podia/devia ter sido requerida pela A. em momento anterior ao encerramento da audiência final, pois foram motivados por depoimento de parte nele produzido.
Nestes termos, conforme disposto no referido artigo 425.º do CPCivil, uma vez que estão em causa «documentos cuja apresentação» era «possível até» ao «encerramento da discussão», a junção de tais documentos não é processualmente admissível.
Os referidos documentos não podem ser tidos por objetiva ou subjetivamente supervenientes ao encerramento da discussão na audiência final, sendo que quanto àquela última vertente a A. teve conhecimento do facto que motivou a junção dos documentos no decurso da audiência final, pelo que podia/devia ter junto aos autos os documentos em causa antes do encerramento da audiência final: podia/devia ter requerido a interrupção desta a fim de juntar os documentos em causa, possibilitando o respetivo contraditório em 1.ª instância, sabendo-se que a função do recurso é a reponderação da decisão recorrida.
Em remate, diga-se ainda, considerando na matéria o documento n.º 3 junto com as respetivas alegações de recurso, caso a A. tivesse junto com a petição inicial certidão atualizada do Registo Predial quanto ao prédio 6563/20100723, dela tinha-se apercebido da existência da EMERGING OCEAN e podia ter então desde logo alegado e documentado aquilo que sucedeu tão-só após o encerramento da audiência final, sendo que a circunstância de não proceder daquele modo não pode deixar de onerar a A., enquanto expressão do princípio da autorresponsabilidade das partes, obstando-se, assim, também por esta via, à pretendida junção dos documentos ora em causa.   
2. Quanto aos documentos juntos pela A. com as alegações de recurso.
Naquela sede, a A. juntou quatro documentos: (i) um documento do INR relativa à Emerging Ocean, Unipessoal, Lda., (ii) um documento, igualmente do IRN, relativa à Incognitocean, Lda., (iii) uma cópia do Registo Predial quanto ao prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 6563/20100723 e (iv) uma cópia do intitulado de «Título particular de cancelamento de inscrição hipotecária».
Relativamente àqueles dois primeiros documentos procede o supra referido quanto aos mesmos: podiam/deviam ter sido juntos antes do encerramento da audiência final.
No que respeita à cópia do Registo Predial, a mesma data de 06.10.2023, sendo que o último registo refere-se a 20.04.2021, muito anterior, pois, à data da audiência final, cuja última sessão ocorreu em 31.01.2023.
Tal documento corresponde à atualização do Anexo I do contrato-promessa a que se referem os autos, cuja cópia da certidão permanente foi junta com o documento n.º 1 da petição inicial, reportada à informação em vigor em 15.03.2019.
A cópia do intitulado de «Título particular de cancelamento de inscrição hipotecária» reporta-se precisamente àquele último registo predial de 20.04.2021, tendo sido obtida a partir da consulta do mesmo.
Assim sendo, quanto àqueles dois últimos documentos, atentas as datas a que se reportam os factos que os mesmos documentam é manifesto que os mesmos podiam/deviam também ter sido juntos até ao encerramento da audiência final, sendo que incumbia à A. ter providenciado pela atualização do Registo Predial até então, possibilitando o respetivo contraditório em 1.ª instância, sabendo-se, como já se consignou, que a função do recurso é a reponderação da decisão recorrida.
Por outro lado, relativamente aos quatro apontados documentos não pode dizer-se que a sua «junção» tornou-se «necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância», conforme referido artigo 651.º, n.º 1, do CPCivil.
Com efeito, tais documentos reportam-se a factos alegados pela A. nos artigos 31.º, 43.º a 46.º e 48.º da petição inicial, considerados controvertidos no despacho de condensação de 28.06.2022, tendo aí sido levados em conta como «Temas da Prova».
Os quatro documentos ora em causa não respeitam, pois, a factos que o Tribunal recorrido tenha conhecido oficiosamente.
A junção de tais documentos também não decorre de solução jurídica tomada por aquele Tribunal que a A. não podia razoavelmente contar, constituindo, assim, uma decisão-surpresa.
Nestes termos, conforme disposto nos referidos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do CPCivil, por contrariar o disposto em tais disposições, urge concluir a junção de tais documentos como processualmente inadmissível.
3. No que toca aos documentos juntos pela A. com as contra-alegações.  
Com a resposta ao recurso dos RR. a A. juntou: (i) uma certidão do Registo Predial quanto ao prédio descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º 6563/20100723, com data de 20.10.2023, (ii) uma certidão do intitulado de «Título particular de cancelamento de inscrição hipotecária», igualmente datada de 20.10.2023, e (iii) uma cópia de um intitulado «Contrato de mútuo com hipoteca» e documentos conexos com o mesmo.
Aqueles dois primeiros documentos constituem certidões do que já constava dos referidos dois últimos documentos juntos com a alegações de recurso da A., pelo que procede aqui o já referido quanto aos mesmos.
No que respeita à cópia do intitulado «Contrato de mútuo com hipoteca» e demais cópias com o mesmo juntas, datando tal acervo de escritos de data anterior à propositura da presente ação, é manifesto que a A. deveria ter junto tal acervo com a petição inicial e, em todo o caso, sempre em data anterior ao encerramento da decisão final, a considerar pertinente a sua junção aos autos.
Também relativamente a tal documentação pode dizer-se que tal não se reporta a factos que o tribunal recorrido tenha conhecido oficiosamente, nem a sua junção decorre de solução jurídica tomada por aquele Tribunal que a A. não podia razoavelmente contar, constituindo, pois, uma decisão-surpresa.
Tem-se, pois, a junção dos referidos documentos como processualmente inadmissível.
*
Concluindo, importa, assim, julgar inadmissível a junção de documentos pela A. após o encerramento da audiência final, pelo que não devem os mesmos ser considerados como meios probatórios nos presentes autos.
Atento o disposto nos artigos 443.º, n.º 1, do CPCivil e 27.º, n.ºs 1 e 4, do Regulamento das Custas Processuais, pela apresentação intempestiva dos referidos documentos, importa condenar a A. em multa, a qual deve ser fixada em duas UC’s.
IV.
DA NULIDADE POR OPOSIÇÃO ENTRE FUNDAMENTOS E DECISÃO.
(Conclusões 20 e 21 das alegações de recurso dos RR).
O artigo 615.º, n.º 1, alínea c), do CPCivil dispõe que a sentença «é nula» quando «[os] fundamentos estejam em oposição com a decisão».
Em causa está a desconformidade entre a motivação da decisão e o dispositivo desta.
Trata-se de contradição nos termos da decisão em si mesma, entre as respetivas premissas e as suas conclusões.
Com refere Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, volume II, edição de 2019, página 436, em causa está «um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (…). Não se trata de um qualquer simples erro material (…) mas de um erro lógico-discursivo em termos de obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real».
Na situação vertente.
Os RR. alegaram que o tribunal recorrido ocorreu em contradição «quando nos fundamentos se reconhece como provado que foram restituídos €8.000 e na decisão são apenas considerados €7.000 para a redução ao capital entregue», devendo ser «declarado que o saldo ainda não restituído é de €9.000», correspondente à diferente entre €17.000 e €8.000 (ou seja, €17.000 - €8.000 = €9.000) e, pois, não é a quantia de €10.000,00 considerada na fundamentação de direito da decisão recorrida e no dispositivo desta.
Nas suas contra-alegações a A. refere que a decisão recorrida padece de «manifesto lapso. Deduzidos €8.000,00 a €17.000,00, o saldo é de €9.000,00, conforme requerimento da própria A. devidamente documentado, com a referência 34632639, apresentado em 04/01/2023».
Vejamos.
Na matéria, importa começar por considerar os factos provados n.ºs 11 e 36:
«11. A título de “reforço de sinal” a A. (Terceira Contraente) pagou ao R. JO, até 21 de janeiro de 2021, a quantia global de €17.000,00»;
«36. As transferências efetuadas pela A. após a carta de resolução [de 21.01.2020] enviada pelos RR. foram restituídas para a conta de proveniência (58º cont)».
No que respeita à motivação daqueles factos provados, consta da decisão recorrida que:
«Quanto às prestações, pese embora a A. alegue a concretização de 18 prestações, no requerimento junto a fls. 123 veio retificar esse valor para €17.000,00, juntando os respetivos documentos comprovativos a fls. 124-v a 140.
No mesmo requerimento, a A. admite que os RR. lhe transferiram o valor de €8.000,00, o qual se mostra, de igual modo, confirmado pelos aludidos documentos».
Por sua vez, da fundamentação de direito da decisão recorrida consta que:
«Em face do exposto, assiste à A. apenas o direito à restituição em singelo das quantias entregues aos RR. em cumprimentos do contrato, ou seja, €90.000,00, considerando que dos €17.000,00 pagos adicionalmente pela A., os RR. já restituíram €7.000,00».
Finalmente, do dispositivo da sentença recorrida consta a condenação dos RR., além do mais, no pagamento à A. da quantia de «€90.000».
Ou seja, constata-se que há uma manifesta incongruência entre a motivação da decisão de facto, por um lado, e a fundamentação de direito, bem como o dispositivo constante da decisão recorrida, por outro lado: enquanto na motivação se refere que os RR. transferiram para a A. a quantia de €8.000,00, na fundamentação de direito e no dispositivo considera-se que tal transferência cifrou-se tão-só em €7.000,00.
Tal discrepância acarreta nessa sede a nulidade da decisão recorrida, conforme referido no artigo 615, n.º 1, alínea c), do CPCivil, devendo este Tribunal da Relação substituir-se ao Tribunal recorrido na supressão da mesma nulidade, em conformidade com o disposto no artigo 665.º, n.º 1, do CPCIvil.
Ora, em tal domínio importa considerar os articulados das partes e a prova documental constante dos autos e, designadamente, a indicada na matéria pelo Tribunal recorrido.
Assim sendo, de pertinente na matéria resulta que:
- No artigo 10.º da petição inicial a A. refere que «Até 21 de janeiro de 2020 a Autora pagou aos Réus, a titulo de sinal e reforço de sinal, a quantia global de €98.000,00 (noventa e oito mil euros)»;
- Nos artigos 54.º e 57.º da petição inicial, reportados àquela quantia, a A. alega que os RR. devolveram-se a quantia de «€7.000,00»;
- No artigo 66.º d) da contestação os RR. impugnaram o artigo 10.º da petição inicial;
- No seu requerimento de 04.01.2023, a A. alegou que:
«entre abril de 2019 e setembro de 2020, a Autora transferiu, em cumprimento do contrato-promessa, para o Réu JO, 17 prestações de €1.000,00, cada uma»,
«entre fevereiro de 2020 e outubro de 2020, o Réu, JO transferiu para a
Autora 8 prestações de €1.000,00, cada uma»,
Juntando para o efeito extrato da sua conta bancária comprovativa de tais transferências, sendo que os RR. foram notificados daquele requerimento, bem como dos documentos com ele juntos e nada disseram.   
Tudo ponderado, entende-se que a apontada incongruência da decisão recorrida deve suprida em conformidade com o que consta da motivação da decisão de facto, a qual considerou o indicado requerimento de 04.01.2023 e a documentação com ele junta.
Nestes termos, nos termos do artigo 662.º n.º 2, alínea c), a contrario, do CPCivil, colmatando uma lacuna da decisão de facto e dissipando eventuais dúvidas dela decorrentes, importa que o facto provado n.º 11 passe a ter a seguinte redação:
«11. A título de “reforço de sinal” a A. (Terceira Contraente) pagou ao R. JO, até 21 de janeiro de 2021, a quantia global de €17.000,00, tendo sido devolvido à A. a quantia de €8.000,00».
Dos efeitos jurídicos daquela explicitação cuidaremos infra, em sede de fundamentação de direito deste acórdão.
Procede, pois, nesta parte o recurso dos RR.
V.
DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO.
(Conclusões AA. a AO. das alegações de recurso da A.).
1. Segundo o disposto no artigo 640.º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPCivil,
«1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes».
Ou seja, sob pena de rejeição do recurso da decisão de facto, na impugnação desta o Recorrente tem um triplo ónus: (i) concretizar os factos que impugna, (ii) indicar os concretos meios de prova que justificam a impugnação e impõem uma decisão diversa, sendo que caso tenha havido gravação daqueles deve o Recorrente indicar as passagens da gravação em que funda a sua discordância, e (iii) especificar a decisão que entende dever ser proferida quanto à factualidade que impugna.
Como refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, edição de 2018, páginas 163 e 169, o legislador optou «por restringir a possibilidade de revisão de concretas questões relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente», sendo que as exigências decorrentes do apontado regime legal «devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor.  Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo (…)».
2. A A. cumpriu os indicados ónus de impugnação da matéria de facto, insurgindo-se quanto ao facto não provado b), que entende estar provado, e requerendo o aditamento de cinco novos factos à factualidade dada como provada.
Vejamos.
2.1. Quanto ao facto não provado b).
O Tribunal recorrido deu aí como não provado que:
«b) Pouco tempo após a celebração do contrato, os RR. terão começado a negociar com terceiros os mesmos prédios (41º p.i.)».
No que ora releva, o Tribunal recorrido fundamentou tal nos seguintes termos:
«- Factos b) a h): O elemento chave para o apuramento desta matéria de facto é a testemunha Arq. CS, que no âmbito da sua empresa ... desenvolveu todas as negociações tendentes à conclusão de um contrato nos termos do qual assumiria a preparação dos projetos a apresentar à Câmara Municipal, com vista à aprovação do projeto pretendido pelas Partes.
Ora, esta testemunha relatou contactos normais com a A. visando aquela finalidade, os quais, aliás, se mostram documentados nos autos, datando de 25/11/2019[1] a última comunicação dirigida pela A. à Senhora Arquiteta, onde envia os seus comentários à minuta de contrato e, simultaneamente, confirma a realização de reunião entre todos no dia seguinte.
A testemunha acrescentou depois que, entretanto, deixou de ter contacto com a A., e a seguir o R. JO comunicou-lhe que, afinal, o negócio ia ser desenvolvido com outra empresa, sendo esta última a atual interlocutora da testemunha. Sublinhe-se que a testemunha não afirmou que tivesse enviado mensagens ou feito telefonemas ao legal representante da A. e que este não lhe tivesse respondido, ou que se tivesse recusado a subscrever o contrato, pagar honorários ou, sob qualquer outra forma, não tivesse colaborado com o andamento das negociações.
Aliás, as declarações de parte da A. são coerentes com estes elementos probatórios (…).
No entanto, não possuímos elementos documentais, nem foram produzidos depoimentos que atestem o início dos contactos dos RR. com o atual parceiro de negócios identificado pela Arq. CG, a empresa Emerging Ocean, sendo que a testemunha se limitou a mencionar a aludida indicação que lhe foi dada no sentido de passar a tratar dos assuntos aqui em causa com esta empresa.
(…) Em conclusão, temos apenas como certo que no decurso das negociações tendentes à assinatura do contrato com a empresa da Arq. CG, os RR. puseram termo ao negócio em curso com a A., não se sabendo as causas desta situação, que, aliás, não resultam também de qualquer das cartas enviadas pelos RR. à A., maxime a carta onde declaram a resolução».
(Negrito da autoria dos aqui subscritores).
A A. pretende ora que o apontado facto seja dado como provado com a seguinte redação: 
«Em data indeterminada do próprio ano de 2019, mas não depois de 30/12/2019, os R.R. começaram a negociar com a empresa Emerging Ocean os prédios constantes do Contrato Promessa de Compra e Venda a que se refere o n.º 1 dos factos provados».
Para tal a A. invoca o depoimento da testemunha CS e o depoimento de parte do R. JO assim como os documentos n.ºs 1 e 2 juntos com as suas alegações de recurso.
Ora, conforme decorre do supra exposto, tais documentos não foram admitidos, pelo que não podem aqui ser considerados.
No que respeita àquela prova pessoal, dos excertos transcritos pela A. não decorre o que ela pretende ver considerado na factualidade provada.
Com efeito, dos excertos transcritos do depoimento da testemunha CS decorre tão-só que o R. JO lhe terá dito que a proposta de prestação de serviços com a ... «não iria para a frente» e que «seria feito outro contrato com uma outra empresa», «a Emerging Ocean», a qual seria «a detentora do terreno em causa».
Por sua vez, dos excertos transcritos do depoimento de parte do R. JO decorre que este disse que a Emerging Ocean é uma «empresa familiar», constituída pelo próprio R. JO e pela sua «irmã», sendo que foram estes que assumiram «o projeto».
Do que se trata, afinal, é de relações entre a … e a Emerging Ocean, alegadamente gerida pelo R. JO, não de relações entre os RR. e aquela última sociedade, sendo que o facto 39 indicado pela A. refere-se a negociações entre os RR. e a Emerging Ocean.
Nestes termos, carece de fundamento a requerida alteração da decisão de facto, improcedendo, pois, o recurso nesta sede.  
2.2. No que respeita ao aditamento de cinco novos factos.
A A. entende que devem ser aditados os seguintes factos à factualidade dada como provada:
«40º - Em 30/12/2019 foi registada a constituição da sociedade Emerging Ocean Unipessoal Lda cujo capital pertencia integralmente á sociedade Icognitocean Lda e da qual era gerente único o R. JO.
41º - A sociedade Incognitocean Lda é detida em 50% por JO e este, por sua vez, é o seu gerente único.
42º- Os factos anteriormente descritos sob os números 40º e 41º são anteriores à comunicação dirigida à Autora pelos Réus em 21/01/2020 -facto provado 23º.
43º - Em 07/07/2020 foi registada, pela AP. … de 2020/07/07, a favor da sociedade Emerging Ocean a doação que a Ré MO efetuou a favor desta, do seu prédio a que se refere o facto nº2 dos factos provados e identificado no considerando A do contrato promessa.
44º- A instruir o cancelamento da hipoteca, na Conservatória do Registo Predial, constituída a favor de BM, o Réu JO apresentou o documento de
cancelamento, através do qual BM e sua mulher, com quem é casado no
regime de comunhão de adquiridos, RM, declararam:
“-Que para segurança do capital mutuado de 90.000,00 (noventa mil euros) foi lavrada inscrição hipotecária pela Ap. … de 14 de dezembro de 2016, sendo o montante máximo do capital assegurado de 102.000,00 euros, que incide sobre o prédio denominado Quinta … freguesia de Caparica, concelho de Almada, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob a descrição nº …/…, da dita freguesia de Caparica.”
“Que nos termos e para os efeitos dos Artºs 730 e 731 do Código Civil a declarante autoriza o cancelamento das mencionadas inscrições hipotecárias”
A declaração de cancelamento da hipoteca mostra-se assinado por BM e sua mulher, RM e o TERMO DE AUTENTICAÇÃO foi lavrado pelo notário …, conforme tudo consta desse doc 4. Junto às presentes alegações».
A A. fundamentou tal aditamento nos documentos que juntou com as suas alegações de recurso.
Ora, como decorre do supra exposto, tais documentos não são de admitir, pelo que carece de prova a matéria factual ora em causa, termos em que improcede a pretensão da A. nesta sede.
*
* *
Em função do exposto, este Tribunal da Relação de Lisboa tem, pois, como provada a seguinte factualidade:
1. Em 19 de março de 2019, a A. e os RR. celebraram entre si um acordo escrito denominado “contrato promessa de compra e venda”, nos termos do qual a R. MO assumiu a posição de Primeira Contraente, enquanto os RR. JO e TO assumiram a posição de Segundos Contraentes, e a A. a posição de Terceira Contraente (1º e 2º p.i.);
2. Conforme consta do Considerando A), a R. MO declarou que: “A PRIMEIRA CONTRAENTE é dona e legítima possuidora de um prédio rústico situado em Quinta …, inscrito na matriz predial sob o art. ….º, seção …, da freguesia da Caparica e Trafaria e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …/…, com a área total de 43.760 m2, conforme resulta da Certidão do Registo Predial e da Caderneta Predial que se juntam ao presente contrato como ANEXO I e II.” (3º p.i.);
3. Os RR. JO e TO declararam que: “Os SEGUNDOS CONTRAENTES são donos e legítimos possuidores do prédio rústico denominado Quinta …, inscrito na matriz predial sob o art. …, da Secção …, e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º …, com a área total de 2,665000 hectares, conforme resulta da Certidão de Registo Predial Caderneta Predial que se junta ao presente contrato como ANEXO III e IV.” (4º p.i.);
4. Os três RR. declararam ainda que: “Os prédios identificados nas antecedentes cláusulas têm a localização e confrontações que se mostram assinalados nas fotos extraídas da Google Earth e delimitados a vermelho, que se juntam como ANEXO V.” (5º p.i.);
5. Conforme resulta da cláusula primeira do contrato, a Primeira e os Segundos RR. declararam prometer vender à A. (Terceira Contraente) os identificados prédios, livres de ónus ou encargos, pelo preço de € 400.000,00 (6º p.i.);
6. Na cláusula terceira do contrato, a A. (Terceira Contraente) obrigou-se a “desenvolver o projeto urbanístico que melhor valorização vier a trazer para os prédios objeto deste contrato e para o efeito estabelece-se um prazo de 5 anos, sem prejuízo de prorrogação.” (11º p.i.);
7. A A. e os RR. obrigaram-se, nos termos da cláusula quarta do contrato promessa, nos seguintes termos:
“1- No caso do “Projeto” vir a ser aprovado pelas entidades competentes, a TERCEIRA CONTRAENTE irá ceder a sua posição contratual de promitente compradora no presente contrato a uma sociedade a constituir entre ela e a PRIMEIRA e SEGUNDOS CONTRAENTES, na qual o capital social ficará repartido em 50% para a TERCEIRA CONTRAENTE e 50% para a família dos PRIMEIRA e SEGUNDOS CONTRAENTES.
2 - O valor da quota a realizar na sociedade pelos PRIMEIRA e SEGUNDOS CONTRAENTES será a deduzir no preço de venda dos imóveis atrás estabelecido.
3 - Constituída a sociedade e desenvolvido o “Projeto”, a parte do preço ainda em dívida aos PRIMEIRA e SEGUNDOS CONTRAENTES será paga a partir das receitas provenientes das vendas das frações autónomas das edificações a construir.” (23º p.i.);
8. As Partes previram, na cláusula quinta do contrato promessa, o seguinte:
“1- No caso, de as autoridades competentes reprovarem o anteprojeto do “Projeto” imobiliário, e as Partes não chegarem a acordo sobre novos projetos a desenvolver para os mesmos prédios, se a Primeira e Segundos Contraentes desejarem vender os prédios, a Terceira Contraente terá direito de preferência na aquisição.” (26º p.i.);
9. Foi consignado na cláusula segunda do contrato que:
1- A Terceira Contratante assume, com a assinatura do presente contrato, o pagamento da quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros) devida pela Primeira Contraente a BM, conforme cessão de crédito a subscrever entre a Terceira Contraente e aquele credor, que se anexa e dá por integralmente reproduzida e fica a constituir o Anexo VI.
2- Não obstante a cessão de garantia hipotecária, o valor pago de € 80.000,00 assume natureza de sinal e princípio de pagamento do preço e não vence juros.” (7º p.i.);
10. A título de “reforço de sinal”, a A. (Terceira Contraente) obrigou-se a pagar ao R. JO a quantia de € 1.000,00 por mês, durante sessenta meses, conforme resulta do n.º 3 da cláusula segunda do contrato promessa (8º p.i.);
11. A título de “reforço de sinal” a A. (Terceira Contraente) pagou ao R. JO, até 21 de janeiro de 2021, a quantia global de €17.000,00, tendo sido devolvido à A. a quantia de €8.000,00;
12. Mesmo antes da assinatura do contrato promessa, na fase de negociação, a A. desenvolveu diversas diligências junto das entidades competentes no sentido de concluir pela viabilidade de aprovação de um anteprojeto para os terrenos em causa (12º p.i.);
13. Após a assinatura do contrato, a A. intensificou diligências com diversas entidades, designadamente com a Câmara Municipal de Almada, com vista à avaliação das linhas gerais de um plano de desenvolvimento para os aludidos terrenos, que passaria pela implementação de um Parque Tecnológico denominado “Caparica Business Park”, com a colaboração do gabinete de arquitetura ..., Lda. (13º p.i.);
14. Em 14 de maio de 2019, a A. já havia desenvolvido diversos contactos e reuniões com o gabinete ..., no sentido desse gabinete desenvolver uma proposta de trabalho quanto ao projeto urbanístico (14º p.i.);
15. Na sequência das diligências entre a A. e a Arqt. CG com vista ao desenvolvimento do projeto, esta enviou ao Presidente do Conselho de Administração da A., em 6 de novembro de 2019, uma proposta concreta e detalhada de prestação de serviços para o desenvolvimento do anteprojeto “CAPARICA BUSINESS PARK” (15º p.i.);
16. Em 25 de novembro de 2019, o Presidente do Conselho de Administração da A. enviou um e-mail à Arqt. CG, no qual informa que “tenho a análise da minuta concluída da minha parte, aguardando unicamente a resposta da mesma análise da parte do meu sócio QZ, que me informou enviar na parte da tarde, após o que enviarei a versão conjunta da nossa parte.” (16º p.i.);
17. O sócio QZ a que RG se refere no e-mail de 25/11/2019 é o Promitente Vendedor, o R. JO, também conhecido como QZ (17º p.i.);
18. O R. JO assumiu-se perante a A. como interlocutor de todos os RR. (19º p.i.);
19. No mesmo dia 25 de novembro, às 17:35h, o Presidente do Conselho de Administração da A., RG, envia novo e-mail, acompanhando a minuta do contrato de prestação de serviços, com os comentários/ alterações (20º p.i.);
20. A A. partilhou com os RR., na pessoa do R. JO, todas as informações que foi recolhendo sobre a viabilidade do projeto (21º p.i.);
21. À data da assinatura do contrato, tanto a A. como os RR. estavam convencidos da viabilidade de aprovação, pelas entidades competentes, de um projeto de construção para os terrenos que constituem o objeto do contrato prometido (22º p.i.);
22. Pretenderam os Contraentes garantir que, mesmo na ausência de aprovação do anteprojeto e na ausência de acordo sobre o destino a dar aos prédios, a A. teria o direito de preferência na aquisição, caso terceiros interessados oferecessem preço superior ao de € 400.000,00 estabelecido na cláusula primeira do contrato (27º p.i.);
23. Em 21 de janeiro de 2020, a A. recebeu uma carta subscrita pelo Advogado, Dr. …, em representação dos RR., na qual afirma o seguinte:
“Como é do v/ conhecimento os meus constituintes celebraram convosco contrato promessa de compra e venda de dois imóveis, nas condições ali previstas e contratadas.
Contudo, sendo o objetivo final a constituição de uma sociedade em que aqueles imóveis seriam integrados, por cedência da posição contratual, a constituir com distribuição de capital, em igual valor, pelos vendedores e compradora, e nas condições contratuais aí estipuladas, e não estando os meus constituintes convictos que não será possível o funcionamento da sociedade em igualdade de interesses, atentos alguns factos resultantes do relacionamento entre as partes entretanto ocorridos, vêm declarar a resolução do negócio com a disponibilidade de, no imediato, restituir o sinal e reforços de sinal pagos, acrescidos de juros remuneratórios à taxa de 4% ao ano a calcular sobre cada uma das prestações.
Em cumprimento da vontade aqui expressa pelos meus constituintes, solicito a V. Exa. se digne indicar um IBAN para o qual será transferido o sinal e reforço de sinal e juros calculados ao dia.
Desejam os meus constituintes que V. Exas. considerem que para além dos imóveis ficarem apenas no seio da família, a capacidade de investimento ou de assumir obrigações pelos meus constituintes é bastante limitada, pelo que tem como impossível o negócio final contratado.” (30º p.i.);
24. No dia 10 de fevereiro de 2020, o mesmo Advogado enviou nova carta, na qual referiu o seguinte:
“Remeti a V. Exa., em 21 de janeiro pp. missiva onde declarava que os meus constituintes declaravam a resolução do contrato promessa celebrado por motivos que apresentei.
Mais foi mencionado que os meus constituintes estavam disponíveis de imediato a proceder à restituição do valor recebido acrescidos de juros à taxa de juros moratórios (4% ao ano).
Dado o v/ silêncio acrescido da remessa de uma prestação que veio a ser devolvida, sou a informar que, face ao v/ silêncio, aceitam a declaração e a restituição nos termos propostos pelo irei proceder ao cálculo de juros e capital recebido para restituir para o IBAN de proveniência em 8 dias.” (31º p.i.);
25. No dia 3 de março de 2020, a A. recebeu nova carta do mesmo advogado, com o seguinte teor: “Na continuação da carta que anteriormente remeti a V. Exa. sou a informar que no próximo dia 10/11 de Março serão devolvidas as quantias recebidas a título de sinal e reforço de sinal, acrescido de juro remuneratórios calculados à taxa legal de 4% ao ano.
Como foi anteriormente declarado o modelo de negócio previsto não permite aos meus constituintes associarem-se a V. Exa. para o desenvolvimento do projeto para o desenvolvimento urbanístico dos prédios da titularidade dos meus constituintes. Neste contexto será devolvida a quantia recebida e juros para o IBAN de onde tem vindo a ser ordenada a transferência.
Assim, com data de 19 de Março de 2019, foi paga a terceiros € 80.000,00 que venceram juros de 3.129,86€;
O reforço de sinal pago em prestações mensais venceu os seguintes juros:
a) 3/04/2019 sobre € 1.000,00 – € 37,48
b) 6/05/2019 sobre € 1.000,00 – € 33,86
c) 3/06/2019 sobre € 1.000,00 – € 30,79
d) 2/07/2019 - sobre € 1.000,00 – € 27,62
e) 2/08/2019 sobre € 1.000,00 – € 24,22
f) 2/09/2019 sobre € 1.000,00 – € 20,82
g) 2/10/2019 sobre € 1.000,00 – € 17,53
h) 5/11/2019 sobre € 1.000,00 – € 13,81
i) 2/12/2019 sobre € 1.000,00 – € 10,85
j) 2/01/2020 sobre € 1.000,00 – € 7,45
Total € 212,43
Em suma será transferida a quantia de 90.000,00 Euros acrescida de € 3.342,29 em juros.” (32º p.i.);
26. A A., enquanto Promitente Compradora, procedeu, em 03/02/2020, à liquidação do Imposto Municipal sobre as Transmissões Onerosas de Imóveis, no valor de € 1.435,20 (29º p.i.);
27. No dia 14 de abril de 2020, a A. recebeu uma nova carta do mesmo advogado, com o seguinte teor:
“Pela presente e na sequência dos sucessivos contactos sem resposta efetuados por mim e meu constituinte, sem qualquer sucesso ou resposta, sou de novo, em representação de MO, JO e TO, dadas as faltas de garantias e perda da relação de confiança com a sociedade por V. Exas. representada, declara resolvido o contrato promessa de compra e venda e constituição de sociedade, celebrado com V. Exas. na data de 19 de março de 2019.
Naquele contrato está previsto o pagamento de crédito, garantido por hipoteca, com vista à extinção dos ónus e encargos sobre o prédio em cause pertencente a MO e o pagamento em prestações mensais de 1.000,00 (mil euros).
Esta quantia tem continuado a ser depositada com consequente restituição em conformidade com a comunicação que lhes foi dirigida, solicitando o não depósito daquelas quantias.
Assim queiram V. Exas. indicar o IBAN para o qual deverá ser restituída a quantia recebida, acrescida dos juros moratórios, quantificada desde o pagamento até à data da entrega. Sem outro assunto, fico a aguardar por uma resposta sob pena de efetuar o depósito junto do Tribunal Judicial.” (33º p.i.);
28. Em 29 de setembro de 2020, a A. enviou aos RR. uma carta registada com aviso de receção, carta essa que foi recebida pelas RR. MO e TO (34º p.i.);
29. Na aludida carta, a A. manifestou a sua oposição à resolução do contrato promessa e afirmou o incumprimento do contrato pelos promitentes vendedores (36º p.i.);
30. Na referida carta, a A. declarou que “como previsto no contrato, a Promitente Compradora desenvolveu intensas e diversas atividades com vista ao projeto urbanístico referido no próprio contrato. Tais atividades tinham em vista a aprovação do projeto.
No final de 2019, início de 2020, a Promitente Compradora veio a tomar conhecimento de que V. Exas., em manifesta traição à confiança que esta sociedade e os seus representantes haviam depositado quanto ao objeto do contrato e seus intervenientes, Promitentes Vendedores, estavam, simultaneamente, a negociar com terceiros os mesmos prédios objeto do Contrato Promessa de Compra e Venda.
De facto, e tanto assim era que, em janeiro de 2020, foi endereçada uma carta à Promitente Compradora por VC, Advogado, em vossa representação, declarando a resolução do contrato, conforme cópia que se junta.
Em 10 de fevereiro, nova carta do mesmo Advogado, reafirmava a resolução do contrato.
O mesmo aconteceu com uma terceira carta de 14 de abril, do mesmo Advogado, e com a mesma finalidade de reafirmar a resolução do contrato.
Entretanto, entre janeiro de 2020 e setembro de 2020, a Promitente Compradora, pagou nos termos do contrato, nove prestações de € 1.000,00, a título de reforço de sinal, das quais foram devolvidas sete.
A Promitente Compradora não admite a resolução do contrato anunciada unilateralmente pelos Promitentes Vendedores.
A invocada resolução não se funda na lei, nem em cláusula contratual mas apenas na vontade dos Promitentes Vendedores defraudarem as legítimas expectativas da Promitente Compradora, de ludibriarem esta e se conluiarem com terceiros para o prosseguimento dos mesmos objetivos previstos no contrato de que é parte a AG , S.A.
Sendo manifestamente ilegal e ineficaz a invocada resolução contratual, e persistindo V. Exas. na inequívoca declaração de que não estão dispostos a cumprir o contrato, vontade que se extrai inequivocamente das cartas enviadas pelo vosso Advogado e da devolução de prestações contratuais, só nos resta concluir que V. Exas. se colocaram numa posição de incumprimento definitivo do Contrato Promessa de Compra e Venda.
Face ao incumprimento definitivo por parte de V. Exas., Promitentes Vendedores, estão obrigados a devolver à Promitente Compradora os montantes recebidos a título de sinal e reforço de sinal, em dobro, no montante de € 196.000,00 (cento e noventa e seis mil euros), deduzidos dos € 7.000,00 (sete mil euros) já devolvidos, ou seja, constituíram-se V. Exas. devedores da Promitente Compradora do montante de € 189.000,00 (cento e oitenta e nove mil euros) a que acrescem juros à taxa de 4% ao ano, a partir da data da recepção da presente comunicação.
Dispõem V. Exas. do prazo de 5 dias úteis, a contar da recepção da presente comunicação, para procederem ao pagamento da aludida quantia.
A falta de pagamento no aludido prazo, determinará o recurso às vias judiciais.” (37º p.i.);
31. Os RR. não procederam ao pagamento do montante de € 189.000,00, pedido pela A. a título de dobro do sinal e reforços de sinal devidos pelo incumprimento do contrato (38º p.i.);
32. À data em que foi celebrado o contrato, a R. MO era devedora da quantia de € 80.000,00 a BM e tal dívida mostrava-se garantida por hipoteca sobre os prédios que foram objeto do CPCV (44º p.i.);
33. O credor hipotecário ameaçava executar a hipoteca (45º p.i.);
34. E os RR. não tinham nem recursos financeiros, nem crédito que lhes permitisse pagar a dívida ao credor hipotecário (46º p.i.);
35. Nessas circunstâncias, na mesma data e no mesmo momento da celebração do contrato promessa de compra e venda, a A. pagou a quantia de € 80.000,00 a BM, por meio de cheque bancário n.º …, do Millennium BCP, datado de 19/03/2019 (47º p.i.);
*
36. As transferências efetuadas pela A. após a carta de resolução enviada pelos RR. foram restituídas para a conta de proveniência (58º cont.);
37. A R., através do seu Advogado, em 28 de junho de 2020, remeteu, por email, mais uma missiva, na qual questionava da autorização da A. para se devolver as quantias recebidas para o IBAN de proveniência dos depósitos mensais, acrescidos de juros remuneratórios (67º cont.);
38. Nunca as missivas dirigidas pelo Advogado à A. obtiveram qualquer resposta, só em novembro tendo a A. optado por dirigir aos RR. uma resposta (68º cont.).
*
Este Tribunal da Relação de Lisboa considera que não ficou provado que:
a) O R. JO não levantou a carta que lhe foi remetida pela A., embora enviada para a sua morada constante do contrato promessa (35º p.i.);
b) Pouco tempo após a celebração do contrato, os RR. terão começado a negociar com terceiros os mesmos prédios (41º p.i.);
c) Os RR. visaram apenas, de forma fraudulenta, obter da A. o montante de € 80.000,00, a título de sinal, que lhes permitiu pagar ao credor hipotecário que ameaçava executar a hipoteca quando eles não tinham recursos para honrar tal compromisso inadiável (43º p.i.);
*
d) Após o estabelecimento do negócio, a promitente compradora, provavelmente pela complexidade de todo o processo de urbanização, começou a demonstrar desinteresse pelo projeto (39º cont.);
e) Não subscreveu o contrato de prestação de serviços com os técnicos (40º cont.);
f) Não pagou a adjudicação do trabalho ou os honorários devidos, de acordo com o calendário ali previsto (41º cont.);
g) Fazendo atrasar a realização dos procedimentos à apresentação do projeto (42º cont.);
h) E não estabeleceu o acordo parassocial para a constituição de sociedade bipartida, na qual se iriam titular quer os imóveis, quer o projeto urbanístico (42º cont.);
i) Todos os contactos e reuniões foram feitos em conjunto com o R. JO, o qual tomava a iniciativa de estabelecer os contactos (66º, als. a) a b), cont.);
j) O pagamento do IMT ocorreu por força do registo do contrato (66º, al. c), cont.).
VI.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Em causa está ora qualificar o contrato celebrado entre as partes e apurar do seu incumprimento e dos efeitos daí decorrentes.
Assim.
1. Da qualificação do contrato celebrado pelas partes
(Conclusões A a Z das alegações de recurso da A.).
A decisão recorrida considera que a factualidade apurada «aponta na direção do negócio misto»:
«No negócio de que se cura verifica-se que apesar de ser clara a dimensão inicial de contrato promessa de compra e venda de imóvel, esta não é consequente, na medida em que nada se prevê a propósito da futura celebração de um contrato de compra e venda, antes se interpõe uma segunda dimensão de acordo com vista à futura constituição de uma sociedade entre todas as Partes, que, inclusivamente, é a única situação contemplada na regulação das vicissitudes do contrato.
Com efeito, apenas se disciplinam as questões da aprovação ou rejeição do projeto urbanístico, nada se dizendo sobre o eventual incumprimento do contrato promessa ou compra e venda, designadamente a falta de pagamento do reforço do sinal.
Julgamos, a esta luz, que o tipo contratual dominante é a promessa de constituição de uma sociedade entre as Partes (arts. 410.º, n.º 1 e 980.º do CC)».
(Negrito da autoria dos aqui subscritores).
Por sua vez, em sede de recurso a A. considera estar em causa um «Contrato-Promessa de Compra e Venda de imóveis para pessoa a nomear, sujeito a condição resolutiva».
(Negrito da autoria dos aqui subscritores).
Apreciemos.
Na interpretação e integração do negócio jurídico importa considerar o disposto no artigo 236.º a 239.º do CCivil.
Nos termos do artigo 236.º, n.º 1, do CCivil, «[a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele».
Conforme artigo 237.º do CCivil, «[e]m caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios (…) onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações».
Segundo o disposto no artigo 238.º, n.ºs 1 e 2, do CCivil, «[n]os negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso», sendo que «[e]sse sentido pode, todavia, valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade».
No que aqui releva, quanto a negócio sujeito por lei a forma escrita, a sua compreensão deve ter uma mínima correspondência na letra do respetivo texto, salvo relativamente a matéria quanto à qual não se exija a forma prescrita na lei, devendo naquele condicionalismo considerar-se a intenção do declarante e a posição do declaratário, bem como as circunstâncias envolventes do negócio, segundo padrões de Justiça. 
Como referem Evaristo Mendes e Fernando Sá, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, edição de 2014, página 544, em anotação ao referido artigo 238.º do CCivil, “[a]os negócios formais aplicam-se as regras enunciadas nos artigos 236.º e 237.º, com as especificidades previstas no preceito que se anota (…). Atende-se, segundo a regra do artigo 236.º, n.º 1, ao «sentido que uma pessoa medianamente sagaz, informada, sensível e prudente», agindo de boa fé, ou seja, segundo «padrões de objetividade, rectidão e proteção dos interesses que o negócio visa regular» ou salvaguardar, «colheria do texto se estivesse colocada na posição do declaratário real», levando em conta a «intenção negocial» do declarante e «as circunstâncias envolventes, a que honestamente se poderia apelar, para surpreender o verdadeiro sentido [da sua declaração] de vontade»; e, dado o carácter formal do negócio, exclui-se «um sentido que não tenha no documento um mínimo de correspondência, a menos que estejamos perante circunstâncias que permitam a consideração do princípio “falsa demonstrativo non nocet”» (cf. o Ac. do STJ de 25.10.2011)».
Na matéria em causa, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.06.2022, processo n.º 1517/20.6T8FAR.E1.S1, refere que «[a] qualificação de um negócio jurídico postula, antes de mais, um problema de interpretação sobre a inerente declaração de vontade, na sua dupla função ambivalente: como acto de comunicação interpessoal e como acto determinativo ou normativo».
«A interpretação dos negócios jurídicos rege-se pelas disposições dos arts. 236 a 238 do CC, que consagram de forma mitigada o princípio da impressão do destinatário. Por conseguinte, na interpretação dos contratos prevalecerá, em regra, a vontade real do declarante, sempre que for conhecida do declaratário. Faltando esse conhecimento, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um destinatário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. Neste âmbito, deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações a determinados tópicos, ou seja, à “ordem envolvente da interacção negocial”, como a letra do negócio, as circunstâncias do tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as respectivas negociações, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei, os usos e costumes por ela recebidos, bem assim o comportamento posterior dos contraentes».
«Interpretar uma declaração negocial é actividade tendente a determinar o que as partes quiseram ou declararam querer. E, como se viu, esta vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante».
«Nos negócios formais, se o sentido da declaração não tiver reflexo ou expressão no texto do documento, ele não pode ser deduzido pelo declaratário e não deve por isso ser-lhe imposto (art. 238 do CC). Isto significa que a letra do negócio (o texto do documento) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação. Optou-se por uma orientação objectiva porque se pretende apurar qual o sentido a atribuir à declaração considerada relevante para o direito, em face dos termos que a constituem».
Considere-se, assim, o contrato em causa nos autos, a partir da sua letra, mas sem olvidar a intenção das partes decorrente do respetivo contexto.
Nestes termos, decorre da factualidade apurada que:
- As partes celebraram entre si um contrato que intitularam de “contrato promessa de compra e venda”, no qual os RR. assumiram a posição de promitentes vendedores e a A. a de promitente compradora, sendo que a compra e venda refere-se a dois imóveis de que os RR. eram donos e o preço da venda foi estipulado em €400.000,00, factos provados 1 a 3 e 5;
- Nos termos do contrato, a A. assumiu, “com a assinatura do (…) contrato, o pagamento da quantia de €80.000,00 (…) devida pela R. MO a BM, conforme cessão de créditos a subscrever entre a” A. “e aquele credor, que se anexa e dá por integralmente reproduzido e fica constituído o ANEXO VI”, sendo que tal “valor pago de €80.000,00” assumiria “natureza de sinal e princípio de pagamento e não vence juros”, facto provado 9;   
- Em conformidade com o clausulado pelas partes, “a título de reforço de sinal” a A. obrigou-se a pagar ao R. JO a quantia mensal de €1.000,00 por mês, durante sessenta meses”, facto provado 10; 
- Ainda conforme o contrato, a A. obrigou-se a “desenvolver o projeto urbanístico (…) que melhor valorização vier a trazer para os prédios objeto” do contrato, estabelecendo-se para o efeito “um prazo de 5 anos, sem prejuízo de prorrogação”, facto provado 6;
- As partes acordaram também que caso tal “projeto” fosse aprovado, a A. cederia “a sua posição contratual de promitente compradora (…) a uma sociedade a constituir entre” as partes, “na qual o capital social” ficaria “repartido em 50% para a” A. e “50% para” os RR., sendo que “o valor da quota a realizar na sociedade pelos” RR. seria “a deduzir no preço da venda dos imóveis (…) estabelecido” e “constituída a sociedade e desenvolvido o” projeto, “a parte do preço ainda em dívida aos” RR. seria “paga a partir do preço das receitas provenientes das vendas da frações autónomas das edificações a construir“, conforme facto provado 7;     
- Acordaram ainda que “no caso, de as autoridades competentes reprovarem o anteprojeto do Projeto imobiliário e as Partes não chegarem a acordo sobre novos projetos a desenvolver para os mesmos prédios, se” os RR. “desejarem venderem os prédios”, a A. teria “direito de preferência na aquisição”, facto provado 8.
Ponderando em conjunto tal factualidade apurada, conforme refere a decisão recorrida, também este Tribunal da Relação entende estar-se perante um contrato misto, entendido este como «aquele que reúne em si regras de dois contratos total ou parcialmente típicos (…), assumindo-se dessa forma como um contrato atípico, por não corresponder integralmente a nenhum tipo contratual regulado na lei», conforme Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume I, edição de 2018, páginas 204 e 205.
Com efeito, o contrato celebrado entre as partes e em causa nos presentes autos congrega normativo respeitante à promessa de compra e venda de imóveis, à promessa de constituição de sociedade, ao pacto de preferência, à cessão de créditos e à prestação de serviço.       
Tal como refere a decisão recorrida, confrontando o clausulado das partes, conclui-se uma manifesta prevalência da promessa de constituição de uma sociedade frente aos demais contratos típicos: (i) o contrato de compra e venda prometido será celebrado com a sociedade a constituir, (ii) as partes do contrato em causa correspondem àquelas que serão outorgantes naquele contrato de sociedade, (iii) o preço da compra e venda será integralmente realizado no âmbito da atividade societária, (iv) a cessão de créditos visa assegurar que os prédios não sejam transferidos para terceiro e, pois, pretende salvaguardar a transferência da respetiva propriedade para a sociedade a constituir entre as partes, (v) a prestação de serviços tem em vista a aprovação do projeto urbanístico a desenvolver pela referida sociedade a constituir e (vi) prevê-se os efeitos da reprovação do projeto imobiliário, da falta de acordo das partes sobre novos projetos e da eventual venda dos prédios prometidos a terceiros, mas não do incumprimento da prometida à venda à A.
A «pessoa a nomear» enquanto compradora dos imóveis em causa é uma sociedade a constituir pelas partes, prometida por estas, constituindo, assim, a promessa de constituição da sociedade elemento nevrálgico do acordado pelas partes.
Diversamente do que entendem os RR., configura-se inócua a colação do artigo 9.º do Código das Sociedades Comerciais, pois este refere-se aos elementos do contrato de sociedade, não do contrato de promessa de sociedade.
In casu está, pois, em causa um contrato misto cujo tipo contratual prevalecente é a promessa de constituição de uma sociedade entre as partes.
2. Do incumprimento dos RR. e consequente resolução contratual.
Conforme decorre do relatório do presente acórdão, no seu dispositivo a decisão recorrida declarou a «a resolução do contrato firmado entre» as partes, «em razão do incumprimento definitivo daquela promessa pelos RR.».
Ora tal não foi objeto de recurso pelas partes, pelo que este Tribunal da Relação tem por assente que o contrato sub judice foi resolvido por incumprimento contratual dos RR.  
Como bem se refere na decisão recorrida que aqui se subscreve, a carta dos RR. de 21.01.2020, facto provado 23, «deve ser interpretada como uma declaração categórica de recusa de cumprimento (art. 236.º do CC), geradora do incumprimento definitivo do contrato e fundamento da sua resolução, sem necessidade de interpelação admonitória por parte da A.».
3. Dos efeitos jurídicos da resolução do contrato.
(Conclusões AP a AAU das alegações de recurso da A.
Conclusões 1 a 19 e 22 a 24 das alegações de recurso dos RR.)
Nesta sede, entende a A. que os RR. devem ser condenados «no pagamento do sinal e reforços de sinal em dobro como pedido na p.i.», ao passo que os RR. concluíram que o R. JO deve ser condenado no montante de «€9.000,00 acrescidos de juros de mora à taxa civil».
Apreciemos.
Nos termos do artigo 433.º, 434.º, n.º 1, e 435.º, n.º 1, do CCivil, [n]a falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico (…)», sendo que «[a] resolução tem efeito retroativo, salvo se a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução», não podendo, contudo, prejudicar «os direitos adquiridos por terceiros».
Por sua vez, o artigo 289.º, n.º 1, do CCivil preceitua que «[t]anto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente». 
No que aqui releva, temos, pois, que a resolução contratual determina, em regra, a restituição do que haja sido entregue com a celebração do contrato resolvido.
Como refere Pedro Romano Martinez, Direito das Obrigações, Programa 2017/2018, Apontamentos, Edição de 2017, páginas 227 e 228, «a resolução é equiparada à nulidade ou à anulabilidade dos negócios jurídicos (art. 433.º); ela tem efeitos retroativos (arts. 289.º, n.º 1, e 434.º, n.º 1). As partes devem ficar na situação em que estariam se não tivessem celebrado o contrato; pretende-se, pois, estabelecer o status quo ante».
«(…) A resolução do contrato pressupõe a constituição de uma nova relação jurídica, derivada da anterior, com obrigações de devolução recíprocas (…); ela cria uma relação legal que obriga as partes a devolverem o que receberam».
Por outro lado, determina o artigo 442.º, n.º 2, 1.ª parte, do CCivil que «[s]e quem constitui o sinal deixar de cumprir a obrigação por causa que lhe seja imputável, tem o outro contraente a faculdade de fazer sua a coisa entregue; se o não cumprimento do contrato for devido a este último, tem aquele a faculdade de exigir o dobro do que prestou».
Por sua vez, estabelece o artigo 441.º do CCivil que «[n]o contrato-promessa de compra e venda presume-se que tem carácter de sinal toda a quantia entregue pelo promitente-comprador ao promitente-vendedor, ainda que a título de antecipação ou princípio de pagamento do preço».
Ou seja, em caso de resolução do contrato em razão de incumprimento contratual por parte de quem deu um sinal, o contraente incumpridor deve restituir o sinal em dobro ao outro contraente, cumpridor, sendo que no contrato promessa de compra e venda a lei presume terem a natureza de sinal todas as quantias entregues pelo promitente comprador ao promitente vendedor.
In casu.
Do ponto de vista literal, no contrato em causa, as partes conferiram às referidas quantias de €80.000,00 e €17.000,00 a natureza de «sinal» e «reforço de sinal», respetivamente, e intitularam o mesmo contrato como sendo um «contrato promessa de compra e venda».
Conforme supra, na hermenêutica do contrato não pode, contudo, o mesmo ser como tal encarado: trata-se, antes, de um contrato misto cujo tipo contratual prevalecente é a promessa de constituição de uma sociedade entre as partes.
Nestes termos, não é aplicável in casu a presunção do referido artigo 441.º do CCivil.
No mais, do cotejo das diversas cláusulas contratuais não decorre que da referência a «sinal» e «reforço de sinal» pretendessem as partes conferir a natureza de cláusula penal às quantias em causa verificada que fosse uma situação de incumprimento contratual por parte de alguma das partes e consequente resolução do contrato.
O contrato em causa é absolutamente omisso quanto àquela situação de incumprimento, prevendo-se tão-só na cláusula quarta a situação de aprovação do projeto e na cláusula quinta o caso de reprovação do projeto pelas autoridades competentes, nada nos fazendo deduzir, como pretende a A., que o incumprimento contratual dos RR. implicava a restituição em dobro das quantias satisfeitas a título de «sinal» e «reforço de sinal».
Como bem refere a decisão recorrida, tais quantias «não se mostram afetas, na economia global do contrato, à finalidade de contrapartida da transmissão da propriedade do imóvel, mas sim de quantias a considerar no âmbito do contrato de sociedade a celebrar entre as partes».
«[N]ão obstante a designação utilizada pelas Partes, entendemos não estar em presença de sinal, mas sim de uma antecipação do cumprimento, por referência àquele que é o elemento dominante no negócio, a futura constituição de uma sociedade».
Estranhamente, ao contrário do que sustentaram na contestação, os RR. vêm ora, em sede recursiva, alegar não ser devido no âmbito destes autos a quantia de €80.000,00 paga pela A. no âmbito da intitulada «cessão de créditos» outorgada com BM.
Ora, também aqui a literalidade perverte o espírito do contrato vertente.
Uma vez que o projeto urbanístico assentava em dois imóveis e um deles estava hipotecado, com risco de execução, conforme factos provados 32 a 35, o que as partes quiseram foi o distrate da hipoteca, com o pagamento pela A. aos credores hipotecários da quantia de €80.000,00, sendo que este valor seria depois considerado no âmbito da sociedade que A. e RR. prometeram constituir.
Se é certo que a cessão de créditos não extingue o respetivo crédito, na hermenêutica do contrato em causa o pagamento da referida quantia de €80.000,00 tinha esse desiderato, constituindo, assim, um incremento patrimonial para os RR. de igual montante, pois desse modo ficavam os mesmos desonerados da hipoteca e do pagamento da quantia correspondente ao seu distrate.
Neste contexto, fundando-se a causa de pedir no contrato celebrado pelas partes em 19.03.2019 e inserindo-se a apontada quantia de €80.000,00 no âmbito das correspondentes relações contratuais, afigura-se justificada a devolução daquela quantia nos termos dos referidos artigos 433.º e 289.º, n.º 1, do CCivil.
Em suma, na situação vertente importa aplicar o regime geral decorrente dos apontados artigos e, pois, devem os RR. devolver à A. as indicadas quantias que incrementaram o património daqueles.
Atentos os factos provados 9, 11 e 35, feita a respetiva liquidação, temos que tais quantias totalizam o montante de €89.000,00 - ou seja, €80.000 + (17.000,00 – 8.000,00), valor em que os RR. devem ser condenados a pagar à A.
Embora as apuradas prestações mensais de €1.000,00 tenham sido entregues ao R. JO, conforme facto provado 11, na economia do contrato em causa não se olvide que aquele R. assumiu-se perante a A. como interlocutor de todos os RR., conforme facto provado 18, termos em que se justifica a condenação solidária dos RR.  
Do exposto resulta, pois, que improcede integralmente o recurso da A. e procede em parte, quanto a €1.000,00, o recurso dos RR.
*
Quanto às custas do recurso.
Segundo o disposto nos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPCivil e 1.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais, «[a] decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa», entendendo-se «que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção que o for».
Ora, in casu improcede na totalidade o recurso da A. e procede numa parcela residual o recurso dos RR., pelo que as custas do recurso da A. serão por ela integralmente suportados, ao passo que as custas do recurso dos RR. será suportado por estes e pela A. na proporção de 99% e 1%, respetivamente.

VII.
DECISÃO.  
Pelo exposto,
1. Não se admitem os documentos juntos pela A. após o encerramento da audiência final;
2. Julga-se improcedente o recurso da A. e parcialmente procedente o recurso dos RR. e, em consequência, condeno estes a pagar à A. a quantia de € 89.000,00 (oitenta e nove mil euros), acrescida de juros de mora sobre aquela quantia, desde 13.10.2020 até à presente data, à taxa de 4%, e desde a presente data até efetivo e integral cumprimento, à taxa legal, mantendo no mais a decisão recorrida.
Pela apresentação intempestiva dos referidos documentos, condena-se a A. na multa de duas UC’s.
As custas do recurso da A. serão por esta suportadas.
As custas do recurso dos RR. serão suportadas por estes e pela A. na proporção de 99% e 1%, respetivamente.

Lisboa, 18 de abril de 2024
Paulo Fernandes da Silva
Carlos Castelo Branco
Orlando Nascimento

[1] Na decisão recorrida consta «25/11/2020», o que constitui por certo um lapso de escrita: conforme decorre dos factos provados 15, 16 e 19, em causa está o ano de «2019», não o de «2020»