SOCIEDADE POR QUOTAS
GERENTE
REMUNERAÇÃO
Sumário


1. Exercendo o A. as funções de gerente da Ré sociedade por quotas, tem direito a receber a respectiva remuneração, nos termos do art. 255.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais.
2. Cessa esse direito oito dias após a data em que comunica à sociedade a renúncia à gerência.
3. A extinção do direito a auferir a remuneração de gerência não está dependente do registo e publicação do acto, pois estes actos destinam-se a produzir efeitos contra terceiros.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Portalegre, AA demandou BB Empreendimentos Turísticos, Lda., e CC, alegando ser gerente da 1.ª Ré e esta não lhe pagar as remunerações devidas desde Julho de 2019.
Pede, assim, a condenação da 1.ª Ré na quantia de € 6.880,45 a título de remunerações vencidas entre Julho de 2019 e Setembro de 2022, bem como as que se vencerem a partir de Outubro de 2022, sendo o 2.º R. condenado a reconhecer a existência desses valores em dívida e a praticar os actos necessários para que a 1.ª Ré proceda ao pagamento.
Na contestação, foi invocada a ilegitimidade do 2.º R. e que o A. entrou em baixa médica em Julho de 2019, renunciando depois à gerência.
A sentença julgou a causa improcedente e condenou o A. como litigante de má fé, em multa de 4 UC.

O A. recorre e conclui:
(…)

Não foi oferecida resposta.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

A matéria de facto julgada provada na sentença é a seguinte:
1. A 1ª. Ré é uma sociedade comercial com o capital social de € 5.000,00, repartido por duas quotas, ambas no valor de € 2.500,00 cada uma, pertencentes ao Autor e ao 2.ºRéu.
2. A sociedade obriga-se com a assinatura de ambos os sócios, o Autor e o 2.ºRéu.
3. A 1.ª Ré tem procedido, com referência ao Autor, a descontos para a Segurança Social, tendo como referência o valor mínimo de IAS.
4. Entre Julho de 2019 e Setembro de 2022, quer tenha sido a totalidade do mês, quer, parcialmente, o Autor esteve de baixa.
5. O Autor renunciou à gerência através de carta registada, enviada à 1.ª Ré, no dia 24 de Julho de 2020, cuja cópia foi junta com a contestação como doc. 1, com o seguinte teor:
«(…), 24 de Julho de 2020
Exmo. Sr.
Gerente da Empresa
BB Empreendimentos Turísticos, Lda.
ASSUNTO: carta de renúncia à gerência
Com os meus melhores cumprimentos, venho, por este meio, chamar a atenção de v. Exa. para o assunto em epígrafe.
De facto, e com efeitos retroactivos à data da minha baixa médica, isto é, a 22 de Julho de 2019, venho, por este meio, renunciar ao cargo de gerente, nos termos legais.
Atentamente,
AA».
6. A contabilidade da 1.ª Ré tentou diligenciar pelo registo da renúncia à gerência na competente conservatória do registo comercial, mas o mesmo não foi lavrado definitivamente.
7. Com referência ao ano de 2022, o Autor declarou fiscalmente o rendimento anual de 5.318,40€.

Aplicando o Direito.
1. Do direito à remuneração de gerência
Do valor que o A. reclama, € 258,55 respeita à remuneração do mês de Julho de 2019, e o restante às remunerações dos meses de Outubro de 2020, de Dezembro de 2020, de Janeiro de 2021 e de Agosto de 2021 a Setembro de 2022.
De acordo com o art. 255.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o gerente tem direito a remuneração, a fixar pelos sócios.
Ora, não há discussão que, no mês de Julho de 2019 o A. era gerente da sociedade, e por isso tinha direito a receber a respectiva remuneração como gerente.
Não foi apresentada uma deliberação escrita dos sócios a fixar a remuneração referida, mas as partes não discutem a existência ou validade dessa deliberação, sendo certo que a 1.ª Ré emitiu os respectivos recibos de pagamento.
Concluímos, pois, pelo menos em relação ao mês de Julho de 2019, que o A. tem direito ao crédito devido pelo exercício das funções de gerente, no citado valor de € 258,55, ao abrigo do art. 255.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais.[1]
Agora, quanto às remunerações reclamadas a partir do mês de Outubro de 2020, numa altura em que o A. já havia renunciado à gerência, temos a afirmar que o direito por ele reclamado deixou de ter suporte legal.
Com efeito, a renúncia à gerência é uma declaração unilateral do gerente comunicando à sociedade que põe fim à relação de gerência, tratando-se assim de um acto receptício, que se torna eficaz perante a sociedade oito dias depois de ter sido recebida – art. 258.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais. Está sujeita a registo e publicação obrigatórios, mas tal destina-se a produzir efeitos contra terceiros, pois quanto à sociedade a renúncia é eficaz no referido prazo de oito dias após o momento em que é recebida.[2]
Como tal, tendo comunicado à sociedade a sua renúncia à gerência, em 24.07.2020, o A. deixou de ter direito à remuneração de gerência, oito dias depois dessa data.
Logo, as remunerações que reclama a partir de Outubro de 2020, não são justificadas.
Certo que a 1.ª Ré tem procedido a descontos para a Segurança Social, tendo como referência o valor mínimo de IAS – o problema é que o A. não tem direito à remuneração de gerência desde a data supra mencionada, pelo que a atitude da 1.ª Ré pode eventualmente ser qualificada como uma infracção perante a Segurança Social, por efectuar descontos indevidos, e perante a Autoridade Tributária, por invocar despesas de gerência não devidas, mas não conferem ao A. o direito a auferir uma remuneração de gerência à qual renunciou voluntariamente.
Assim, a causa procede apenas quanto à remuneração de gerência reclamada quanto ao mês de Julho de 2019, que é devida pela 1.ª Ré por força do art. 255.º n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, improcedendo quanto ao demais.
Sobre a litigância de má fé, o recurso procede – anota-se, tão só, que o comportamento da 1.ª Ré não é isento de reparo e proporciona o litígio. Sabe que o A. renunciou à gerência mas continua a efectuar descontos para a Segurança Social a esse título, num comportamento que noutra sede, tributária, deverá ter a devida análise.

Decisão.
Destarte, concede-se parcial provimento ao recurso, e condena-se a 1.ª Ré a pagar ao A. a quantia de € 258,55, a título de remuneração de gerência do mês de Julho de 2019.
No demais, a causa improcede.
A condenação como litigante de má fé é também revogada.
Custas na proporção do decaimento.

Évora, 7 de Março de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Graça Araújo
Maria Adelaide Domingos

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[1] Neste sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 28.09.2023 (Proc. 4489/20.3T8ALM.L1-2), na página da DGSI.
[2] Acórdão da Relação de Lisboa de 20.02.2018 (Proc. 929/13.6TYLSB.L1-7), publicado no mesmo local.