INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
CONTRADIÇÃO
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
Sumário

I - Verifica-se uma contradição entre a causa de pedir e o pedido, determinante de ineptidão da petição inicial e absolvição da instância, quando o autor invoca ser arrendatário de um prédio e deduz contra outrem um típico pedido de reivindicação, com reconhecimento do direito de propriedade de outrem sobre o prédio arrendado.
II - Verifica-se uma contradição entre a causa de pedir e o pedido, determinante de ineptidão da petição inicial e absolvição da instância, mesmo que formulado aquele a título subsidiário, quando o autor invoca ser arrendatário de um prédio e deduz contra outrem um pedido de constituição de uma servidão legal de passagem por usucapião em benefício do prédio arrendado, contra os donos do prédio que seria o serviente.

Texto Integral

PROC. Nº 929/23.8T8PRD.P1
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Central Cível de Penafiel - Juiz 4


REL. N.º 851

Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
Juíza Desembargadora Alexandra Pelayo
Juíza Desembargadora Maria Eiró

*



ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO
*
A..., LDA, com sede na Avenida ..., Paredes, intentou acção em processo comum contra AA e mulher BB, residentes na Rua ..., em ..., Valongo, pedindo:
“1. Serem os RR. condenados a reconhecer que A. é arrendatária de uma edificação destinada a indústria, sita na freguesia ..., concelho de Paredes, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...21, e descrito na conservatória de registo predial de Paredes sob o n.º ...81, propriedade de CC, por contrato de arrendamento escrito celebrado a 1 de maio de 2004;
2. Serem ambos condenados a reconhecer que, por força do contrato de arrendamento referido a A. está na posse do referido imóvel, por si e pelos ante possuidores, em toda a sua extensão há mais de trinta anos;
3. Serem condenados a reconhecer a existência de um caminho de acesso dentro desse prédio no seu limite poente desde o logradouro das instalações fabris até à Avenida ...;
4. Serem os R. condenados a reconhecer que a A. por força desse contrato, possui o direito de passagem sobre o caminho situado dentro do referido prédio, no limite poente cujo traçado está implantado no dito terreno desde o logradouro das instalações fabris até à Avenida ... com um perfil de 4,5 s 5 metros; 5. Sere os RR. condenados a reconhecer esse direito à A. a absterem-se de praticarem quaisquer atos que impeçam ou dificultem a passagem da A. do modo que entender;
6. Serem os RR condenados a uma sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia que impeçam ou dificultem o acesso da A. às suas instalações através do referido caminho, ou de algum modo perturbem o direito de gozo da respetiva passagem;
7. Serem condenados a demolir o muro de vedação que construíram ilegalmente na margem da Avenida ..., numa extensão de três metros e que se encontra a estorvar a passagem da A. pelo referido caminho;
Ou subsidiariamente
8. Serem os R. condenados a reconhecer que a A. adquiriu o direito a servidão de passagem pelo referido caminho, constituída pelo direito da A. aceder às suas instalações fabris, passando a pé, de carro, camião, trator, empilhador, através de uma faixa de terreno desde o limite do logradouro do imóvel inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...21, e descrito na conservatória de registo predial de Paredes sob o n.º ...81, propriedade de Marília e Lurdes da Rocha Moreira, até à Avenida ..., percorrendo a faixa de terreno do caminho com cerca de 4,5 a 5 metros de largura, e que está implantada no prédio dos RR. inscrito na matriz predial rústica da freguesia ... sob o artigo ...18, e descrito na CRP de Paredes sob o n.º ...35 da freguesia ...;
9. Serem os RR. condenados a reconhecer esse direito à A. a absterem-se de praticarem quaisquer atos que impeçam ou dificultem a passagem da A. do modo que entender;
10. Serem condenados a demolir o muro de vedação que construíram ilegalmente na margem da Avenida ..., numa extensão de três metros e que se encontra a estorvar a passagem da A. pelo referido caminho;
11. Serem os RR condenados a uma sanção pecuniária compulsória de 100,00€ por cada dia que impeçam ou dificultem o acesso da A. às suas instalações através do referido caminho, ou de algum modo perturbem o direito de gozo da respetiva passagem
12. Serem os RR. solidariamente condenados no pagamento das custas processuais e demais encargos com o processo”.
Alega a autora, em suma, que o referido caminho é parte integrante do prédio de que é arrendatária, além de que é essencial para o exercício da actividade a que se dedica nesse mesmo prédio. Não obstante, os RR. opõem-se a que o use. Pretende, por isso, que o reconheçam, bem como o seu direito a usar o caminho, por ser arrendatária.
Subsidiariamente, caso se não prove que o caminho faz parte desse prédio, alega ter adquirido o direito de passagem através dele, por usucapião.
Os RR. contestaram, arguindo a ineptidão da p.i., por descrição insuficiente do caminho a que se referem, a ilegitimidade da autora, por ser arrendatária e formular um pedido de reconhecimento de um direito de propriedade a favor de outrem – os senhorios – bem como haver autoridade de caso julgado que se projecta nesta acção, pois que os senhorios da autora, num outro processo, já haviam pedido o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre essa parcela de terreno, sem que tivessem obtido provimento.
Foi dado por cumprido o contraditório e dispensada a audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador que concluiu pela ineptidão da petição inicial, por haver “contradição entre os pedidos e as causas de pedir e cumulação de causas de pedir e pedidos substancialmente incompatíveis, (…) gerando a nulidade de todo o processo.” Consequentemente, foram os RR. absolvidos da instância.
É desta decisão que a A. vem interpor recurso, que termina formulando as seguintes conclusões:
1- A recorrente, na qualidade de arrendatária de uma edificação destinada a indústria intentou uma ação contra os recorridos, onde peticionava, que os recorridos fossem condenados no seguinte: (o pedido já foi transcrito acima)
(…)
2. A Recorrente alegou que era arrendatária de uma edificação destinada a indústria, sita na freguesia ..., concelho de Paredes, inscrito na matriz predial urbana da referida freguesia sob o artigo ...21, e descrito na conservatória de registo predial de Paredes sob o n.º ...81 da aludida freguesia, sendo os proprietários a gerente comercial da recorrente e marido; que esse arrendamento estava em vigor há mais de 30 anos e que o acesso às instalações fabris se fazia através de um caminho que dá entrada para a fábrica, sito a poente das instalações, e só por aí lhe é possível entrar e sair, para efeito de fazer as cargas e descargas de matérias-primas que utiliza na sua atividade industrial, e bem assim, era exclusivamente por esse caminho referido que a recorrente conseguia carregar as mercadorias que produz, atento a sua dimensão de grande porte. Alegou também que esse aludido caminho estava implantado no logradouro do armazém arrendado, propriedade da gerente comercial, e que os recorridos têm vindo a obstruir o acesso que a recorrente faz uso.
3. A recorrente alegou, título principal, que possui direito próprio de passagem e utilização do referido caminho, e que lhe é conferido pelo contrato de arrendamento, sendo que, portanto, nesta ótica, o caminho integraria o prédio arrendado à recorrente, dele fazendo parte integrante. E, em segundo lugar, a título de pedido subsidiário, caso o pedido formulado a título principal não fosse dado por provado, então que lhe fosse reconhecido o direito de servidão de passagem, porque o tinha adquirido durante o decurso do tempo – mais de trinta anos de forma ininterrupta, pública e pacificamente.
4. Entendeu a douta sentença recorrida que os pedidos são incompatíveis entre si, decidindo absolver da instância os recorridos, por ineptidão da petição inicial.
5. Os pedidos formulados pela recorrente não são incompatíveis entre si. A recorrente formulou pedidos principais e pedidos subsidiários, para o caso de não conseguir provar o direito que funda os primeiros.
6. Essa incompatibilidade ocorreria se todos os pedidos tivessem sido formulados a título principal. Só se pode afirmar que ocorre a incompatibilidade substancial de pedidos quando os efeitos jurídicos que visam produzir com a procedência da ação, quando os efeitos jurídicos que cada um deles, exclusa a possibilidade de verificação de cada um dos outros. Nesse caso, ocorreria a ininteligibilidade da petição inicial.
7. Ambos os pedidos, a título principal e a título subsidiário formulados pela recorrente estavam sujeitos a prova. A recorrente poderia provar que o caminho integrava o imóvel arrendado e como tal vingariam os pedidos principais, excluindo a apreciação dos formulados a título subsidiário. Ou, não conseguindo fazer prova dos factos que sustentavam esse pedido, sempre poderia provar que tinha adquirido o direito de servidão de passagem pelo aludido caminho através do instituto de usucapião. O que é essencial para a recorrente é o direito de aceder ao seu prédio. Seja no exercício de um direito conferido pelo contrato, seja pelo direito de servidão de passagem.
8. A causa de pedir no pedido principal é o invocado direito de propriedade do imóvel e o inerente contrato de arrendamento, e no pedido subsidiário é direito de passagem adquirido pelo instituto de usucapião.
9. O tribunal recorrido, caso entendesse ocorrer incompatibilidade de pedidos, deveria proferir despacho de aperfeiçoamento, convidando a recorrente a reformular os pedidos ou a desistir de alguns -que se afiguravam em contradição aparente ou real - deles acordando-os à causa de pedir e, não o tendo feito, violou os artigos 5.º e 6.º do CPC.
10. A douta sentença julgou inepta a petição inicial sem fundamento válido. Só pode ser julgada uma petição inepta quando padeça de um vício de elevada gravidade e consequência severa.
11. A recorrente que formulou os pedidos subsidiários licitamente, através da faculdade que lhe concede o artigo 554.º e 555.º do CPC. A sentença recorrida violou os artigos 554.º e 555.º do CPC.
12. Na fundamentação da petição inicial verifica-se uma discriminação absoluta entre as duas causas de pedir, e evidenciam-se claramente, por grupos, os artigos que se repostam a uma e a outra, havendo outros artigos que são necessariamente comuns a ambas.
13. Na fundamentação e na formulação dos pedidos resulta expressa a ideia de subsidiariedade entre os primeiros e os segundos. A conclusão de que os pedidos são cumulativos e subsidiários presume-se pelo facto de a recorrente ter apontado a relação de subsidiariedade que deve existir entre eles.
14. A recorrente não peticionou a procedência simultânea de todos os pedidos formulados, gerando, aí sim, dois efeitos (incompatíveis) dos dois pedidos que deduziu. A recorrente não pretendia a procedência dos dois pedidos em simultâneo. A sua vontade terá sido a de que, apenas na improcedência do pedido principal, se apreciasse o pedido subsidiário.
15. O tribunal recorrido poderia decidir a ação em função dos factos que lograssem adesão de prova e, na improcedência do pedido principal, apreciar e decidir o pedido subsidiário. Na improcedência do primeiro pedido, o tribunal conheceria do segundo. Se a recorrida não conseguir provar que o caminho integra o terreno do locado, então poderá a ação prosseguir para conhecer se esta tem direito a passar por ele, por via de o ter adquirido por usucapião.
16. No exercício do dever de gestão processual, o juiz deve dirigir ativamente o processo, promovendo as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, garantindo a justa composição do litígio em prazo razoável, como previsto no artigo 6º, nº 1 do CPC.
17. No despacho pré-saneador, o juiz deveria convidar as partes a suprir as irregularidades dos articulados, designadamente quando careçam de requisitos legais (art.º 590º, nº 2, al. b) e nº 3) ou a suprir insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
18. A sentença recorrida violou o artigo 590 nº 2, al. b) e nº 3) do CPC.
19. O artigo 186º, nºs 1 e 2, al. c) não é incompatível com a possibilidade de correção da petição inicial quando se justifique a sua correção. A propósito, esclarece Lebre de Freitas refere: “o disposto no artigo 6.º n.º 2 leva a que o tribunal deva convidar o autor a aperfeiçoar a petição inicial em que tenha deduzido pedidos incompatíveis, mediante a escolha daquele que pretende que seja apreciado na ação ou a ordenação de ambos em relação de subsidiariedade. Fora destes casos, a ineptidão da petição inicial dificilmente deixará de constituir nulidade insanável”. Sob a nota de rodapé nº 32A, aludindo ao texto que antecede, o mesmo Professor acrescenta: “Assim, está certo o acórdão do TRP de 7.6.10 (…), www.dgsi.pt, proc. 477/09.9TTVNG.Pl, quando entende que o autor deve ser convidado a corrigir uma petição inicial em que deduz como principais pedidos que, porque incompatíveis, deviam ter sido deduzidos em relação de subsidiariedade; e está errado o acórdão do TRC de 14.12.10 (…), www.dgsi.pt. Proc. 2604/08.4TBAGD.C1, quando entende ser insanável o vício da petição inicial consistente em se ter deduzido, lado a lado, o pedido de declaração da nulidade do negócio por simulação e o de impugnação pauliana, em vez de deduzir um como principal e o outro como subsidiário”.
20. Os pedidos, tal como foram formalizados na petição inicial, poderiam prosseguir para julgamento e obter procedência parcial quanto a alguns deles, porque estão em regime de subsidiariedade entre si.
21. O artigo 554.º do CPC refere que “podem formular-se pedidos subsidiários. Diz- se subsidiário o pedido que é apresentado ao tribunal para ser tomado em consideração somente no caso de não proceder um pedido anterior.” E o artigo 555.º do CPC refere que “podem o autor deduzir cumulativamente contra um mesmo réu, num só processo, vários pedidos que sejam compatíveis …”.
22. Os pedidos formulados a título principal e subsidiários são cumuláveis entre si, não perdem autonomia, e não se apresentam como substancialmente incompatíveis, de tal modo que determinassem a nulidade de todo o processo à luz dos invocados artigos 186.º e 278.º do CPC.
23. As doutas considerações deduzidas na decisão em crise sobre o antagonismo entre os citados pedidos no plano legal dizem respeito ao mérito desses mesmos pedidos e que é questão de fundo e eventualmente conduzirá à absolvição dos recorridos de todos ou alguns dos pedidos e não à nulidade processual.
24. O tribunal recorrido, poderia ter proferido decisão de mérito de alguns desses pedidos ser conhecida no despacho saneador, de acordo com o artigo 595 n.º 1 alínea b) do CPC,
25. A sentença recorrido violou os artigos 595.º 1 do CPC
30. Ao decidir pela ineptidão da PI, e nulidade do processado com base na incompatibilidade dos pedidos o tribunal recorrido violou os artigos 2.º, 5.º 6.º, 154.º n.º 1, 186 n.º 1 e 2, 265.º, 276, 576.º e 577.º do CPC.
Nestes termos deve a douta sentença recorrida ser revogada, sendo ordenado o prosseguimento dos autos, fazendo-se justiça.
*
Os RR. ofereceram resposta ao recurso. Pronunciaram-se pela confirmação da decisão recorrida.
*
O recurso foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
Cumpre apreciá-lo.
*

2 - FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC - é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, cumpre decidir se se verifica a apontada incompatibilidade entre a causa de pedir e os pedidos formulados a título principal e subsidiário.
*
A identificação da questão a decidir, logo coloca em causa a argumentação da apelante, quanto á não verificação de uma incompatibilidade apta a provocar a ineptidão da petição inicial.
Com efeito, sustenta a apelante que a subsidiariedade entre os pedidos prejudica que se possam ter por incompatíveis bem como que, no limite, sempre deveria o tribunal tê-la convidado a prescindir de um dos pedidos, para assegurar o prosseguimento da acção quanto ao outro. É o que resulta claramente das conclusões 4ª, 9ª, 19ª, entre outras.
Porém, o que a decisão recorrida deu por verificada foi a incompatibilidade entre as causas de pedir invocadas e os pedidos correspondentes.
Esclareceu a apelante, na sua conclusão 8ª: “A causa de pedir no pedido principal é o invocado direito de propriedade do imóvel e o inerente contrato de arrendamento, e no pedido subsidiário é direito de passagem adquirido pelo instituto de usucapião.”
Foi com referência a essas mesmas causas de pedir que o tribunal recorrido afirmou a incompatibilidade entre as causas de pedir e os pedidos:
“In casu, a A. invoca que é arrendatária de um imóvel, mas peticiona que se reconheça a propriedade do caminho em relação ao qual pretende a passagem. É certo que os arrendatários podem, como meros detentores ou com posse precária, lançar mão da defesa da posse (art. 1037º, n.º 2, do CC), mas não podem, contudo, peticionar o reconhecimento do direito de propriedade sobre o terreno por onde passa determinado caminho (…) ainda para mais quanto tal matéria já foi decidida noutro processo (em sentido negativo).
(…)
Por outro lado, em termos de pedido subsidiário, a A. também não pode peticionar, como arrendatária, a aquisição de uma servidão de passagem, carecendo de legitimidade para o efeito e estando esse pedido, também, em contradição com a causa de pedir, com a alegação de arrendatária que é.
A aquisição/o reconhecimento/a constituição de uma servidão de passagem só pode ser peticionada pelo proprietário do prédio dominante (ou seja, os senhorios) ….”
Sem prejuízo da estruturação do pedido em instrumentais e sucessivas alíneas, é correcta a individualização dos pedidos feita pelo tribunal recorrido.
Com efeito, a título principal, a autora funda a pretensão de reconhecimento do seu direito a usar no caminho na circunstância de esse caminho integrar o prédio de que é arrendatária e pertence aos respectivos senhorios (pedido deduzido sob o nº 4).
A título subsidiária, a autora pretende que se lhe reconheça a aquisição de uma servidão de passagem, por usucapião (pedido deduzido sob o nº 8).
Como bem se explica no Ac. do TRL de 08-02-2022 (proc. nº 19864/15.7T8LSB.L1-7) “A ação de reivindicação pressupõe necessariamente a formulação de dois pedidos cumulativos: o de reconhecimento do direito de propriedade, por um lado, e o de restituição da coisa reivindicada, por outro. A procedência da ação de reivindicação está sempre dependente da procedência dessas duas pretensões em simultâneo, que não gozam de autonomia efetiva no contexto do Art. 1311.º do C.C.”
Com efeito, é essa a solução decretada em tal art. 1311º, que dispõe no seu nº 1: “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
No caso, apesar de pretender que se condenem os RR. a reconhecer que o caminho que usa para aceder às instalações onde exerce a sua actividade é parte do prédio em que se situam essas mesmas instalações, assim o reivindicando dos RR. , a própria autora anuncia que não funda o seu pedido no direito de propriedade sobre o caminho reivindicado, mas num direito de usar o prédio por dele ser arrendatária.
Em suma, não se verifica a conexão imprescindível entre a causa de pedir e o pedido, exigida no art. 1311º. A autora, enquanto titular de um direito ao gozo do prédio sustentado num contrato de arrendamento celebrado com os respectivos proprietários não pode justificar nesse seu direito a pretensão de reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio, pois que não é seu este direito, nem reivindicá-lo de um terceiro, designadamente de um terceiro que também se arrogue proprietário do mesmo.
Existe, pois, a apontada contradição entre a causa de pedir e o pedido.
De resto, se não se identificasse uma tal incongruência na formulação deste pedido, sempre teria de afirmar-se a ilegitimidade da autora para exigir o reconhecimento do direito de propriedade sobre aquela parcela de terreno/caminho, não para si, mas para outrem alheio à causa. E, segundo o referido pela decisão recorrida, a intervenção dos proprietários do terreno para suprirem uma tal ilegitimidade esbarraria numa excepção de caso julgado.
Nestas circunstâncias, o que se indicia é que a presente acção tender a conseguir o resultado que uma acção precedente não conseguiu: o reconhecimento do direito de propriedade dos senhorios da autora, sobre o caminho. Só que, não podendo estes repetir em juízo essa pretensão, veio a autora atravessar-se a fazê-lo na sua vez. Só que, como acima se referiu, o direito que invoca como fundamento para essa pretensão, não lhe faculta deduzi-la em juízo.
Por todo o exposto, apresenta-se-nos isenta de crítica a decisão recorrida, nesta parte.
*
Formula sucessivamente a autora um outro pedido: o de que se lhe reconheça a constituição de uma servidão de passagem, pelo referido caminho, por usucapião.
A noção de servidão é-nos dada pelo art. 1543º do C.Civil: “Servidão predial é o encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.”
A servidão é, na essência, uma relação entre dois prédios. Por consequência, não pode alguém, invocando caracteres de posse sobre um determinado prédio ou parte dele, pretender que se reconheça a seu favor uma servidão, quando não é o dono do prédio dominante, isto é, do prédio que ficará beneficiado pela servidão em causa (que, no caso, seria uma servidão de passagem).
Quer no Ac. do STJ de 17-12-2019 (processo 797/17.9T8OLH.EL.S1, disponível em www.dgsi.pt., citado pelos apelados), quer no Ac. ainda do STJ de 2/6/2021 (proc. nº 179/20.5T8PTG.E1.S1, também acessível em dgsi.pt) resulta enunciado que a posse apta a proporcionar a aquisição de uma servidão, designadamente de uma servidão de passagem, por usucapião é incontornavelmente uma posse em nome próprio e não uma posse precária, em nome de outrem ou mera detenção, como acontece com os poderes materiais exercidos sobre uma coisa ao abrigo de um contrato de arrendamento.
O mesmo se referiu no Ac. deste TRP de 15 Nov. 2018 (processo nº 1856/16, em jusnet.pt) nos seguintes termos: “Com efeito, a constituição de uma servidão de passagem, como, de resto, de qualquer outro direito real de gozo, por via da usucapião, não está dependente apenas do uso que se faça de uma coisa ou lugar, ainda que de modo reiterado, ao longo de mais de 20 anos, como sucedeu no caso presente. Está dependente ainda da prova de domínio pleno e exclusivo dessa coisa ou lugar, com uma intencionalidade aquisitiva (artigos 1251.º e 1263.º, al. a), do Código Civil).
A posse, na verdade, "é sempre expressão de uma autoridade fáctica" . E essa autoridade expressa-se nos poderes exercidos sobre o seu objeto, os quais, para serem plenos, não podem ser fragmentados. O que revela a intenção dominial.”
No caso em apreço, é precisamente no exercício dos poderes que lhe advêm da qualidade de arrendatária do prédio que ocupa que a autora alega ter desenvolvido actos materiais também sobre a área do caminho. Actuou publica e pacificamente sobre o caminho, ao longo de anos, segundo alega, sem oposição, por ele transitando com pessoas e veículos, mas não com um animus de exercer assim um direito próprio, mas antes um direito que lhe advinha dos poderes de gozo sobre o arrendado que lhe foram concedidos pelos senhorios.
Nestas circunstâncias, como bem concluiu o tribunal a quo, regista-se idêntica incongruência entre a causa de pedir – o exercício de tais poderes de facto sobre o caminho, não com um animus de exercício de um direito próprio, mas com o animus do arrendatário que possui em nome do senhorio – e o pedido, que é o da constituição de uma servidão em benefício de um prédio alheio e cujos donos não exercem por si mesmos a posse que o facultaria.
Pelo exposto, não pode discordar-se da decisão recorrida, ao identificar também quanto ao pedido subsidiário uma contradição entre a causa de pedir e o pedido.
*
Conclui-se, pois, em plena concordância com o tribunal recorrido, que quer em relação ao pedido formulado a título principal, quer quanto ao pedido formulado a título subsidiária, se verifica uma contradição entre cada um deles e a respectiva causa de pedir, o que redunda na ineptidão da petição inicial, nos termos do disposto no art. 186º, nº 2, al. b) do CPC.
Daí decorre uma insuprível nulidade de todo o processo, segundo o disposto no nº 1 do mesmo artigo, o que conforma uma excepção dilatória (art. 577º, al. b) do CPC), e determina a absolvição da instância para os RR., nos termos do nº 2 do art. 576º do CPC.
Tudo, em conclusão, como fixado na decisão recorrida que, pelo exposto, cabe confirmar.
*

Sumário:
………………………
………………………
………………………



3 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta secção do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento à apelação sob apreciação, na confirmação integral da sentença recorrida.

Custas pela apelante.

Registe e notifique.
*



Porto, 19 de Março de 2024
Rui Moreira
Alexandra Pelayo
Maria Eiró