PROCESSO DE INVENTÁRIO
PARTILHA DE BENS DO CASAL
BENS COMUNS DO CASAL
Sumário


I. O processo de inventário destina-se a regular a partilha desses bens comuns, incluindo as dívidas que são comuns, não servindo para fazer valer direitos de qualquer dos cônjuges que não estejam conexionados com o património comum do casal.
II. Deve ser relacionada no processo de inventário pelo saldo existente à data do divórcio do casal, uma conta bancária aberta pelo interessado no estado de solteiro uma vez que os fundos que a mesma apresenta são provenientes de depósitos posteriores à data do seu casamento com a interessada.
III. Tendo a casa de habitação do casal sido edificada quando os interessados eram namorados sobre um terreno do interessado não se pode considerar a mesma como um bem “adquirido” pelo casal ( i.e. no decurso do casamento) e por consequência um bem comum.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral


ACÓRDÃO
I- RELATÓRIO
1. AA, cabeça de casal nos autos à margem identificados, nos quais é co-interessado o seu ex-cônjuge, BB, dissentindo do despacho proferido em 27.11.202, dele veio recorrer, formulando, na sua apelação as seguintes conclusões:

a) O Tribunal decidiu apreciar as verbas nº 1 e 42, quando a Cabeça de Casal já tinha desistido das mesmas.

b) O ... esteve sempre na posse do ex casal – logo, é um bem comum e deve manter-se.

c) A casa, conforme a certidão do registo predial junta à Relação de Bens, não está registada a favor do BB – o que está registado é a parcela de terreno.

d) A casa só foi inscrita nas Finanças no ano de 2009.

e) A casa só teve licença de utilização no ano de 2009.

f) A casa foi construída com dinheiro do casal e com trabalho da Cabeça de Casal e de seu pai – logo, deve ser considerada um bem comum e deve manter-se a sua relacionação.

g) As contas bancárias devem manter-se relacionadas.

h) O dinheiro da verba 6 é bem comum do ex casal, por força do disposto nos artigos 1724º e 1725º do Código Civil.

i) Não percebe, agora, que o Tribunal venha solicitar elementos à Caixa Geral de Depósitos e à Seguradora Fidelidade, quando no dia 17/11/2023, decidiu que tais dados constavam dos Autos. Logo, o saldo da conta constante da verba 6, é bem comum, por força do disposto nos artigos 1724º e 1725º do Código Civil.

j) O artigo 205º da Constituição da República Portuguesa e o artigo 154º do Código Processo Civil, impõem ao julgador o dever de este fundamentar as suas decisões, devendo estas ser claras, expressas, coerentes e suficientes.

k) Assim, a douta decisão recorrida por lhe faltar as especificações dos fundamentos de direito, é obscura, ambígua e de difícil compreensão e, por consequência, nula.

l) Também, terá sido violado o disposto no artigo 724º do Código Civil e o disposto no artigo 615 nº1, al. d), do Código do Processo Civil.

m) Devendo ser revogado o douto despacho saneador na parte em que decidiu eliminar as verbas 3, 5, 6, 7, 8 e 30, devendo às mesmas serem partilhadas pelos ex cônjuges.

Mas Vossas Excelências farão a costumada Justiça!

2. Não houve contra-alegações.

3. O objecto do recurso, delimitado pelas enunciadas conclusões (cfr.artºs 608º/2, 609º, 635º/4, 639º e 663º/2 todos do CPC) reconduz-se à apreciação das seguintes questões:

3.1. Se o despacho recorrido enferma de nulidade;

3.2. Se deve ser revogado na parte em que eliminou as verbas 3, 5, 6, 7, 8 e 30 da relação de bens e, por consequência, se as mesmas devem ser objecto da partilha .

II. FUNDAMENTAÇÃO

4. É a seguinte a factualidade a ter em consideração com relevância para a determinação da natureza das verbas em crise:

4.1. Os interessados casaram, entre si, no dia ../../2008, no regime da comunhão de adquiridos;

4.2. O processo de divórcio foi instaurado no dia ../../2021;

4.3. O casamento foi dissolvido por sentença proferida, em .../../2021, nesse mesmo processo de divórcio, transitada em julgado.

5. No que tange às mesmas verbas, é o seguinte o teor da decisão recorrida:

“ (…)Verba nº 3 – veículo automóvel marca ..., com a matrícula ..-..-OI. no valor de € 500,00, que, alegadamente, o requerido comprou com o dinheiro das prendas de casamento de ambos e averbou em nome do seu pai e agora transferiu para a sociedade identificada na verba 2 :

Não se provou, ouvidas as testemunhas CC, DD, EE, FF e GG e os interessados AA e BB, na diligência que decorreu no dia 17/11/2023, que o interessado BB tenha adquirido este bem com o dinheiro das prendas do casamento, referência que, aliás, é muito genérica, nem sequer tendo sido alegado que prendas foram, quem as deu, nem sequer isso resultou da prova produzida em 17/11/2023.

O que se provou, por documento nº ... junto aos autos em 1/4/2022, é que o veículo está registado a favor da sociedade « A..., Unipessoal, Lda. ».

Assim sendo, de acordo com a presunção de titularidade que consta do registo, prevista no artº 7º do C.Reg.Predial, aplicável ao Registo Automóvel « ex vi » artº 29º do DL 54/75 de 12/2, presume-se que o veículo automóvel é titularidade da sociedade em nome de quem está registado, não tendo a presunção sido ilidida no caso concreto.

Pelo exposto, ordeno a exclusão da relação de bens da verba nº 3 do activo. (…)”

“(…) O problema das quantias em dinheiro ( verbas nºs 5, 6, 7 e 8 da relação de bens):

A conta do BES identificada na verba nº 5 da relação de bens não era titulada pela cabeça-de-casal, conforme extracto junto aos autos em 3/5/2023, documento que está em nome de HH. Assim sendo, até se revela que seria uma conta dos pais do interessado BB, pelo que ordeno a sua exclusão da relação de bens ( verba nº 5 da relação de bens ).

A conta da « Caixa Geral de Depósitos, S.A. », com o IBAN ...00 ( identificada na verba nº 6 da relação de bens ) era uma conta apenas titulada pelo interessado BB e já existente quando o mesmo era casado.

Vejam-se os próprios documentos bancários juntos pela cabeça-de-casal que titulam as transferências de dinheiro e cheques emitidos para esta conta, com vista ao pagamento da casa (os tais € 36.060,00 que já referimos), que mencionam o titular desta conta como sendo o BB. E nessa ocasião, ele era solteiro. O documento junto por este interessado em 3/5/2023, acerca desta conta, também prova que esta conta bancária é um bem próprio dele.

Assim sendo, ordeno a exclusão da verba nº 6 da relação de bens.

Quanto às verbas nºs 7 e 8, nestes pontos, a cabeça-de-casal tem razão, as contas são bens comuns do casal, porque os documentos constantes dos autos sobre as mesmas assim o revelam.

O problema aqui é outro: é saber qual o saldo que deve ser relacionado.

Note-se que os efeitos do divórcio, quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, não retroagem à data do trânsito em julgado da sentença que decreta o divórcio, nem sequer à data da separação de facto, mas à data da propositura da acção, nos termos do disposto no artº 1789º nº 1 do C.C., no caso concreto, retroagem à data de ../../2021, quando foi instaurada a acção de divórcio.

Assim sendo, deve ser oficiado à « Caixa Geral de Depósitos, S.A. » que informe :

- qual o saldo da conta bancária identificada na verba nº 7 da relação de bens, à data de ../../2021 ( data da instauração da acção de divórcio ), sendo esse saldo a quantia a relacionar na verba nº 7;

- Mais deve ser oficiado à « Fidelidade » que informe qual o saldo da conta identificada na verba nº 8 da relação de bens, à data de ../../2021 ( data da instauração da acção de divórcio ), sendo esse saldo a quantia a relacionar na verba nº 8;

- Mais deve ser oficiado à « Caixa Geral de Depósitos, S.A. », que informe se os interessados têm passivo comum a essa entidade bancária e, em caso afirmativo, qual o respectivo montante, porquanto não foi possível apurar, até ao momento, nenhuns factos relacionados com o passivo comum do casal, inexistindo quaisquer documentos sobre o assunto. (…).”.

“Verba nº 30 da relação de bens, identificada por prédio urbano, sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz sob o artº ...99 da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... com o nº ...18 :

Trata-se do imóvel onde os interessados viveram, quando eram casados entre si.

A cabeça-de-casal entende que se trata de um bem comum do casal. O interessado BB entende que se trata de um bem próprio dele.

A casa de habitação foi construída quando os interessados eram namorados, num terreno comprado pelo interessado BB.

Se a casa de habitação tivesse sido construída na pendência do casamento dos interessados aplicava-se o regime das benfeitorias, nos termos seguintes :

De acordo com o AC RC de 12/7/2023 – Proc. nº 155/23.6T8CBR.C1 – www.dgsi.pt :

. A realização, na pendência do casamento, de uma construção (prédio urbano) no terreno doado a um dos ex-cônjuges, em que o casamento fora celebrado segundo a comunhão de adquiridos, haverá que ser qualificada como benfeitoria que se integra na comunhão.

Tal edificação insere-se na titularidade do proprietário do terreno, por força do princípio dos direitos reais da especialização ou individualização, dando lugar a um crédito de compensação, pelo que o valor da construção realizada (por ambos os cônjuges), na vigência do seu casamento, deve ser relacionado, no inventário subsequente ao divórcio, como benfeitoria, por forma a que se opere a compensação devida ao património comum.

O referido enquadramento, consentâneo com a ordenação dominial definitiva, respeita os princípios do direito sobre as coisas, designadamente, da tipicidade (art.º 1306º CC) e da especificidade ou individualização.

Nesta linha de entendimento, sobre o tema “construção de uma casa sobre terreno próprio de um dos cônjuges casados em regime de comunhão de adquiridos”, conclui-se: «nada obsta a que a casa construída por ambos os cônjuges em terreno próprio de um deles, com utilização de valores comuns, seja considerada um bem “adquirido” em parte com bens próprios e em parte com bens comuns. E que por aplicação da regra prevista no n.º 1 do artigo 1726º se considere que ingressou no património comum. A atribuição patrimonial que favoreceu a comunhão faz nascer um direito de compensação no património próprio do cônjuge proprietário do terreno, exigível no momento da dissolução e partilha da comunhão (artigo 1726º, n.º 1

Neste sentido, Rita Lobo Xavier, Das Relações entre o Direito Comum e o Direito Matrimonial – A propósito das atribuições patrimoniais entre cônjuges, Comemorações dos 35 Anos do Código Civil e dos 25 Anos da Reforma de 1977, Vol. I, Coimbra Editora, 2004, págs. 487 e seguintes.

Acolhendo esta perspetiva doutrinária, cf., por exemplo, os acórdãos da RP de 25.5.2006-processo 0631411 e 28.5.2013-processo 3255/08.9TJVNF-B.P1, da RG de 18.5.2017-processo 387/15.0T8FAF.G1 e da RC de 12.10.2020-processo 2124/15.0T8LRA.C1 [sumariando-se: «I - A jurisprudência tem decidido, quase invariavelmente, que a construção pelos cônjuges casados em comunhão de adquiridos de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria, e que, por isso, esta deve ser descrita como bem comum no inventário consequente ao divórcio do casal, mantendo-se o terreno como bem próprio, conclusão a que chega, essencialmente, em função da orientação que distingue benfeitoria e acessão por via da relação jurídica com a coisa: basicamente são benfeitorias os melhoramentos feitos por pessoa relacionada juridicamente com a coisa; são acessões os melhoramentos feitos por pessoa não relacionada com a coisa. II – Será, no entanto, preferível que, para justificar o incremento de valor patrimonial em bem alheio, se utilize a orientação que se vale da função ou da finalidade dos regimes das benfeitorias e da acessão: basicamente, são benfeitorias os melhoramentos que não interferem na substância da coisa; são acessões os melhoramentos que alteram essa substância. III – Assim, (...) dever-se-á definir o regime a aplicar em função da ideia de que uma obra que resulta incorporada num terreno, passando a constituir com ele uma realidade incindível e provocando a sua alteração jurídica de prédio rústico para urbano, não pode fazer-se equivaler a uma benfeitoria, e que é o conceito de acessão, no que tem de essencial, que melhor satisfaz a compreensão daquele fenómeno. IV – Esta conclusão não obriga a que se aplique o regime da acessão industrial imobiliária como vem gizado no art.ºs 1339º e ss CC, mas a enquadrar a questão no direito matrimonial, que influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorreria da aplicação isolada do direito comum. V – A solução de considerar terreno e edifício nele construído como um bem comum, por via do disposto no n.º 1 do art.º 1726º/CC, é a que quadra melhor às expetativas dos cônjuges e também aos interesses dos credores, a que não são alheias as normas dos art.ºs 1721º e seguintes. VI – Desde o momento em que o valor do prédio urbano construído sobre o prédio rústico é maior do que o valor do terreno onde foi incorporado deve o cabeça de casal no inventário aditar como bem comum o imóvel rústico e o imóvel urbano e relacionar como crédito do cônjuge a quem pertencia o terreno o valor atualizado deste, nos termos e para o efeito do n.º 2 do art.º 1726º CC.»], publicados no “site” da dgsi.

No caso dos autos, ouvida a testemunha GG e a interessada AA, atendendo à clareza e rigor destes depoimentos, em conjugação com o doc. nº ..., junto aos autos em 15/2/2023, o Tribunal dá como provado que, quando os interessados namoravam entre si ( durante o namoro, mas antes do casamento ), a interessada AA contribuiu para a construção da casa, com a quantia total de € 36.060,00, assim discriminada ( em 20/12/2006, contribuiu com a quantia de € 6.000,00; em 26/3/2007, com a quantia de € 5.000,00; em 4/7/2007, com a quantia de € 4.000,00; em 2/11/2007, com a quantia de € 5.000,00; em 22/1/2008, com a quantia de € 3.500,00; em 25/3/2008, com a quantia de € 1.600,00; em 9/5/2008, com a quantia de € 7.500,00 e, ainda, com as quantias de € 2.500,00 e € 960,00 ).

O problema é que a casa está registada em nome do interessado BB, no estado de solteiro, conforme certidão predial junta aos autos com a relação de bens, pelo que se presume ser o mesmo titular da casa, nos termos do disposto no artº 7º nº 1 do C.Reg.Predial.

No caso dos autos, esta presunção nem sequer foi ilidida por prova em contrário, porque as contribuições da interessada AA, supra identificadas, foram por ela prestadas, no estado de solteira.

Ora, a comunhão de bens só existe depois do casamento. Antes do casamento, não há bens comuns do casal. Na união de facto, também não existem bens comuns, apenas bens em compropriedade.

O namoro não é fonte de relações jurídicas, nem sequer é uma expectativa jurídica de contrair casamento, porque o namoro, a qualquer momento, pode terminar, sem casamento.

Pelo exposto, o Tribunal entende que o interessado BB deve restituir, à interessada AA, a quantia de € 36.060,00, com que ela contribuiu para a construção da casa, mas a pedir pela interessada em acção própria, invocando as regras do enriquecimento sem causa, sendo que a casa em apreço é, em nossa opinião, um bem próprio do interessado BB.

Porque razão deve o interessado BB restituir, à interessada AA, em acção própria por esta instaurada, a quantia de € 36.060,00, com base nas regras do enriquecimento sem causa ?

Nos termos do artigo 473.º do Código Civil, «1 – Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou. 2 – A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objeto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou».

São requisitos da obrigação de restituir os seguintes:

(I) Enriquecimento de alguém. Nas palavras de Antunes Varela «O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista» ( Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3.ª edição revista e atualizada, Almedina/1980, pág. 373.), podendo tratar-se de um aumento do ativo patrimonial; de uma diminuição do passivo; no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes atos sejam suscetíveis de avaliação pecuniária; poupança de despesas.

(II) Enriquecimento carecido de causa justificativa. Segundo o mesmo autor, a noção de causa do enriquecimento varia consoante a natureza jurídica do ato que lhe serve de fonte, pelo que, no que respeita à (a) causa da prestação, «… a prestação recebida pelo credor carece de causa, porque relação jurídica que ela visava extinguir já não existia na titularidade do accipiens, desde que a cessão e o pagamento feito pelo fiador produzem imediatamente os seus efeitos nas relações entre cedente e cessionário, por um lado, e entre credor e fiador por outro» ( Ob. Cit., pág. 376.); quanto à (b) causa da obrigação (negocial), «Se a obrigação tem carácter negocial (porque procede de uma venda, um arrendamento, ou empréstimo ou uma troca), a causa consiste no fim típico do negócio em que se integra. Quando esse fim falha por qualquer razão, as obrigações resultantes do negócio ficam sem causa. Se a venda é nula por falta de forma, ambas as obrigações (a do vendedor e a do comprador) carecem de causa; se é anulada por incapacidade do vendedor, é a obrigação (de entrega do preço) do comprador que não tem causa.

Como no nosso direito privado os negócios têm por via de regra natureza causal, o fim do negócio faz parte integrante do seu conteúdo (objecto lhe chama a nossa lei: art. 281.º, I), a causa é uma causa interna (…) e os vícios a ela inerentes geram a nulidade ou a resolução de todo o negócio» ( Ob. Cit., pág. 377.); quanto à (c) causa das restantes deslocações patrimoniais diz o mesmo autor que «Há, porém, muitos casos em que a situação de enriquecimento não provém de uma prestação do empobrecido ou de terceiro, nem de uma obrigação assumida por um outro, mas de um acto de intromissão do enriquecido em direitos ou bens jurídicos alheios ou de actos de outra natureza, inclusivamente de actos materiais, praticados pelo devedor ou por terceiro (gestão de negócios). E, nesses casos, em que consiste a causa? Quando se pode asseverar que a deslocação patrimonial operada carece de causa?» ( Ob. Cit., pág. 379.)

(III) Obtido à custa de quem requer a restituição. Ou seja, segundo o mesmo professor, «A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduzir-se-á, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro» ( Ob. Cit., pág. 381.).

À custa de porque nem sempre a obtenção da vantagem de alguém à custa de outrem se exprime no empobrecimento correlativo do património do lesado, como é o caso clássico da instalação em casa alheia ou do uso de coisa alheia, onde não há correspondência entre o enriquecimento de um dos sujeitos e o empobrecimento do outro, isto é, não existe um valor que sai de um património e entra no património do outro.

Concluindo, ainda com Antunes Varela, «Quando o enriquecimento criado está de harmonia com a ordenação jurídica dos bens aceita pelo sistema, pode asseverar-se que a deslocação patrimonial tem causa justificativa; se, pelo contrário, por força dessa ordenação positiva, ele houver de pertencer a outrem, o enriquecimento carece.

No caso dos autos, sendo a casa um bem próprio do interessado BB e tendo a interessada AA contribuído com a quantia de € 30.060,00, para a construção dessa mesma casa, é justo que o proprietário da casa restitua o dinheiro a quem contribuiu para a construção de uma casa que não é sua.

Assim sendo, ordeno a exclusão da relação de bens da verba nº 30 do activo.

6. Do mérito do recurso

6.1. Da nulidade do despacho recorrido

Refere a apelante que a decisão recorrida não especifica os fundamentos de direito e é, por isso, nula de acordo com o disposto no art.º 615º, nº1 b) do CPC.
Sem qualquer razão, porém.
A decisão mostra-se consistentemente fundamentada, i.e. nela são explicadas as razões que levaram o Tribunal “a quo” a eliminar as verbas em causa.
E tanto assim é que a apelante as rebate no seu recurso, o que bem revela que as compreendeu e assimilou.
Para além disso não omite alusão à fonte normativa que alicerça o decidido, já que na mesma são aduzidas as razões de direito que conduzem à solução alcançada.
Mas mesmo que assim não fosse nem por isso a decisão seria nula pois, como se refere no Acórdão do STJ de 19.2.2015: “Fundamentar juridicamente uma decisão não implica citar expressamente os preceitos legais que a suportam “.
Em suma: improcede a pretensão da apelante de ver declarada a nulidade da decisão recorrida.

6.2. Da natureza das verbas 3, 5, 6, 7, 8 e 30 da relação de bens.

Estamos em presença de um inventário para partilha dos bens comuns na sequência de divórcio; neste caso, o inventário visa pôr termo à comunhão de bens do ex-casal formado por AA e BB.

O processo de inventário destina-se a regular a partilha desses bens comuns, incluindo as dívidas que são comuns, não servindo para fazer valer direitos de qualquer dos cônjuges que não estejam conexionados com o património comum do casal.

Ora, o veículo ... está registado em nome de uma sociedade denominada A..., Unipessoal, Lda. o que só por si impede que seja objecto de partilha pois notoriamente não integra o património comum mas sim o património de outra pessoa ( neste caso, colectiva) e, por consequência, dele não podem dispor os interessados.

Efectivamente, nos termos do artigo 7.ºdo CRP (aplicável ao registo de automóveis por força do disposto no art.º 29º do D.L.54/75 de 12.2) “o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.

E não é a circunstância de o veículo ter estado sempre em poder do casal que permite ilidir a presunção de propriedade decorrente do registo a favor da dita sociedade.

Por conseguinte, é de manter a decisão de eliminar a verba nº3.

Relativamente à verba nº 5: apesar de aludir à mesma, a apelante não invoca qualquer razão pela qual a decisão de a eliminar deve ser revertida.

Uma vez que se trata de uma conta bancária titulada por uma pessoa diferente do casal, não pode o seu saldo ser objecto de partilha pois para tanto era necessário ter ficado provado que o dinheiro nela depositado era de propriedade do casal e não do titular da conta.

Por conseguinte, à míngua de tal prova, presume-se a correspondência de identidade entre titular dos fundos depositados e o titular da conta, que no caso é um terceiro.

Nada há a modificar, portanto, no que tange à verba nº5.

O mesmo não se pode dizer no que concerne à verba nº6: Ainda que se trate de uma conta bancária aberta pelo interessado BB no estado de solteiro, o certo é que os fundos que a mesma apresenta são provenientes de depósitos posteriores à data do seu casamento.

Como bem se salienta no Ac. do STJ de 4.6.2013 (Alves Velho): “São inconfundíveis e independentes, a legitimidade para movimentação da conta, inerente à qualidade de contitular inscrito no contrato de depósito e dela directamente decorrente, e a legitimidade para dispor livremente das quantias que a integram, esta indissociável do direito de “propriedade” sobre as quantias depositadas”.

Só seria de eliminar tal verba se tivesse ficado demonstrado que não tinha havido depósitos de fundos após o casamento do seu titular (art.º1722º, nº1 a) do Cód. Civil).

Não sendo assim, deverá permanecer relacionada a conta em apreço (verba nº 6) na relação de bens, com o saldo que apresentava em ../../2022 (data da propositura da acção de divórcio).

É que apesar de os efeitos do divórcio se produzirem a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retrotraem-se, todavia, à data da propositura da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. art. 1789º, nº1 do Cód. Civil.).

As verbas 7 e 8 não foram eliminadas: apenas se determinou que fossem, e bem, relacionadas como os saldos que apresentavam à data da propositura da acção de divórcio.

Por último e no que concerne à verba 30:

O Tribunal “ a quo” refere o seguinte : “ O problema é que a casa está registada em nome do interessado BB, no estado de solteiro, conforme certidão predial junta aos autos com a relação de bens, pelo que se presume ser o mesmo titular da casa, nos termos do disposto no artº 7º nº 1 do C.Reg.Predial.”.

A recorrente afirma que tal não é correcto pois, conforme a certidão do registo predial junta à Relação de Bens, não está registada a favor do BB – o que está registado é a parcela de terreno.

E tem de facto razão. Só a parcela de terreno onde foi edificada a casa está registada em nome do BB ( cfr. fls. 45 dos presentes autos ).

Por conseguinte, a presunção referida não se verifica.

A questão que se coloca, pois, é se a construção da moradia no terreno do interessado teve lugar, ou não, na pendência do casamento, ou seja, se a mesma foi “adquirida” pelo então casal.

De facto, de acordo com o artigo 1724.°do Código Civil, fazem parte da comunhão "o produto do trabalho dos cônjuges" e "os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados pela lei".
Como afirma Rita Xavier (As relações entre o Direito Comum e o direito matrimonial “, pag. 492), «é possível encarar a casa construída como um bem "adquirido" na constância do casamento. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os "ganhos" "alcançados" pelos cônjuges, todos os bens que "advierem" aos cônjuges durante o casamento que não sejam exceptuados pela lei. Ou, nas palavras de ANTUNES VARELA ( Direito da Família, vol. I, 5ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1999, p. 453), fazem parte da comunhão os bens que os cônjuges "fizeram seus" na constância do casamento a título oneroso.”.

Não tendo sequer sido infirmada a conclusão alcançada pelo Tribunal “ a quo” de que a casa de habitação foi construída quando os interessados eram namorados ( o que aliás é comprovado pela licença de construção e suas prorrogações juntas aos autos) não se pode considerar a verba 30 como um bem “adquirido” pelo casal ( i.e. no decurso do casamento) e por consequência um bem comum.

III. DECISÃO

Por todo o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e em consequência:

A) Revoga-se a decisão de eliminar verba 6 da relação de bens (conta da «Caixa Geral de Depósitos, S.A. », com o IBAN ...00) e determina-se que a mesma se mantenha relacionada com o saldo que apresentava em ../../2022 ( data da propositura da acção de divórcio);

B) Mantém-se o demais decidido na decisão recorrida.

Custas pela apelante e pela apelada na proporção de 5/6 e 1/6, respectivamente.

Évora, 7 de Março de 2024
Maria João Sousa e Faro (relatora)
Maria Adelaide Domingos
Manuel Bargado