LOCAÇÃO
RECONVENÇÃO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
CASO JULGADO FORMAL
Sumário


1. Não configura um contrato de renting ou de locação operacional aquele pelo qual uma pessoa cede a outra, mediante um preço convencionado, a utilização de um veículo para esta o conduzir numa competição automóvel, que se realiza durante três dias, fornecendo a primeira, ainda, a assistência técnica durante a prova.
2. Está em causa um contrato de locação simples, no qual o locatário escolheu o concreto veículo com que iria participar na competição, em detrimento de qualquer outro, porque considerou que este lhe proporcionaria a possibilidade de participar na prova e, eventualmente, obter a classificação que aspirava.
3. Nesta situação, a assistência técnica em prova não é mais que um serviço acessório prestado pelo locador, por permitir, ou facilitar, a possibilidade de competição com aquele veículo específico.
4. O locatário do veículo responde pela perda ou deterioração que não possa ser considerada como resultado de uma utilização prudente, presumindo-se a sua culpa.
5. Configura uma utilização imprudente o comportamento de um piloto de veículo que participa numa competição de todo-o-terreno que desobedece à ordem de paragem dada pelos comissários de prova, não acata o conselho do seu co-piloto para não atravessar o vau de uma ribeira, sabendo que já ali estava imobilizado outro veículo, que decorriam manobras de reboque do mesmo, que já não tinha tracção dianteira (não dispondo, pois, das características de todo-o-terreno que lhe permitiriam a transposição da ribeira), e que a profundidade do vau era tal que provocaria a entrada de água no compartimento do motor e a sua avaria.
6. Quem formula o pedido na acção é a parte demandante, e esta é quem configura a relação material controvertida.
7. Não tendo sido formulada reconvenção pelos RR. com pedido de intervenção de outros sujeitos (sujeita às restritas regras do art. 266.º n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil), a sentença não pode julgar mais que a relação material controvertida configurada pelo autor, nem pode condenar pessoa diversa da que foi demandada na petição inicial, sob pena de incorrer em nulidade.
8. O caso julgado formal do despacho que deferiu o incidente de intervenção principal provocada requerida pelos réus, não impõe a modificação da relação material controvertida configurada na acção, nem a alteração do pedido.
9. Logo, não pode ser julgada outra relação controvertida que não aquela que foi formulada na petição inicial, nem condenadas pessoas diversas daquelas que nessa peça processual constam como partes demandadas.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral


Acordam os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Local Cível de Portalegre, PRKSPORT – Unipessoal, Lda., demandou CONSUMORIGEM – Energias Renováveis, Lda. e AA, pedindo a sua condenação solidária na quantia de € 49.860,97, acrescida de juros.
Alega ter alugado à 1.ª Ré um veículo para utilização em competição automóvel, conduzido pelo 2.º R., tendo este ocasionado danos no veículo, cujo valor de reparação reclama.
Na respectiva contestação, o 2.º R. alegou a sua ilegitimidade passiva, e ambos os RR. impugnaram a matéria alegada pela A..
Mais requereram a intervenção principal provocada de ACP – Automóvel Clube de Portugal, entidade organizadora do evento desportivo onde ocorreram os danos reclamados, alegando a sua responsabilidade pelos mesmos.
Determinada a intervenção principal provocada desta entidade, apresentou articulado próprio, afirmando não estarem reunidos os pressupostos legais para a sua intervenção, ser parte ilegítima por não ser sujeito da relação controvertida configurada pela A., e impugnando a matéria alegado pelos RR..
Na audiência prévia foi relegado para final o conhecimento da excepção de ilegitimidade passiva do 2.º R..
Após julgamento, a sentença decidiu:
- julgar improcedente a excepção de ilegitimidade do 2.º R. e do interveniente ACP;
- condenar solidariamente ambos os RR. a pagar à A. a quantia de € 15.3762,22, acrescida de juros contados desde a citação;
- absolver os RR. do demais peticionado e absolver igualmente o interveniente.

Recorrem os RR. e formulam as seguintes conclusões:
(…)

A A. e o interveniente ACP contra-alegaram, no sentido de ao recurso ser negado provimento.
Corridos os vistos, cumpre-nos decidir.

Impugnação da matéria de facto
(…)

*
Em resumo, a impugnação fáctica procede parcialmente, apenas quanto ao ponto 36 dos factos provados, que ficará com a redacção supra exposta.
No demais, essa impugnação é julgada improcedente.

A matéria de facto provada fica assim estabelecida:
1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à comercialização e reparação de veículos motorizados, peças e acessórios, tendo iniciado a sua actividade no ano de 2005 e, desde 2014, detém como único gerente BB;
2. Esta empresa dedica-se, ainda, ao desporto motorizado na preparação e transformação de automóveis para competição de ralis de todo-o-terreno, para efeitos de aluguer dos mesmos a pilotos que pretendam alugá-los para participar neste tipo de provas ou campeonatos, dando ainda assistência técnica a carros de competição em prova, tanto dos seus como de outros proprietários.
3. A Autora, no ano de 2018, detinha a licença da FPAK n.º …;
4. O Réu AA é sócio gerente da Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda.;
5. O Réu AA detém experiência no desporto motorizado todo-o-terreno e participou em várias provas nacionais – campeonato nacional de todo-o-terreno – e provas internacionais, como o Rali Lisboa Dakar, Rali Sertões no Brasil, Transibérico ou Marrocos;
6. O Réu AA, numa conversa casual com BB, em início de Junho de 2017, demonstrou vontade de participar numas provas de todo o terreno (TT),
7. (…) e, com o intuito de a Autora ceder à Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda. um veículo para aquele efeito,
8. (…) em 19 de Junho de 2017, o Réu AA, através do e-mail gerencia@consumorigem.com, remeteu à Autora o seguinte e-mail: «No seguimento da nossa conversa envia-me a proposta de aluguer da tua Mazda antiga para as duas provas Idanha e Portalegre… para ir amadurecendo a ideia. Obrigado AA ».
9. (…) e, no próprio dia, a Autora remeteu ao Réu AA, para o supra referido endereço de e-mail, o seguinte e-mail: «Para as provas de Idanha e Portalegre posso fazer a seguinte proposta;
VALOR: 12.000€ mais os prémios monetários pagos pela Mazda (prémios por prova e no final do Campeonato);
Neste valor está incluído:
Assistência nas 2 provas
Combustível
Pneus usados em bom estado
Desgaste do material mecânico
Alimentação para piloto e navegador durante a corrida
Inscrição no Desafio Total Mazda
Transporte da viatura de prova
Não está incluído:
Seguro na viatura de prova
Acidentes (reparações por conta e risco do piloto)
Inscrição na Provas
Estadias».
10. No dia 17 de Julho de 2017, o Réu AA através do supra aludido endereço de e-mail remeteu à Autora o seguinte e-mail: «Bom dia BB. Após a análise da possível participação nas provas, verifiquei que entre os dias 4 e 9 de Setembro estou na Arábia Saudita no “Saudi Agricultural Exhibition”. Fica para outra oportunidade. Um abraço».
11. A Autora acordou verbalmente com a Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda., por intermédio do seu sócio gerente e ora Réu AA, a cedência do veículo Nissan Pick-up 2.5 TD CS de matrícula 89-30-UL, com o fito do Réu AA participar na prova de todo o terreno de Portalegre – Baja 500 de Portalegre -, que se iria realizar de 25 a 27 de Outubro de 2018 e,
12. (…) o acordo foi logrado em meados de Setembro de 2018 e,
13. (…) incluía a assistência técnica durante a prova e,
14. (…) o preço da cedência do veículo todo o terreno para esta única prova seria de € 5.000,00, acrescido de IVA.
15. Este valor monetário seria pago 50% no momento da inscrição na prova e os outros 50% na semana antes da corrida.
16. A Autora emitiu a factura n.º 342 à Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda., no valor de € 2.500,00 euros mais iva, como “serviços prestados” e, servia para contabilizar a despesa da cedência do veículo e da respectiva assistência na prova, na contabilidade da ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda.
17. A referida factura foi paga em 02 de Outubro de 2018 através de transferência efectuada pela Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda., da sua conta sedeado no Banco Montepio e,
18. (…) os restantes 50% do valor total de € 5.000,00 foram pagos no dia 25 de Outubro de 2018, imediatamente antes do inicio da prova.
19. A 32.º edição da prova do Baja Portalegre 500 de 2018 foi organizada pelo Automóvel Clube de Portugal – ACP Motorsport.
20. As provas do Baja Portalegre que o Réu AA se propunha fazer seriam nos dias 26 e 27 de Outubro de 2018, sexta-feira e sábado.
21. O Réu AA encontrava-se federado na Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting com a licença nº 26723, para poder participar no rali de Portalegre.
22. As provas que o Réu AA e o seu co-piloto se propuseram fazer com o veículo identificado em alugado à Autora foi o Desafio Total/Mazda 2018.
23. Fazendo o mesmo traçado, o piloto estava a competir simultaneamente no Campeonato Nacional de Todo o Terreno nestas duas competições.
24. O troféu Desafio Total/Mazda 2018 exigia que os veículos participantes tivessem um kit de fibras (carnagens) com a imagem do modelo CX-5 da Mazda, mas os veículos “debaixo” desse kit, podiam ser multimarcas.
25. Aquando das verificações técnicas o veículo teve de regressar ao parque de assistência por apresentar irregularidades ao nível do corta-corrente eléctrico.
26. Na lista das equipas admitidas à partida, apenas constam as equipas previamente aprovadas pela organização para participarem na prova, depois de terem sido submetidas e aprovadas nas verificações documentais e técnicas, tanto dos pilotos e co-pilotos, como das respectivas viaturas.
27. No dia 25 de Outubro de 2018, a equipa composta pelo Réu AA, na qualidade de piloto e pelo co-piloto CC foi aprovada a competir na categoria Nacional com o nome Prksport Rally Team.
28. O veículo cedido pela Autora à Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda. e usado pelo Réu AA na competição em análise era o veículo Nissan Pick-up, com a matrícula n.º 89-30-UL, melhor identificado em 11.º, com motor BMW, mas com um “involucro” de um modelo da Mazda e,
29. (…) daí na lista de admitidos à partida surgia como Mazda CX-5 Proto.
30. No dia 26 de Outubro, a prova era composta de um prólogo de cerca de 5 km em que a classificação desse prologo ditava a ordem de partida para o sector selectivo que começava em Ponte de Sor.
31. O Réu AA cumpriu o prólogo, tendo sido atribuído seguidamente a sua ordem de partida para o sector selectivo, com 80 km.
32. Durante o sector selectivo, a zona do traçado da mesma foi alcançada por fortes chuvas repentinas, por uma “tromba de água”,
33. (…) que resultou numa enxurrada enorme que aumentou drasticamente o caudal de uma ribeira que atravessava o traçado original da prova.
34. Esta ribeira, segundo o traçado original da prova, deveria ser transposta pelos concorrentes.
35. Na altura que o Réu AA chega à fase do traçado em que deveria atravessar a referida ribeira, o caudal da mesma – dada a “tromba de água” e enxurrada verificada anteriormente – estava muito cheio.
36. Um piloto de outra equipa que tentou atravessar o 2.º vau da ribeira – numa altura em que o 2.º R. estava parado ainda antes do 1.º vau da ribeira – foi apanhado pela enxurrada, tendo de abandonar a viatura no meio do 2.º vau, sem propulsão para a transpor. Depois dessa imobilização, outro veículo que já havia atravessado o 1.º vau e aguardava na margem direita, logrou transpor o 2.º vau, para continuar a sua prova.
37. O Réu AA, ao chegar à ribeira, foi advertido pelo seu co-piloto para não passar a ribeira, já que o caudal estava enorme, e até já lá se encontrava um outro veículo de outra equipa participante do rali no meio da ribeira quase totalmente debaixo de água, que não tinha conseguido passar e,
38. (…) foi também advertido pelos comissários técnicos da prova presentes naquele local para não entrar na ribeira.
39. O Réu AA esteve parado cerca de um minuto antes de fazer a 1.ª travessia da ribeira, à espera que o concorrente da frente passasse;
40. O Réu AA decidiu transpor a ribeira.
41. Quando chegou à 2.ª travessia, o Réu AA abrandou e seguiu em frente;
42. O veículo Nissan Pick-up 2.5 TD CS de matrícula 89-30-UL ao entrar na ribeira perdeu a aderência ao chão e,
43. (…) foi puxado pela corrente da ribeira contra o veículo da outra equipa que já estava imobilizado na ribeira, danificando a chapa e ficando, também, lá “encalhado” e,
44. (…) a porta do co-piloto CC, que abria para jusante, não dava para abrir, já que, estava encostada ao outro veículo encalhado e,
45. (…) a porta do piloto e réu AA, também não dava para abrir, já que abria para montante da ribeira e a corrente da mesma estava muito forte.
46. Como não conseguiam sair do veículo e a água começou a entrar no habitáculo, o Réu AA e o seu co-piloto tiveram de partir o pára-brisas e sair do interior do veículo por aí.
47. Nesta ocasião, entrou água no motor, na centralina e componentes eléctricos do veículo.
48. Antes da travessia do veículo em causa já se encontrava em curso a operação de remoção do veiculo que já se encontrava dentro da ribeira.
49. A Autora, após a prova e depois de ter carregado o veículo para as suas instalações, verificou os danos que o mesmo apresentava.
50. A Autora contratou uma empresa para efectuar um relatório de peritagem ao veículo.
51. Tendo o gerente da Autora, BB, apurado os danos no veículo, confrontou o réu AA com as despesas dos mesmos, ao que este respondeu que não tinha nada a ver com o assunto, já que, o veículo devia ter passado a ribeira naquelas condições.
52. Para reparação do veículo, em mão de obra, a Autora despendeu a quantia de € 5.950,00, acrescida de iva.
53. No final do prólogo, a tracção dianteira do veículo apresentou problemas, que foram comunicados ao mecânico da Autora e,
54. (…) na etapa selectiva, a tracção dianteira do veículo avariou e,
55. (…) desde esse momento, a viatura ficou, apenas, com a tracção traseira.
56. No momento em que o Réu AA chegou à ribeira, o caminho alternativo estava barrado com uma fita branca/vermelha.
57. Só após o incidente com estes dois veículos é que os restantes concorrentes passaram a ser desviados para o caminho alternativo.
58. A Autora não procedeu à reparação imediata e no local da viatura porque não tinha uma centralina para pôr a viatura novamente em prova;
59. A peritagem efectuada pela Autora foi efectuada em 20 de Abril de 2020 e concluída em 20 de Maio de 2020 e,
60. (…) nessa data a viatura já andava a fazer competições, pelo menos, desde Janeiro de 2020.
61. Já depois do incidente, a Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda., adquiriu uma viatura à Autora.
62. No regulamento “Desafio Mazda Total 2018” pode ler-se: «artigo 6.3.º - À Comissão Organizadora do Desafio Total/Mazda 2018 não poderá ser imputada qualquer responsabilidade no que respeita a acidentes e suas consequências, quer tenham sido causados pelos concorrentes, quer hajam sido estes vitimas, quer provenham ou não do veículo participante».

Aplicando o Direito.
1. Da qualificação do contrato e da responsabilidade pela perda ou deterioração do veículo:
Está demonstrado que, em meados de Setembro de 2018, a A. acordou verbalmente com a 1.ª Ré, por intermédio do seu sócio-gerente e 2.º R., a cedência do veículo identificado nos autos, com o fito deste 2.º R. participar na prova de todo-o-terreno Baja 500 de Portalegre, que se iria realizar de 25 a 27.10.2018, pelo preço de € 5.000,00 (integralmente pago antes da prova), estando incluída a assistência técnica durante a prova.
Face a estes factos, a sentença qualificou o contrato celebrado como de locação operacional, argumentando com a específica natureza da coisa locada, um bem móvel de natureza duradoura, a prestação do serviço acessório de assistência técnica ao veículo, e a obrigação de restituição da coisa no termo da prova.
Para o efeito, a sentença cita a definição de Fernando de Gravato Morais[5] do contrato de locação operacional, como um “negócio através do qual o produtor ou o distribuidor de uma coisa, (…) proporciona a outrem o seu gozo temporário, mediante remuneração, prestando também, em princípio e de modo acessório, determinados serviços, v.g., de manutenção do bem”, bem como fornecida no Acórdão da Relação de Lisboa de 14.09.2021 (Proc. 5769/21.6T8LSB-A.L1-7)[6], onde se afirma que o contrato de locação operacional é aquele em que “uma das partes, como locadora proporciona à outra, como locatária, durante um determinado período, o gozo de um equipamento (…) mediante remuneração e, bem assim, acessoriamente, o serviço de manutenção, a ser prestado por uma entidade terceira, sem opção de compra a final (…), a que se aplicam, em primeiro lugar, as cláusulas acordadas entre as partes, as normas da locação previstas no artigo 1022º e seguintes do Código Civil, com as necessárias adaptações e as regras gerais de Direito Civil.”
Hugo Freitas Ribeiro, in “O Contrato de Renting na Ordem Jurídica Portuguesa”[7], discutindo o contrato de locação operacional, ou renting, como modalidade do contrato de locação, aponta o seguinte:
“No contexto actual, é manifesto que outras vertentes do contrato como, a prestação de serviços, assumem uma maior relevância económica, potenciada pela necessidade crescente de uma utilização intensiva e continuada dos bens que são objecto destes contratos, o que deriva no desdobramento da relevância jurídica dessas mesmas vertentes. Por outro lado, é também certo que, de um ponto de vista fundamental, o contrato de renting funda-se no clássico contrato de locação. Apesar disso, se outrora a componente da prestação de serviços complementares se remeteu a um alcance periférico e residual da essência do contrato, actualmente arroga-se de uma relevância significativa no âmbito da operação de renting, que permite questionar a equiparação automática ao contrato de locação e a consideração do renting como uma variação ou modalidade daquela.
É, porém, inegável que não se revelará uma tarefa acessível deduzir em determinadas situações, se estamos perante um negócio típico, adido de modificações pontuais, ou se, de forma distinta, o negócio objecto de análise jurídica conforma um tipo contratual atípico, como é o caso do renting, ainda que na sua génese tenha estado um negócio típico como a locação tout court. Mostra-se, por isso, necessário o recurso ao Direito comum dedicado ao contrato de locação, para tentar compreender se se justifica a construção dogmática de uma figura contratual autónoma, ou por outra via, se a amplitude jurídica do contrato de locação acolhe perfeitamente o contrato de renting.”[8]
Este autor também nota que os contratos de renting assumem períodos de duração mais longos, não compatíveis com utilizações pontuais, como sucede no rent-a-car: “(…) a duração do renting a curto prazo, revela-se superior à do rent-a-car, que se destina a uma utilização de carácter pontual, sendo celebrados por períodos de muito curta duração. No caso do renting de curto prazo, os contratos não têm, normalmente, duração inferior a um mês, sendo, em regra, celebrados, no mínimo, por doze meses.”[9]
No entanto, a distinção entre os dois contratos, renting e rent-a-car não se resume aos períodos de duração, mas a factores relacionados com as relações jurídicas estabelecidas entre as partes. Como continua a afirmar Hugo Freitas Ribeiro, “(…) no seio do contrato de rent-a-car, considerando as condições em que a utilização do bem é concedida, os serviços complementares que eventualmente são prestados não possuem a relevância que se identifica a respeito do contrato de renting, conhecendo este tipo contratual uma relação completamente distinta, manifestada numa intensidade e complexidade tal, que os serviços prestados compreendem um certo grau de autonomia em relação à utilização do bem.”
E este é o factor que nos permite afirmar que o contrato dos autos não pode ser qualificado como um contrato de renting ou de locação operacional.
Não apenas porque estava em causa um período de apenas três dias de utilização, mas acima de tudo porque o que estava em causa era proporcionar ao 2.º R. um veículo para este participar numa competição automóvel, em que o importante era a utilização daquele veículo específico, escolhido em detrimento de qualquer outro, porque o 2.º R. considerou que este lhe proporcionaria a possibilidade de participar na prova e, eventualmente, obter a classificação que aspirava.
Nesta situação, a assistência técnica em prova não era mais que um serviço acessório que permitia, ou facilitava, a possibilidade de competir com aquele veículo específico, a Nissan Pick-up 2.5 TD CS de matrícula 89-30-UL, e naquela prova específica, a Baja 500 de Portalegre, pelo que consideramos que o contrato deve ser qualificado como de locação simples de veículo, embora com a prestação acessória do serviço de assistência técnica (a competição automóvel, dadas as exigências impostas à mecânica e aos demais componentes do veículo, só é possível com assistência técnica, sob pena deste não ser capaz de competir ou ter de abandonar a prova ao primeiro problema técnico).
De todo o modo, o que temos é a invocação pela A. do direito a obter dos RR. a reparação do veículo, nos termos do art. 1044.º do Código Civil, invocando a sua utilização não prudente.
O Supremo Tribunal de Justiça tem afirmando que ocorrendo perda ou deterioração da coisa locada que não possa ser considerada como resultado de uma utilização prudente, se presume a culpa do locatário, que assim fica onerado com o ónus da prova dos factos impeditivos dessa presunção.[10]
No caso, a sentença considerou que o 2.º R. fez uma utilização imprudente do veículo, e subscrevemos as judiciosas observações que ali foram efectuadas a este respeito, que assim se reproduzem:
“É, pois, manifesto que os danos existentes no veículo alugado aquando da sua entrega, resultaram de actuação deliberada e imprudente do Réu AA, não se afigurando obviamente como deteriorações inerentes a uma prudente utilização, pois que, aquele sabia que detinha uma avaria na tracção dianteira do veículo e que o caudal da ribeira se encontrava anormalmente cheio, ao ponto de já se encontrar imobilizado no interior da mesma um outro veículo de competição e, pese embora as indicações veiculadas pelo elemento da organização do evento desportivo e do seu co-piloto, e a sua vasta experiência mesmo em competições internacionais, decidiu transpor a ribeira, ficando o veículo, também, encalhado no interior da mesma.
De facto, não fosse esta conduta do Réu AA, a pessoa que a Ré Consumorigem Energias Renováveis, Lda. permitiu que utilizasse o veículo alugado na prova desportiva Baja Portalegre 500 2018, não teria entrado água para o motor, centralina e demais componentes eléctricos do veículo, o veículo não teria embatido no outro veículo que já se encontrava imobilizado no interior da ribeira e, portanto, não se teriam verificado os danos na chapa, nem teria sido necessário partir o pára-brisas para o Réu AA e o co-piloto saírem do interior do veículo, já que não conseguiam fazê-lo pelas portas.”
Como bem refere a sentença, não é o facto do 2.º R. ter utilizado o veículo numa prova desportiva que revela uma utilização imprudente. O que está em causa é a desobediência à ordem de paragem dada pelos comissários de prova, o não acatamento do conselho dado pelo co-piloto e a insistência em entrar na ribeira, com dois vaus e o 2.º mais profundo que o outro, sabendo que já ali estava imobilizado outro veículo, que decorriam manobras de reboque do mesmo e que já não tinha tracção dianteira, pelo que as características de todo-o-terreno não existiam, e muito aquelas que lhe permitiam a transposição da ribeira (que exigiam a tracção nas quatro rodas, que o 2.º R. sabia não ter, bem como uma profundidade do 2.º vau não superior à que provocaria a entrada de água no compartimento do motor, sob pena deste afogar e se avariarem os seus componentes).
Logo, porque a utilização feita é imprudente, bem fez a 1.ª instância ao aplicar o disposto no art. 1044.º Código Civil e responsabilizar os RR. pela reparação dos danos produzidos no veículo.
*
2. Da responsabilidade do interveniente:
Argumentam os RR. que a responsabilidade pela produção do acidente assiste ao interveniente ACP e que deveria ser este condenado a pagar os valores reclamados.
O essencial da argumentação dos RR. baseava-se na alteração da decisão de facto, que improcedeu (com ressalva da rectificação introduzida ao ponto 36, que para a questão agora em apreço não tem qualquer relevância).
De todo o modo, faremos as seguintes observações.
Em primeiro lugar, a utilização imprudente do veículo pelo 2.º R. está demonstrada, e tal ocorreu em violação da ordem de paragem dada pelos comissários de prova, que ali representavam o interveniente.
Em segundo lugar, quem formula o pedido na acção é a parte demandante, e esta é quem configura a relação material controvertida (art. 30.º n.º 3 do Código de Processo Civil). Logo, não tendo sido formulada reconvenção pelos RR. com pedido de intervenção de outros sujeitos (sujeita às restritas regras do art. 266.º n.ºs 4 e 5 do Código de Processo Civil), a sentença não pode julgar mais que a relação material controvertida configurada pelo autor, nem pode condenar pessoa diversa da que foi demandada na petição inicial, sob pena de incorrer em nulidade por condenação em objecto diverso do pedido, nos termos do art. 615.º n.º 1 al. e) do Código de Processo Civil.
Note-se que a intervenção principal provocada pode ser deduzida por iniciativa do réu apenas nos casos definidos no art. 316.º n.º 3 do Código de Processo Civil, que não ocorrem no caso dos autos.
A propósito, Salvador da Costa escreve que “este normativo veicula uma mera especialidade de procedimento em relação ao regime geral do incidente de intervenção principal, cuja motivação deriva do facto de se tratar de intervenção passiva suscitada pelo réu substitutiva do velho incidente de chamamento à demanda. Coloca-se no processo, como réu, ao lado do réu primitivo, um dos sujeitos passivos da relação jurídica material controvertida que à acção serve de causa de pedir. O referido interesse é susceptível de se consubstanciar, por exemplo, na defesa conjunta, no acautelamento do direito de regresso ou de sub-rogação legal ou na formação de caso julgado contra o chamado.”[11]
Porém, nem o interveniente ACP é sujeito passivo da relação material controvertida configurada pela A., nem é possível contitular do direito invocado pela mesma – pelo que nenhuma das hipóteses previstas nas duas alíneas do n.º 3 do art. 316.º do Código de Processo Civil têm aplicação ao caso dos autos.[12]
O caso julgado formal do despacho que deferiu o incidente de intervenção principal provocada do ACP, requerida pelos RR., não impôs a modificação da relação material controvertida configurada na acção, nem a alteração do pedido.
Logo, jamais poderia ser julgada outra relação controvertida que não aquela que foi formulada na petição inicial, nem condenadas pessoas diversas daquelas que nessa peça processual constam como partes demandadas.
Como tal, não estando formulado qualquer pedido contra o interveniente ACP (este não é demandado na petição inicial, e não foi deduzido pedido reconvencional), este jamais poderia ser condenado no quer que seja, pelo que a sua absolvição sempre se impunha, por inexistência de direito substantivo contra ele formulado na causa.

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelos RR..

Évora, 7 de Março de 2024

Mário Branco Coelho (relator)
Maria José Cortes
Francisco Xavier

_________________________________________________
[1] Neste sentido, vide os Acórdãos da Relação de Guimarães de 04.02.2016 (Proc. 283/08.8TBCHV-A.G1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1572/12.2TBABT.E1.S1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.01.2015 (Proc. 219/11.9TVLSB.L1.S1), na mesma base de dados.
[3] Citação do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31.05.2016 (Proc. 1184/10.5TTMTS.P1.S1), também publicado na dita base de dados.
[4] Acórdão desta Relação de Évora de 10.11.2022 (Proc. 413/19.4T8BJA.E1), com o mesmo relator do presente, publicado em www.dgsi.pt.
[5] In Manual da Locação Financeira, Almedina, 2011, 2.ª ed., págs. 62/64.
[6] Publicado em www.dgsi.pt.
[7] Dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2018, disponível em linha em https://hdl.handle.net/10316/85915.
[8] Págs. 45-46 daquela dissertação.
[9] Loc. cit., pág. 64.
[10] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.02.2001 (CJ-STJ, tomo I, pág. 121), de 26.01.2006 (Proc. 05B2346), de 28.02.2008 (Proc. 08B158) e de 29.11.2019 (Proc. 4672/16.6T8LRS.L1.S2), os três últimos publicados em www.dgsi.pt.
[11] In Os Incidentes da Instância, Almedina, 8.ª ed., 2016, pág. 92.
[12] Vide, neste sentido, os Acórdãos desta Relação de Évora de 14.07.2021 (Proc. 2705/16.5T8PTM-A.E1) e de 15.06.2023 (Proc. 1539/22.2T8STR-B.E1), ambos publicados em www.dgsi.pt.