LEI DA AMNISTIA
JOVENS
DISCRIMINAÇÃO POSITIVA
CONSTITUCIONALIDADE
Sumário

I - A leis que preveem amnistias e perdões de pena são excecionais e não conferem direitos, mas dispõem sobre medidas de clemência.
II - A Lei nº38-A/2023 de 2 de agosto pretendeu dirigir as medidas de clemência à população mais jovem, em ordem a minimizar as consequências negativas que a reclusão acarreta para a juventude, na sequência de preocupações sociais e concessão de oportunidades por erros devidos a falta de maturidade ou inexperiência.
III - A discriminação positiva em função da idade continua a revestir carácter geral e abstrato, pois, aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado e a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado, não se mostrando arbitrária, nem irrazoável.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Processo n.º 3198/19.0JAPRT.P1

1. Relatório
No processo Comum Coletivo com o n.º 3198/19.0JAPRT do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Central Criminal de Vila do Conde, Juiz 8, veio a arguida AA, em 9/11/2023 requerer que lhe fosse aplicado o perdão de 1 ano previsto pela Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, invocando-se a inconstitucionalidade da exclusão prevista pelo art. 2º, nº1 do mencionado diploma, referente à idade do agente à data da prática do facto, por violação do princípio da igualdade previsto no art. 13º da CRP.
Sobre tal requerimento veio a recair o seguinte despacho:
«Pretende a arguida, em síntese, que seja declarada inconstitucional a interpretação normativa suscitada por violação do princípio da igualdade, já que a lei é aplicável a uma certa faixa etária (entre os 16 e os 30 anos de idade) na qual não se inclui. Em consequência da declaração da alegada inconstitucionalidade, pretende lhe seja aplicado perdão da pena.
O Ministério Público pronunciou-se no sentido de que a limitação etária prevista na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto não viola o princípio da igualdade resultante do artigo 13.º do texto constitucional.
Apreciando.
A Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto entrou em vigor no dia 1 de setembro de 2023 (cfr. artigo 15º da citada lei).
O artigo 3º, nº 1, da mencionada lei refere que “Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.
Há um limite material à aplicação da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto.
Com efeito, não beneficia do perdão, ainda que se verifiquem os demais requisitos objetivos e subjetivos de aplicação, quem tiver praticado os crimes previstos no art.º 7.º da mencionada lei.
Há, também, um limite etário à aplicação da lei n.º 38-A/2023 de 2 de agosto.
De facto, a lei apenas é aplicável a pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (art.º 2.º).
A arguida nasceu a ../../1977 pelo que, à data da prática dos factos, tinha 42 anos de idade,
Assim, a Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto não lhe é aplicável.
O parâmetro constitucional cuja violação é invocado pelo arguido é princípio da igualdade, previsto no artigo 13.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
O Tribunal Constitucional no Acórdão nº 379/2021 tomou posição no seguinte sentido, quanto a tal princípio:
“Constitui entendimento abundante e reiterado deste Tribunal que o princípio da igualdade não proíbe ao legislador que faça distinções, mas apenas diferenciações de tratamento (e sua medida) sem justificação racional e bastante. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 362/2016, em síntese da posição do Tribunal sobre o parâmetro da igualdade, na sua dimensão de proibição do arbítrio, aqui invocada:
«Numa perspetiva de igualdade material ou substantiva – aquela que subjaz ao artigo 13.º, n.º 1, da Constituição e que se traduz na igualdade através da lei –, a igualdade jurídica corresponde a um conceito relativo e valorativo assente numa comparação de situações: estas, na medida em que sejam consideradas iguais, devem ser tratadas igualmente; e, na medida em que sejam desiguais, devem ser tratadas desigualmente, segundo a medida da desigualdade. Tal implica a determinação prévia da igualdade ou desigualdade das situações em causa, porquanto no plano da realidade factual não existem situações absolutamente iguais. Para tanto, é necessário comparar situações em função de um certo ponto de vista. Por isso, a comparação indispensável ao juízo de igualdade exige pelo menos três elementos: duas situações ou objetos que se comparam em função de um aspeto que se destaca do todo e que serve de termo de comparação (tertium comparationis). Este termo – o «terceiro (elemento) da comparação» – corresponde à qualidade ou característica que é comum às situações ou objetos a comparar; é o pressuposto da respetiva comparabilidade. Assim, o juízo de igualdade significa fazer sobressair ou destacar elementos comuns a dois ou mais objetos diferentes, de modo a permitir a sua integração num conjunto ou conceito comum (genus proximum).
Porém, a Constituição não proíbe todo e qualquer tratamento diferenciado. Proíbe, isso sim, as discriminações negativas atentatórias da (igual) dignidade da pessoa humana e as diferenças de tratamento sem uma qualquer razão justificativa e, como tal, arbitrárias. Nesse sentido, afirmou-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objetivo, “reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade” – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de 1972, p. 29).
O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objetivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjetivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13º.
Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados.
O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante.»
Por outro lado, não é função do princípio da igualdade garantir que todas as escolhas do legislador sejam racionais e coerentes ou correspondem à melhor solução. Nesse particular, justifica-se recordar a jurisprudência constitucional firmada no Acórdão n.º 546/2011:
«[O] n.º 1 do artigo 13.º da CRP, ao submeter os atos do poder legislativo à observância do princípio da igualdade, pode implicar a proibição de sistemas legais internamente incongruentes, porque integrantes de soluções normativas entre si desarmónicas ou incoerentes. Ponto é, no entanto – e veja-se, por exemplo, o Acórdão n.º 232/2003 – que o carácter incongruente das escolhas do legislador se repercuta na conformação desigual de certas situações jurídico-subjetivas, sem que para a medida de desigualdade seja achada uma certa e determinada razão. É que não cabe ao juiz constitucional garantir que as leis se mostrem, pelo seu conteúdo, “racionais”.
O que lhe cabe é apenas impedir que elas estabeleçam regimes desrazoáveis, isto é, disciplinas jurídicas que diferenciem pessoas e situações que mereçam tratamento igual ou, inversamente, que igualizem pessoas e situações que mereçam tratamento diferente. Só quando for negativo o teste do “merecimento” – isto é, só quando se concluir que a diferença, ou a igualização, entre pessoas e situações que o regime legal estabeleceu não é justificada por um qualquer motivo que se afigure compreensível face à ratio que o referido regime, em conformidade com os valores constitucionais, pretendeu prosseguir – é que pode o juiz constitucional censurar, por desrazoabilidade, as escolhas do legislador. Fora destas circunstâncias, e, nomeadamente, sempre que estiver em causa a simples verificação de uma menor “racionalidade” ou congruência interna de um sistema legal que, contudo, se não repercuta no trato diverso – e desrazoavlmente diverso, no sentido acima exposto – de posições jurídico-subjetivas, não pode o Tribunal Constitucional emitir juízos de inconstitucionalidade. Nem através do princípio da igualdade (artigo 13.º) nem através do princípio mais vasto do Estado de direito, do qual em última análise decorre a ideia de igualdade perante a lei e através da lei (artigo 2.º), pode a Constituição garantir que sejam sempre “racionais” ou “congruentes” as escolhas do legislador. No entanto, o que os dois princípios claramente proíbem é que subsistam na ordem jurídica regimes legais que impliquem, para as pessoas, diversidades de tratamento não fundados em motivos razoáveis.»
Relativamente à questão de saber se o perdão previsto em diploma legal enferma do vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da igualdade, também o Tribunal Constitucional já se pronunciou diversas diversas citando-se, a título exemplificativo, por todos, Acórdão n.º 488/2008:
“Como medida de clemência, o perdão emerge de um acto político, tornado fonte jurígena de efeitos sobre as penas aplicadas (sobre a compreensão da clemência como virtude do legislador, cf. Cesare Beccaria, Dos Delitos e das Penas, tradução de José Faria Costa, 2.ª edição da Fundação Calouste Gulbenkian, p. 161).
Ele impede a execução da pena aplicada pela prática de crimes (cf. sobre a acepção do conceito e das figuras afins, entre outros, Pedro Duro, «Notas sobre alguns limites do poder de amnistiar», Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, Ano II, n.º 3, 2001, pp. 323 e segs. e Francisco Aguilar, Amnistia e Constituição, Almedina, pp. 37 e segs).
Na medida em que se traduz num irrelevar, para efeitos do seu cumprimento, da pena concretamente aplicada pela prática de um crime tipificado e cominado na lei - ou visto de outro ângulo, numa desconsideração, total ou parcial, da pena aplicada que foi abstractamente adstringida pelo legislador à violação dos bens jurídico-penais que a definição do tipo legal encerra - o perdão genérico de penas é, por regra, por isso, decretado pelo órgão com competência para definir esse ilícito criminal.
Nesta perspectiva, ele é, ainda, um meio específico de concretização da política criminal referente à efectivação das penas aplicadas pela prática dos crimes definidos na lei.
Tratando-se de uma medida de clemência geral que é aplicada a todos em função das penas aplicadas, o perdão é um perdão geral.
Na medida, porém, em que o perdão genérico opera em função das penas aplicadas e abrange, em princípio, todos os condenados, ele distingue-se da amnistia e do indulto.
A própria Constituição reconhece, a partir da revisão de 1982, com o aditamento à parte final da alínea f) do artigo 164.º da expressão «e perdões genéricos», de par com a referência à amnistia e com a previsão já constante do artigo 137.º, n.º 1, alínea e), de competência do Presidente da República para conceder indultos e comutações de penas aplicadas, a diferenciação dos conceitos.
(…)
E, assumindo os conceitos tradicionais, presentes no texto constitucional, o artigo 126.º do Código Penal de 1982, publicado posteriormente a tal revisão, a que corresponde agora o artigo 128.º do actual Código Penal, e focando tais institutos pelo lado dos efeitos que desencadeiam, diz que a amnistia «extingue o procedimento criminal (amnistia própria) e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como da medida de segurança» (amnistia própria, na primeira situação, e amnistia imprópria no segundo caso); que o perdão genérico «extingue a pena, no todo ou em parte» e que o indulto «extingue a pena, no todo ou em parte, ou substitui-a por outra mais favorável prevista na lei» (para uma compreensão histórica da amnistia, cf. o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 444/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Deste modo, a amnistia atinge a punibilidade dos actos definidos como crimes; actua em função dos crimes, deixando os actos praticados até ao momento histórico-jurídico considerado de poderem ser enquadrados nos tipos legais amnistiados.
A amnistia apaga retroactivamente a punibilidade criminal dos factos típicos, continuando os tipos penais a valerem, por inteiro, para o futuro.
Por seu lado, o indulto atinge apenas a pena concretamente aplicada a uma concreta pessoa por decisão transitada em julgado, extinguindo-a, no todo ou em parte, ou alterando-a ou suspendendo-a; falando-se nestas últimas situações de comutação de penas.
A Constituição da República Portuguesa atribui a competência exclusiva para conceder amnistias e perdões genéricos à Assembleia da República, na alínea f) do artigo 161.º
Tal reserva absoluta de competência da Assembleia da República encontra, exactamente, o seu fundamento material naquele elemento de o perdão genérico defluir de um acto essencialmente político com reflexos sobre a política criminal concretamente adoptada pelo parlamento quando procede à definição dos tipos penais e previsão das correspondentes medidas sancionatórias.
Já a concessão do indulto e comutação de penas está atribuída à competência própria do Presidente da República, estando o seu exercício dependente da audição do Governo [artigo 134.º, alínea f), da CRP].
8 - Embora a concessão do perdão genérico - única figura que agora nos interessa - seja efeito de um acto político, que pode ter por causa as mais diversas motivações (cf., referindo-se à amnistia, os Acórdãos n.os 444/97 e 510/98, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), como sejam a magnimidade por occasio publicae laetitia excepcional, razões de política geral de apaziguamento ou outras, de correcção de determinadas ponderações anteriores efectuadas pelo direito ou do modo da sua aplicação pela jurisprudência ou pela administração, ela expressa-se através de uma lei em sentido material.
Ora, cabendo a sua edição na competência do legislador ordinário, tomada no campo da política criminal, não pode deixar de se lhe reconhecer discricionariedade normativo-constitutiva na conformação do seu conteúdo.
Referindo-se à circunstância de as Leis n.º s 23/91, de 4 de Julho, 15/94, de 11 de Maio e 29/99 não terem contemplado, nos perdões genéricos concedidos, a medida de segurança de internamento, disse-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 42/02, disponível em www.tribunalconstitucional.pt:
«Neste domínio, o Tribunal Constitucional vem entendendo, com significativa reiteração, que, nos óbvios parâmetros do Estado de direito democrático, a liberdade de conformação legislativa goza de alargado espaço onde têm lugar preponderantes considerações não necessariamente restritas aos fins específicos do aparelho sancionatório do Estado, mas também outras ditadas pela conveniência pública que, em última instância, entroncam na raison d'Etat.»
Mas essa discricionariedade normativo-constitutiva não é ilimitada: ela tem de respeitar as normas e os princípios constitucionais.
Estas normas e princípios constitucionais surgem sempre como um limite à actividade legiferante do órgão constitucionalmente competente para dispor sobre a matéria.
Entre os princípios, cujo respeito se impõe ao legislador ordinário competente para dispor sobre o perdão genérico das penas, contam-se o invocado pela recorrente, o princípio da igualdade perante a lei e na lei (cf. além dos referidos Acórdãos, Pedro Duro, op. cit., p. 336, e Francisco Aguilar, op. cit, p. 209).
No que importa à primeira dimensão, importa reconhecer que o legislador do perdão genérico não o desrespeitou.
Na verdade, o perdão foi concedido a todos condenados que houvessem praticado os mesmos crimes pelos quais a recorrente foi condenada e se encontrassem na mesma situação.
O perdão abrange todas as pessoas que sejam condenadas pela prática, até ao momento considerado na lei, de todas as categorias de crime, à excepção das pessoas condenadas que se encontrem em determinada situação, nela definida de forma geral e abstracta (n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 29/99), ou hajam praticado certas categorias de crimes (n.º 2 do mesmo artigo).
(…)
Cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas - o quantum do perdão - , quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.
(…)
Mas igualdade não é igualitarismo.
O Tribunal Constitucional tem uma vasta jurisprudência sobre o princípio da igualdade.
Reflectindo o estado actual da compreensão do princípio da igualdade, tanto na jurisprudência como na doutrina, nacionais e estrangeiras, afirmou-se no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 232/2003 (publicado no Diário da República 1.ª série-A, de 17 de Junho de 2003), assumindo em diversos passos da sua fundamentação abundante argumentação de jurisprudência anterior:
[...] Princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional global (cf., neste sentido, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 125), o princípio da igualdade vincula directamente os poderes públicos, tenham eles competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (cf. ob. cit., pág. 129) o que resulta, por um lado, da sua consagração como direito fundamental dos cidadãos e, por outro lado, da "atribuição aos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias de uma força jurídica própria, traduzida na sua aplicabilidade directa, sem necessidade de qualquer lei regulamentadora, e da sua vinculatividade imediata para todas as entidades públicas, tenham elas competência legislativa, administrativa ou jurisdicional (artigo 18.º, n.º 1, da Constituição) (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 186/90, publicado no Diário da República 2.ª série, de 12 de Setembro de 1990).
[...]
1.2 - O princípio não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, «razoável, racional e objectivamente fundadas», sob pena de, assim não sucedendo, «estar o legislador a incorrer em arbítrio, por preterição do acatamento de soluções objectivamente justificadas por valores constitucionalmente relevantes», no ponderar do citado Acórdão n.º 335/94. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada (o que importa é que não se discrimine para discriminar, diz-nos J. C. Vieira de Andrade - Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1987, pág. 299).
Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como «princípio negativo de controlo» ao limite externo de conformação da iniciativa do legislador - cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 127 e, por exemplo, os Acórdãos n.º s. 157/88, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 26 de Julho de 1988, e os já citados n.º s. 330/93 e 335/94 - sem que lhe retire, no entanto, a plasticidade necessária para, em confronto com dois (ou mais) grupos de destinatários da norma, avalizar diferenças justificativas de tratamento jurídico diverso, na comparação das concretas situações fácticas e jurídicas postadas face a um determinado referencial («tertium comparationis»). A diferença pode, na verdade, justificar o tratamento desigual, eliminando o arbítrio (cf., a este propósito, Gomes Canotilho, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, ano 124, pág. 327; Alves Correia, O Plano Urbanístico e o Princípio da Igualdade, Coimbra, 1989, pág. 425; Acórdão n.º 330/93).
Ora, o princípio da igualdade não funciona apenas na vertente formal e redutora da igualdade perante a lei; implica, do mesmo passo, a aplicação igual de direito igual (cf. Gomes Canotilho, Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, pág. 381; Alves Correia, ob. cit., pág. 402) o que pressupõe averiguação e valoração casuísticas da «diferença» de modo a que recebam tratamento semelhante os que se encontrem em situações semelhantes e diferenciado os que se achem em situações legitimadoras da diferenciação.
[...]
[...] O Tribunal Constitucional tem considerado que o princípio da igualdade impõe que situações da mesma categoria essencial sejam tratadas da mesma maneira e que situações pertencentes a categorias essencialmente diferentes tenham tratamento também diferente. Admitem-se, por conseguinte, diferenciações de tratamento, desde que fundamentadas à luz dos próprios critérios axiológicos constitucionais. A igualdade só proíbe discriminações quando estas se afiguram destituídas de fundamento racional [cf., nomeadamente, os Acórdãos n.º s 39/88, 186/90, 187/90 e 188/90, Acórdãos do Tribunal Constitucional, 11.º vol. (1988), p. 233 e ss., e 16.º vol. (1990), pp. 383 e ss., 395 e ss. e 411 e ss., respectivamente; cf., igualmente, na doutrina, Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, 2.ª ed., 1993, p. 213 e ss., Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 6.ª ed., 1993, pp. 564-5, e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 1993, p.125 e ss.].
[...]
Assente a possibilidade de estabelecimento de diferenciações, tornar-se-á depois necessário proceder ao controlo das normas sub judicio, feito a partir do fim que visam alcançar, à luz do princípio da proibição do arbítrio (Willkürverbot) e, bem assim, de um critério de razoabilidade.
Com efeito, é a partir da descoberta da ratio da disposição em causa que se poderá avaliar se a mesma possui uma "fundamentação razoável" (vernünftiger Grund), tal como sustentou o "inventor" do princípio da proibição do arbítrio, Gerhard Leibholz (cf. f. Alves Correia, O plano urbanístico e o princípio da igualdade, Coimbra, 1989, pp. 419ss). Essa ideia é reiterada entre nós por Maria da Glória Ferreira Pinto: «[E]stando em causa [...] um determinado tratamento jurídico de situações, o critério que irá presidir à qualificação de tais situações como iguais ou desiguais é determinado directamente pela ratio do tratamento jurídico que se lhes pretende dar, isto é, é funcionalizado pelo fim a atingir com o referido tratamento jurídico. A ratio do tratamento jurídico é, pois, o ponto de referência último da valoração e da escolha do critério» (cf. Princípio da igualdade: fórmula vazia ou fórmula 'carregada' de sentido (sep. do Boletim do Ministério da Justiça, n.º 358, Lisboa, 1987, p. 27). E, mais adiante, diz a mesma Autora: «[O] critério valorativo que permite o juízo de qualificação da igualdade está, assim, por força da estrutura do princípio da igualdade, indissoluvelmente ligado à 'ratio' do tratamento jurídico que o determinou. Isto não quer, contudo, dizer que a ratio do tratamento jurídico exija que seja este critério, o critério concreto a adoptar, e não aquele outro, para efeitos de qualificação da igualdade. O que, no fundo, exige é uma conexão entre o critério adoptado e a ratio do tratamento jurídico. Assim, se se pretender criar uma isenção ao imposto profissional, haverá obediência ao princípio da igualdade se o critério de determinação das situações que vão ficar isentas consistir na escolha de um conjunto de profissionais que se encontram menosprezados no contexto social, bem como haverá obediência ao princípio se o critério consistir na escolha de um rendimento mínimo, considerado indispensável à subsistência familiar numa determinada sociedade» (ob. cit., pp. 31-32).”
No Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 25.10.2001, in www.dgsi.pt, sustentou-se o seguinte:
“Com a institucionalização do Estado de direito social e democrático, todos os actos de graça são actos que se movem no mundo do direito, desde logo no do direito constitucional, pelo que estão sujeitos ao seu império, portanto ao controlo jurisdicional. O que se reflectiu nos próprios termos da distinção entre amnistia e indulto, evidenciando que na primeira se trata sempre de uma medida formalmente legal (competindo às câmaras legislativas) e, deste modo, dotada das características de objectividade, generalidade e impessoalidade, enquanto no indulto se trata de intervenções executivas através das quais, no caso concreto, são afastadas, reduzidas ou suspensas as consequências jurídicas de uma condenação penal, transitada em julgado.
É assim que a Constituição dispõe hoje que «compete à Assembleia da República [...] conceder amnistias e perdões genéricos» - artigo 161.º, alínea f) -, competindo ao Presidente da República «na prática de actos próprios [...] indultar e comutar penas, ouvido o Governo» - artigo 134.º, alínea f).
Em ambos os casos fica derrogado o sistema legal punitivo; daí o intitular-se, por vezes, o regime das medidas de graça como um jus non puniendi. O direito de graça é, no seu sentido global e abrangente, «a contraface do direito de punir estadual» (Figueiredo Dias, Direito Penal ..., parte geral II, 1993, p. 685).
Sucede ainda que o direito de graça subverte princípios estabelecidos num moderno Estado de direito sobre a divisão e interdependência dos poderes estaduais, porquanto permite a intromissão de outros poderes na administração da justiça, tarefa para a qual só o poder judicial se encontra vocacionado, sendo por muitos consideradas tais medidas como instituições espúrias que neutralizam e até contradizem as finalidades que o direito criminal se propõe.
Razão pela qual aquele direito é necessariamente considerado um direito de «excepção», revestindo-se de «excepcionais» todas as normas que o enformam.
É pela natureza excepcional de tais normas que elas «não comportam aplicação analógica» - artigo 11.º do Código Civil -, sendo pacífico e uniforme o entendimento da doutrina e da jurisprudência de que, pela mesma razão, não admitem as leis de amnistia interpretação extensiva ou restritiva, «devendo ser interpretadas nos exactos termos em que estão redigidas» (v. a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Dezembro de 1977, in Boletim do Ministério da Justiça, n.º 272, p. 111 - «a amnistia, na medida em que constitui providência de excepção, não pode deixar de ser interpretada e aplicada nos estritos limites do diploma que a concede, não comportando restrições ou ampliações que nele não venham consignadas» -, de 6 de Maio de 1987, Tribuna da Justiça, Julho de 1987, p. 30 - «O STJ sempre tem entendido que as leis de amnistia, como providências de excepção, devem interpretar-se e aplicar-se nos seus precisos termos, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas» -, de 30 de Junho de 1976, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 258, p. 138 - «A aplicação da amnistia deve fazer-se sempre nos estritos limites da lei que a concede, de modo a evitar que vá atingir, na sua incidência como facto penal extintivo, outra ou outras condutas susceptíveis de procedimento criminal» -, de 26 de Junho de 1997, processo n.º 284/97, 3.ª Secção - «As leis de amnistia como leis de clemência devem ser interpretadas nos termos em que estão redigidas, não consentindo interpretações extensivas e muito menos analógicas» -, de 15 de Maio de 1997, processo n.º 36/97, 3.ª Secção - «A amnistia e o perdão devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliação nem restrições» -, de 13 de Outubro de 1999, processo n.º 984/99, 3.ª Secção, de 29 de Junho de 2000, processo n.º 121/2000, 5.ª Secção, e de 7 de Dezembro de 2000, processo n.º 2748/2000, 5.ª Secção, para mencionar apenas os mais recentes).
Sendo, assim, insusceptíveis de interpretação extensiva (não pode concluir-se que o legislador disse menos do que queria), de interpretação restritiva (entendendo-se que o legislador disse mais do que queria) e afastada em absoluto a possibilidade de recurso à analogia, impõe-se uma interpretação declarativa, em que «não se faz mais do que declarar o sentido linguístico coincidente com o pensar legislativo» - Francesco Ferrara, Interpretação e Aplicação das Leis, Coimbra, 1978, p. 147. Na interpretação declarativa «o intérprete limita-se a eleger um dos sentidos que o texto directa e claramente comporta, por ser esse aquele que corresponde ao pensamento legislativo» - Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1983, p. 185.”
O STJ no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 2/2023 de 15.12.2022, disponível in www.dgsi.pt, firmou o seguinte:
“Qualquer medida de amnistia, entendida em sentido amplo, pode remeter, necessariamente, para uma certa derrogação do princípio da igualdade (ao menos num seu entendimento não complexivo, que abranja ou integre já essas exceções, aliás clássicas), uma vez que há sempre um grupo limitado de delitos que deixa de ser punido, ou um conjunto de penas que deixam de ser cumpridas, mantendo -se os demais.
“Todavia, no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objectivamente iguais.”
(…)
Assim, o legislador da clemência tem liberdade de estabelecer os critérios e a forma de determinar o perdão, mantendo uma significativa margem de discricionariedade, de forma a cumprir os objetivos que lhe estão subjacentes.
Como tal, “cabe na discricionariedade normativa do legislador ordinário eleger, quer a medida do perdão de penas — o quantum do perdão —, quer, em princípio, as espécies de crimes ou infracções a que diga respeito a pena aplicada e perdoada, quer a sujeição ou não a condições, desde que o faça de forma geral e abstracta, para todas as pessoas e situações nela enquadráveis.”
Como se espelhou, a Doutrina e a Jurisprudência são coincidentes, no âmbito das medidas de clemência da amnistia ou do perdão, de que uma diferenciação de tratamento, desde que seja mesma fundada em motivações objectivas, razoáveis e justificadas não coloca em crise o princípio da igualdade.
A amnistia e o perdão não são um direito, mas antes medidas de clemência,
Este tipo de medidas de clemência foram já aplicadas em 1967, a propósito de visita de Paulo VI, e em 1982 e 1991.
A vinda do Papa Francisco a Portugal, por ocasião das Jornadas Mundiais da Juventude, mobilizou milhares de jovens, surgindo a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, nessa sequência, até porque não foi uma visita oficial a Portugal, mas antes a presença habitual do Papa naquele evento, realizado em vários países.
Sendo uma medida discricionária, não se antolha qualquer exigência de a amnistia e o perdão terem obrigatoriamente de ser destinados a todo e qualquer cidadão, cabendo ao respectivo órgão de soberania legiferante decidir, de forma abstracta e genérica, o seu âmbito subjectivo, como o fez.
Concordamos, na íntegra, com o expendido no Acórdão da Relação de Guimarães de 22.02.2021, Relator: Desembargador Paulo Serafim, in www.dgsi.pt:
“As leis de amnistia, como providências de exceção, devem interpretar-se e aplicar-se nos termos em que estão redigidas, sem ampliações decorrentes de interpretações extensivas ou por analogia, nem restrições que nelas não venham expressas.”
Nunca foram levantadas questões de constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional relativamente a diplomas legais destinados a grupos de pessoas (que não indivíduos específicos), desde que com generalidade e abstracção.
Para além disso, impõe-se chamar à colação o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos, instituído pelo DL n.º 401/82, de 23 de Setembro, o qual também é ancorado num âmbito subjectivo restrito.
Em ambos os casos, estamos em presença de opções político-criminais, conferindo aos jovens uma oportunidade de ressocialização suplementar, sendo que, no caso do perdão, apenas é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada (art. 8.º, n.º 1), e de pagamento da indemnização ou reparação a que o beneficiário também tenha sido condenado, o que deve ser cumprido nos 90 dias imediatos à notificação do condenado para o efeito (art. 8.º, n.ºs 2 e 3).
Em síntese, entendemos que a opção político-criminal subjacente ao diploma em causa, quanto ao seu âmbito subjectivo de aplicação, se encontra fundada, não sendo arbitrária, pelo que não viola o princípio constitucional da igualdade ínsito do artigo 13º da CRP.
Por todo o exposto, a meu ver, inexiste qualquer inconstitucionalidade normativa, pelo que se infere indefere-se o requerido pela arguida. Consequentemente, não lhe será aplicado qualquer perdão de pena, por força da Lei nº 38-A/2023 de 2 de Agosto por não lhe ser aplicável. De facto, tendo a arguida 42 anos à data da prática dos factos não preenche um dos requisitos legalmente exigidos - que é ter ente 16 e 30 anos de idade.»
Inconformada com esta decisão veio a arguida interpor o presente recurso com os seguintes argumentos que se extraem das conclusões que passamos a reproduzir:
«1º - No passado dia 20 de Novembro de 2023, na sequência de requerimento para apreciação de perdão de pena e de inconstitucionalidade normativa, de um segmento da Lei n.º 38º-A/2023, de Agosto, foi proferido despacho no sentido de indeferir o requerido pela condenada, por o mesmo não se encontrar abrangido pelo disposto na sobredita lei.
2º - No âmbito destes autos, o tribunal aquo, havia proferido decisão condenatória da arguida AA, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art. 25º, al. a) do DL 15/93 de 22/1 na pena de 2 (dois) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
3º - Contudo, no dia 01 de Setembro de 2023, entrou em vigor a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, aplicável aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto.
4º - À data da prática dos factos a condenada tinha 42 anos, idade superior ao estalecido pela sobredita lei, pelo que, numa primeira leitura, atenta a idade da condenada, este regime não seria aplicável.
SUCEDE, PORÉM, QUE,
5º - Desde a sua génese, esta lei nunca colheu entendimento unânime quanto à constitucionalidade da restrição na sua aplicação e os próprios tribunais de 1ª instância não têm tido entendimento unânime quanto à legalidade deste factor limitador da idade.
6º - O que queria situações de flagrante injustiça, pois os indivíduos condenados, com idade superior a 30 anos, não devem ver o seu destino deixado à sorte do entendimento do tribunal onde o seu processo corre termos.
7º - Foi tornado público, entre outros casos, nos termos e para os efeitos do art.º 412º n.º 1 do Código Processo Civil, nos diversos jornais de tiragem nacional, a decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, proferida no âmbito do Processo n.º 29/23.0PAMGR.
8º - O ali arguido apresentou contestação alegando a inconstitucionalidade da norma do artigo 2.º, n.º 2 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, por discriminatória com base na idade, violando, assim, o disposto no artigo 13.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
9º - Naquele processo considerou-se, para além do mais, que o legislador definiu a faixa etária abrangida pela Lei da Amnistia, tendo em consideração o limite máximo de idade para as inscrições nas Jornadas Mundiais da Juventude, cada Conferência Episcopal de cada país poderia definir outra idade e permitir inscrições de pessoas com idades diferentes, sob certas condições.
10º - Também se considerou que os limites de idade e o conceito de juventude são utilizados em diversos contextos, pelo que podemos encontrar diversas definições do mesmo, citando-se alguns exemplos:
- Programa de mobilidade e intercâmbio para jovens, é-se considerado jovem até os 30 anos de idade, isto de acordo com a Portaria n.º 345/2006, de 11 de Abril.
- A Assembleia Geral das Nações Unidas, entende que a juventude termina aos 24 anos, conforme dispõe a Resolução n.º 36/28 de 1981.
- No contexto de “Jovens Agricultores” são considerados jovens até os 40 anos, de acordo com o artigo 3.º, alínea d), da Portaria n.º 31/2015, de 12 de Fevereiro.
11º - Dessa forma, o Tribunal conclui que, dependendo do Diploma Legal em análise, o fim da juventude varia entre os 24 e os 40 anos, o que impede a definição de um limite universal para o conceito de juventude, considerando que o termo “juventude” é vago e não possui definição jurídica, e que o legislador não estabeleceu critérios específicos para o limite de até 30 anos, sendo esse limite, em concreto, 31 anos menos um dia para a sua aplicação.
12º - Na verdade, o legislador não oferece um critério penalístico para aquele limite etário, que acaba por ser compreendido como uma anomalia e soa comunitariamente como injustiça, uma vez que o Estado não oferece qualquer fundamento objectivo para a diferenciação.
13º - Em face da variabilidade do conceito “juventude”, não é possível no nosso ordenamento jurídico encontrar um limite fixado em critérios penalísticos, para aplicação da identificada Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, designadamente para se estabelecer como limite etário para a “juventude” 31 anos menos um dia.
14º - Pelo que a norma do artigo 2.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2/8, é materialmente inconstitucional, por ofensa à norma do artigo 13.º, n.º 2 da CRP, pelo que, com base na referida inconstitucionalidade parcial quantitativa, foi declarado extinto o procedimento criminal.
15º - É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da conjugação dos artigos 2º n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, quando interpretada no sentido de que a idade constitui factor limitador ao perdão de penas, por violação do princípio da igualdade, a que alude o art.º 13º da Constituição da República Portuguesa.
16º - O princípio da igualdade traduz-se na regra da generalidade na atribuição de direitos e na imposição de deveres, pelo que os direitos e vantagens devem beneficiar a todos; e os deveres e encargos devem impender sobre todos, concretizando-se, essencialmente, na proibição do arbítrio, na proibição de discriminações - mormente em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual -, e na obrigação de diferenciação.
17º - Nessa medida, o princípio da igualdade desdobra-se, assim, na obrigação de tratar de forma igual aquilo que é igual e desigual aquilo que é desigual.
18º - Temos assim duas questões que ficam sem resposta:
1.ª - Qual o fundamento racional presente no estabelecimento do limite de idade;
2.ª - Se o limite de 30 anos, constitui um factor de discriminação objectivo para ser estabelecido como condição para a concessão do perdão de penas ou da amnistia.
19º - Como sabemos, o legislador português definiu o limite máximo etário, por ser o limite de idade para a inscrição nas Jornadas Mundiais da Juventude, sendo que mesmo esse limite não é certo, uma vez que poderiam ser inscritas pessoas com outras idades, sob condições, como se poderá apurar em https://www.lisboa2023.org/pt/inscricoes-peregrinos.
20º - Pelo que surgem dúvidas quanto ao fundamento da delimitação dos destinatários das medidas de clemência apenas se bastar com o foco dos destinatários centrais do evento, isto é, jovens até aos 30 anos.
21º - E, nesse sentido, deverá o condenado beneficiar da aplicação da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto, por se tratar de crime excluído do catálogo do art.º 7º do sobredito diploma e, nessa medida, ser-lhe concedido o perdão da pena aplicada nos presentes autos, declarando-se a inconstitucionalidade do artigo 2.º da Lei 38-A/2023 de 2 de Agosto.»
Termina nos seguintes termos:
«A- Por tudo o exposto, verifica-se a violação do art.º 13º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, bem como deverá ser declarada a inconstitucionalidade do art.º 2º n.º 1 da Lei n.º 38º-A/2023, de 02 de Agosto.
B- De igual forma, deverá ser revogado o despacho recorrido, devendo o tribunal a quo determinar a sua substituição por um outro que conceda o perdão de 1 ano na pena aplicada à condenada.»
O presente recurso foi admitido por despacho proferido nos autos em 5/01/2024.
O MP apresentou resposta ao recurso mantendo o entendimento já expresso na sua promoção que antecedeu o despacho recorrido no sentido de que: « a maior benevolência da lei penal em razão da idade tem tradição na nossa legislação penal e encontra acolhimento à luz dos melhores ensinamentos da doutrina, em sede das finalidades das penas, da política criminal e mesmo da criminologia.
No caso, a lei trata de forma igual todos aqueles que se encontram na mesma situação, ou seja, os agentes que tenham praticados os factos antes dos 30 anos de idade, pelo que nenhuma violação do princípio da igualdade se vislumbra.» e acrescenta:
«tratando-se de norma penais, de aplicação universal e duradoura, ainda que referentes a causas de extinção de procedimento criminal e de penas, impõe-se que a lei seja clara e segura na sua aplicação.
Entende, assim, o Ministério Público que sendo o elemento literal e gramatical da interpretação da lei em apreço claro e congruente com os princípios constitucionais e penais aplicáveis, deverá ser o mesmo prevalecente face a outros critérios teleológicos, considerando ainda o disposto no art. 9º, nº3 do Código Civil, segundo o qual o intérprete deverá presumir que o legislador consagrou as soluções mais adequadas.»
Pugna pelo não provimento do recurso e confirmação do despacho recorrido.
Nesta Relação o Sr. Procurador-geral-adjunto adere à reposta do MP em primeira instância e alude a vários acórdãos deste Tribunal da Relação do Porto com idêntica posição.
Cumprido o disposto no art. 417 nº2 do CPP não foi apresentada resposta ao parecer.
2. Fundamentação de direito
No presente recurso a questão que importa decidir é a de saber se apesar de já ter completado, - à data da prática dos factos que levaram à condenação -, 42 anos de idade, a recorrente deverá beneficiar do perdão previsto no art.3º nº1 da Lei nº38-A/2023 de 2 de agosto, por, como entende a recorrente, dever ser afastado o disposto no art.2º nº 1 da mesma lei, por violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.
O art. 2º nº1, da citada lei que versa sobre perdão de penas e amnistia de infrações, dispõe:
«Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º»
E o art. 13º da CRP tem o seguinte teor:
«1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.»
Este princípio visa proibir o arbítrio legislativo e a diferenciação de situações sem fundamentação que seja razoável e racional.
Pretende-se que se trate de forma idêntica o que é essencialmente igual e que se diferencie apenas o que for desigual; mas não impede que o legislador estabeleça distinções que não sejam irrazoáveis desde que fundamentadas e orientadas para um propósito concreto, ou seja, apenas está proibido ao legislador as diferenças de tratamento sem fundamento lógico e racional bastante.
A leis que preveem amnistias e perdões de pena são excecionais e não conferem direitos, mas dispõem sobre medidas de clemência.
Ora, «no domínio das medidas de clemência, o princípio da igualdade deverá ser entendido num sentido específico: ele não impede a lei de aprovar regras especiais, dirigidas a certas categorias de ilícitos e de penas, mas sim de aprovar regras diferentes para situações objetivamente iguais.» - CANOTILHO, Mariana e PINTO, Ana Luísa, As medidas de clemência na ordem jurídica portuguesa, Estudos em Memória do Conselheiro Luís Nunes de Almeida, Coimbra, Coimbra Editora, pp. 336 e 337, citado no Ac. de Fixação de Jurisprudência nº 2/2023.
Na nossa legislação penal existe uma tradição de discriminar positivamente em função da idade, devido à preocupação social de proteger as camadas mais jovens dos obstáculos da vida social, e permitir-lhes contornar da melhor forma e sem grandes consequências, erros cometidos, que podem ser devidos à imaturidade ou falta de experiência.
Disso é exemplo o DL 401/82, de 23 de setembro, que estabelece o Regime Especial Aplicável a Jovens Delinquentes, e se aplica a jovens com idades compreendidas entre os 16 e os 21 anos e que permite a atenuação especial da pena concreta de prisão, em função da idade, como resulta do art. 4º do citado diploma : «Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.»
No caso concreto há que buscar as razões para o legislador ter diferenciado e decretado medidas de clemência para os cidadãos com idades compreendidas entre os 16 e os 30 anos, excluindo todos os demais.
A este propósito passamos a citar o Acórdão da Relação de Évora de 18/12/2023, relatado por Jorge Antunes:
«Na sua génese, o diploma em apreço surge duma iniciativa legislativa do Governo que apresentou à Assembleia da República a Proposta de Lei nº 97/XV/1ª, com a seguinte exposição de motivos:
“A Jornada Mundial da Juventude (JMJ) é um evento marcante a nível mundial, instituído pelo Papa João Paulo II, em 20 de dezembro de 1985, que congrega católicos de todo o mundo. Com enfoque na vertente cultural, na presença e na unidade entre inúmeras nações e culturas diferentes, a JMJ tem como principais protagonistas os jovens. Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.
Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.»
Pretendeu-se, ao dirigir as medidas de clemência à população mais jovem, minimizar as consequências negativas que a reclusão acarreta nestas idades, na sequência das preocupações sociais a que anteriormente aludimos.
Os beneficiários da amnistia e perdão, prevista na Lei nº38-A/2023 de 2 de agosto, encontram-se ainda numa fase de formação da personalidade e de desenvolvimento do carácter, podendo manifestar indecisão e vulnerabilidade na opção pelo direito, quando confrontados na dialética entre o comportamento lícito e o ilícito, residindo em tal medida de clemência uma preocupação de ressocialização dos jovens entre os 16 e os 30 anos de idade.
A lei aqui em causa, reveste carácter geral e abstrato, pois aplica-se a todos os arguidos que se encontrem na situação por si descrita, que, assim, são em número indeterminado e a delimitação do seu âmbito de aplicação está devidamente justificado, não se mostrando arbitrária, nem irrazoável.
Aqui chegados concluímos que o art.2º nº1 não viola o art. 13º da CRP, o que apenas sucederia, se em alguma interpretação dessa norma, fosse recusada a aplicação da amnistia ou perdão, em virtude de alguma das situações enunciadas no n.º 2 do citado 13.º da CRP, o que manifestamente não acontece no caso da recorrente.
No mesmo sentido da jurisprudência por nós adotada citamos os Acórdãos da Relação de Lisboa de 20/02/2024, relatado por Sandra Oliveira Pinto, da Relação de Coimbra de 22/11/2023, relatado por João Abrunhosa, e desta Relação do Porto de 27/11/2023 e a decisão singular de William Gilman, datada de 05/01/2014, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Concluímos que não merece censura o despacho recorrido quando considerou que o art. 3º da Lei nº38-A/2023 de 2 de agosto não se aplicava à situação da recorrente por esta ter 42 anos à data da prática dos factos, e por isso, não lhe aplicou o perdão de pena aí previsto.
3. Decisão:
Tudo visto e ponderado, com base nos argumentos de facto e de direito aduzidos, acordam os Juízes na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em negar provimento ao recurso interposto por AA.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs, sem prejuízo do disposto no art. 4º nº1 al. j) do Regulamento das Custas Judiciais.

Porto, 20/3/2024
Paula Guerreiro
Paula Natércia Rocha
Pedro Afonso Lucas.