EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

Na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado.

Texto Integral

PROC. N.º[1] 2903/23.5T8VNG-C.P1

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Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia - Juiz 6


RELAÇÃO N.º 121
Relator: Alberto Taveira
Adjuntos: Rodrigues Pires
Rui Moreira

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

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I - RELATÓRIO.

AS PARTES

Insolvente: AA


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AA, apresentou-se à insolvência (31.03.2023) declarando, simultaneamente, pretender a exoneração do passivo restante.

Foi declarada a sua insolvência por sentença de 04.04.2023.

O requerente deduziu pedido de exoneração do passivo restante, pedindo a fixação do rendimento disponível no valor correspondente a dois salários mínimos e meio.

B)

A Administrador de Insolvência não de opôs ao pedido de exoneração do passivo restante.


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DA DECISÃO RECORRIDA

A 08.11.2023 é proferida a seguinte decisão, de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, mais tendo sido decidido:

Da cessão do rendimento disponível

Conforme resulta do disposto na alínea d) do artigo 237.º do CIRE, a exoneração do passivo restante é concedida, uma vez observada pelo devedor as condições previstas no artigo 239.° do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Nos termos deste último preceito legal, não havendo motivo para indeferimento liminar, é proferido despacho inicial que determine que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência - «período de cessão» -, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a um fiduciário (n.ºs 1 e 2).

Impõe-se, portanto, apurar o rendimento do devedor disponível para cessão. Para este efeito, importa atentar no disposto no n.º 3 do artigo 239.º do CIRE, de acordo com o qual “integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno dos devedores e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.

A citada expressão “com exclusão do que seja razoavelmente necessário”, aponta no sentido de uma ponderação do montante a fixar, em face das particularidades do caso concreto e do equilíbrio que é necessário alcançar entre os legítimos interesses patrimoniais dos credores e o princípio da dignidade da pessoa humana que assiste a qualquer devedor.

Nunca perdendo de vista a natural situação de carência económica do devedor insolvente, cumpre lembrar que o escopo do processo de insolvência, em geral, e do período de cessão, em particular é, antes de mais, a satisfação dos direitos dos credores, ainda que meramente parcial, neste último caso, por intermédio da afetação do rendimento disponível do devedor ao cumprimento das suas dívidas. De resto, apenas se deve atender às despesas efetivas e atuais e não a presumíveis despesas futuras.

Sendo assim, a exoneração do passivo restante coloca o devedor ao abrigo da necessidade de disciplinar com o máximo rigor o seu orçamento familiar, o que, forçosamente, há-de influenciar a determinação do mínimo indispensável a um sustento condigno e, em certos casos, até determinar uma redução do nível de vida anterior.

Apreciemos, então, as circunstâncias do caso concreto, sendo de considerar que:

a) O devedor apresentou-se à insolvência a dia 31 de março de 2023 e, por sentença proferida no dia 04 de abril desse mesmo ano, foi declarada a sua insolvência;

b) O insolvente encontra-se reformado, sem filhos menores de idade, recebendo a título pensão € 1.290,90;

c) Encontra-se no estado de casado com BB, no regime da separação de bens;

d) O insolvente tem diversos problemas de saúde.

e) O insolvente tem despesas regulares com alimentação, vestuário, saúde, transportes e outras habituais e decorrentes da vida normal em sociedade;

f) Ao insolvente não são conhecidos antecedentes criminais;

g) Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante global de € 815 055,02.


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O tribunal teve em consideração os documentos juntos aos autos, bem como o que resulta do relatório apresentado pelo Senhor Administrador da insolvência.

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Conjugados e ponderados os elementos e as considerações precedentes, decido fixar em 1 salário mínimo nacional, por mês, acrescido de 1/4, com referência aos doze meses do ano, o correspondente ao razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do insolvente, nos termos e para os efeitos do disposto nos n.ºs 2 e 3, alínea b), i), do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Em consequência, determino que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir seja cedido ao fiduciário adiante nomeado, nos termos do n.º 2 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.


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O apuramento do rendimento disponível e, assim, o cálculo dos montantes a ceder deverá ser feito anualmente, aquando da apresentação da informação prevista no artigo 240º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dividindo-se o rendimento anual dos insolventes por 12.

(…)“.


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DAS ALEGAÇÕES

O insolvente, vem desta decisão interpor RECURSO, acabando por pedir o seguinte:

Termos em que e nos demais de direito, deve ser revogada a decisão recorrida, sendo substituída por outra que mantendo o deferimento do pedido de exoneração de passivo restante formulado pelo Recorrente, lhe fixe o rendimento indisponível em pelo menos 2 salários mínimos.  “.


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O ora recorrente apresenta as seguintes CONCLUSÕES:

A. A densificação do conceito de razoável ao sustento minimamente digno conduz sempre no apuramento do montante a excluir “uma ponderação casuística por parte do juiz”, que arreda a salvaguarda sistemática ao valor de um SMN…e designadamente por cabeça do agregado familiar, como o necessário ao sustento minimamente digno do devedor.

B. O Insolvente vive atualmente com a sua mulher, de quem se encontra separada de pessoas e bens.

C. Ambos insolventes, com mais de 70 anos, doentes, e com necessidades particulares de medicamentos (cujo valor necessariamente suportam)

D. Fruto da insolvência de ambos perderão a casa onde residem, tendo já sido alienado o ½ detido pela mulher do insolvente e tendo sido apreendido nos presentes autos o ½ pertencente a este.

E. Tal obrigará o insolvente a, no mercado atual particularmente penalizador, suportar o custo de renda, que até ao presente não suportava, no valor nunca inferior a 500€.

F. Assim, entende o Recorrente que, feita uma adequada ponderação de todas as suas circunstancias, em especial aquela desconsiderada pelo Tribunal a quo que se prende com a perda do imóvel que constitui habitação do insolvente (e da sua mulher), e inerente necessidade de, no mercado imobiliário atual, encontrar uma alternativa para a sua habitação;

G. Deveria ter-lhe sido fixado um rendimento indisponível correspondente a pelo menos 2 salários mínimos nacionais.

H. Equivalente ao mínimo de 1 salário por membro do agregado familiar.

I. Assim, atendendo aos factos alegados e à dicotomia rendimentos/despesas essenciais (atuais e futuras, para que se contemple a questão habitacional do Insolvente), que do eventual rendimento disponível que o requerente venha a auferir ou que venha a ser entregue ao fiduciário seja estabelecido tendo em conta os rendimentos auferidos pelo devedor/insolvente em valor que ultrapasse o valor de 2 salários mínimos nacionais (sendo este o rendimento indisponível atribuído ao Requerente)

J. Andou pois mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, tendo violado desde logo, por deficiente interpretação ou aplicação, o disposto nos artigos 238 e 239 do CIRE“.


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O Mag do Ministério Público apresentou CONTRA-ALEGAÇÕES, apresentando as seguintes conclusões:

1.º A douta decisão recorrida não merece censura por ter procedido a uma aplicação adequada das normas legais atinentes à fixação da parte do rendimento que deverá ficar a salvo dos credores, no âmbito da exoneração do passivo restante e inerente cessão do rendimento disponível.

2.º O CIRE encontra-se imbuído de um espírito de prevalência dos interesses dos credores sobre o do devedor, ao qual apenas subsidiariamente confere proteção, o que sucede quer no processo de insolvência, quer no processo especial de revitalização.

3.º O instituto da exoneração do passivo restante é o mais importante desvio à regra antecedente e resulta da inalienável condição humana do devedor pessoa singular, merecedor de proteção que assegure a sua sobrevivência para lá da declaração de insolvência.

4.º Como contraponto do efeito positivo para o insolvente da extinção – por fonte legal e não pelo cumprimento, como é a norma do direito obrigacional – dos créditos que subsistam para lá do prazo legal de três anos, ficam os insolventes sujeitos a disponibilizar aos credores o que exceda a quantia necessária a assegurar o sustento minimamente digno próprio e do seu agregado familiar.

5.º A determinação dessa quantia pressupõe a divisão dos rendimentos auferidos em duas porções, incumbindo ao juiz fixar aquela que será intangível, por isso reservada ao devedor e seu agregado, com base nos critérios alinhavados no artigo 239.º, n.º 3, alínea b), I), do CIRE.

6.º A fixação do rendimento indisponível pressuporá uma típica redução do nível de vida desse agregado por comparação com o período antecedente à declaração de insolvência, porquanto terá sido a antecedente inadequação dos gastos incorridos face aos rendimentos disponíveis a provocar a situação de insolvência.

7.º Para efeitos da fixação do rendimento indisponível o juiz dispõe de apoio na generalidade das normas do ordenamento jurídico que apontam para a salvaguarda do montante relativo a um salário mínimo, tal como dispõe o artigo 738.º do CPC para a execução singular, bem como do teto máximo de três salários mínimos constante do artigo 239.º, n.º 3, alínea b), I), do CIRE.

8.º A definição de um concreto valor dentro desse intervalo ou acima do mesmo, em casos excecionais, atentará na imperiosa necessidade de assegurar o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, aferida à luz de critérios de razoabilidade.

9.º A circunstância de a lei empregar as expressões “razoavelmente necessário” e “minimamente digno” induz à uniformização do rendimento indisponível a fixar à generalidade dos devedores e permite desconsiderar as despesas que se invoquem como anteriormente suportadas, na medida em que, num patamar mínimo de subsistência, todos os devedores terão de ser tratados em conformidade com o princípio constitucional da igualdade (artigo 13.º da CRP).

10.º Relevará da necessidade razoável considerar que todo o devedor tem direito a aceder a água, eletricidade, alimentação, vestuário, saúde e, sendo caso disso, alojamento, pelo que terá de lhe ser reservado rendimento minimamente compatível com o custear de tais despesas, o que nos autos foi tido em conta pela afirmação de que o devedor “suporta as despesas correntes e habituais decorrentes da sua situação pessoal e familiar”.

11.º Perante o que poderia redundar num rendimento indisponível padronizado e universal, o reverso da abordagem igualitária permite ao juiz alargá-lo pela consideração, no caso concreto, das circunstâncias verdadeiramente atendíveis para diferenciar os agregados: a sua dimensão, em contraponto com as reconhecidas “economias de escala”, eventual patologia ou afetação que ponha em risco a sobrevivência do devedor ou da sua família e demais condicionalismo factual, a alegar e demonstrar pelo interessado e que não se circunscreva à simples pretensão de aceder a uma vida mais confortável, antes se atenha a critérios de efetiva necessidade fundamentada.

12.º O rendimento indisponível equivalente a UM salário mínimo nacional acrescido de 1/4, é razoável, adequado e permite sustento minimamente digno do devedor.


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II - FUNDAMENTAÇÃO.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil

Como se constata do supra exposto, a questão a decidir, é a seguinte:

A) Fixação do rendimento disponível.


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OS FACTOS

Os factos com interesse para a decisão da causa e a ter em consideração são os constantes no relatório e da decisão em crise (supra transcrita), e que aqui se dão por reproduzidos.


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DE DIREITO.

A)

Fixação do rendimento disponível.

Em face do que está decidido nos autos, a única questão a decidir diz respeito a decidir que o rendimento indisponível serão o salário mínimo e e um quarto (1/4) nacionais considerando os 12 meses do ano ou dois salários mínimos nacionais, ora pugnado pelo recorrente/insolvente.

Vejamos.

Nos termos do artigo 239.º, n.º 2, “O despacho inicial determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade (…)“.

Segundo a alínea b) do n.º 3 “Integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: (…)

b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;

ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;

iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

É entendimento quase unânime nesta Relação de que o rendimento disponível deve ser entregue mensalmente. Citam-se as seguintes decisões deste Tribunal da Relação do Porto, 2410/16.2T8STS.P1, de 26.01.2021, relatado pelo Des VIEIRA E CUNHA, 8215/13.5TBVNG-F.P1, de 26.10.2020, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 557/21.2T8OAZ.P1, de 20.09.2021, relatado pelo Des JORGE SEABRA, 8/22.5T8STS-B.P1, de 12.09.2022, relatado pela Des ANA PAULA AMORIM, 1544/18.3T8STS.P1, de 29.04.2021, relatado pela Des DEOLINDA VARÃO, 2718/18.2T8OAZ.P2, de 08.11.2021, relatado pelo Des MENDES COELHO, entre outros.

Na ausência de um critério matemático o legislador encarregou o julgador de caso a caso aferir de um montante que seja necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado.

Deste modo, na fixação do rendimento disponível deve o Tribunal proceder à análise das despesas imprescindíveis para o sustento digno do devedor e seu agregado. E aqui têm especial relevo aquelas despesas comuns do quotidiano e que a normalidade do “português” tem, ou é suposto ter, para ter um mínimo de dignidade.

O critério último deve estar alicerçado na dignidade humana em cada caso concreto.

Deve assim ser ponderado, em primeiro lugar, que se está perante uma situação transitória, durante a qual o insolvente deverá fazer um particular esforço de contenção de despesas de maneira a atenuar ao máximo as perdas que advirão aos credores da exoneração do passivo restante e, em segundo lugar, atender ao que é indispensável para, em consonância com a consagração constitucional do respeito pela dignidade humana, assegurar as necessidades básicas do insolvente e do seu agregado familiar, neste sentido, Ac Tribunal da Relação de Lisboa 27138/11.6T2SNT-C.L1-2, relatado pela Des VAZ GOMES, in dsgi.pt. Na realidade, por decorrência da declaração de insolvência, quem fica adstrito a certos deveres e contingências é o devedor, insolvente, e não os credores.

No caso em apreço, o apelante dissente da decisão proferida, por entender que não foi valorizado devidamente a circunstância da sua idade, de estar reformado, do único bem ser a sua casa morada de família, a necessidade de ir viver em casa arrendada.

A sentença valorou ta factualidade, tendo decidido que em face a tal, deveria ser fixado o rendimento disponível em 1 salário mínimo nacional acrescido de 1/4.

Sopesando os critérios atrás fixados e a factualidade dada como provada, pois só a esta este Tribunal está limitado a valorar, decidimos que a decisão da M.ma Juíza não merece censura. Com efeito, dos factos não há evidência de que o insolvente careça de rendimentos para além dos fixados em primeira instância, que neste momento (2024) corresponde ao valor de 1.025,00 €.

Tendo presente estes ensinamentos jurisprudências, tendo presente a efectiva situação do insolvente e descrita supra, improcede a pretensão do insolvente.


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III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo apelante (confrontar artigo 527.º do Código de Processo Civil).


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Sumário nos termos do artigo 663.º, n.º 7 do Código de Processo Civil.

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Porto, 19 de Março de 2024
Alberto Taveira
Rodrigues Pires
Rui Moreira
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[1] O relator escreve de acordo com a “antiga ortografia”, sendo que as partes em itálico são transcrições cuja opção pela “antiga ortografia” ou pelo “Acordo Ortográfico” depende da respectiva autoria.