TÍTULO EXECUTIVO
OBRIGAÇÃO ILÍQUIDA
EMBARGOS DE EXECUTADO
Sumário


1 – A realização coactiva de uma prestação depende da existência de título executivo (pressuposto formal que condiciona a exequibilidade do direito) e de aquela se mostrar certa, exigível e líquida.
2 – A obrigação ilíquida é tão só aquela que tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não está ainda apurado, de tal modo que o devedor sabe que deve mas desconhece o quantum.
3 – Tendo o exequente fixado esse quantitativo no requerimento inicial da execução mediante especificação e cálculo dos respectivos valores, não existe iliquidez que obste à execução.
4 – A impugnação da liquidação feita pelo exequente, deduzida pelo executado em sede de embargos, não pode confundir-se com a falta de liquidação.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

I – RELATÓRIO
Nos autos que constituem o processo principal, a Caixa Geral de Depósitos instaurou execução ordinária contra AA e BB.
Alega a exequente que celebrou dois contratos de mútuo com CC e DD, e que os empréstimos então concedidos ficaram garantidos por hipoteca sobre um imóvel, que foi registada a favor da própria exequente.
Entretanto, a propriedade sobre o imóvel que garante os empréstimos supra referidos foi registado em nome de AA e BB, por estes o terem adquirido por compra.
Acrescenta a exequente que, verificando-se a insolvência dos devedores, pretende fazer uso do disposto no art.º 54º, n.º 2 do CPC, executando os terceiros adquirentes do imóvel, com vista a obter pagamento das quantias devidas por força daqueles empréstimos.
Indica como quantia exequenda o montante de € 43.647,09, por referência a 02.07.2019, a que acrescerão os juros vincendos até integral reembolso.
Posteriormente, por apenso à acção executiva, o executado AA deduziu os presentes embargos de executado, peticionando a extinção da execução ou a sua redução “para o montante que efetivamente se encontra em dívida”.
Alega desde logo o embargante que tem efectuado os pagamentos das prestações dos contratos de mútuo mesmo após a declaração de insolvência dos mutuários, tendo mantido os contratos em total cumprimento, pelo que não se verifica mora.
Impugna de seguida, por diversos fundamentos, a liquidação da dívida feita pelo exequente no seu requerimento executivo (ausência de consideração dos montantes já pagos pelo embargante, inclusão indevida de juros de mora, cálculo errado de juros remuneratórios e de cláusula penal).
Por seu lado, a exequente apresentou contestação pugnando pela improcedência dos embargos e pelo prosseguimento da execução.
Prosseguindo o processo, verifica-se que o tribunal proferiu despachos de convite ao aperfeiçoamento, em ordem a suprir as insuficiências de alegação fáctica das partes.
Entretanto, por falecimento dos executados originais, AA e BB, foram habilitados como seus sucessores os filhos do casal (EE, FF, GG e CC, ...).
Finalmente, por entender nada haver que obstasse a essa decisão nesta fase, o tribunal proferiu saneador-sentença, no qual se debruçou desenvolvidamente sobre a questão da “falta de liquidação” da quantia exequenda e acabou por decidir pela extinção da execução por julgar que “as quantias indicadas, designadamente a título de capital e de juros, encontram-se absolutamente indemonstradas, permanecendo assim ilíquidas”.
Contra esta decisão insurgiu-se a exequente por meio do presente recurso de apelação, visando a revogação do decidido.

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II – AS ALEGAÇÕES DA RECORRENTE
A terminar as alegações do seu recurso, a exequente/embargada apresenta as seguintes conclusões, que transcrevemos:
A. Na sentença proferida o Tribunal a quo julgou ilíquida a quantia exequenda peticionada.
B. Conforme resulta do requerimento executivo a Exequente celebrou com os mutuários duas operações bancárias (n.º ...885 e n.º ...985).
C. Na operação bancária n.º ...885, celebrada a 14/12/2006, foi mutuada a quantia de € 47.128,12 e na operação n.º ...985, celebrada na mesma data, foi mutuada a quantia de € 10.000,00.
D. Os contratos teriam a duração de 252 meses, sendo os primeiros 36 de carência de capital.
E. Foi indicado no requerimento executivo o contratualizado quanto às taxas de juros de cada uma das operações.
F. Foi referido que a 22/01/2010 as partes celebraram uma alteração aos contratos passando o prazo dos empréstimos para 492 meses.
G. Com a declaração de insolvência (27/06/2016) dos mutuários, os empréstimos foram vencidos.
H. Pelo que a Exequente apurou a dívida no montante de € 43.647,09 (quarenta e três mil, seiscentos e quarenta e sete euros e nove cêntimos), na data de 02/07/2019, sendo € 37.212,31 de valor líquido e € 6.434,78 de valor dependente de simples cálculo aritmético, melhor discriminado nas notas de débito juntas com o mesmo.
I. Nas referidas notas de débito eram também discriminadas as taxas de juros aplicadas.
J. Pelo que, do requerimento executivo constavam todos os factos e provas
suficientes para determinar os valores em dívida.
K. Todavia, considerando o Tribunal que questões havia a esclarecer, convidou a Exequente a prestar esclarecimentos.
L. Convites estes a que a Exequente sempre atendeu.
M. A Exequente juntou aos autos extratos detalhados dos empréstimos que demonstram todas as prestações que foram pagas, datas de vencimento e todos os valores alocados à divida contratualizada.
N. Além disso a Embargante explicou em todos os seus requerimentos a informação vertida nos extratos, bem como indicou os cálculos que foram efetuados para apurar os valores em dívida.
O. Os empréstimos foram vencidos na data da declaração de insolvência dos mutuários, 27 de junho de 2016, e na data em questão não tinham prestações em dívida.
P. Conforme resulta do extrato, na data da declaração de insolvência estavam em dívida os capitais de € 40.798,57 (...885) e € 8.608,78
(...985).
Q. Atendendo à existência de pagamentos feitos após a data da declaração de insolvência, a Exequente alocou os valores recebidos a capital, tendo obtido os valores reclamados no requerimento executivo:
Operação ...885: € 33.427,22 (pagamentos deduzidos: 143,05 + 105,71 + 130,40 + 130,40 + 924,37 + 130,40 + 130,40 + 130,40 + 924,37 + 924,37 + 924,37 + 924,37 + 924,37 + 924,37 = 7.371,35);
Operação ...985: € 3.785,09 (27,61 + 27,33 + 29,38 + 29,38 + 924,37 + 29,38 + 29,38 + 29,38 + 924,37 + 924,37 + 924,37 + 924,37 = 4.823,69)
R. Tudo conforme refletido nos extratos e nas notas de débito juntas.
S. Após obter o valor de capital de data de cada uma das operações a Exequente calculou juros às taxas contratualmente estipuladas, desde a data da insolvência 27/07/2016, até à data de 02/07/2019:
- Operação ...885: € 5.640,17 (entre as datas 27/07/2016 a 02/07/2019 sobre o capital de € 33.427,22 a uma taxa de 4,732%)
- Operação ...985: € 794,61 (entre as datas de 27/07/2016 a 02/07/2019 sobre o capital de € 3.785,09 a uma taxa de 3,682%)
T. A exequente juntou aos autos extratos detalhados, tabelas, planos financeiros, notas de débito e posições de dívida, sempre acompanhados de explicações e sempre referindo que qualquer dúvida que existisse deveria ser esclarecida pelo gestor do processo em audiência de julgamento, arrolado como testemunha.
U. Todavia, o Tribunal não considerou nenhum dos documentos juntos, nenhuma das explicações prestada pela Exequente nos requerimentos apresentados, nem permitiu a realização de audiência de julgamento para produção de prova, considerando que a quantia exequenda peticionada era ilíquida.
V. Decisão que claramente não é correcta.
W. A exequente além de ter no requerimento executivo junto todos os elementos que permitiam confirmar a quantia peticionada, respondeu a todos os convites do Tribunal, explicando todos os montantes peticionados e juntando todos os documentos que o comprovam.
X. Na sentença proferida fala o Tribunal em juros remuneratórios e compulsórios, comissões e despesas quando nada disso foi peticionado no requerimento executivo.
Y. Na presente acção apenas foi peticionado capital e juros de mora.
Z. A Exequente juntou prova documental (que o Tribunal julgou insuficiente) e pediu prova testemunhal que não foi atendida pelo Tribunal.
AA. Porém, se o Tribunal não permite a produção de prova só poderá significar que já se encontra esclarecido quanto à matéria de facto em questão, o que aparentemente não ocorreu, tendo o Tribunal considerado que a Exequente não cumpriu o ónus da prova que lhe cabia.
BB. Todas as questões que o Tribunal coloca na sentença proferida foram
respondidas nos requerimentos apresentados e nos documentos juntos.
CC. E mal andou o douto tribunal a quo quando não o entendeu dessa forma, pelo que tem a decisão proferida de ser revogada em conformidade.
DD. O sistema informático da Exequente está preparado para efetuar automaticamente os cálculos dos empréstimos contraídos, sendo um sistema devidamente acreditado, auditado e fiscalizado pelo regulador Banco de Portugal e por outras entidades competentes.
EE. Pelo que, mal andou o Tribunal quando levanta duvidas infundadas quanto ao sistema do banco.
FF. Em face de todo o exposto, a decisão proferida deve ser revogada, porquanto após todos os esclarecimentos e cálculos que foram prestados, dúvidas não podem existir quanto à liquidez da quantia exequenda, devendo a mesma ser considerada líquida e
GG. Caso assim não se entenda, e se considere que alguma dúvida subsiste por provar, deverá ser ordenada a produção de prova com a concretização da audiência de julgamento, para que a testemunha indicada possa produzir a prova necessária quanto à matéria em questão.
Nestes termos e nos demais de direito deverá ser concedido provimento ao recurso interposto pela Apelante, substituindo-se a decisão recorrida por outra que revogue a decisão proferida, julgando líquida a quantia exequenda peticionada nos presentes autos,
Ou caso assim não se entenda,
Que ordene a realização de audiência de julgamento para que seja dada a possibilidade à Embargada de produzir a prova que possa estar em falta para a boa decisão da causa.
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III – DAS CONTRA-ALEGAÇÕES
Em face das alegações do recurso, o embargante/habilitado EE apresentou por seu lado contra-alegações, para sustentar a decisão recorrida.
Refere o embargante que a exequente continuou a aceitar receber as prestações mensais decorrentes da celebração dos indicados créditos, e que impugnou o valor reclamado, por considerar que não havia mora ou incumprimento contratual e por a recorrente reclamar valores sem especificar capital, juros remuneratórios e juros a títulos de cláusula penal.
Conclui dizendo em resumo que a quantia reclamada não se encontra vencida, não sendo certa nem líquida, pelo que não é exigível, e desta forma o recurso, a ser admitido, deve ser julgado improcedente.
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IV - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A matéria a considerar para efeitos de apreciação do recurso é a que sinteticamente ficou exposta no relatório inicial, a que acrescem os dados processuais pertinentes, que serão referidos a propósito da fundamentação de Direito, que se seguirá.
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V – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
1 - Como se sabe, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (cfr. arts. 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC).
Sublinha-se ainda a este propósito que na sua tarefa não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (cfr. art. 5.º, n.º 3, do CPC).
No caso presente, a questão colocada ao tribunal de recurso traduz-se em saber se no caso presente o requerimento executivo apresenta o vício apontado na decisão recorrida, a falta de liquidação da quantia exequenda, e em termos que justificam a extinção da execução.
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2 - Considerou a primeira instância, no despacho recorrido, que as quantias indicadas pelo exequente, “designadamente a título de capital e de juros, encontram-se absolutamente indemonstradas, permanecendo assim ilíquidas, não podendo ser executadas, conduzindo à extinção da execução.”
Diz-se a dado passo que o Tribunal convidou a exequente a demonstrar as quantias que resultam do incumprimento, o que a exequente não acatou – e é por isso que “as quantias indicadas no requerimento executivo ou apresentadas como capital em dívida são meros valores abstratos, sem aderência concreta, não justificados nem demonstrados”.
Explica-se que “seria necessário apresentar contas, contas essas que a exequente não alegou nem apresentou, nem no requerimento executivo, nem nos extratos, nem nas notas de liquidação, nem nas demonstrações, nem nas alegações.”
Acrescenta-se que “a junção de documentos, ou a simples remissão para extratos ou notas de débito, não constitui alegação jurídico-processualmente relevante.”
Afirma-se também que “o ónus de alegação, prova, e integral e cabal demonstração (inclusivamente matemática) da(s) quantia(s) exequenda(s) peticionada(s), a título de capital (e respetivos componentes), juros (remuneratórios, moratórios, compulsórios), impostos, comissões, prémios, e/ou despesas, é da exequente, nos termos dos arts. 713.º (“a requerer pelo exequente”), 716.º NCPC, 342.º, esp. n.º 1, do Código Civil.”
Diremos, em primeiro lugar, que não se levantam dúvidas sobre os considerandos que serviram de ponto de partida ao raciocínio exposto na sentença proferida. Em sede de execução, vale antes do mais o título executivo, pelo qual haverá que determinar o direito que o exequente pretende fazer valer, e desse modo qual o âmbito e os limites da execução.
Porém, logo neste ponto observamos que daqui resulta inevitável discordância quanto ao menosprezo expresso pelos documentos nas considerações que acima reproduzimos: desde logo é o próprio título executivo, onde constam normalmente as cláusulas, estipulações, convenções, a que haverá que atender – toda a execução tem por base um título executivo, que além de determinar o seu fim e, consequentemente, o seu tipo, estabelece os seus limites objetivos e subjetivos, apresentando-se como requisito essencial da ação executiva, e há-de constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda.
E depois os documentos que possam complementar funcionalmente esse título: no nosso caso, sendo o título invocado constituído por escrituras públicas relativas a contratos de mútuo, os falados extractos, notas de débito, notas de liquidação, referindo nomeadamente pagamentos efectuados e pagamentos em, falta, não podem considerar-se, sem mais, irrelevantes para os fins da execução.
Também não divergimos da sentença em análise quando declara que para a viabilidade da execução (estamos perante execução para pagamento de quantia certa) é necessário que a prestação pretendida seja certa, líquida e exigível, sendo estes pressupostos que condicionam a exequibilidade material do direito.
De igual modo, concorda-se que a obrigação será certa quanto a prestação se encontrar qualitativamente determinada e será exigível quando se encontrar vencida ou quando o seu vencimento depender de simples interpelação do devedor – o que não está em discussão no presente recurso, a propósito do caso dos autos, uma vez que a esse propósito não existiu decisão que contrariasse a marcha da execução.
Todavia, prossegue a sentença recorrida declarando que a prestação “será líquida quando o seu quantitativo se encontre já apurado” e que no caso em apreço não se verifica esse requisito de exequibilidade (citamos: “vexata quaestio destes autos prende-se com o apuramento concreto do montante global devido pelo Embargante, co-Executado, atenta a impugnação da liquidação na oposição”).
É neste passo que nos afastamos da orientação assumida pelo julgador da primeira instância. Com efeito, estar impugnada a liquidação não é o mesmo que faltar a liquidação.
Na realidade, examinando o conteúdo do requerimento inicial da execução, observa-se o que se descreve a seguir.
Quanto ao primeiro empréstimo, depois de remeter para o teor do clausulado do próprio título executivo (escritura e alterações posteriores) a exequente conclui (pontos 17, 18 e 19):
“Encontrando-se em dívida à exequente, à data de 02.07.2019, a quantia de € 39.067,39 (trinta e nove mil e sessenta e sete euros e trinta e nove cêntimos), sendo: • Capital - € 33.427,22 • Juros de 27.07.2016 a 02.07.2019 - € 5.640,17 - Cfr. Nota de Débito que se junta sob o documento n.º 3 e se dá por reproduzido para os legais efeitos”.
“Conforme documento n.º 3, a dívida será agravada diariamente em € 4,39, encargo correspondente a juros calculados à taxa de 4,732%, que inclui a sobretaxa de 3,000%, de harmonia com o art.º 8º do Decreto-Lei n.º 58/2013 de 8 de Maio.
“Sobre os juros e comissões que vierem a ser cobrados incidirá imposto de selo à taxa em vigor”.
Quanto ao segundo empréstimo, seguindo a mesma técnica de remeter para as estipulações do título original e alterações posteriores, a exequente declara nos pontos 38, 39 e 40:
“Encontrando-se em dívida à exequente, à data de 02.07.2019, a quantia de € 4.579,70 (quatro mil quinhentos e setenta e nove euros e setenta cêntimos), sendo: • Capital - € 3.785,09 • Juros de 27.07.2016 a 02.07.2019 - € 794,61 - Cfr. Nota de Débito que se junta sob o documento n.º 7 e se dá por reproduzido para os legais efeitos.
“Conforme documento n.º 7, a dívida será agravada diariamente em € 0,39, encargo correspondente a juros calculados à taxa de 3,682%, que inclui a sobretaxa de 3,000%, de harmonia com o art.º 8º do Decreto-Lei n.º 58/2013 de 8 de Maio.”
“Sobre os juros e comissões que vierem a ser cobrados incidirá imposto de selo à taxa em vigor.”
Por último, nos pontos 49 e 50, a exequente sintetiza o seu pedido, somando as parcelas anteriores, declarando que a quantia exequenda é no montante de € 43.647,09, por referência a 02.07.2019, e a essa quantia acrescerão os juros vincendos até integral reembolso.
Em face deste conteúdo do requerimento executivo afigura-se que não há razão para concluir que estamos perante falta de liquidação da obrigação exequenda, e para mais uma falta irremediável, determinando a extinção da execução.
A circunstância de tal liquidação ser contestada em sede de embargos não se pode confundir com falta de liquidação. A divergência terá que ser decidida, de acordo com a prova existente e as normas a considerar, que vão desde aquelas resultantes dos contratos entre as partes até às normas que definem a repartição dos ónus probatórios.
Julga-se, aliás, que é esse o objecto dos presentes embargos, que a parte embargante (executado) deduziu alegando factualidade diversa, e argumentação jurídica, com vista a contestar a liquidação efectuada no requerimento executório em discussão.
Havendo posições divergentes quanto aos montantes em dívida, como resulta dos articulados, essas posições carecem de ser dirimidas por decisão judicial, se necessário com recurso a produção de mais prova, quando a existente não baste – não parecendo justificado concluir pela existência do vício insanável de falta de liquidação como consta da sentença impugnada.
A este respeito citamos o sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 07-02-2021, no processo n.º 15165/19.0T8SNT-C.L1-7, relator Micaela Sousa (in www.dgsi.pt) proferido sobre situação similar a esta dos autos, transcrevendo os números que julgamos pertinentes para esta:
“I– A realização coactiva de uma prestação depende da existência de título executivo (pressuposto formal que condiciona a exequibilidade do direito) e de aquela se mostrar certa, exigível e líquida.
II– Enquanto requisito essencial da acção executiva, o título deve constituir instrumento probatório suficiente da obrigação exequenda, revelando, por si só, com um mínimo aceitável de segurança, a existência do crédito em que assenta o pedido exequendo, sem prejuízo da possibilidade de o executado provar que apesar do título a dívida não existe.
IV– Quando a quantia em dívida for ilíquida, o exequente deve especificar os valores que considera compreendidos na prestação devida e concluir o requerimento executivo com um pedido líquido, nos termos do artigo 716º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
V– A liquidação é dependente de simples cálculo aritmético quando se basta com o simples fazer contas, trabalhar com números, dando origem apenas a discussão sobre a exactidão desses números e dos correspondentes cálculos, podendo tais números ser provados por documentos juntos com o requerimento inicial.
VI– Nesse caso, o exequente tem apenas de enunciar as operações efectuadas, ou seja, os dados de que partiu e o resultado alcançado, elementos que serão, ainda assim, sujeitos ao contraditório a exercer através de embargos de executado.
VII– A existência de pagamentos efectuados no âmbito do processo de insolvência da sociedade subscritora da livrança não tem a virtualidade de transformar a quantia líquida nela inscrita em prestação ilíquida, pois que tais pagamentos apenas determinarão a redução da dívida exequenda na proporção do que foi liquidado.
VIII– No saneador-sentença deve o juiz, sendo caso disso, declarar quais os factos que julga provados, elencando aqueles que são tidos por relevantes (factos essenciais, em sentido amplo, que constituem a causa de pedir e em que se baseiam as excepções invocadas) e que estão plenamente provados (admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão).
IX– A falta absoluta de decisão sobre a matéria de facto pode ser conhecida oficiosamente pela Relação, nos termos do disposto no artigo 662º, n.º 2, alínea c) do Código de Processo Civil, pois que não pode deixar de se considerar abrangida pela expressão deficiência a que alude tal normativo legal, correspondendo ao grau máximo dessa deficiência.”
Efectivamente, como diz Lebre de Freitas, in A Acção Executiva, 4ª edição, pág. 29: “Certeza, exigibilidade e liquidez são pressupostos de carácter material, que intrinsecamente condicionam a exequibilidade do direito, na medida em que sem eles não é admissível a satisfação coactiva da pretensão”.
Porém, a obrigação ilíquida é tão só aquela que tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não está ainda apurado, de tal modo que o devedor sabe que deve mas desconhece o quantum.
Tratando-se aqui de uma execução baseada em título executivo (contratos de mútuo ou empréstimo), de onde resulta a existência da obrigação mas não a sua quantificação, actual, o exequente deve fixar o seu quantitativo no requerimento inicial da execução mediante especificação e cálculo dos respectivos valores (cfr. artigo 716º, n.º 1, do Código Civil).
E foi isso que a exequente fez no caso presente, não permanecendo no terreno da iliquidez a obrigação submetida a juízo. Julgamos que a impugnação dos valores não é questão de iliquidez da obrigação, mas antes matéria sujeita a prova.
A obrigação é ilíquida quando tem por objecto uma prestação cujo quantitativo ainda não está apurado, pelo que não ocorre falta de liquidez quando a prestação pretendida está devidamente quantificada, com referência expressa ao título em que se baseia a execução e demais documentação junta.
Por outro lado, observa-se que subsistem questões de facto e de Direito levantadas na petição de embargos que permaneceram por decidir. Essas ficaram prejudicadas pela decisão tomada de extinção da instância com base apenas na apontada falta de liquidez da obrigação.
Constata-se, aliás, que tal decisão, traduzindo apenas uma análise jurídica da situação dos autos, foi proferida através de saneador-sentença, que dispensou qualquer produção de prova, tanto aquela que estava requerida como outra que eventualmente o tribunal considerasse necessária, e dispensou mesmo qualquer fixação da matéria de facto provada e não provada para esse efeito.
A opção de decidir a extinção do processo com base apenas nesse considerando de ordem formal (ausência de liquidez da obrigação exequenda) que como ficou dito entendemos não existir, impediu que se avançasse naturalmente na tramitação para conhecimento das demais questões levantadas pelos embargos.
Ora, como tem sido reiteradamente salientado pela jurisprudência, a decisão imediata em sede de despacho saneador só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em conta a visão particular perfilhada pelo juiz da causa.
Tudo ponderado, julgamos que assiste razão à recorrente e que o recurso é procedente, nos precisos termos defendidos nas conclusões que foram transcritas.
Consequentemente, deve ser revogada, por não poder subsistir, tal como ficou explicado, a decisão de julgar extinta a execução por falta de liquidação do pedido exequendo, devendo o tribunal recorrido determinar o prosseguimento dos autos, de forma a decidir as demais questões suscitadas nos presentes embargos.
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3 - Quanto a custas: de acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito.
O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
O recurso principal interposto pela embargada CGD procede integralmente, pelo que as custas (na vertente de custas de parte), devem ficar a cargo do embargante/recorrido, como parte vencida.
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VI - DECISÃO
Pelo exposto, julgamos procedente a apelação, e revogamos o despacho impugnado, determinando o prosseguimento dos autos.
Custas a cargo do embargante (cfr. art. 527.º, n.º 1, do CPC).
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Évora, 7 de Março de 2024
José Lúcio
Manuel Bargado
Albertina Pedroso