ACIDENTE DE TRABALHO
FAT
CASO JULGADO
Sumário

O caso julgado não permite ao FAT discutir a existência do direito à pensão já fixada aos beneficiários e que a empregadora foi condenada a pagar, tal como não lhe é permitido discutir a existência e caracterização do acidente, nem o grau de incapacidade dos sinistrados.
(Sumário da autoria da Relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa:

Relatório
Na presente acção especial emergente de acidente de trabalho em que é sinistrado (morte) AA, beneficiários seus pais, BB e CC e entidades responsáveis Zurich Insurance Plc-Sucursal em Portugal e DD-Metalúrgica, Lda, veio o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 8.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril, requerer se procedesse à actualização das pensões dos pais do falecido, a cargo da empregadora, mais requerendo que esta comprovasse o pagamento de todas as pensões acrescidas de juros até à data do requerimento.
O requerimento foi autuado por apenso como Incidente de Actualização de Pensão.
Em 02.10.2023 foi proferido o seguinte despacho:
“Ponderando a decisão proferida e a responsabilidade da entidade patronal, conforme requerido, e ao abrigo do disposto nas Portarias 122/2012 de 03.05, 338/2013 de 21.11, 378-C/2013 de 31.12, Decreto-Lei 107/2015 de 16.06, Portarias 162/2016 de 09.06, 97/2017, de 07.03, 23/2018 de 18.01, 23/2019 de 17.01, 278/2020 de 04.12, 6/2022 de 04.01 e de 24-A/2023 de 09.01, actualizo as pensões anual e vitalícia devida a cada um dos beneficiários, sendo que a beneficiária CC atingiu a idade da reforma em 2011, por parte da entidade patronal o que já se considera, nos seguintes termos:
- no valor de 157,84€, para o montante de 159,73€, desde 1 de Janeiro de 2011 (1,2%);
- no valor de 159,73 €, para o montante de 165,48€, desde 1 de Janeiro de 2012 (3,60%);
- no valor de 165,48€, para o montante de 170,28€, desde 1 de Janeiro de 2013 (2,90%);
- no valor de 170,28€, para o montante de 170,96€, desde 1 de Janeiro de 2014 (0,4%);
- mantém-se no valor de 170,96€ desde 1 de Janeiro de 2015;
- no valor de 170,96€, para o montante de 171,65€, desde 1 de Janeiro de 2016 (0,4%);
- no valor de 171,65€, para o montante de 172,51€, desde 1 de Janeiro de 2017 (0,5%);
- no valor de 172,51€, para o montante de 175,61€, desde 1 de Janeiro de 2018 (1,8%);
- no valor de 175,61€, para o montante de 178,42€, desde 1 de Janeiro de 2019 (1,6%);
- no valor de 178,42€, para o montante de 179,67€, desde 1 de Janeiro de 2020 (0,7%);
- mantém-se no valor de 179,67€ desde 1 de Janeiro de 2021;
- no valor de 179,67€, para o montante de 181,47€, desde 1 de Janeiro de 2022 (1%);
- no valor de 181,47€, para o montante de 196,71€, desde 1 de Janeiro de 2023 (8,4%);
*
Notifique, devendo sê-lo a entidade empregadora para comprovar oportunamente o pagamento da pensão actualizada nos termos supra.
Cumpra o disposto no artigo 137º, do Código de Processo do Trabalho.
Diligências necessárias.”
Foi cumprido o disposto no artigo 137.º do CPT.
Por requerimento de 11.10.2023 foi junta aos presentes autos certidão da sentença datada de 22 de Maio de 2013, transitada em julgado em 17 de Junho seguinte, que declarou a insolvência da empregadora DD -Metalúrgica, Lda.
Face à declarada insolvência da empregadora, o Ministério Público promoveu que fosse declarada a incapacidade de pagamento por aquela das pensões vencidas e vincendas que são da sua responsabilidade e que, por se mostrarem preenchidos os pressupostos legais estabelecidos no art.º 1.º do Dec. Lei n.º 142/99, de 30 de Abril na actual versão, se accionasse o Fundo de Acidentes de Trabalho em substituição da empresa devedora.
Nessa sequência, em 17.11.2023 foi proferida sentença que finalizou com o seguinte dispositivo:
“Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
A) – Reconhecer que a entidade patronal DD - Metalúrgica, Lda. não tem capacidade económica para assegurar o pagamento das quantias devidas ao sinistrado.
B) – Determinar a intervenção do FAT a fim que o mesmo diligencie pelo pagamento das devidas aos beneficiários.
Notifique, sendo o FAT com indicação do nº de contribuinte do beneficiário e enviado cópia do despacho de homologação e auto de conciliação e respectivas actualizações.”
Inconformado com a decisão, o FAT recorreu e sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
“1 – Por auto de conciliação datado de 10-02-2012, foi a Zurich Insurance Plc – Sucursal em Portugal e a entidade empregadora DD – Metalúrgica, Lda. condenadas no pagamento aos ascendentes do sinistrado AA das prestações emergentes do acidente de trabalho que vitimou este último.
2 – Os pais do sinistrado auferiam uma pensão conjunta de 662,69€ (274,79€ + 387,90€, respetivamente).
3 – Nos termos do disposto no artigo 57º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, em caso de morte a pensão é devida aos ascendentes que, à data da morte do sinistrado, se encontrem nas condições previstas no artigo 49º, n.º 1, alínea d), da mesma lei.
4 – Prevê aquele último artigo que os ascendentes do sinistrado só poderão ser considerados como beneficiários do direito à pensão se os respetivos rendimentos individuais forem de valor inferior ao dobro da pensão social ou se, conjuntamente, não excederem o dobro desse valor à data do falecimento do sinistrado.
5 – À data da morte do sinistrado (29-08-2010), o quantitativo mensal das pensões de invalidez e velhice do regime não contributivo da segurança Social ascendia a 189,52€, (Portaria n.º 1457/2009, de 31 de dezembro).
6 – Uma vez que cada um dos ascendentes do sinistrado auferiam, individualmente, uma pensão de valor superior ao montante da pensão social fixada para o ano de 2010, os mesmos não reúnem os requisitos legais para que possam ser considerados como beneficiários do sinistrado.
7 – Assim, nunca poderiam ter sido fixadas prestações emergentes de acidente de trabalho aos ascendentes do sinistrado.
8 – Por este motivo, não poderá o ora recorrente ser responsável pelo pagamento de prestações que, originariamente, não poderiam estar a cargo da entidade empregadora.
9 – Por outro lado e face ao valor das pensões fixadas, as mesmas sempre seriam obrigatoriamente remíveis ao abrigo do disposto no artigo 75º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro.
10 – Pelo exposto, não poderá o FAT ser responsável pelo pagamento de qualquer quantia aos ascendentes do sinistrado.
11 – O auto de conciliação de 10-02-2021, homologado por sentença proferida em 17-02-2012 fixou as prestações a cargo da entidade empregadora e da seguradora, ou seja, relativamente às partes no processo.
12 – O FAT não foi parte no processo, pelo que o auto de conciliação e a sentença homologatória proferida apenas fazem julgado relativamente às partes que intervieram no processo e não em relação ao FAT.
13 – Só com a prolação da sentença a ordenar o pagamento das prestações decorrentes do acidente de trabalho é que nasce a obrigação do FAT.
14 – Se as prestações constantes da decisão inicial não foram fixadas em conformidade com o disposto nos artigos 49º, n.º 1, alínea d), e 57º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, é legítimo ao FAT suscitar essa desconformidade.
15 - O FAT, enquanto terceiro, não pode ser prejudicado pelo caso julgado de uma decisão proferida numa ação em que não participou nem foi chamado a intervir. E sendo um terceiro nesta ação, não teve oportunidade de defender os seus interesses.
16 – Afigura-se, pois, legítimo ao FAT invocar o erro existente no auto de conciliação de 10-02-2012 e, consequentemente, na sentença proferida em 17-02-2012, ao ter condenado a entidade empregadora nas prestações devidas aos ascendentes do sinistrado, quanto estes últimos não reuniam os requisitos ara serem considerados beneficiários legais do sinistrado.
17– Assim, não será o FAT responsável pelo pagamento de qualquer quantia aos ascendentes do sinistrado.
Nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida na parte em que condena o FAT no pagamento das prestações devidas aos pais do sinistrado, atendendo a que estes últimos não reúnem os requisitos legais para que possam ser considerados como beneficiários do sinistrado, determinando-se, assim, que o FAT não é responsável pelo pagamento de tais prestações.
Assim decidindo, farão V. Exas. JUSTIÇA!”
O Ministério Público contra-alegou e formulou as seguintes conclusões:
1. Não se nega o alegado pelo FAT, ou seja, que à data da respetiva atribuição os beneficiários não teriam direito às pensões que lhes foram atribuídas.
2. Não obstante, a atribuição de pensão aos beneficiários foi decidida no processo principal.
3. A sentença ali proferida transitou.
4. O objeto deste processo é apenas o chamamento do FAT em face da impossibilidade do pagamento do devedor originário.
5. A invocação de erro ou mesmo a revisão da atribuição da pensão terá de ser feita no processo principal e não nos presentes autos.
6. Deverá, pois, improceder o presente recurso.
E.D.”
Foi proferido despacho que admitiu o recurso.
Recebidos os autos neste Tribunal, pela relatora foi proferido despacho que determinou a baixa do processo ao Tribunal de 1.ª instância a fim de ser fixado valor à causa.
Fixado o valor da causa, subiram os autos a este Tribunal da Relação onde foram recebidos.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Objecto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (art.ºs 635.º n.º 4 e 639.º do CPC, ex vi do n.º 1 do artigo 87.º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608.º n.º 2 do CPC).
Assim, a única questão que se discute no presente recurso é a de saber se o FAT está abrangido pelo caso julgado da decisão que homologou as prestações fixadas aos ascendentes do sinistrado e, em caso negativo, se não é responsável pelo pagamento dessas mesmas prestações dado, segundo alega, aqueles não reunirem os requisitos legais para que possam ser considerados como beneficiários
Fundamentação de facto
Com relevância para a decisão, para além dos factos que resultam do relatório que antecede, ainda estão provados os seguintes factos:
1- Nos autos emergentes de acidente de trabalho, em 10.02.2012 realizou-se a tentativa de conciliação constando do respectivo auto, além do mais, o seguinte:
“PELOS BENEFICIÁRIOS foi dito que:
Em 24 de Agosto de 2010, pelas 07H30, no ..., em ..., o sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho quando, mediante o salário ilíquido de €676,75 x 14 meses + €160,60 X 11 (subsídio de alimentação) + €35,00 x 11 (média mensal de trabalho suplementar), trabalhava como serralheiro de 3ª por conta de DD - Metalúrgica, Lda., NIF - ..., com sede no ....
Que o acidente consistiu em ter sido colhido por um veículo automóvel quando aguardava o transporte para se dirigir para o local de trabalho.
Do referido acidente resultaram as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 42 a 47 que lhe determinaram a morte ocorrida no dia 29 de Agosto de 2010.
A responsabilidade emergente de acidentes de trabalho apenas estava transferida para a companhia de seguros Zurich Insurance Plc - Sucursal em Portugal pelo salário de €647,88 x 14 + €160,60 x 11 (subsídio de alimentação).
A única fonte de rendimento dos beneficiários é uma pensão mensal conjunta de €662,69 (€274,79 + €387,90), conforme documentos juntos a fls. 71 e 72
Pelo que reclamam as seguintes prestações:
1. Para a beneficiária CC, e a partir do dia seguinte ao falecimento, a pensão anual de €1743,92 (15 % da retribuição do sinistrado) até atingir a idade da reforma por velhice e 20 % da retribuição do sinistrado a partir dessa idade ou a partir do momento em que ficar afectada por doença física ou mental que afecte sensivelmente a sua capacidade de trabalho – art.ºs 49º, nº 1, al. d), 57º, nº 1, al. d) e 61º, nº 2 da Lei 98/2009, de 04/09.
Dessa pensão será responsável a companhia seguradora na quantia de € 1625,54 (93,212 %) e a entidade patronal responderá por € 118,38 (6,788 %).
2. Para o beneficiário BB, e a partir do dia seguinte ao falecimento, a pensão anual de €2325,22 (20 % da retribuição do sinistrado), atento a que, à data do sinistro, já tinha atingido a idade da reforma.
Dessa pensão será responsável a companhia seguradora na quantia de €2167,38 (93,212 %) e a entidade patronal responderá por €157,84 (6,788 %).
3. Para ambos, e em conjunto, a indemnização global pelo período de ITA (6 dias) no montante de €122,13, sendo €113,19 da responsabilidade da seguradora e € 8,94 da entidade patronal.
Pelo Legal representante da Companhia de Seguros foi dito que:
Aceita a existência e caracterização do acidente acima descrito como de trabalho, aceita o nexo de causalidade entre este e as lesões descritas no relatório de autópsia e aceita a transferência da responsabilidade pela retribuição de €647,88 x 14 + €160,60 x 11 ( salário base e subsídio de alimentação), pelo que se concilia nos termos propostos pelos beneficiários legais do sinistrado.
Pela legal representante da entidade patronal foi dito que:
A sua representada aceita a existência e caracterização do acidente acima descrito como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões descritas no relatório de autópsia e aceita a responsabilidade pelo salário não transferido para a seguradora, pelo que se concilia nos termos propostos pelos beneficiários legais do sinistrado.
Seguidamente, pelo Digno Magistrado do Ministério Público foi proferido o seguinte:
D E S P A C H O
Dou as partes por conciliadas, devendo os autos serem remetidos à Mma Juíza para homologação.”
2- Em 17.02.2012 foi proferido despacho que homologou o acordo exarado na tentativa de conciliação.
Fundamentação de direito
Debrucemo-nos, então, sobre a questão de saber se o FAT está abrangido pelo caso julgado da decisão que homologou as prestações fixadas aos ascendentes do sinistrado e, em caso negativo, se não é responsável pelo pagamento dessas mesmas prestações dado aqueles, segundo alega, não reunirem os requisitos legais para que possam ser considerados como beneficiários
A sentença recorrida fundamentou-se no seguinte:
“O artigo 1º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei nº 142/99, de 30 de Abril, na sequência do disposto no artigo 39º, n.º1, da LAT, determina que compete ao FAT garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidente de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação de bens, não possam ser pagas pela entidade responsável.
O direito à reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho é um direito absolutamente irrenunciável e de exercício necessário, e para evitar que o trabalhador diminuído ou incapacitado em consequência de lesões sofridas num acidente tenha de aguardar, durante anos, que lhe sejam pagas as prestações indemnizatórias que lhe tenham sido fixadas, pondo seriamente em risco a sua dignidade e a sua própria subsistência, a lei impõe a intervenção do FAT, sempre que a entidade responsável, por motivo de incapacidade económica ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possa pagar essas prestações (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24 de Junho de 2009, www.dgsi.pt).
Desta forma, sendo certo que a entidade patronal se encontra extinta mostra-se objectivamente caracterizada a sua incapacidade económica para satisfazer a obrigação para com o ora sinistrado, pelo que competirá ao FAT garantir o pagamento dessas mesmas prestações.”
Sustenta o Recorrente não ser responsável pelo pagamento das prestações estribando-se, em suma, nos seguintes fundamentos: as pensões fixadas aos ascendentes do sinistrado não são legalmente devidas, donde não pode o FAT ser responsável pelo pagamento de uma prestação que, originariamente, não podia estar a cargo da empregadora; face ao valor das pensões fixadas estas sempre seriam obrigatoriamente remíveis; o FAT não foi parte no processo pelo que o auto de conciliação e a decisão homologatória apenas fazem caso julgado entre as partes que intervieram no processo; o FAT enquanto terceiro não pode ser prejudicado pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participou, nem foi chamado a intervir; e que só com a prolação da sentença a ordenar o pagamento das prestações é que nasce a obrigação do FAT.
Em abono da sua posição, o Recorrente chamou à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2013, proferido no processo n.º 631/03.7TTGDM-A.P1.S1 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.09.2016, proferido no processo n.º 2577/14.4TTLSB.L.
O Ministério Público contra-alegou e, não negando que os beneficiários não teriam direito às pensões que lhe foram atribuídas, defende que a sentença proferida nos autos principais já transitou em julgado, que o objecto destes autos se cinge ao chamamento do FAT face à comprovada incapacidade económica da empregadora e que a invocação de erro ou a revisão da atribuição da pensão terá de ser feita no processo principal. Concluiu pela improcedência do recurso.
Vejamos:
Conforme resulta dos autos, na sequência de acordo obtido na tentativa de conciliação, foi proferida sentença homologatória fixando-se, assim, o direito dos ascendentes do sinistrado a uma pensão.
É manifesto que a decisão homologatória transitou em julgado (cfr. artigo 628.º do CPC).
Também resulta à evidência que o Fundo de Acidentes de Trabalho (FAT) não foi parte nos autos de acidente de trabalho, não interveio na tentativa de conciliação, nem no mencionado acordo e que interveio nos autos após o trânsito em julgado daquela decisão.
O artigo 39.º n.º 1 da Lei 100/97 de 13 de Setembro estabelecia que “A garantia do pagamento das pensões por incapacidade permanente ou morte e das indemnizações por incapacidade temporária estabelecidas nos termos da presente lei que não possam ser pagas pela entidade responsável por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, serão assumidas e suportadas por fundo dotado de autonomia administrativa e financeira, a criar por lei, no âmbito dos acidentes de trabalho, nos termos a regulamentar.”
Nessa sequência, o artigo 1.º n.º 1 al. a) do DL n.º 142/99, de 30 de Abril, criou o Fundo de Acidentes de Trabalho, dotado de personalidade judiciária e de autonomia administrativa e financeira (FAT) ao qual compete, além do mais, “Garantir o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa, ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável;”
Assim, a intervenção do FAT sempre ocorrerá depois de transitada em julgado a decisão que definiu os direitos dos beneficiários de acidente de trabalho, o que suscita a questão de saber como conjugar os efeitos do caso julgado com os interesses do FAT que não interveio na acção no momento em que foram fixados aqueles direitos e, nessa medida, não se pôde pronunciar sobre os mesmos.
Nos termos do n.º 1 do artigo 619.º do CPC (anterior artigo 671.º), “Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.”
Consagra esta norma o chamado caso julgado material.
A propósito do caso julgado material escrevem Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, no “Manual de Processo Civil”, 2.ª Edição, Revista e Actualizada de acordo com o Dec. Lei 242/85, Coimbra Editora, Limitada, pág. 705,” O caso julgado material tem força obrigatória dentro do processo e fora dele, impedindo que o mesmo ou outro tribunal, ou qualquer outra autoridade, possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada.”
De acordo com o artigo 620.º do CPC (anterior artigo 672.º), as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (n.º 1), excluindo-se os despachos previstos no artigo 630.º (n.º 2). É o denominado caso julgado formal.
“O caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o juiz possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa.” - Obra e autores citados, pág. 705.
Sobre o alcance do caso julgado estatui o artigo 621.º do CPC que “A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique. “
No presente caso, a decisão homologatória do acordo obtido na tentativa de conciliação constitui caso julgado material tendo, por isso, força obrigatória dentro do processo e fora dele, mas dentro dos limites fixados nos artigos 580.º e 581.º do CPC, o que significa que, relativamente aos seus limites subjectivos, em princípio, apenas produz efeitos relativamente às partes que intervieram no processo.
Como se afirma na citada obra, págs. 720 a 722, “A regra geral aplicável à eficácia subjectiva do caso julgado é a de que este só produz efeitos em relação às partes.
A norma é, por conseguinte, a da eficácia relativa do caso julgado.
(…).
Só as partes intervieram ou tiveram possibilidades de intervir no processo, para defender os seus interesses, alegarem e provarem os factos informativos do seu direito. Por isso, é justo e legítimo que o caso julgado lhes seja oponível, isto é, uma vez transitada em julgado a decisão proferida na acção, nenhuma delas possa requerer nova apreciação jurisdicional sobre as pretensões objecto da decisão.
Os terceiros, não participando no processo, não tiveram oportunidade de defender os seus interesses, que podem naturalmente colidir, no todo ou em parte, com os da parte vencedora. Não seria, por isso, justo que, salvo em casos excepcionais, a decisão proferida numa acção em que eles não intervieram lhes fosse oponível com força de caso julgado, coarctando-lhes total ou mesmo só parcialmente, o seu direito fundamental de defesa.
A inoponibilidade do caso julgado a terceiros representa, assim, um mero corolário do princípio do contraditório.
(…).
A identidade dos sujeitos relevante para o caso julgado não é tanto a simples identidade física, como a identidade jurídica.”
E quanto à identidade jurídica das partes, escreve-se no Acórdão deste Tribunal e Secção de 14.09.2016, proferido no processo n.º 2577/14.4TTLSB.L1, cremos que inédito, no qual se estriba o Recorrente: “É certo que como salienta o mesmo autor, o que releva não é a identidade física, mas a identidade jurídica. Todavia, embora o FAT intervenha de algum modo em substituição de um dos responsáveis - o empregador - não há identidade jurídica entre ambos.
Em termos gerais o FAT intervém ope legis para garantir o pagamento das prestações por acidente de trabalho, sempre que, por motivo de incapacidade económica objectivamente caracterizada em processo judicial de falência ou processo equivalente, ou processo de recuperação de empresa (que em termos actuais, se terá de entender como processo de insolvência ou processo especial de revitalização), ou por motivo de ausência, desaparecimento ou impossibilidade de identificação, não possam ser pagas pela entidade responsável (art.1.º n.º 1 al. a) do DL 142/99, de 30/4).”
E o mesmo aresto acompanha o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2013, proferido no processo n.º 631/03.7TTGDM-A.P1.S1 que também vem referenciado pelo Recorrente, consultável em www.dgsi.pt e em cujo sumário se escreve: “(…) II - Não tendo o FAT tido qualquer intervenção na acção de acidente de trabalho na qual foram definidos os direitos das beneficiárias em consequência de acidente de trabalho mortal do sinistrado, não está aquele fundo abrangido pelo caso julgado que se formou quanto aos valores das pensões que lhes foram reconhecidas, porquanto este formou-se apenas entre as partes que nessa acção intervieram.
IV- Da evolução legislativa atinente à responsabilidade do FAT resulta inequivocamente que nem sempre esta terá que coincidir com os direitos que tenham sido atribuídos aos sinistrados ou aos seus beneficiários, mesmo que cobertos pelo caso julgado, pelo que a posição do FAT, quando chamado a intervir para garantia dos direitos dos sinistrados ou seus beneficiários, pode não ser a mesma da entidade responsável.”
Sucede que, no citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, a situação analisada reportava-se a um manifesto lapso de cálculo existente no valor da pensão fixada a cargo de um dos co-responsáveis e no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocava-se que os valores das pensões a cargo da empregadora tinham sido incorrectamente calculados.
Rectas contas, naqueles arestos questionava-se erros no cálculo das pensões, o que equivale a dizer que, em nenhum desses casos, diferentemente do que sucede nestes autos, foi posta em causa a existência do direito às pensões fixadas aos beneficiários do sinistrado da responsabilidade da empregadora, por decisão transitada em julgado. Donde, as situações não são similares.
Com pertinência para a decisão, atente-se no que se escreve no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.02.2022, proferido no Proc. n.º1755/15.3T8CTB-D.C1.S1, consultável em www.dgsi.pt,: “No caso da responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho, a secção social deste Supremo Tribunal já se pronunciou no sentido de que: Não tendo o FAT tido qualquer intervenção na ação de acidente de trabalho na qual foram definidos os direitos das beneficiárias em consequência de acidente de trabalho mortal do sinistrado, não está aquele fundo abrangido pelo caso julgado que se formou quanto aos valores das pensões que lhes foram reconhecidas, porquanto este formou-se apenas entre as partes que nessa ação intervieram” – Acórdão de 11.12.2013, proferido no processo 631/03.7TTGDM.A.P1.S1 - 4.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
Nos termos conjugados dos artigos 283.º, n.º 6 do Código do Trabalho, artigo 82.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (NLAT) e artigo 1.º, n.º 1, alínea a) do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril, o Fundo de Acidentes de Trabalho garante o pagamento das prestações que forem devidas por acidentes de trabalho sempre que, por motivo de incapacidade económica, não possam ser pagas pela entidade responsável. A responsabilidade do Fundo de Acidentes de Trabalho é assim subsidiária, visando suprir a eventualidade de o sinistrado não poder obter o ressarcimento dos danos resultantes do acidente de trabalho por virtude de uma situação objetiva de impossibilidade material que lhe não seja imputável.
A intervenção do Fundo de Acidentes de Trabalho no processo é, por isso, posterior ao transito em julgado da sentença que definiu os termos da responsabilidade da entidade empregadora. Sendo um terceiro nesta ação, o Fundo de Acidentes de Trabalho não teve a oportunidade de defender os seus interesses.
A decisão que determina que o Fundo de Acidentes de Trabalho se substitua ao responsável principal cria na esfera jurídica daquele a obrigação de pagar as prestações ao Sinistrado. Embora, seja genericamente garante do pagamento das prestações devidas em caso de acidente de trabalho, até esta decisão inexiste qualquer relação jurídica entre o Fundo de Acidentes de Trabalho e o Sinistrado. Tal não significa que o FAT possa contestar todos os aspetos da decisão.
Tem sido unânime o entendimento de que o Fundo de Acidentes de Trabalho não pode discutir a existência do acidente de trabalho, das suas consequências (períodos e grau de incapacidade), nem a responsabilidade da entidade empregadora (designadamente a inexistência de contrato de seguro válido, o facto do valor retribuição do trabalhador ser superior ao valor indicado à seguradora ou a culpa do empregador na ocorrência do acidente).
Todavia, deverá poder discutir se estão verificados os pressupostos da transferência da responsabilidade (incapacidade económica da entidade empregadora) e os concretos termos em que essa transferência deve ocorrer, designadamente se o âmbito e termos de responsabilização da entidade empregadora excedem ou não os termos e limites de responsabilização do Fundo de Acidentes de Trabalho, previstos no Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de abril.
O entendimento contrário implicaria que o Fundo de Acidentes de Trabalho pudesse ser confrontado com o pagamento de prestações que o legislador entendeu não colocar a seu cargo. Com efeito, nos casos, como o dos autos, em que se considerou que o acidente ocorreu em resultado da inobservância por parte da entidade empregadora das regras sobre segurança e saúde no trabalho, o artigo 1.º, n.º5 do Decreto-Lei n.º 142/99, de 30 de Abril restringe o âmbito da responsabilidade do Fundo às prestações que seriam devidas se não houvesse responsabilidade agravada.
Em face do exposto, impõe-se concluir que o caso julgado da sentença condenatória da entidade empregadora não impede o Fundo de Acidentes de Trabalho de discutir a extensão da sua responsabilidade.”
E como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17.11. 2017, consultável em www.dgsi.pt “(…) III - Sendo a obrigação do FAT subsidiária e de garantia, ocupando o mesmo o lugar da entidade patronal, esta condenada a pagar determinadas prestações, não existe qualquer fundamento legal para se voltar a discutir qual a entidade responsável pelo seu pagamento, aliás, se tal ocorresse assistiríamos à violação do caso julgado constituído pela decisão proferida nos presentes autos.”
À luz do entendimento plasmado nos citados arestos, que acompanhamos, entendemos ser de afirmar que o caso julgado também não permite ao FAT discutir a existência do direito à pensão já fixada aos beneficiários e que a empregadora foi condenada a pagar, tal como não lhe é permitido discutir a existência e caracterização do acidente, nem o grau de incapacidade dos sinistrados. É que, naquele caso, como nestes, não está em causa “a extensão da responsabilidade do FAT”
Ao FAT cabe apenas discutir se estão verificados os pressupostos da sua intervenção definidos no artigo 1.º do DL n.º 142/99, de 30 de Abril e no artigo 82.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro, o que não é o caso dos autos.
Improcede, pois, o recurso.
Decisão
Face ao exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.
Sem custas por delas estar isento o Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 24 de Abril de 2024
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Sérgio Almeida
Paula Dória Pott