VALOR DA CAUSA
ARBITRAMENTO
Sumário


1 - Se for necessário proceder a arbitramento para fixação do valor da causa, é este feito por um único perito nomeado pelo juiz, não havendo neste caso segundo arbitramento, limitação que se compreende face ao caráter de mero incidente da instância que assume a verificação do valor da causa, o que também explica que não deva ser admitida posterior instrução sobre o mesmo.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
           
AA e BB, autores na ação declarativa em que são réus CC e outros, notificados do despacho que ordenou o desentranhamento de documentos juntos aos autos pelos autores em 23/03/2023, interpuseram recurso, tendo alegado e, a final, oferecido as seguintes
Conclusões:

I - Entre outros, servem as provas para demonstrar a realidade de factos.
II - O prejuízo da não admissão daqueles meios de prova mandados desentranhar é imediato, atual e continuo
III- Os documentos mandados desentranhar, são fundamentais e essências nos autos para a boa decisão da causa.
IV- Os autores ponderaram todas as situações e refletiram nelas, e não consideram nada impertinentes os documentos apresentados que foram mandados desentranhar (escritura de compra e venda e respetivas matrizes de outros prédios dos AA, na mesma freguesia e próximos dos controvertidos destes autos) que demonstram valores de venda e outros, muito superiores aos por estes colocada em crise...São documentos de prova importantes para os autos que nunca deveriam ter sido mandados desentranhar
V- Existe a Norte, no prédio dos Autores, (Artº 1945º 21.052 m 2) diretamente confrontante – à face - com a Estrada Municipal ...23 uma vasta área com capacidade construtiva e urbanizável, sem qualquer uso de cultivo, arbóreo ou de semeadora. Área que salvo o devido respeito é a de maior valor de todo aquele e espaço mandado “arbitrar”.
VI- Na Horta da ... o valor médio do metro quadrado dos prédios rústicos para venda vale à volta dos cinco euros... Ora como tal 28,409 m 2 (vinte e oito mil quatrocentos e nove metros quadrados) nunca poderiam valer apenas trinta mil euros/30.000,00, ou seja 1,05 €( um euro e cinco cêntimos) por metro quadrado mas sim pelo menos cerca de cinco vezes mais ou seja CENTO E QUARENTA E DOIS MIL EUROS E QUARENTA E CINCO CÊNTIMOS (142.045,00 €), ao qual deverá acrescer o valor das arvores ali existentes (32 Oliveiras...).
VII- A folhas 85 dos autos se pode ver todo o levantamento topográfico dos prédios em causa e da área total do terreno (28.409 m2).
VIII- A folhas 97 dos autos se pode ver todo o levantamento topográfico dos prédios com a delimitação da “área sobrante” (2907m2)
IX- Na zona de ... e em especial em ... é do conhecimento que a média do valor de mercado orça para o valor dos imóveis rústicos 5,15€/m2...
X- Entre outras a razão de ser da elevação do valor económico que passaram a ter as ... e Circuncisões Vizinhas, é objetivamente fruto do desenvolvimento económico, investimento privado, acessibilidades, boas estradas, viadutos, túneis e apoios estruturais diversos, etc , aí acontecido após o 25 de Abril de 1974 ,pela implantação das autarquias, pelo investimento publico e até ao momento presente, factos esses que são do domínio publico
XI- O “excesso de pronúncia” acontece, salvo douta e melhor opinião entre outros, se o Tribunal conhecer de questões de que não pode conhecer ainda na fase em que se encontra
XII- A rejeição de um meio de prova implica a fundamentação da sua impertinência ou legalidade (inadmissibilidade)
XIII- O momento correto para avaliar a prova é o julgamento e não o momento da sua admissão...
XIV- As provas visam evidenciar e demonstrar que a factualidade apresentada e controvertida é verdadeira, correta, ou pode ser valorada num sentido ou em múltiplos sentidos não contraditórios entre si,
XV- Com o devido respeito, a não admissão aos autos daqueles meios de prova colocam em risco, não só uma adequada e pronta decisão judicial, como prejudicará qualquer avaliação real e concreta do que significou, significa e significará a importância daquele prédio dos autores, no contexto controvertido
XVI- Nos termos dos artigos 154º e 615º C.P.C. e no artigo 607º nº 3 e 4 C.P.C. as decisões e os despachos devem ser fundamentadas de facto e de direito
XVII-o douto despacho é conclusivo e não especifica factos e matéria de direito que levou a ordenar o desentranhamento dos documentos.
XVIII-   tal despacho é nulo, nulidade esta que invoca para os devidos e efeitos legais.
XIX- Foram violadas disposições legais constitucionais, artº 2, 202 º,205º, art.º 20, da Constituição da Republica Portuguesa e artº 45 da CEDH.
XX- Foram violadas disposições legais do Código de Processo Civil, artº 154º, 607º nº 3 e 4, artº 615º nº 1 alínea b), d) e c) 412º, 417º,423º,424º e ainda artº 547º, artº 7º, art 8º e artº 6º nº 2 do mesmo diploma legal, e também os artº 8º, e art 341º do Código Civil
XXI- Tudo o mais que em favor dos autores/recorrentes se possa conhecer e em função disso concluir.
Nestes termos, e nos mais de Direito que V. Exas. Venerandos Desembargadores Doutamente Suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente bem como serem apreciadas e decididas todas as questões objeto do presente recurso o que desde já requer com todas as consequências legais e ser revogado o douto despacho do qual se recorre e substituído por outro que admita aqueles meios de prova mandados desentranhar e tudo o que demais se demonstre favorável aos recorrentes que ao caso concreto se aplicar nos termos e para os efeitos legais.
Fazendo-se assim como sempre inteira e SÃ JUSTIÇA!

Não foram oferecidas contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver traduzem-se em saber se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação e excesso de pronúncia e se não devia ter sido ordenado o desentranhamento dos documentos em causa.

II. FUNDAMENTAÇÃO

O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“Salvo o devido respeito, parece-nos injustificável o ‘cavalo de batalha’ que os Autores têm feito à avaliação que, por ordem do Tribunal da Relação, foi realizada ‘apenas’ para efeitos de fixação do valor da causa – note-se, o processo ainda está nesta fase!
Sendo por demais evidente que os Autores pretendem que os autos se mantenham neste Juízo Central da Comarca de ... – e, como oportunamente se verá, aqui se manterão –, não se alcança o interesse – relembrando que a única finalidade da perícia/avaliação ordenada é a determinação do valor da causa – no protelamento dos autos com mais pedidos de esclarecimentos e apresentação de documentos que, pelo menos alguns, são impertinentes, por nada terem que ver com o objeto da ação e da própria avaliação, como sejam os que foram juntos por requerimento sob a ref.ª ...86 de 23.03, e que deverão ser desentranhados.
Se foi com o propósito de pôr em causa a perícia realizada por perito nomeado pelo Tribunal (pois até encontramos nela outra virtualidade), afigura-se-nos precipitada e irrefletida a atuação dos Autores de, à margem do processo, e depois de ter sido determinada por Acórdão de 13.05.2021 «a realização de arbitramento, nos termos do artº. 309º do NCPC, por forma a apurar qual o valor real dos prédios em litígio nestes autos, sendo o valor da causa fixado após a realização do arbitramento», terem contratado os serviços de um Engenheiro Civil e Perito Avaliador de Imóveis para realizar outra avaliação.
Resulta dos relatórios periciais (incidentes sobre o prédio urbano e o prédio rústico) juntos aos autos que os prédios em causa têm um valor de mercado muito superior aos € 50.000,01 que os Autores indicaram na sua petição inicial como sendo o valor que davam à ação.
O próprio documento denominado “relatório de avaliação” junto pelos Autores por requerimento sob a ref.ª ...86 de 23.03 conclui que o presumível valor de mercado dos imóveis em avaliação é de € 91.100,00, avaliando em € 2.240,00 as 32 oliveiras existentes.
Não vislumbramos qualquer deficiência, obscuridade ou contradição nos relatórios periciais que justifiquem a reclamação e o pedido de esclarecimentos, embora concedamos que o Sr. Perito avaliador foi muito parco na fundamentação dos valores apontados.
Todavia, porque está requerida nos autos pelos Autores a realização de uma perícia, cuja pertinência/viabilidade (total ou parcial) ainda terá de ser ponderada pelo Tribunal, tendo em conta o objeto que por aqueles foi indicado e os fundamentos e fins próprios da prova por perícia, afigura-se-nos relevante para o apuramento da verdade e a boa decisão da causa o “relatório de avaliação” junto por requerimento sob a ref.ª ...86 de 23.03, face à extrema utilidade que revela em termos de caracterização dos prédios ante a factualidade que é alegada pelas partes – ressalva-se, porém, que tal denominado “relatório de avaliação” constituiu prova documental, concretamente um documento particular, sujeito à livre apreciação do Tribunal.

Por todo o exposto:

i) indefiro à reclamação apresentada pelos Autores contra o relatório pericial realizado para efeitos de fixação, por arbitramento, do valor da causa;
ii) não admito, por impertinentes, os documentos juntos pelos Autores por requerimento sob a ref.ª ...86 de 23.03 e, por conseguinte, determino o seu desentranhamento dos autos, devolvendo o suporte físico aos apresentantes, e a eliminação/bloqueio da respectiva referência electrónica;
iii) admito, por pertinente para a boa decisão da causa, apenas como documento particular, o denominado “relatório de avaliação” junto pelos Autores por requerimento sob a ref.ª ...86 de 23.03”.

A questão a decidir é manifestamente simples e, como bem refere a Sra. Juíza em 1.ª instância, “parece-nos injustificável o ‘cavalo de batalha’ que os autores têm feito à avaliação que, por ordem do Tribunal da Relação, foi realizada ‘apenas’ para efeitos de fixação do valor da causa”.
Vejamos.
O despacho recorrido de forma nenhuma é nulo por excesso de pronúncia.
Os autores requereram a junção de determinados documentos.
A parte contrária pronunciou-se pelo desentranhamento dos referidos documentos por nada terem a ver com o litígio e a avaliação efetuadas nos autos.
A Sra. Juíza despachou no sentido do desentranhamento dos referidos documentos, por considerar que os mesmos são impertinentes, por nada terem que ver com o objeto da ação e da própria avaliação.
O excesso de pronúncia, previsto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d) ‘in fine’ do CPC, como causa de nulidade da sentença/despacho, ocorre quando se apreciem questões de facto ou de direito que não tenham sido invocadas e que não sejam de conhecimento oficioso – cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, in CPC Anotado, vol. I, pág. 738.
Como é óbvio, não ocorre aqui qualquer excesso de pronúncia, uma vez que a questão/requerimento, foi colocada pelos autores, teve o contraditório necessário e foi objeto de despacho de indeferimento.
Esta questão, aliás, tinha que ser conhecida nesta fase, uma vez que se prendia com a necessária fixação do valor da causa, a decidir de seguida e antes que os autos prosseguissem os seus regulares termos.

De igual modo não se verifica a nulidade do despacho por falta de fundamentação – artigo 615.º, n.º 1, alínea b) do CPC.
Sabido como é que apenas a absoluta falta de fundamentação torna a sentença nula, verifica-se que tal não acontece no despacho em causa. Com efeito a Sra. Juíza considera os documentos impertinentes por nada terem a ver com o objeto da ação e da avaliação e considerando que se está, apenas, perante incidente de fixação do valor da causa. A decisão de desentranhamento dos referidos documentos está, assim, motivada de forma suficiente, não padecendo o despacho respetivo de qualquer nulidade.

Finalmente, importa averiguar se a decisão foi correta.
Os autores atribuíram à causa o valor de € 50.000,01 e alegaram factos inerentes à aquisição originária (por usucapião) do direito de propriedade sobre o prédio rústico identificado no artº. 6º da petição inicial, inscrito na matriz predial rústica sob o artº. ...45 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...71.
Os réus impugnaram o valor da ação nos termos dos artºs 305º e 302º do CPC, por não se ajustar à realidade factual, pois o valor patrimonial do prédio que os autores reivindicam e os danos não patrimoniais - € 136,47 e € 5.000,00, respetivamente - totalizam o valor de € 5.136,47, sendo este o que indicam como valor da ação. Formularam reconvenção à qual atribuíram o valor de € 550,00.
Tendo sido fixado o valor da causa em € 31,694,63, foi, pelos autores interposto recurso em que pedem que seja revogada a decisão recorrida, “sendo substituída por outra que admita ser o valor da ação superior a cinquenta mil euros e um cêntimos, ser o Tribunal Judicial da Comarca de ... e o seu respetivo Juízo Central Cível e Criminal, e não o Juízo de Competência Genérica de ..., o competente para julgar a presente ação”.
Foi proferido Acórdão onde se pode ler: “Deste modo, tendo em atenção que os valores patrimoniais dos imóveis indicados nas respetivas cadernetas prediais se mostram completamente desatualizados, e porque os elementos constantes do processo se revelam insuficientes, mostra-se, a nosso ver, indispensável a realização de diligências com vista a uma adequada fixação do valor da causa, impondo-se, mais concretamente, a necessidade de proceder a arbitramento, nos termos do artº. 309º do NCPC, por forma a apurar qual o valor real dos prédios em litígio nestes autos”, o que foi determinado, sendo o valor da causa fixado após a realização do arbitramento, logo aí se prevendo que “o resultado que vier a emergir do arbitramento não põe de parte a possibilidade de, na fixação do valor da causa, vir a intervir um posterior juízo de equidade, se este se revelar absolutamente necessário”.
Em obediência a esta decisão foi ordenado o arbitramento, nos termos previstos no artigo 309.º do CPC “Se for necessário proceder a arbitramento, é este feito por um único perito nomeado pelo juiz, não havendo neste caso segundo arbitramento”.
Como se salienta em Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís de Sousa, CPC Anotado, vol. I, pág. 359 “Embora o valor da causa seja relevante para diversos aspetos, não deixamos de estar na presença de um mero incidente da instância – o da verificação do valor da causa -, pelo que se compreende a limitação quanto à intervenção de um único perito a nomear pelo juiz e quanto à proibição do segundo arbitramento”.
De igual forma se compreende, diremos nós, que este não é o incidente adequado para a junção de diversos documentos que pretendem contestar a conclusão a que chegou o perito, sobretudo quando tais documentos em nada interferem com tal conclusão e dizem respeito a prédios distintos daqueles cuja avaliação foi levada a cabo (nada têm a ver com o litígio e a avaliação efetuada nos autos).
Aliás, verifica-se que os autores lograram obter o que pretendiam com o recurso, uma vez que, tendo o perito atribuído um valor de € 115.000,00 aos prédios em causa, tal é superior ao valor por eles indicado na petição inicial, conseguindo o objetivo definido no recurso que era o de o processo ser instruído e julgado num Juízo Central Cível e não num Juízo de Competência Genérica.
Independentemente desse ganho de causa (acabou por ser atribuído à causa o valor de € 120.000,00), não é compatível com o disposto no artigo 309.º do CPC, já supra citado, a realização de ulteriores diligências de esclarecimentos, pedidos de remoção e substituição do peritos e/ou de realização de novas perícias (o que tudo veio a ser indeferido pelo tribunal), bem como não é ajustada a junção de documentos referentes a outros prédios, que não os avaliados, e que visam apenas pôr em causa algumas afirmações do perito, quando, a final, o resultado obtido é compatível com o requerido pelos autores e o arbitramento efetuado visa apenas contribuir para fixar o valor da causa, não tendo influência na restante instrução do processo (aliás, veja-se que, admitindo a utilidade que possa vir a revelar em termos de caracterização dos prédios ante a factualidade que é alegada pelas partes, no mesmo despacho, a Sra. Juíza admite, como documento particular o denominado “relatório de avaliação” junto pelos autores na mesma oportunidade).
Assim, é de confirmar a decisão relativa à não admissão dos documentos em causa e correspondente desentranhamento.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

***
Guimarães, 24 de abril de 2024

Ana Cristina Duarte
Afonso Cabral de Andrade
José Carlos Dias Cravo