ERRO NA DECLARAÇÃO
ERRO DE ESCRITA
RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS
INVENTÁRIO
LICITAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


I - O erro de escrita, enquanto erro ostensivo que se revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita, é concebido como “erro-obstáculo de natureza especial”, que só dá direito à rectificação nos termos do art. 249.º do CC, pois, em bom rigor, não chega sequer a haver uma divergência entre a vontade e a declaração.
II - Num processo de inventário em que uma interessada apresentou uma proposta para licitar um apartamento, a que correspondia a verba 15, mas escreveu “Pelo apartamento, Verba 14, oferece € 126.500,01”, sendo certo que não existia outro apartamento a partilhar, configura um ostensivo erro de escrita, rectificável nos termos do regime dos arts. 249.º e 295.º do CC.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO



1.1.- AA requereu (23-4-2019) em Cartório Notarial, sito em ..., o inventário para partilha por óbito (26-8-2016) de BB.

São interessados (herdeiros) CC (que exerce as funções de cabeça de casal), DD, EE, FF, GG e AA.

1.2.- Na conferência de interessados procedeu-se à adjudicação de bens mediante apresentação de propostas em carta fechada.

A interessada CC apresentou a seguinte proposta escrita:

“Pelo apartamento

Verba 14

oferece € 126.500,01”

A que se segue a assinatura de tal interessada.

O interessado AA apresentou a seguinte proposta escrita:

“PELO ARTIGO MATRICIAL: 6465 DA UNIÃO DE FREGUESIAS DE..., ..., ... E ... COMPRO PELO VALOR DE 90.000€ (NOVENTA MIL EUROS)

..., 2022/03/21”.

A que se segue a assinatura de tal interessado.

1.3. Na acta da conferência de interessados de 21 de Março de 2022, consta o seguinte:

“(…)

Iniciada a diligência foram apresentadas pelos interessados as propostas que se anexam, abertas pelo Notário, na presença de todos

De seguida o Notário proferiu o seguinte

DESPACHO

Admitem-se as propostas por obedecerem aos requisitos legais nomeadamente quanto ao valor mínimo exigido para cada verba. Aceita-se para cada uma das verbas a proposta de maior valor pelo que ficam adjudicadas nos termos seguintes:

CC – verba 14 – 126.500, 01 €;

FF – verbas 10 – 20.000,01€; 12 – 1500,01€;

GG – verbas 9 – 95.500€; 11 – 300€; 13 – 20€;

AA – verba 15 – 90.000€.

Do despacho foram os intervenientes devidamente notificados.

Pelo Ilustre Mandatário da interessada CC foi dito que iria apresentar reclamação.

Para constar lavrou-se o presente auto que vai ser devidamente assinado”.

1.4.- A interessada CC reclamou, alegando, em síntese:

A proposta que apresentou padece de “erro na declaração, porquanto se identificou o apartamento, como Verba 14, quando na realidade corresponde a Verba 15”.

No acto, antes da abertura das propostas, levantou a questão, tendo sido admitida a existência de tal erro por todos os interessados, com excepção do interessado AA.

Bem como que a verba 14 constitui uma garagem e a 15 o único apartamento a partilhar, tendo qualificado a verba 14 como “apartamento”, sendo os referidos bens inconfundíveis, pelo que, defende, é patente o erro na declaração.

Requer, consequentemente, que seja aceite a rectificação na declaração da proposta, no sentido de que se refere à verba 15, adjudicando-se-lhe a mesma.

O interessado AA opôs-se, no sentido de dever manter-se o constante da acta de conferência de interessados ou, a considerar-se a existência do alegado erro, que seja anulada apenas a adjudicação da verba 14, mantendo-se as demais, designadamente a 15, que lhe foi adjudicada.

1.5. - O Ex.mo Notário deferiu a reclamação, adjudicando à interessada CC pelo valor de 126.500,01 € a verba 15 e ao interessado AA a verba 14 pelo montante de 500€, tendo a mesma, posteriormente, vindo a ser adjudicada à interessada GG.

Considerou como provado, em virtude do exercício das suas funções, que, logo no decurso da conferência, enquanto lia as ofertas para cada verba e anunciava a vencedora “o Exmº Mandatário da interessada CC (…) afirmou “Acho que me enganei na verba”.

1.6.- O interessado AA interpôs recurso do despacho que deferiu a reclamação, o qual não veio a ser admitido, por se considerar que só seria impugnável no recurso interposto da decisão final.

1.7.- No prosseguimento dos autos, elaborou-se o mapa da partilha, sem que lhe fossem deduzidas reclamações, pelo que o Ex.mo Notário ordenou a remessa dos autos ao Tribunal competente, a fim de ser proferida a sentença homologatória da partilha.

1.8.- Na Comarca de... (Juízo Local Cível), em 9-6-2022 foi proferida a seguinte sentença:

“Nos presentes autos de inventário, instaurado por óbito de BB falecida a 26.08.2016, com última residência habitual em ..., decide-se homologar, por sentença, a partilha constante do mapa elaborado a 21.09.2022 pelo Ex.mo Senhor Notário Dr. HH, adjudicando a cada um dos interessados os bens que por ali lhes ficaram a caber no preenchimento dos respectivos quinhões hereditários – cf. Lei n.º 23/2013, de 05-03, art.º 66º-1.--

Custas a cargo dos interessados, na proporção do que receberam – cf. Lei n.º 23/2013, de 05-03, art.º 67º-1. --

Valor: €347.364,64 - cf. CPC, art.º 302º-3.

Notifique e registe.”

1.9.- O interessado AA recorreu de apelação e a Relação de Coimbra, por acórdão de 24-10-2023 decidiu negar provimento ao recuso e confirmar a sentença.

1.10. – O interessado AA recorreu de revista, em cujas conclusões postula as seguintes questões:

A nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;

A incorreta aplicação do artº 247 do Código Civil;

A contradição com o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7/05/2015 no processo 1457/10.7TBOAZ-A.P1 que se encontra publicado em www.dgsi.pt e já transitado em julgado.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. - Para a decisão do recurso relevam, porque documentados, os elementos processuais descritos, a que acrescem os seguintes:

1. Conforme consta da relação de bens apresentada, a verba 14, corresponde a um terço indiviso da fracção autónoma designada pela letra L, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, correspondente ao PISO -2, afecto a estacionamento coberto e fechado, sito na Rua ... (…) da freguesia de ..., com o valor patrimonial para efeitos de IMT, correspondente à fracção, de 6.834,33 €.

2. A verba 15, corresponde à fracção autónoma para habitação, designada pela letra F, do prédio constituído em regime de propriedade horizontal, correspondente ao 2.º andar direito, de tipologia T3, sito na Rua ..., Urbanização ..., (…) com valor patrimonial para efeitos de IMT, de 70.644,00 €.

3. Como resulta do teor da Relação de bens (cf. fl.s 23 a 24 v.º), o único bem nela relacionado, definido como “fracção autónoma para habitação” é o descrito na verba 15.

2.2. - O recorrente arguiu a nulidade do acórdão, por omissão de pronúncia (art.615 nº1 d) CPC), alegando que a Relação não se pronunciou sobre a inconstitucionalidade invocada no recurso de apelação relativamente à interpretação que o tribunal da 1ª instância fez do artº 66º nº 1 da Lei 23/2013 no sentido de que a decisão homologatória da partilha se restringe à apreciação do mapa de partilha, por violar o artº 2º, 202ºnº1 e 2 e 204 da C.R.P.

As nulidades da sentença ou acórdão reconduzem-se a erros de actividade ou de construção da própria decisão e não devem ser confundidos com eventual erro de julgamento.

A nulidade de omissão de pronúncia traduz-se no incumprimento, por parte do julgador, do dever prescrito no art.608 nº2 do CPC, que é o de resolver todas as questões submetidas à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras. Porém, conforme entendimento jurisprudencial uniforme, a nulidade consiste apenas na falta de apreciação de questões que o tribunal devesse apreciar, sendo irrelevante o conhecimento das razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Por outro lado, não há omissão de pronúncia quando a matéria tida por omissa ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada, assim como a abordagem sintética das questões suscitadas pelas partes não equivale à omissão de pronúncia.

Em primeiro lugar, impõe-se referir que em parte alguma na sentença homologatória da partilha se fez a imputada interpretação do art.66 nº1 da Lie nº 23/2013. É sabido que o controlo da constitucionalidade tem natureza estritamente “ em que a norma é tomada, não com o sentido genérico e objectivo plasmado no preceito (ou fonte) que a contem, mas em função do modo como foi perspectivada e aplicada à dirimição de certo caso concreto pelo julgador”, mas o recurso de constitucionalidade, reportado a determinada interpretação normativa tem de incidir sobre o critério normativo da decisão, sobre uma regra abstractamente enunciada e vocacionada para uma aplicação potencialmente genérica – não podendo destinar-se a pretender sindicar o puro acto de julgamento ( cf. Lopes do Rego, “O objecto idóneo dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: as interpretações normativas sindicáveis pelo Tribunal Constitucional“, Jurisprudência Constitucional nº3, Julho/Setembro 2004, pág.7 ).

O acórdão recorrido considerou que a sentença homologatória da partilha, proferida ao abrigo do disposto no artigo 66.º, n.º 1, da Lei n.º 23/2013, de 5/3, deve pronunciar-se sobre as operações e/ou pressupostos que conduziram à forma como a partilha foi efectuada, não se podendo limitar à sua simples homologação, razão pela qual declarou a nulidade da sentença e em substituição conheceu passou a conhecer da invocada questão da legalidade da forma como foi decidida a questão das licitações efectuadas.

Sendo assim, é clarividente que a suscitação da alegada inconstitucionalidade ficou prejudicada, pelo que não há logicamente falta de pronúncia, improcedendo a pretensa nulidade.

2.3. - Segundo os elementos factuais disponíveis, é apodíctico que a interessada CC quis licitar no apartamento, e assim o declarou expressamente, para o qual fez a proposta de € 126.500,01, só que em vez de mencionar a correspondente verba 15 escreveu a verba 14.

Será erro na declaração ou erro (lapso) de escrita?

O erro na declaração ou erro-obstáculo (art.247 CC) verifica-se nos casos em que, sem intenção, a vontade declarada não corresponde a uma vontade real do autor, existente, mas de sentido diverso.

O seu regime difere consoante as três sub-hipóteses, tratadas legalmente de modo diferente:

a) – erro conhecido do declaratário ou destinatário da declaração. Neste caso, o negócio vale segundo a vontade real do declarante, conforme o art.236 nº2 do CC.

b) – erro cognoscível ou ostensivo, ou seja, quando a divergência entre a vontade real e a vontade declarada é apreensível com segurança pelos próprios termos e circunstancialismo da declaração, e nesta situação o negócio vale como é querido.

c) – erro não conhecido, nem ostensivo, em que o regime do erro-obstáculo é o do erro-vício quanto à pessoa do declaratário ou quanto ao objecto do negócio, sendo anulável a declaração, nos termos previstos no art.247 do CC.

Os erros ou lapsos de escrita são aqueles que, pelo contexto da declaração e das circunstâncias em que ela foi feita, se revelam ostensivamente como erro mecânico de escrita e dão direito à rectificação (art.249 e 295 CC).

Neste caso, não há uma verdadeira divergência entre a vontade e o declarado porque partindo do critério do art.236 CC a vontade deduz-se dos termos, contexto e circunstâncias da declaração. Daí que a consequência não seja a anulabilidade do acto, mas a simples correcção.

Sendo assim, o erro de escrita enquanto erro ostensivo que se revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita, é concebido como “erro-obstáculo de natureza especial”, que só dá direito à rectificação nos termos do art.249 CC, pois, em bom rigor, não chega sequer a haver uma divergência entre a vontade e a declaração. Como se afirma no Ac STJ de 16/4/2002 (proc nº 02A713), em www dgsi. - “O lapsus linguae e o lapsus calami (erro material, erro mecânico) são hipóteses susbsumíveis a uma modalidade de erro na declaração que ocorre quando a vontade de declaração exista com um certo conteúdo, mas não coincida, por erro, nem com a vontade funcional nem com a vontade declarada. A pessoa queria dizer x e, por erro, disse y, ou queria escrever z e por erro escreveu k”.

A situação dos autos reconduz-se, a nosso ver, a um ostensivo erro de escrita, rectificável nos termos do regime do art.249 e 295 do CC, revelado pelo texto, contexto e circunstâncias da declaração.

Em primeiro lugar, porque a interessada CC escreveu expressamente na sua proposta que o preço se referia ao apartamento (Pelo apartamento, Verba 14, oferece …”.), significando que, à luz dos critérios de interpretação (arts.236 e 238 CC), quis e declarou a sua proposta relativamente ao apartamento e não a outro bem, pelo que não há sequer uma divergência entre a vontade e a declaração.

Depois, sabe-se que só existia um único apartamento a partilhar, a que correspondia a verba 15.

Acresce que o preço proposto (€ 126.500,01) é compatível com a verba 15, e não com o da verba 14, de valor objectivamente inferior, por se tratar de um terço de uma garagem.

Além disso, o Ex.mo Notário documentou (cf despacho de 29/4/2022) que quando estava a ler as propostas, logo o mandatário da interessada CC apontou o lapso, ao afirmar que se enganara na verba.

Estes tópicos de argumentação reforçam o erro de escrita, segundo o regime especial do art.249 CC, e não do erro na declaração do art.247 CC.

Neste sentido, por exemplo, Ac STJ de 6-6-1990 (proc nº 078833), em www dgsi.pt, ao decidir – “Se as partes quiseram transacionar certa fracção de um prédio, que era a designada pela letra I, e não a F que vieram a transacionar, a situação não se enquadra na anulabilidade do artigo 247 do Código Civil, mas sim no erro de escrita do artigo 249 do mesmo Código”.

Alega o recorrente a existência de contradição com o Ac Relação do Porto de 7/05/2015 no processo 1457/10.7..., mas para além da qualificação ser diversa, também não existiria divergência, como se justificou no acórdão recorrido, pois nele estava em causa uma situação bem diversa, dado que aí a interessada “licitou a verba 2 da relação de bens convencida que a mesma apresentava determinadas características que posteriormente veio a constatar não lhe corresponderem. Por conseguinte, a falsa representação da realidade condicionou-a quer quanto à formação de vontade na aquisição dos bens que supunha integrarem a verba sobre a qual licitou, quer quanto à declaração negocial que emitiu”.

Improcede o recurso, confirmando-se o douto acórdão recorrido.

2.4. – Síntese conclusiva

1.- O erro de escrita, enquanto erro ostensivo que se revela no próprio contexto da declaração ou das circunstâncias em que a declaração é feita, é concebido como “erro-obstáculo de natureza especial”, que só dá direito à rectificação nos termos do art.249 CC, pois, em bom rigor, não chega sequer a haver uma divergência entre a vontade e a declaração.

2.- Num processo de inventário em que uma interessada apresentou uma proposta para licitar um apartamento, a que correspondia verba 15, mas escreveu “Pelo apartamento, Verba 14, oferece € 126.500,01”, sendo certo que não existia outro apartamento a partilhar, configura um ostensivo erro de escrita, rectificável nos termos do regime do art.249 e 295 do CC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar improcedente a revista e confirmar o acórdão recorrido.

2)


Condenar o recorrente nas custas.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 23 de Abril de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Jorge Leal

Pedro de Lima Gonçalves