ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
VENDA JUDICIAL
ENTREGA DO BEM AO COMPRADOR
Sumário


I. Na ação de divisão de coisa comum, frustrando-se o acordo sobre a adjudicação da coisa indivisível, deve o juiz ordenar a venda da coisa, podendo os consortes concorrer à venda.
II. A venda, assumindo uma natureza executiva, é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução.
III. Sendo, nesse contexto, a venda de coisa corpórea realizada por propostas em carta fechada, uma vez pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao comprador, emitindo-se o título de transmissão a favor deste.
IV. Não ocorrendo a entrega, por recusa de um dos comproprietários, o adquirente pode, com base no título de transmissão, requerer, na própria execução, a entrega da coisa, nos termos prescritos no art. 861, “deviamente adaptados”, por força do disposto no art. 828 do CPC.
V. Esta norma prevê um procedimento desburocratizado, de natureza executiva, que é enxertado na própria ação em que foi realizada a venda, não sendo de exigir a propositura de uma nova ação (executiva para entrega de coisa certa).

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA intentou ação, sob a forma de processo especial de divisão de coisa comum, contra BB alegando, em síntese, que: ambos são comproprietários do prédio urbano, composto de casa com dois pavimentos, dependência e logradouro, sito na Rua ..., lugar..., ... ..., concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artº ...32 da União de Freguesias ... e ... e descrito na Conservatória do Registo Predial ... o nº ...25/...; pretende pôr termo à situação de compropriedade, o que não é possível através da divisão material do prédio.
Concluiu pedindo a adjudicação ou a venda do prédio.
Citada, a Requerida não apresentou oposição, mas constituiu mandatário judicial.
No despacho saneador, proferido a 13 de outubro de 2022, foi: afirmada, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; fixado o valor processual da causa em € 90 000,05; declarada a indivisibilidade material do prédio; fixados os quinhões dos comproprietários em partes iguais.
Na conferência de interessados, realizada no dia 17 de novembro de 2022, as partes não chegaram a acordo quanto à adjudicação do prédio, pelo que foi determinada a venda através de propostas em carta fechada.
Na sequência, tanto o Requerente como a Requerida apresentaram propostas, tendo sido aceite a do primeiro, por ser a mais elevada.
Depositado o preço e demonstrado o cumprimento das obrigações fiscais, foi proferido, no dia 29 de maio de 2023, despacho a adjudicar a propriedade do prédio ao Requerente.
No dia 21 de dezembro de 2023, foi proferido despacho a fixar em 15 dias o prazo para que a Requerida procedesse à entrega do prédio, sob pena de ser determinada a entrega coerciva.
Decorrido esse prazo, o Requerente veio dizer que o prédio não lhe foi entregue. Concomitantemente, requereu a entrega coerciva, nos termos previstos no disposto no art. 828 do CPC, a realizar com o auxílio da força policial e, caso necessário, mediante o arrombamento de portas.

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2) No dia 15 de fevereiro de 2024, foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido):

“A requerida opõe-se a que seja determinada a entrega, defendendo que, em seu entender, o interessado adquirente deveria intentar a competente ação executiva.
Cumpre apreciar, impondo-se um breve arrazoado da tramitação processual seguida, conforme se referiu supra.
Nos presentes autos de divisão de coisa comum, não tendo sido obtido o acordo das partes na conferência de interessados, determinou-se o prosseguimento dos autos para venda cfm. ata de 17/11/2022.
Feitas as competentes citações legais, veio a ser aceite a proposta apresentada pelo requerente, cfm. auto de 26/4/2023 e, feito o depósito do preço e pagas as obrigações fiscais, o imóvel veio a ser adjudicado ao requerente, por despacho de 29 de Maio de 2023.
Ora, quanto à tramitação do processo de divisão de coisa comum, processo especial, o artigo 549º, nº 1 do CPC estatui que os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo o quanto não estiver prevenido numas e noutras, observa-se o que se acha estabelecido para o processo comum.
O nº 2 do mesmo normativo acrescenta que quando haja lugar a venda de bens, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução e precedida das citações ordenadas no artigo 786.º, observando-se quanto à reclamação e verificação dos créditos as disposições dos artigos 788.º e seguintes, com as necessárias adaptações, incumbindo ao oficial de justiça a prática dos atos que, no âmbito do processo executivo, são da competência do agente de execução.
Dos normativos citados decorre que, prosseguindo o processo de divisão para a venda, como foi o caso, esta é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução.
Ora, quanto à venda no processo de execução estatui o artigo 828º do CPC que o adquirente pode, com base no título de transmissão a que se refere o artigo anterior, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no artigo 861.º, devidamente adaptados.
Temos, por isso, como manifesto e linear, que o interessado adquirente tem direito à entrega da coisa que adquiriu e já pagou.
Salienta-se ainda que a doutrina vertida no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. nº 5747/19.5T8VNF.G1, de 16-03-2023 que a requerente invoca não é aplicável ao caso concreto, uma vez que nesse processo não houve qualquer venda, contrariamente aos presentes autos, em que o bem foi vendido ao requerente.
Pelo exposto, é de deferir a pretensão do requerente de entrega do imóvel.
Ademais, considerando que lhe foi já concedido por duas vezes prazo para sair voluntariamente e não saiu, considero existir justificado receio de oposição de resistência à entrega do imóvel, e, em consequência, autorizar-se-á o auxílio da força pública.
Pelo exposto: a) Nos termos do disposto no artigo 825º, 861º ambos aplicáveis ex vi o disposto no artigo 549º, nº 2 do CPC, determino que o adquirente seja investido na posse efetiva do bem imóvel que adquiriu nos autos, através da sua entrega coerciva; b) E, ao abrigo do disposto no artigo 757.º n.ºs 3 e 4 do CPC, autorizo (em caso de estrita necessidade) a requisição do auxílio da força pública para a realização da diligência, incluindo o arrombamento e substituição da fechadura (em caso de estrita necessidade), devendo ser observadas as formalidades previstas nos n.ºs 5 a 7 do mesmo artigo.”
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3) Inconformada com o despacho que antecede, a Requerida (daqui em diante, Recorrente), interpôs o presente recurso, composto de alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“A. Salvo entendimento contrário, não poderá ser emitido título de transmissão, porquanto a Decisão em causa não transitou em julgado.
B. salvo entendimento contrário, foi violado o art. 628º do CPC.
C. Salvo o devido respeito por opinião diversa, não podemos concordar com tal entendimento plasmado no Douto Despacho que, mais não é que uma subversão das finalidades da ação executiva.
D. Caso a Requerida não abandone o imóvel, o Adquirente, ora Apelado, deverá instaurar o competente requerimento executivo para entrega de coisa certa cujo processo segue forma única (artigos 550.º, n.º 4 e 859.º e sgs., ambos do CPC) – quando estiver munido do respectivo título de transmissão.
E. Posto isto, o Adquirente de bens em processo de divisão de coisa comum deve, com base no título de transmissão referido no artigo 827.º, proceder à instauração de uma execução para entrega de coisa certa, ao abrigo dos artigos 859.º e 860.º, ambos do CPC.
F. IN CASU, o Requerente/Adquirente, ora Apelado, pretendendo obter a entrega do bem imóvel que lhe foi adjudicado em venda judicial, deveria requerer uma execução para entrega de coisa certa, utilizando o modelo de requerimento disponibilizado eletronicamente, conforme a Portaria n.º 282/2013, de 29 Agosto.
G. Com todo o devido respeito pelo Tribunal não poderá o Tribunal decidir na entrega do imóvel em processo declarativo. Deste modo, trazemos à colação o Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, proc. nº 5747/19.5T8VNF.G1, de 16-03-2023: I - A sentença que homologou o acordo de adjudicação de um imóvel realizado em ação de divisão de coisa comum constitui título executivo quanto à entrega desse imóvel porquanto a mesma contém uma condenação implícita dirigida aos restantes interessados de, finda a situação de compropriedade, entregarem o bem a quem passou a ser o seu proprietário exclusivo.
H. Como decorre do Douto Acórdão: assim, é incontroverso que as sentenças proferidas em ações de condenação que contenham uma decisão que condene a parte a pagar determinada quantia, a entregar determinada coisa ou a prestar determinado facto, positivo ou negativo, constituem título executivo e podem servir de base à execução com essa correspondente finalidade.
I. Pelo que, ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou e/ou interpretou erradamente o disposto no art. 826º, 861º 929º, do Cód. de Proc. Civil, entre outros.”
Pediu a revogação do despacho recorrido.
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4) O Requerente (daqui em diante, Recorrido) respondeu pugnando pela improcedência do recurso ......
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4) O recurso foi admitido como de apelação, com subida em separado e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado neste Tribunal ad quem.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Tendo isto presente, a questão que se coloca neste recurso pode ser sintetizada nos seguintes termos: a norma do art. 828 do CPC não tem aplicação à venda realizada em ação de divisão de coisa comum, pelo que o despacho recorrido incorreu em erro na previsão ao determinar, com base nela, a entrega do prédio ao Recorrido?
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III.
1) Os factos a considerar na resposta são os descritos no ponto 1) do Relatório que constitui a Parte I. deste Acórdão.
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2).1. Avançamos para a resposta à questão enunciada começando por lembrar que estamos perante uma ação de divisão de coisa comum: o Requerente (ora Recorrido) pretende, através dela, pôr termo à situação de compropriedade sobre o prédio identificado.
De acordo com o n.º 1 do art. 1403 do Código Civil, existe propriedade em comum ou compropriedade quando duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa. O n.º 2 acrescenta que os direitos dos consortes sobre a coisa comum são qualitativamente iguais, embora possam ser quantitativamente diferentes. Na falta de indicação em contrário no título constitutivo, as quotas presumem-se quantitativamente iguais, o que não corresponde a uma genuína presunção, mas a uma verdade interina (Luís Pires de Sousa, Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, p. 9). A compropriedade diverge, portanto, de outras situações de contitularidade de direitos, em especial a comunhão conjugal de bens e a comunhão sucessória, em que o objeto do direito consiste num património e não numa coisa. É isto que explica que a forma de pôr termo estas últimas seja a partilha e não, como sucede com a compropriedade, a divisão da coisa comum.
Atualmente, afastada a ideia segundo a qual cada comproprietário é titular de um direito sobre uma quota ideal ou intelectual da coisa, defendida por autores como Manuel Rodrigues (“A Compropriedade no Direito Civil Português”, RLJ, ano 58.º, pp. 17 e ss.) e Carlos Alberto Mota Pinto (Direitos Reais, Coimbra: Almedina, 1970-71, pp. 256-257), discute-se se nas situações em apreço existe (i) uma pluralidade de direitos de propriedade plena cujo exercício é reciprocamente limitado ou (ii) um direito de propriedade pertencente a uma multiplicidade de sujeitos.
A primeira conceção é defendida por autores como Menezes Cordeiro (Direitos Reais, reimpressão, Lisboa: Lex, 1993, pp. 442-443), Oliveira Ascensão (Direito Civil – Reais, 5.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1993, p. 270), Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Juris, 1996, pp. 295-296) e José Alberto Vieira (Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editoral, 2008, pp. 365-366) e seguida, na jurisprudência, por exemplo, em STJ 19.09.2013 (433/2001.C1.S1), relatado por Granja da Fonseca. De acordo com ela, cada comproprietário é titular de um direito de propriedade plena sobre a coisa comum, o que equivale à afirmação de que a compropriedade constitui uma situação de concurso de direitos de propriedade sobre o mesmo bem. Há apenas uma comunhão de objeto e não de situação jurídica.
A segunda conceção, defendida por autores como Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra: UC, 1967, pp. 246-247), Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Cascais: Principia, 2007, p. 60) e Elsa Vaz de Sequeira (“Art. 1403.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp. 381-383) e seguida, inter alia, em STJ 16.06.2015 (1010/06.0TBLMG.P1.S1), STJ 29.03.2012 (680/2002.L1.S1) e STJ 7.04.2011 (30031-A/1979.L1.S1), o primeiro e o terceiro relatados por Hélder Roque e o segundo por Ana Paula Boularot, formula três críticas fundamentais em relação à anterior: a sua desarmonia com o teor do art. 1403/1 do Código Civil, que define a compropriedade como a situação em que “duas ou mais pessoas são simultaneamente titulares do direito de propriedade sobre a mesma coisa”, indiciando, assim, o carácter comum não apenas do objeto, mas do próprio direito de propriedade sobre ele incidente; não explica por que razão os comproprietários têm, no seu conjunto, os mesmos poderes que tem o proprietário singular, conforme resulta do n.º 1 do art. 1405 do Código Civil; é contrária à vocação de plenitude e exclusividade típicas do direito de propriedade, que confere ao respetivo titular a totalidade do domínio sobre a coisa.
Considerando que “nada na natureza do direito subjetivo obsta à possibilidade de pluricefalia” (Elsa Vaz de Sequeira, loc. cit., p. 382), os defensores desta conceção invocam ainda em seu favor o regime da transmissão de direitos expresso no brocardo nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet: “[s]e um titular singular transmite o seu direito a uma multiplicidade de pessoas, aquilo que elas adquirem, enquanto parte plural, é exatamente o mesmo que aquele alienou. Isto é, o direito singular” (Elsa Vaz de Sequeira, idem). Concluem, em conformidade, que a complexidade subjetiva implica que cada um dos comparticipantes não pode deter o direito comum na sua totalidade, mas apenas numa parcela. Não se prescinde, portanto, da ideia de participação proporcional no direito comum, o que é expresso pelo conceito de quota. Deste modo, como escreve Elsa Vaz de Sequeira (idem), a quota “exprime a participação de cada comuneiro no direito comum, enquanto participação imediata nos poderes que o respetivo conteúdo abarca. Se, por um lado, goza de existência no mundo do Direito, podendo inclusive ser objeto de negócios jurídicos, por outro lado, essa exigência encontra-se na estrita dependência quer do direito subjetivo que lhe serve de esteio quer da presença de outras quotas. São estas que, na realidade, permitem a individualização da posição jurídica de cada consorte na titularidade do direito comum e, com isso, a acomodação recíproca de todos.”
Compreende-se assim que a finalidade da divisão da coisa comum, que é um direito potestativo de cada comproprietário, nos termos enunciados no art. 1412/1 do Código Civil, seja a dissolução da situação de contitularidade e não propriamente a divisão em substância da coisa objeto do direito. A demonstrá-lo está o facto de o poder de extinguir a comunhão existir quer no que tange às coisas divisíveis – isto é, “as coisas que podem ser fracionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor ou prejuízo para o uso a que se destinam”, como proclama o art. 209 do Código Civil –, quer no que tange às coisas natural ou legalmente indivisíveis (v.g., art. 1376 do Código Civil). Isto não significa que esta distinção não assuma relevo. Na verdade, ela importa para a determinação em concreto do meio de operar a divisão. Sendo a coisa divisível, a divisão pode operar-se por um de três meios: o fracionamento da coisa, sofrendo então o direito de propriedade uma fragmentação, quer na sua titularidade, quer no seu objeto, “transmutando-se em diversos direitos de propriedade singular por tantos sujeitos quantos os consortes a quem os quinhões forem adjudicados”, na expressão de Manuel Tomé Soares Gomes (Ação de Divisão de Coisa Comum, Lisboa: CEJ, 1997, pp. 3-4); a adjudicação da coisa a um dos comproprietários; a venda da coisa, repartindo-se o produto obtido pelos comproprietários na proporção das respetivas quotas. Sendo a coisa indivisível, apenas os dois últimos meios de operar a divisão são cogitáveis.
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2).2. Tendo em considerando o que antecede, o art. 929/2 do CPC diz que, quando a coisa é indivisível, a conferência de interessados visa obter o acordo dos consortes para a adjudicação a algum ou a alguns deles, inteirando-se os demais em dinheiro (divisão em valor). Frustrando-se o acordo sobre a adjudicação da coisa indivisível, deve o juiz ordenar a venda da coisa, podendo os consortes concorrer à venda. A venda, assumindo uma natureza executiva, “é feita pelas formas estabelecidas para o processo de execução” (art. 549/2 do CPC).
Foi, precisamente, o que sucedeu no caso: depois de afirmada a indivisibilidade material do prédio, frustrou-se o acordo quanto à adjudicação dele a qualquer um dos comproprietários; procedeu-se de seguida à venda, segundo a modalidade de propostas em carta fechada; aceite a proposta apresentada por um dos comproprietários, foi proferido o despacho de adjudicação que, em bom rigor, não teve como objeto a coisa na sua totalidade, mas a quota do outro comproprietário pois, como escreve Luís Pires de Sousa (Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2023, pp. 129-130), “[n]a medida em que na venda judicial ocorre a transmissão da titularidade de um direito do anterior titular para o adquirente, não pode o consorte adquirir o que já era seu” – ou seja, dito de outra forma, “aquilo que é efetivamente vendido depende de quem é o comprador: sendo um terceiro, é vendido o imóvel da sua totalidade; sendo um consorte, são as quotas dos demais comproprietários.”
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2).3. É sabido que a venda executiva configura um contrato especial de compra e venda com características de ato de direito público (Lebre de Freitas, A Ação Executiva à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 7.ª ed., Coimbra: Geslegal, 2017, pp. 402-403).
É um ato de direito público porque o Estado, através dos seus órgãos, intervém nele, sendo inócua a vontade do executado. Apesar de o bem continuar a pertencer a este até à venda, como decorre do art. 824/1 do Código Civil, quem aliena é o Estado, no exercício de um poder de alienar que é de direito público e não se confunde com o poder de alienação do executado – poder este que é preservado, embora os atos em que se traduza o seu exercício sejam ineficazes em relação à execução (art. 819 do Código Civil). O poder do Estado é um poder de autoridade originário e não um poder derivado do devedor (Lebre de Freitas, ob. cit., p. 403, nota 44). O ato voluntário do devedor aparece assim substituído por um ato de autoridade, pelo qual o Estado vende em nome próprio, sobrepondo-se ao executado (Vaz Serra, “Realização Coativa da Prestação”, BMJ, n.º 73, p. 307). E é um contrato especial desde logo porque a vontade do comprador é determinante e releva como a de qualquer outro comprador no campo do direito privado. Por outro lado, a natureza originária do poder de alienação do Estado não descaracteriza a natureza derivada do ato de aquisição, baseado na titularidade do executado sobre o direito transmitido, como, aliás, resulta do art. 839/1, d), do CPC, ainda que o princípio segundo o qual nemo plus juris in alium transferre potest quam ipse habet sofra importante restrição, conforme decorre do art. 824/2 do Código Civil. Em suma, o vendedor, como sujeito material do negócio, é o executado. O órgão do Estado é o sujeito formal, que atua no exercício de um poder de jurisdição executiva e não como representante do executado (Pedro Romano Martinez, Venda Executiva”, Aspetos do Novo Processo Executivo, Lisboa: Lex, 1997, p. 336).
A venda executiva, para além das disposições especiais de natureza adjetiva que a regem, está sujeita ao regime geral da compra e venda, inclusive no que tange aos efeitos substantivos deste negócio (Lebre de Freitas, ibidem; Pedro Romano Martinez, ibidem; Miguel Teixeira de Sousa, Ação Executiva Singular, Lisboa: Lex, 1998, pp. 382-383): as obrigações de entregar a coisa e de pagar o preço (art. 879, b) e c), do Código Civil), esta com especificidades no seu cumprimento, e a transmissão do direito de propriedade sobre a coisa (art. 879, a), do Código Civil). Quanto aos dois primeiros efeitos, diremos que, como contrapartida do pagamento do preço, o adquirente tem o direito de receber o bem e o executado está obrigado a realizar a prestação de entrega adequada à satisfação desse crédito – isto é, está obrigado a entregar o bem, incorrendo em mora se o não fizer (art. 804/2 do Código Civil). Quanto ao último – a transmissão do direito de propriedade – ele ocorre por “mero efeito do contrato”, na terminologia do art. 408/1 do Código Civil, o que significa que, como sucede em qualquer contrato de compra e venda de coisa específica, a venda executiva tem um efeito real de transmissão da coisa. A propósito, Maria Victória Rocha, Comentário ao art. 824.º do Código Civil, AAVV, José Carlos Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa: UCE, 2019, p. 1210. Com mais rigor, tendo em conta que, na venda executiva, o efeito translativo da propriedade da coisa ou da titularidade do direito fica sujeito à verificação da condição suspensiva da realização dos depósitos a que se refere o art. 815 do CPC, a propriedade apenas se transfere, ipso facto, com estes, retroagindo, porém, os seus efeitos à data da aceitação da proposta, o que deve ser atestado pelo título de transmissão. Neste sentido RL 28-04-2015 (30347/09.4T2SNT.L1-1), RE 6.12.2018 (1866.14.2T8SLV-B.R1), RE 16.01.2020 (1283/16.0T8MMN-B.E1), RE 11.03.2021 (514/04.3TBORQ-C.E1), RE 15.04.2021 (930/19.6T8OLH-D.E1) e RL 7.12.2014 (717/19.8T8VFX.C.L1-1). De modo diverso, em STJ 19.06.2018 (17748/12.0T2SNT-B.L1-8) e em RL 27.03.2014 (17748/12.0T2SNT-B.L1-8) entendeu-se que a transmissão da propriedade ocorre com a adjudicação.
Do que antecede decorre que, com a venda executiva – e, percute-se, por mero efeito dela –, o direito de propriedade que existia na esfera jurídica do executado é transmitido para o comprador. Com a transmissão do direito de propriedade, transfere-se também a posse, por efeito de uma fictio iuris.
Expliquemos melhor, começando por lembrar que um dos efeitos secundários da venda executiva é a obrigação, que se impõe ao depositário, de entrega ao comprador dos bens vendidos (arts. 756 e 757/1 do CPC). Se os bens não forem voluntariamente entregues ao comprador, este pode requerer, na execução contra o detentor, a entrega coativa (art. 828 do CPC).
Por outro lado, a venda executiva tem também um efeito extintivo, previsto no art. 824/2 do Código Civil: ela provoca a extinção, dadas certas condições, de direitos de terceiro, sejam eles direitos reais de garantia, direitos reais de aquisição, direitos reais de gozo ou direitos pessoais de gozo, operando assim a transmissão dos bens alienados livres dos direitos de garantia, bem como dos direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, com exceção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros, independentemente do registo.
Este efeito extintivo, que contrasta com o que sucede com a venda realizada por via negocial, explica-se pela necessidade de favorecer a posição do adquirente e de rentabilizar a venda dos bens, cujo valor seria desvalorizado ou depreciado caso a transmissão operasse com a oneração resultante dos direitos de terceiro, impedindo a obtenção, através da venda, de um valor o mais aproximado possível do seu valor de mercado. Neste sentido, Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 1096.
Deste modo, na venda executiva, ocorre, a par da transferência do direito real de propriedade, um outro efeito translativo – o relativo à posse – através da figura do constituto possessório, consagrada, enquanto modo de aquisição derivada da posse, no art. 1263, c), e desenvolvida no art. 1264/1, ambos do Código Civil. Dito de outra forma, em consequência do efeito da venda executiva, a posse do executado sobre o bem é transmitida para o comprador, independentemente da entrega material da coisa. Neste sentido, na jurisprudência, STJ 7.02.2013 (CJ-STJ, XXI, t. 1, pp. 90-97, RP 19.01.2010 (537/09.6TBPVZ-A.P1) e RP 15.10.2015 (2230/12.3TBPNF.P1), escrevendo-se neste último que “[u]ma das formas de aquisição da posse é o chamado constituto possessório (artigo 1263.º, alínea d), do Código Civil). Nos termos do artigo 1264.º do Código Civil que define esta figura, se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa. Em função dessa norma, tendo o autor adquirido por compra e venda o imóvel dos réus (com a interposição do encarregado da venda nomeado e por efeito dos poderes coercivos soberanos do tribunal), assim obtendo, de forma válida e eficaz, a propriedade do mesmo, tem de se entender que os réus da mesma forma que transferiram (mesmo sem vontade ou contra a sua vontade) a propriedade transferiram igualmente para o autor a posse do imóvel.”
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2).4. Como corolário adjetivo do que antecede, o art. 827/1 do CPC diz que, mostrando-se integralmente pago o preço e satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão, os bens são adjudicados e entregues ao comprador, emitindo o agente da execução o título de transmissão a seu favor. O art. 828 acrescenta que, não ocorrendo essa entrega, o adquirente pode, com base no título de transmissão, requerer contra o detentor, na própria execução, a entrega dos bens, nos termos prescritos no art. 861, “deviamente adaptados.”
Centrando a atenção nesta última norma, importa dizer que o CPC de 1961 não continha, na sua versão originária, qualquer norma sobre a entrega da coisa corpórea objeto da venda ao comprador. Cabia a este intentar ação com essa finalidade, nos termos gerais. Com o DL n.º 329-A/95, de 12.12, foi introduzido o art. 901, no qual se conferiu ao adquirente a possibilidade de, com base no despacho de adjudicação, requerer contra o detentor dos bens execução para entrega deles, nos termos prescritos para a execução de sentença para entrega de coisa certa. A solução foi logo criticada por Lebre de Freitas (“Revisão do Processo Civil”, ROA, ano 55 (1995), Vol. II, p. 517), por se limitar a reconhecer um direito que o adquirente já tinha e continuar a impor-lhe o recurso injustificado a uma ação própria para o efeito de conseguir uma entrega que ao tribunal, investido na posse pelo ato de penhora, cabia efetivar.
O DL n.º 180/96, de 25.09, foi mais longe e, alterando a redação do art. 901, passou a permitir que o adquirente requeresse o prosseguimento da execução contra o detentor dos bens, nos termos previstos para a execução para entrega de coisa certa, consagrando assim aquilo de Carlos Lopes do Rego (Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra: Almedina, 1999, p. 603) qualificou como “um meio específico” ao dispor do adquirente “para opor o seu direito a quem, porventura, detenha ilegitimamente os bens judicialmente vendidos e por ele adquiridos.”
A nova redação levantou, no entanto, uma dúvida: ao requerimento do adquirente podia seguir-se logo a entrega, a realizar nos termos previstos no art. 903, como entendia Lebre de Freitas (A Ação Executiva à Luz do Código Revisto, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 298), ou devia ser observada toda a tramitação da ação executiva para entrega de coisa certa, conforme defendia Rui Pinto (Penhora, Venda e Pagamento, Lisboa: Lex, 1993, p. 91).
Com a reforma da ação executiva levada a cabo pelo DL n.º 38/2003, de 8.03, o legislador, modificando a redação do preceito, colocou termo à dúvida, no sentido da primeira tese: por um lado, substituiu o segmento “requerer o prosseguimento da execução” por “requerer a entrega dos bens”; por outro, especificou que a remissão para o regime da “execução para entrega de coisa certa” visava apenas os “termos prescritos no art. 930.º, devidamente adaptados.”
Ficou, assim, claro que era, de imediato, aplicável o preceituado no então art. 930, o que obviamente excluía a prática dos atos previstos nos arts. 928 e 929, conforme expressamente entenderam Lebre de Freitas / Armindo Ribeiro Mendes (Código de Processo Civil Anotado, III, Coimbra: Coimbra Editora, 2003, pp. 593-594), Carlos Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, II, 2.ª ed., Coimbra: almedina, 2004, p. 141) e Fernando Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2007, p. 393). Este último autor escreveu mesmo que “[d]iscorda-se assim de Rui Pinto, ao sustentar que, no atual texto do art. 901.º, se confere ao adquirente a possibilidade de lançar mão, contra o detentor, da execução para entrega de coisa certa, porquanto aquele preceito apenas prevê que a entrega dos bens (e nada mais que isso) se realize em conformidade com o disposto no artigo 930.º”
Esta solução foi mantida no art. 828 do CPC de 2013, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26.06, que se limitou a adaptar a remissão à numeração do novo diploma, no qual as regras que estavam contidas no art. 930 passaram para o art. 861.
Não obstante Rui Pinto (“A execução e terceiros. Em especial na penhora e na venda”, Themis – Revista da Faculdade de Direito da UNL, ano V (2004), n.º 9, p. 260, e mais recentemente, já à luz do CPC de 2013, A Ação Executiva, reimpressão, Lisboa: AAFDL, 2020, pp. 878-879) continuar a sustentar que o preceito do art. 828 atribui ao adquirente a possibilidade de instaurar execução para entrega de coisa certa, vendo no título de transmissão dos bens um verdadeiro título executivo (título extrajudicial avulso, de natureza administrativa, para os efeitos do art. 703/1, d), do CPC), e de João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, II, Lisboa: AAFDL, 2022, p. 939) sustentarem que está em causa o “prosseguimento da execução” contra o detentor da coisa vendida, afigura-se-nos que a razão de ser da solução legal – possibilitar ao adquirente um meio expedito para a tomada de posse efetiva do bem –, bem como a respetiva evolução dos termos em que foi definida pelo legislador, desde a sua criação, pelo DL n.º 329-A/95, até aos dias de hoje, evidenciam claramente que se trata de um procedimento desburocratizado, de natureza executiva, que é enxertado na própria ação em que foi realizada a venda (Lebre de Freitas, A Ação Executiva cit., p. 423), não sendo de exigir a propositura de uma nova ação (executiva para entrega de coisa certa). Esta é a única leitura que, encontrando suficiente apoio na letra da lei, tutela de forma adequada, a um tempo, o interesse do adquirente, que confiou numa venda que foi feita pelo Tribunal, na sequência de um processo participado por todos os interessados e, a outro, a eficácia que se pretende do sistema de administração da justiça. Neste sentido, RP 05/12/2016 (1631/14.7TBGDM.P1) e RC 24.04.2018 (2911/11.9TBFIG.C1).
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2).5. Como escrevemos, a venda em ação de divisão de coisa comum observa a forma estabelecida para a venda em processo de execução. Assim, sendo realizada mediante propostas em carta fechada, a norma do art. 828 tem plena aplicação. Aplicando a solução a outros processos, mais concretamente ao processo de insolvência, RP 20.11.2012 (677/09.1TYVNG-F.P1) e RG 13.06.2019 (641/18.0T8VNF-C.G1).
Foi o que sucedeu no caso.
Por outro lado, o Recorrido intervém na qualidade de comprador, em cuja esfera jurídica se consolidou, por efeito da venda, a qualidade de titular exclusivo do direito de propriedade sobre a coisa vendida. Concomitantemente, a Recorrida deixou de ser contitular desse direito, nos termos do qual possuía a coisa. O Recorrido adquiriu, portanto, uma posse exclusiva sobre a coisa. Em contrapartida, Recorrente cedeu a posse que tinha (art. 1267, c)), ficando obrigada a entregar a coisa.
Concluímos, pelo exposto, que improcedem as conclusões da Recorrente, devendo responder-se negativamente à questão enunciada e, em consequência, confirmar-se a decisão constante do despacho recorrido.
Uma nota final para dizer que a doutrina constante de RG 16.03.2023 (5747/19.5T8VNF.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Rosália Cunha, tendo como adjuntos os Juízes Desembargadores Lígia Venade e Fernando Barroso Cabanelas, na qual a Recorrente sustenta a sua tese, em nada contraria a resposta que demos à questão enunciada. Por um lado, como bem se nota no despacho recorrido, na situação objeto do aresto não estava em causa a entrega de um bem vendido em ação de divisão de coisa comum ao respetivo comprador, na sequência de uma venda realizada mediante propostas em carta fechada, com os contornos que expusemos, mas a adjudicação da coisa a um dos seus comproprietários por acordo de todos. Por outro, não se suscitou ali a interpretação da norma do art. 828 do CPC, que assim não foi sequer referida. A discussão centrou-se na questão dge saber se a sentença homologatória do acordo de adjudicação de um imóvel realizado em ação de divisão de coisa comum constitui título executivo quanto à entrega desse imóvel.
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3. Vencida, a Recorrente deve suportar as custas do recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie: art. 527/1 e 2 do CPC.
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IV.
Nestes termos, acordam os juízes desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em:
Julgar improcedente o presente recurso de apelação, confirmando a decisão constante do despacho recorrido;
Condenar a Recorrente no pagamento das custas devidas pelo recurso, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie.
Notifique.
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Guimarães, 18 de abril de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Alexandra Maria Viana Parente Lopes
2.º Adjunto: José Alberto Martins Moreira Dias