JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
MEIOS DE PROVA
MENSAGEM DE WHATSAPP
Sumário

I. É impossível a manutenção da relação laboral por motivo imputável ao trabalhador quando essa manutenção deixa de poder exigir-se ao empregador, inexistindo outra sanção suscetível de sanar a crise contratual grave aberta com aquele comportamento.
II. É esse o caso quando o trabalhador põe em causa seriamente o bom ambiente de trabalho físico e moral que deve existir (art.º 127/1/c, CT), em termos tais que o mero ignorar desse comportamento poderá tornar a empregadora responsável por consequências que de aí possam advir.
III. Não viola a intimidade da reserva da vida privada a empregadora que tem em conta mensagens ameaçadoras que o trabalhador enviou a uma colega via WhatsApp, no âmbito de uma relação íntima que mantinham, e que por esta foram livremente entregues à empregadora.
IV. Tal prova não é ilícita e pode ser valorada na sentença.
(Sumário da autoria do Relator)

Texto Integral

Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa.
I.
A) Autor (designado abreviadamente também por A.) e recorrente: AA
Ré (R.): XX, S.A..
Tendo o trabalhador apresentado formulário relativa à impugnação do despedimento e não havendo acordo, a ré apresentou articulado motivador.
O trabalhador contestou a licitude do despedimento, sustentando que os factos respeitam apenas à sua vida privada, não podendo as mensagens trocadas entre si e a trabalhadora ser utilizadas para efeitos disciplinares, sendo certo que nunca manteve qualquer relacionamento mais íntimo com a trabalhadora no local de trabalho e que após a transferência da trabalhadora para Sintra os contactos que mantiveram foram sempre pessoais, sem qualquer interferência nos seus locais de trabalho. Fundamentos com que demanda o reconhecimento da ilicitude do seu despedimento. Deduziu pedido reconvencional contra a empregadora, reclamando o pagamento de €4.177,65 a título de abono para falhas, que nunca lhe foi pago, assim como as retribuições intercalares, no valor de €3.902,85 [à data da contestação], €23.419,80, a título de indemnização em substituição da reintegração e €20.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.
A empregadora contestou, alegando que a retribuição base do trabalhador a ter em consideração para efeitos de eventual indemnização é apenas de €1.062,00; que não tem direito ao reclamado abono para falhas por não se encontrar prevista na descrição das suas funções qualquer referência à necessidade de movimentar dinheiro nem o mesmo se enquadrar nas categorias que, nos termos do IRCT, têm direito a esse abono; e que face à licitude do despedimento não se verificam os pressupostos da indemnização em substituição da reintegração nem dos reclamados danos não patrimoniais, por inexistência de facto ilícito. Fundamentos com que pediu a improcedência da reconvenção.
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Saneados os autos e efetuado o julgamento o Tribunal a quo julgou a ação improcedente e lícito o despedimento.
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O A. não se conformou e recorreu, concluindo:
I. Não se conforma com a decisão da sentença. E nem com as decisões que, conhecendo da possibilidade ou impossibilidade, de consideração dos meios de prova juntos ao processo disciplinar a fls. 9 a 20 (73v a 79 dos autos), que, demonstram o teor das mensagens trocadas entre o Recorrente e, na data da ocorrência, sua concubina, BB e, ainda, da verificação ou não, da ocorrência de litigância de má-fé, concluíram:
Em suma, nada obsta à valoração, no caso vertente do conteúdo das mensagens trocadas entre o trabalhador e BB, por esta entregues, de forma voluntária, à empregadora (e por esta última juntas aos autos).
Muito menos, com a consideração de provado quanto aos segmentos de facto que indicará.
II. O recurso por objecto:
Matéria de direito
Saber se:
• resultando dos documentos a fls. 9 a 20 do processo disciplinar (fls. 73v a 79 dos autos), que os mesmos, representam o teor das mensagens trocadas entre o Recorrente e BB, fora do seu horário de trabalho e, do local de trabalho, sobre factos da vida privada e íntima de ambos, fazem ou não verificar o conceito jurídico de prova nula e, como tal, de inadmissível valoração.
• uma vez expurgados os erros de julgamento em que recaiu o Tribunal a quo, sobre os diversos pontos da matéria de facto, a douta decisão por via da qual reconheceu e declarou lícito o despedimento com justa causa deve ser mantida ou, ao invés revogada e substituída por acórdão em que se reconheça e declare a ilicitude daquele e, ainda,
• da conduta processual da Ré, revelada pelos autos, se extrai ter esta abusado do direito substantivo de instaurar e fazer seguir procedimento disciplinar laboral e, dessa forma, ter adoptado uma conduta revestida de licitude, quando bem conhecia que assim não era e, dessa forma, ter feito verificar, o conceito adjectivo de litigância de má-fé.
E, se assim se vier a concluir, se deverá ser revogada a decisão que declarou não se vislumbrar a ocorrência de tal tipo de litigância.
Matéria de facto
Pela verificação de diversos erros de julgamento em que incorreu o Tribunal a quo, no que concerne à consideração de provado e/ou não provado, quanto aos pontos de facto que se mencionarão.
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III. Valorou Prova Nula
O Tribunal a quo, tal como se demonstrou no capítulo A das alegações - articulados, 7 a 16, para a consideração de provado, certamente por erro de interpretação de direito, valorou o teor dos documentos juntos a fls. 9 a 20 do processo disciplinar (fls. 73v a 79 dos autos)
Ora, resultando do teor dos anteditos que se trata de comunicações pessoais e privadas, a sua valoração viola de forma frontal o disposto nos art.º 26.º e 32.º, n.º 8, da C.R.P. e, ainda, do plasmado nos art.º 16.º e 22.º do Código do Trabalho e, como tal constituem prova ilegal por nula.
Pelo que deverá excluir-se do rol de factos provados, porquanto assenta em prova nula, o segmento fáctico vertido no ponto 30. na parte onde se pode ler
“nomeadamente através de conversas e do envio de mensagens intimidatórias”
e, ainda, todos os segmentos de facto plasmados nos pontos 37 a 39 do rol de factos provados.
E, em consequência, ser reconhecida a ilicitude do despedimento do Recorrente.
Contudo e, à cautela, não vá o supra não vir a ser o douto entendimento de V. Exas, então:
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IV. Da formulação de pedido de admissão, na fase de recurso da junção de documentos.
Tal como se demonstrou no Capítulo B, (articulados 18 a 29) cada um dos documentos que se juntaram ao recurso, e, cuja admissão de junção se peticiona, são objectivamente supervenientes - i.é, foram lavrados em momento posterior ao encerramento da discussão da causa e são relevantes para a sua decisão.
Pelo que e, em face do vertido nos art.º 425.º, 651 e 662.º n.º 1, do C.P.C., aplicáveis ex vi art.º 1.º, n.º 2, alínea a), do C.P.T, se conclui pelo preenchimento de todos os requisitos legais de que depende a junção de documentos na fase de recurso, pelo que se peticiona que se admita a junção dos preditos documentos para que seja possível, valorá-los e, da sua valoração extraídas as devidas consequências.
V. Dos factos instrumentais que se extraem da prova documental.
Extraindo-se dos meios de prova apreciados, no Capítulo C (articulados 30 a 32) as conclusões fácticas aí reveladas, não pode o Recorrente deixar de afirmar que, a decisão proferida enferma de erro na apreciação da prova.
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VI. Da demonstração da verificação de erros na apreciação da prova
1. Encontram-se incorrectamente julgados, a consideração de provado dos segmentos de facto plasmados nos seguintes pontos:
➢ ponto 30, na parte onde se pode ler “nomeadamente através de conversas e do envio de mensagens intimidatórias” e, ainda,
➢ todos os segmentos de facto plasmados nos pontos 37 a 39 do rol de factos provados.
Pois, pelas razões de direito mais bem explicitadas no Capítulo A, a consideração de provado foi alcançada através de prova nula. Pelo que se peticiona se excluam os preditos segmentos de facto do rol de provado e se incluam no rol dos não provados.
2. Pelo Tribunal a quo foi dado como provada no ponto 20, do rol de factos provados a seguinte factualidade:
20. BB é funcionária da empregadora desde 3/11/2018, tendo iniciado as suas funções de empregada de mesa na unidade do ... de Alfragide, Unidade na qual esteve até agosto de 2020, ocasião em que foi transferida para a unidade da XX de Cascais e posteriormente para Sintra (art.º 58 do articulado da empregadora - assente por acordo das partes)
Apenas por erro na apreciação do teor da Contestação se poderá ter a predita factualidade, assente por acordo de partes. Na verdade, os únicos factos admitidos por acordo foram os vertidos nos articulados 46 a 48 do articulado Motivador e, por tal, bem julgados provados e plasmados nos pontos 9 a 11 da matéria de facto dada como provada. Todos os demais foram impugnados.
Sabendo-se que toda a factualidade dada como provada no ponto 20 teve por base um inexistente “acordo das partes,” deveria em princípio, por assim o impor, o teor da Contestação ao articulado motivador, (com maior rigor o vertido nos articulados 1.º, 2.º, e 26 da Contestação.), serem tidos por não provados.
Em princípio, porque, apesar de assim ter ocorrido, o certo é que apenas, o primeiro segmento fáctico plasmado no predito ponto, a saber:
BB é funcionária da empregadora desde 3/11/2018
E a expressão “empregada de mesa”.
Encontra-se incorrectamente julgado e por isso se impugna.
Por assim o impor, desde logo, o teor do doc. n.º 1 ora junto, na parte onde se lê:
Para os devidos efeitos, a XXM, S.A., sociedade anónima com sede na ... pessoa colectiva n.º .... Declara que BB, portuguesa, portadora do cartão de cidadão número ..., e contribuinte ..., é funcionária da empresa desde o dia 3/11/2018, com categoria profissional de empregada de balcão 2ª, com contrato de trabalho sem termo.
Porém, conhecendo-se o que se extrai do:
• Do depoimento prestado, por BB, no dia 6.10.2022 e gravado através do Sistema Citius, com início às 10:36:15 e termo às 11:15:40 mais concretamente,
➢ quanto, ao facto de ser funcionária da XX, S.A. - (minuto 00:29) “ainda sou”
➢ de qual seja a sua categoria profissional – (minuto 03:59) – “Empregada de balcão”
➢ quanto, ao local de trabalho – segundos subsequentes- “... Sintra”
➢ quanto, ao momento de início da sua prestação laboral - segundos subsequentes- Novembro de 2018
➢ quanto, a quem seria o seu superior hierárquico – segundos subsequentes - “AA”
➢ quanto, à transferência- (minuto 33:38) – “….queriam-me transferir para Cascais. Eu na altura tinha dito que era longe mas, pronto, disseram que era necessário e eu fui. “
• E do depoimento de parte, do Autor, prestado, no dia 6.10.2022 e gravado através do Sistema Citius, com início às 14:58:28 e termo às 15:41:05 mais concretamente:
➢ Quanto, ao momento em que iniciou a sua prestação de trabalho em Alfragide, (minuto 04:43) – “Eu, entrei na XX ... de Alfragide em 01.12.2018, na altura a trabalhadora já estava lá a trabalhar desde a altura até ao momento em que houve suspeita ou, pelo menos, supuseram que havia qualquer coisa”
➢ Quanto, ao momento da transferência de BB, -6:33 - Existiu após a saída da unidade de Alfragide existe, estamos a falar a partir de Agosto de 2020
Concatenados com os demais elementos de prova constantes dos autos melhor por exaustivamente analisados nos articulados 30 e 35, (essencialmente o teor dos docs. n.º 3, 4, e 5 junto com a contestação, concatenados com os docs n.º 1 e 2, junto com as alegações), tem necessariamente de se admitir que toda a concreta prova mencionada determina que se revogue o vertido no ponto 20 da matéria de facto provada (considerando-se não provado o primeiro segmento de facto, nele plasmado, a saber: BB é funcionária da empregadora e, ainda “empregada de mesa)”, devendo em consequência fixar-se ao predito facto, a seguinte redacção:
20. BB foi funcionária da empregadora desde 03.11.2018, tendo iniciado as suas funções de empregada de balção na Unidade de Alfragide na qual esteve até Agosto de 2020, ocasião em que foi transferida para a Unidade de Cascais e, posteriormente para Sintra.
3. Pelo Tribunal a quo foi dado como provada no ponto 21 a seguinte factualidade:
“21. BB, foi transferida da XX ... de Alfragide para Cascais (de ode veio posteriormente a ser transferida para Sintra) a pedido do trabalhador, seu superior hierárquico. (art.º 59 do articulado do empregador – assente por acordo das partes)
Apesar de assim ter ocorrido, o certo é que, o predito ponto da matéria de facto encontra-se incorretamente julgado por provado e por isso se impugna, pois que, resultando do próprio texto da sentença ter a consideração de provado sido aportada na existência de um putativo acordo das partes, como se demonstrou na análise precedente, toda a factualidade deveria ser tida por não provada.
Contudo e, porquanto,
• Do Depoimento de parte, do Autor, (minuto 08:13) retira-se que
“- Eu pedi a transferência dela, Agosto, porque disse que a minha mulher recebeu uma mensagem provada a dizer que há uma suposta relação em mensagem privada com esta trabalhadora. A primeira coisa que fiz eu chamei o meu superior hierárquico que era o nosso supervisor na altura coloquei em cima da mesa aquilo que era depois eu pedi o conselho dele neste caso que era o CC de uma suposta transferência, depois convidam o trabalhador. E,
• Do Depoimento da testemunha DD, prestado, no dia 6.10.2022 e gravado através do Sistema Citius, com início às 11:26:19 e termo às 11:43:16 extrai-se,
Ao minuto 10:48 e seguintes:
➢ Quanto, aos locais da transferência de BB “Tive envolvido isso eu recordo-me e inicialmente não foi para Sintra, inicialmente a BB foi para Cascais e, depois para Sintra”
➢ Quanto a quem e às razões pelas quais as transferências foram solicitadas. “- Ia dizer para meio de 2020, sim é possível. Sei que na Altura o AA me contactou a pedir transferência, porque é algo que todos os gerentes o fazem se, algum colaborador não estava a correr bem na loja de alguma coisa não estiver do agrado, por exemplo a morada de um colaborador que o colaborador que mudou de residência. E, o que ele me falou foi que queria a transferência porque andavam boatos na loja de que ele e a BB tinham uma relação. Isso eu recordo-me de ele dizer coisa do género, vê lá que a BB tem a idade quase de ser minha filha. E, eu lembro-me que na altura ela foi transferida para Cascais, porque precisávamos, tínhamos necessidade de colaboradores em Cascais, pelas dificuldades nos transportes dela, que ela apresentou, nós facilitamos e ela foi para Sintra. Ela teve primeiro em Cascais meia dúzia de dias e, como não estava a correr bem, transferiram-na para Sintra.”
Tem necessidade de concluir que, os preditos meios de prova, obrigam a que se revogue a redacção fixada e, em sua substituição se fixe ao predito facto, a seguinte:
21. BB, foi transferida, a pedido do trabalhador, seu superior hierárquico, da XX ... de Alfragide para Cascais (de onde veio posteriormente a ser transferida, a seu pedido, para Sintra).
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VII. Da litigância de má fé da R.
Pelas razões de facto e direito vertidas no Capítulo E (articulados 38 a 46) resulta demonstrado, s.m.o., ter a R. litigado de má-fé. Assim, deverá ser revogado o segmento decisório a pág. 35, onde a sentença declara não vislumbrar que qualquer das partes tenha litigado de má-fé, substituído por acórdão onde se reconheça e declare ter a R. litigado de má-fé, e, em consequência, ser condenada em multa exemplar nos termos do art.º 542.º n.º 1 do C.P.C..
VIII. Da absoluta necessidade de revogação da decisão final que declarou lícito o despedimento do Recorrente.
Expurgando-se os erros de julgamento em que recaiu o Tribunal a quo, quanto à matéria de facto uma certeza nos fica em face do que se demonstrou no Capítulo F: somente os factos descritos nos pontos 21, 22 (com a redacção supra indicada) e, ainda, o vertido no ponto 24 (com a redacção que nele se mostra vertida), teriam sido praticados pelo Recorrente, no seu local de trabalho e horário de trabalho. Todos os demais vertidos na sentença enquanto provados (i.é.com excepção do segmento fáctico inscrito no ponto 30 na parte onde se pode ler “nomeadamente através de conversas e do envio de mensagens intimidatórias” e, ainda, todos os segmentos de facto plasmados nos pontos 37 a 39 do rol de factos provados., têm de se ter por não provados pelas razões suprarreferidas.
Têm de ser considerados factos extralaborais (por absoluta falta de alegação e demonstração de terem sido praticados pelo Recorrente, no seu local de trabalho e /ou horário de trabalho) e, como tal actos não só da vida privada, como íntima e, absolutamente reservada do Recorrente. Ora, tal, como resulta da matéria de facto que, efectivamente se tem de ter por provada, os reflexos dos actos da vida privada do autor, incidiram sobre pessoa diversa da R. (XX, S.A.)
Pois que, no momento da sua prática, (fev e março de 2021), BB já não era sua trabalhadora, mas sim da XXM, S.A..
Tudo a concluir que, não tendo a R., logrado provar, apesar de maliciosamente haver alegado ter a conduta do Recorrente tido reflexos sobre uma sua trabalhadora, e como tal na sua estrutura - cfr. se extrai do articulado 109.º do articulado Motivador), não podem os ditos reflexos ser valorados, porquanto recaíram sobre pessoa, ainda que jurídica, diversa da sua (sobre a XXM, S.A.). Mais, sabendo-se pelo que resulta do ponto 23 em concatenação com o 24, que a conduta descrita neste último terá sido preparada pelo Recorrente entre o mês de Dezembro de 2018 e início de 2019, e que o processo disciplinar foi instaurado em 19.03.2021, conhece-se sem necessidade de maiores considerações, que, a predita conduta, por prescrita, não pode ser valorada.
Significa o supra que, ao contrário do que foi o entendimento do tribunal a quo, a conduta do Recorrente que se extrai da concatenação da factualidade dada como provada nos pontos 21 e 22 (apesar de censurável) é manifestamente insuficiente, para bem fundar a decisão de despedimento proferida.
Remata impetrando que se dê por provado tudo quanto peticionou, se revogue a sentença, substituída por acórdão reconhecendo o seu despedimento ilícito e se condene a R. nos termos da al. b.1) e b.3) do petitório da Contestação.
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Contra-alegou a ré, pedindo a improcedência do recurso e concluindo:
C. O recorrente alega, por um lado, que o Tribunal a quo valorou prova ilícita, e por outro que incorreu em erro na apreciação de prova.
D, E. Entende o A. que não resultou provado que qualquer das mensagens constantes dos documentos juntos a fls. 73 a 79 dos autos, tenham sido enviadas, recebidas e/ou respondidas pelo Recorrente, a partir do seu local de trabalho e durante o seu horário de trabalho, acrescentando que do teor das mensagens se extraem factos da sua vida privada e íntima, bem como da BB. Conclui pela inadmissibilidade da valoração deste meio de prova, porquanto qualifica-o como prova ilegal e, consequentemente, nula.
F. Sucede que, as mensagens constantes dos documentos juntos a fls. 73 a 79 chegaram ao conhecimento da Recorrida através de uma conduta voluntária e legítima de BB, enquanto destinatária visada e direta das mesmas, através de uma reunião com EE, Diretora de Recursos Humanos do Grupo XX [cfr. minutos 00:24:38.7 a 00:25:50 da gravação do depoimento da Testemunha BB, correspondente ao ficheiro audio identificado como 20221006103615, de 06.10.2022].
G. Não se tendo verificado qualquer intromissão da Recorrida na vida privada e íntima do Recorrente e da BB — muito menos intromissão abusiva.
H. Ao invés, e estando perante documentos pertencentes a BB e que entraram legitimamente na sua posse, esta pode mostrá-los a terceiros e utilizá-los para fazer prova das condutas do Recorrente, quer numa vertente laboral quer numa vertente criminal.
I. Como tal, as mensagens constantes dos documentos juntos a fls. 73 a 79 dos autos não foram obtidas de forma ilícita, não se tratando de prova nula.
J. Neste sentido, entendeu o Tribunal da Relação do Porto, em acórdão datado de 13.09.2017, no âmbito do Processo 4508/2015: "As mensagens (SMS) cujo envio à ofendida é imputado à arguida, que as recebeu no seu próprio telemóvel, susceptíveis de integrar a prática de um crime de injúria, constituem elemento válido de prova, sem mais, uma vez que não pressupõem nem intercepção nem intromissão nas comunicações." (sublinhado nosso)
K. No mesmo sentido, entendeu a Relação de Guimarães no acórdão datado de 27.10.2022, no âmbito do processo 788/2021:
"Mensagens SMS (short message service) trocadas via WhatsApp, segundo o A., entre a sua companheira e o primeiro R. e enviados livremente, não se encontram protegidos pelos direitos constitucionais de reserva da intimidade da vida privada e da confidencialidade da mensagem pessoal. Tal como acontece no que concerne às mensagens SMS, tendo sido recebidas, lidas e guardadas, passam a ter a mesma essência da correspondência escrita enviada por correio tradicional. Valem, pois, como prova, não sendo ilícitos, nem constituem prova proibida." (sublinhado nosso)
L. Por não se tratar de prova obtida ilicitamente, a mesma pode ser utilizada em procedimento disciplinar.
M. Não obstante, e ainda que se tratasse de prova obtida de forma ilícita — o que não se concede e por mero dever de patrocínio se concebe — sempre se diria que se mostraria devidamente justificada.
N. Em rigor, a lei processual civil é omissa quanto à questão da inadmissibilidade da prova ilícita, contrariamente ao que sucede no processo penal. Não obstante, a jurisprudência — de modo relativamente unânime — tem admitido, em determinados casos a valoração da prova materialmente ilícita com base no princípio da proporcionalidade.
O. In casu, deverá prevalecer o direito à integridade moral e física de BB, bem como o seu direito à segurança e ao emprego, em detrimento do direito à confidencialidade das mensagens enviadas pelo Recorrente.
P. Pelo que, ainda que se viesse a considerar que o meio de prova é ilícito — o que não se admite, na medida em que foi BB que disponibilizou livremente as mensagens, por forma a garantir a sua segurança — sempre se concluiria que a compressão do direito do Recorrente, em detrimento do direito à prova.
Q. Adicionalmente, o conteúdo das mensagens constantes dos documentos juntos a fls. 73 a 79 não é exclusivamente referente à vida privada e íntima do Recorrente e de BB, contendo referências à vida profissional de ambos.
R. Aliás, resulta que o Recorrente não só ameaçou a integridade física e moral de BB, como, fazendo uso da sua posição hierárquica e condição de colega, fez ameaças de despedimento e de repercussões na vida profissional de BB, nomeadamente, através do envio da seguinte mensagem no dia 01.02.2021, pelas 16h28, a BB: "próximo passo vai ser eu a fazer de tudo para saíres da XX, S.A. e ficar na merda como mereces... filha da puta... mentirosa..." (negrito nosso)
S. Na medida em que das mensagens trocadas e acima transcritas se retiram inúmeras referências ao local de trabalho de BB, aos seus gerentes e ao seu vínculo com o Grupo XX, não podem as mesmas deixar de ser analisadas, também, como mensagens trocadas entre colegas de trabalho. Como tal, extravasam a vida privada e íntima do Recorrente e de BB.
T. O Recorrente, através do envio destas mensagens durante meses, criou um ambiente intimidante, hostil, degradante, humilhante e desestabilizador para BB, a qual ficou de tal forma perturbada e intimidada que não queria nem conseguia comparecer ao serviço e respetivo local de trabalho.
U. Por este motivo, não pode deixar de se concluir que as condutas do Recorrente configuraram a prática de assédio moral no local de trabalho e que, pela sua gravidade, culminaram, como não podia deixar de ser, no despedimento com justa causa do Recorrente.
V. Todos estes factos resultaram provados de forma inequívoca, nunca tendo o Recorrente sequer negado em juízo o conteúdo das mensagens e/ou a sua relação pessoal e profissional com a trabalhadora BB. Sem prejuízo do exposto,
W. Surpreendentemente, o Recorrente interpôs este recurso apresentando uma nova tese de defesa que, salvo o devido respeito, trunca os factos, entra em contradição com as alegações previamente realizadas oralmente e por escrito, e, naturalmente, com toda a prova produzida. Para o efeito,
X. O Recorrente vem juntar aos autos os seguintes documentos: (a) certificado de trabalho emitido pela empresa XXM, S.A. referente a BB; e (b) recibo de vencimento de BB de novembro de 2022, alegando que são supervenientes, porquanto foram emitidos em data posterior às sessões de audiência de discussão e julgamento. Sucede que:
Y. Independentemente da sua admissibilidade, desde logo se verifica que os documentos são datados de 2022, i.e, de data posterior à do despedimento do Recorrente, pelo que se revelam inúteis para o presente caso e em nada alteram a Sentença proferida pelo Tribunal a quo.
Z. Por outro lado, contrariamente ao alegado pelo Recorrente, não se encontram preenchidos os requisitos legais de que depende a junção dos documentos na fase de recurso, na medida em que:
a) Não se verificou a impossibilidade de apresentação dos documentos até ao encerramento da discussão na primeira instância;
b) Não resulta da sentença proferida pelo Tribunal a quo qualquer fundamento que torne necessária a junção dos documentos.
AA. Os documentos juntos pelo Recorrente não se reportam a factos novos nem a factos desconhecidos pelo próprio, e como tal não são supervenientes.
BB. Aliás, durante o decurso de todo o processo os factos já se verificavam e eram passíveis de ser conhecidos pelo Recorrente. Por esse motivo, tal documentação não era impossível de obter, nem tão pouco de apresentar junto do Tribunal a quo.
CC. Adicionalmente, a sentença não se baseou em nenhum meio probatório inesperado junto por iniciativa do Tribunal, nem em nenhum preceito jurídico com o qual partes justificadamente não tivessem contado com a sua aplicação. Em rigor, os documentos que o Recorrente pretende agora juntar aos autos em nada alteram os factos, nem contribuem para a descoberta da verdade material dos presentes autos (o que tão pouco é demonstrado pelo Recorrente nas suas alegações).
DD. Pelos motivos expostos, deverá a junção dos documentos n.º 1 e 2 com as alegações do Recorrente ser indeferida e, em consequência, deverão os referidos documentos ser desentranhados, por manifestamente extemporâneos.
EE. O Recorrente entende que os pontos 30, 37 a 39 foram incorretamente julgados porquanto a decisão do Tribunal a quo teve por base os documentos juntos a fls. 73 a 79, os quais constituiriam prova ilegal e, consequentemente, nula.
FF. Conforme amplamente referido, as mensagens constantes dos documentos juntos a fls. 73 a 79 dos autos foram legitimamente obtidas, sem qualquer intromissão por parte da Recorrida, e do seu conteúdo resulta a prática de assédio moral, sancionável nos termos do Código do Trabalho.
GG. Adicionalmente, entende o Recorrente que o facto provado 20 se encontra incorretamente julgado na parte em que se lê: "BB é funcionária da empregadora desde 03.11.2018., alegando que é funcionária da empresa XXM, S.A. e não da empresa XX, S.A.
HH. Todavia, a alegação é falsa, pois BB é trabalhadora do Grupo XX desde 3 de novembro de 2018, tendo o seu contrato de trabalho sido celebrado com a Recorrida.
II. A circunstância de a trabalhadora BB exercer funções em outras unidades do Grupo XX — incluindo na XXM ... de Sintra — não fez extinguir a sua relação com a Recorrida (XX, S.A.), a qual se manteve.
JJ. Conforme o Recorrente bem sabe, o modo de operação do Grupo XX — atenta a multiplicidade de unidades existentes — não assenta na autonomia jurídica das sociedades, mas antes nas suas ligações económicas, estruturas comuns e relação de Grupo, funcionando a XX, S.A. como uma única empresa.
KK. Todos os recursos humanos — à semelhança do que sucedeu também com o Recorrente que exerceu funções em outras unidades do Grupo — são frequentemente alocados às diferentes Unidades do Grupo XX para responder às necessidades que sejam identificadas pela Recorrida, a qual assume a gestão e controlo dos recursos humanos.
LL. O Grupo XX funciona como uma única entidade, o que resulta evidente das estruturas comuns de gestão de recursos humanos, das variadas transferências de trabalhadores entre Unidades, do apoio dado por trabalhadores de uma Unidade a outra Unidade e, inclusive, da recolha dos cabazes oferecidos pela XX, S.A., os quais podem ser levantados pelos trabalhadores em qualquer unidade do Grupo.
MM. O modo de funcionamento do Grupo XX resultou claro da prova realizada em juízo, em que ficou patente a existência de estruturas comuns, de chefias e de gestão comum.
NN. A esse respeito, resultou provado que existe uma estrutura de Recursos Humanos do Grupo XX, em que a Diretora é EE, cfr. minutos 00:00:15.7. a minutos 00:00:26.8 da gravação do depoimento de EE, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006114454, de 06.10.20221.
OO. O modo de funcionamento do Grupo XX resulta evidente também dos vários depoimentos prestados em sede de audiência de discussão e julgamento, nomeadamente o prestado por BB, cfr. minutos 00:00:30,1, a 00:00:33.8 da gravação do depoimento da Testemunha BB, correspondente ao ficheiro audio identificado como 20221006103615, de 06.10.2022]; Testemunha FF [cfr. minutos 00:00:28.9 a 00:00:32.7 da gravação do depoimento de FF, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006111705, de 06.10.2022]; Testemunha GG [cfr. minutos 00:00:25.0 a minutos 0000:26.4. da gravação do depoimento de GG, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006145519, de 06.10.2022]; Testemunha HH [cfr. minutos 00:00:10.8 a 00:00:20.4 da gravação do depoimento de HH, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006142732, de 06.10.2022):, Testemunha II [cfr. minutos 00:00:103 a minutos 00:00:12.1. da gravação do depoimento de II, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006143045, de 06.10.2022]; Testemunha JJ, [cfr. minutos 00:00:07.7 a minutos 00:00:10.3 da gravação do depoimento de JJ, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006144344, de 06.10.2022].
PP. O próprio Recorrente reconhece que ele e BB trabalhavam na "XX, S.A.", não fazendo uma distinção entre unidades [cfr. minutos 00:20:14.1 a 00:21:03. da gravação das declarações de parte de AA, correspondente ao ficheiro áudio identificado como 20221006144948, de 06.10.2022].
QQ. Aliás, foi precisamente graças à estreita ligação entre as diferentes unidades do Grupo XX que o Recorrente logrou operar a transferência da BB da XX ... de Alfragide para a Unidade da XX de Cascais.
RR. Assim, o facto de o Recorrente invocar agora — em perfeita contradição com tudo aquilo que foi dado como provado e inclusivamente por si sustentado — que o empregador de BB era afinal a empresa XXM, S.A. e não a XX, S.A., em nada altera o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Essencialmente, pelos seguintes motivos:
SS. Por um lado, por estar em causa uma relação de Grupo, nos termos acima descritos; e por outro, pelo facto de a Recorrida não ter deixado de ser a empregadora da trabalhadora BB, ao contrário do que o Recorrente alega com base em documentos com data posterior ao seu despedimento...
TT. O Recorrente entende ainda que o ponto 21 da matéria de facto provada se encontra incorretamente julgado e, por consequência, impugna-o.
UU. Não se compreendendo a impugnação quanto ao ponto 21, porquanto o seu teor resultada amplamente provado e, inclusive, foi confessado pelo próprio Recorrente, sempre se dirá que não resulta do ponto 21 que a transferência de BB para a XX ... de Sintra tenha sido solicitada pelo Recorrente, estando inclusive tal informação contida entre parêntesis, referindo-se apenas à sua intervenção na transferência para a XX de Cascais.
VV. Pelo exposto, a decisão proferida pelo Tribunal a quo deverá permanecer inalterada, na medida em que uma eventual correção dos pontos 20, 21, 30, 37 a 39 dos factos provados em nada a afeta.
WW. Adicionalmente, entende o Recorrente que a Recorrida litigou de má-fé, porquanto indicou que BB era sua trabalhadora. Pese embora invoque que a Recorrida omitiu factos relevantes para a boa decisão da causa, o Recorrente não logra demonstrar em que medida é que tais factos alterariam o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo.
XX. Atenta a lógica em que o Grupo XX opera, a Recorrida não ignorou que não era empregadora de BB desde a sua transferência para a XX ... de Sintra, pois tal não corresponde à verdade.
YY. A Recorrida manteve-se como empregadora de BB, trabalhando esta indiferenciadamente para as diferentes unidades do Grupo XX
ZZ. Assim, a Recorrida não omitiu factos relevantes para a boa decisão da causa, devendo manter-se a sentença proferida pelo Tribunal o quo na parte em que determinou que a Recorrente não litigou de má-fé.
AAA. Por último, o Recorrente alega que a sentença que declarou lícito o seu despedimento deve ser revogada porquanto, expurgados os erros de julgamento por si identificados nas suas alegações, as suas condutas não seriam suficientemente graves para justificar a aplicação da sanção disciplinar mais gravosa — o despedimento.
BBB. No seu entender, os únicos pontos da matéria de facto provada com relevância para a decisão da causa são os pontos 21 e 22 que se reportam ao pedido de transferência de BB da XX ... de Alfragide para a XX de Cascais feito pelo Recorrente, na sequência da sua mulher KK, também funcionária da XX, S.A., ter descoberto que mantinha uma relação amorosa com BB, os quais, apesar de consubstanciarem uma infração disciplina, não seriam suficientemente gravosos para justificar a aplicação da sanção disciplinar de despedimento e reportar-se-iam a condutas extralaborais referentes à vida privada e íntima do Recorrente.
CCC. Contrariamente ao invocado, não assiste razão ao Recorrente, porquanto: (a) a matéria de facto provada e com relevância para a boa decisão da causa não se reconduz apenas aos pontos 21 e 22 da sentença; e (b) as condutas extralaborais do Recorrente tiveram reflexos prejudiciais na relação de trabalho entre a Recorrida e o Recorrente.
DDD. Das mensagens enviadas pelo Recorrente (vd. fls. 73 a 79 dos autos), verificam-se inúmeras referências ao local de trabalho de BB, aos seus gerentes e à manutenção do seu vínculo com o Grupo XX, as quais extravasam a vida privada e íntima do Recorrente e de BB.
EEE. O Recorrente utilizou a sua posição hierarquicamente superior, ameaçando a Recorrida com possíveis represálias na sua situação profissional, com vista a obter uma suposta vantagem para si — o termo da gravidez de BB e a ocultação da mesma da sua mulher KK, também funcionária da XX, S.A. — configurando, assim, uma situação de assédio moral não discriminatório, na aceção de assédio vertical.
FFF. As condutas do Recorrente — ainda que praticadas fora do horário de trabalho e do local de trabalho — não deixam de assumir relevância disciplinar, pelo que a Recorrida tinha o dever, enquanto empregadora formal do Recorrente e enquanto entidade do Grupo XX, de afastar quaisquer atos que possam afetar a dignidade dos trabalhadores que sejam discriminatórios, lesivos, intimidatórios, hostis ou humilhantes para estes.
GGG. O Recorrente, com as suas condutas, violou não só o Código do Trabalho como as normas internas da Recorrida respeitantes, entre outras, à proibição de assédio, nomeadamente o Código de Boa Conduta (vd. factos provados n.9 12 a 19 da sentença).
HHH. Não sendo admissível (nem expectável) que a Recorrida mantivesse ao seu serviço, sobretudo numa posição de liderança, um trabalhador que se revelou incapaz de cumprir os mais elementares dos deveres de uma relação de trabalho, perpetrando ameaças contra uma colega de trabalho e gerando um ambiente de trabalho de insegurança e hostilidade.
III. Os comportamentos levados a cabo pelo Recorrente merecem a maior censura possível, na medida em que são o reflexo de um enorme desrespeito e de irremediável quebra de confiança, relativamente à execução do seu trabalho e do seu relacionamento com a Recorrida, com o Grupo XX e com todos os seus trabalhadores.
JJJ. Conforme referido em sede de procedimento disciplinar e no Articulado Motivador, o comportamento culposo do Recorrente, pela sua gravidade, tornou, de um ponto de vista objetivo e jurídico, impossível a subsistência da relação de trabalho, implicando uma quebra irremediável e sem retorno da relação de confiança entre si e a Recorrida e para com todo o Grupo XX, concluindo-se que os requisitos da justa causa de despedimento estão amplamente preenchidos.
KKK. Em face de todo o exposto, andou bem o Tribunal a quo a considerar que à Recorrida não era exigível a subsistência da relação laboral e, como tal, a sanção aplicada foi proporcional à Infração cometida, sendo por isso lícito o despedimento que entendeu levar a cabo.
Conclui pedindo
a) se indefira a junção de documentos; e
b) se negue provimento ao recurso do Autor, e se confirme na íntegra a sentença do Tribunal a quo que declarou a licitude do despedimento e que absolveu a Ré, ora Recorrida dos pedidos.
*
O DM do Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
O A. respondeu ao parecer.
Foram colhidos os competentes vistos.
*
II
A) É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos art.º 635/4, 639/1 e 2, 608/2 e 663 do CPC. Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se
- a decisão da matéria de facto assentou em prova nula;
- a decisão da matéria de facto merece a censura que lhe é feita;
- não há justa causa de despedimento; e eventualmente
- a R. litigou de má fé.
*
Da requerida junção de documentos
Por entre as alegações e as conclusões do recurso - e não no requerimento de interposição de recurso ou sequer formalizando o pedido a final, como deveria, de modo a permitir ao relator conhecer essa pretensão, nos termos do art.º 652, n.º 1, al. e) do Código de Processo Civil - o A. requer a junção de 2 documentos.
Alega que os documentos são objectivamente supervenientes - foram lavrados em momento posterior ao encerramento da discussão da causa - e são relevantes para a sua decisão, pelo que deverão ser admitidos, nos termos dos art.º 425.º, 651 e 662.º n.º 1, do C.P.C., aplicáveis ex vi art.º 1.º, n.º 2, alínea a), do C.P.T.
Está em causa a requerida junção de um documento relativo ao vencimento de BB em novembro de 2022 (doc. 2) e uma declaração da XXM, S.A., datada de 14 de dezembro, de que a dita BB é a sua trabalhadora desde 3/11/2018 (doc. n.º 1).
É sabido que os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes (art.º 423/1, CPC). Em processo laboral os documentos devem ser juntos pelas partes com os articulados (art.º 63/1, CPT). Passado este momento ainda o poderão fazer até 20 dias antes da audiência final, mediante pagamento de multa (art.º 423/2, CPC), após o que só serão admitidos documentos que até aí as partes não tenham podido apresentar, ou cuja apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior (art.º 423/3). Todavia, após o encerramento da discussão só são admitidos, em caso de recurso, os documentos que até aí não tenha sido possível apresentar (art.º 425), ou cuja junção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido em primeira instância (art.º 651/1).
Quanto a esta necessidade, como dizem Geraldes, Pimenta e Sousa, no vol. I do Código de Processo Civil Anotado, nota 1 ao art.º 651, “a jurisprudência tem entendido, de modo uniforme, que não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa, mas relacionado com factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado”.
E quanto à superveniência, “não é admissível a junção com a alegação de recurso de um documento que, ab initio, já era potencialmente útil à apreciação da causa”.
Face ao exposto é manifestamente inadmissível a junção do documento n.º 2, uma vez que documentos relativos ao vencimento da testemunha já existiam, sendo o documento de novembro junto totalmente irrelevante do ponto de vista da superveniência.
Quanto à declaração também se afigura claro que se reporta a factos que já antes o trabalhador sabia estarem sujeitos a prova, não se vislumbrando dificuldade em obter prova pertinente quanto a esta matéria.
A junção oportuna de documentos é um dever das partes que decorre inclusivamente do princípio da cooperação (art.º 7º/1) e do dever de boa-fé processual (art.º 8º, ambos do CPC), impondo-se um cuidado acrescido na sua observância.
Pelo exposto não se admite a junção dos aludidos documentos, que oportunamente deverão ser extraídos e restituídos ao requerente, o qual, pelo decaimento, pagará a multa de 0,5 UC (art.º 443/1 CPC e 27/1, Reg. Custas Processuais).
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Da impugnação da matéria de facto
1. A matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal da Relação nas situações contempladas no n.º 1 do art.º 662º do CPC: se os factos tidos por assentes ou a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre (art.º 607.º, n.º 5, do CPC), segundo o qual “O juiz (…) aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (…)1. Ou seja, ao juiz cabe apreciar livremente as provas, sem constrangimentos nomeadamente quanto à natureza das provas, decidindo de harmonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido.
O controlo da matéria de facto, nomeadamente com base na documentação (mormente na gravação), dos depoimentos prestados em audiência, está vinculado à observância dos princípios fundamentais do processo civil, entre os quais, além do próprio princípio da livre apreciação das provas2, o da imediação3.
É na 1ª instância que, por natureza, se concretizam os aludidos princípios4, estando, pois, em melhores condições de apreciar os depoimentos prestados em audiência, atento o imediatismo, impossível de obter na análise da matéria de facto na Relação, por ser quem conduz a audiência de julgamento e quem interage com a produção da prova e capta pormenores, reações, hesitações, expressões e gestos, enfim os símbolos impossíveis de detetar em simples gravações5.
O artigo 640 CPC estabelece os ónus que impendem sobre quem recorre da decisão de facto, sob pena de rejeição do recurso (art.º 640/1 e 2/a):
- especificar os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados (nº 1, alínea a);
- especificar quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida (nº 1, alínea b);
- a decisão que, no seu entender, deve ser tomada sobre as questões de facto impugnadas (n.º 1, al. c).
*
Os ónus contidos no art.º 640/1 e 2, do CPC, têm por fim tornar inteligível a impugnação e facilitar o entendimento da perspetiva do recorrente à contraparte e ao Tribunal ad quem. Neste sentido escreve Abrantes Geraldes que “as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor (…). Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilização das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação inconsequente de inconformismo” (cfr. Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2007, 142-143; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, 129).
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2. Da valoração de prova nula
O A. argumenta que foram tidas em conta comunicações pessoais e privadas, o que a seu ver viola o disposto nos art.º 26 e 32, n.º 8, da Constituição, e, ainda, 16 e 22 do Código do Trabalho.
Considerou sobre isto a sentença:
“Na contestação o trabalhador alega que a empregadora não podia fazer uso das mensagens de WhatsApp juntas aos autos em virtude de as mesmas serem mensagens privadas, estando por isso abrangidas pela tutela da reserva da vida privada.
Vejamos. Na falta de disposições legais específicas sobre a matéria da prova ilícita em processo civil, a questão da admissibilidade da prova ilícita em sede de processo civil tem vindo a ser sobretudo objeto de tratamento doutrinário e jurisprudencial, sendo a jurisprudência relativamente unânime no sentido de admitir, em determinados casos, a valoração da prova materialmente ilícita, com base no princípio da proporcionalidade: como se sintetiza no acórdão de 15-04-2021 do Tribunal da Relação de Lisboa (proc. n.º 705/18.0T8CSC-A.L1-2; disponível em www.dgsi.pt), «Face à colisão de direitos fundamentais, impõe-se proceder a uma ponderação concreta dos interesses em jogo (cfr. artigo 335.º do CC), ponderando se o meio de prova ilicitamente obtido é, não obstante, relevante, imprescindível, justificado, adequado e proporcionado para prova dos factos em presença, que, em concreto, sobrelevam sobre outros direitos fundamentais em presença, justificando a sua compressão em detrimento de tal direito à prova, ou se, tal compressão, não se mostra justificada».
Todavia, salvo o devido respeito e melhor apreciação, afigura-se-nos que no caso vertente tal questão não chega sequer a colocar-se, uma vez que não estamos perante a situação clássica de obtenção ilícita de prova; as situações tratadas pela jurisprudência a este propósito respeitam a casos em que a própria obtenção da prova configura, em si mesmo, uma actuação ilícita, a maior parte das vezes susceptível até de consubstanciar um crime: v.g., gravações de imagens (vídeo ou fotografias) sem o consentimento do visado, captação não consentida de sons ou intercepção de comunicações, etc.
O que está em causa no caso vertente é um conjunto de mensagens trocadas entre o trabalhador e BB que esta última – destinatária e emissora de tais mensagens – entregou de forma voluntária à empregadora, dada a sua relevância para a apreciação da conduta do trabalhador no âmbito da relação laboral que ambos mantinham com a empregadora.
Como se refere no acórdão de 28-04-2022 do Tribunal da Relação de Lisboa (no processo n.º 13609/21.0T8LSB-C.L1-8; disponível em ), a cujo entendimento aqui aderimos, «…os elementos probatórios apresentados pelo autor consubstanciam imagens (“cópias”) de comunicações escritas, estabelecidas com a própria ré, via Messenger/ WhatsApp, através de telemóvel.
Tratam-se, efetivamente, de comunicações enviadas e dirigidas pela própria ré ao autor, e por este àquela, às quais um e outro responderam, respetivamente, e que depois de rececionadas, lidas e guardadas por cada um deles, têm valor equivalente a comunicação que tivesse sido estabelecida entre um e outro por uma via mais tradicional, como uma carta recebida pelos serviços de correio, por exemplo. «Nos termos do disposto no art.º 34º, n.º 1, da CRP, o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, constituindo inclusivamente crime a divulgação do conteúdo de cartas, escritos fechados, ou telecomunicações, por quem, sem consentimento, tenha aberto e acedido a escrito que não lhe era dirigido, que dele tenha tomado conhecimento por processos técnicos ou mediante intromissão no conteúdo de telecomunicação (cf. art.º 194º, nº 3, por referências aos nºs 1, e 2, do Código Penal). «É igualmente reconhecido a todos o direito à reserva da vida privada e familiar (art.º 26º, nº 1, da CRP). «Ora, no caso dos autos, o autor é o destinatário direto e imediato dos SMS enviados pela ré, no âmbito dos quais são feitas considerações sobre bens, designadamente imóveis, e a que aquele acedeu de forma totalmente lícita.
Tais SMS não foram enviados como confidenciais – tendo em consideração o que deles resulta – e nem se referem à intimidade da vida privada daquela (cf. 2ª parte, do art.º 77º, do Código Civil), pelo que a sua apresentação, como meio de prova, não coloca em causa a reserva da intimidade da vida privada da ré. «Estamos perante documentos pertencentes ao autor e que entraram legitimamente na sua posse. «Os SMS (short message service) são considerados documentos eletrónicos (cf. art.º 2º, al. a), do DL 290-D/99, de 2/08), suscetíveis de serem apresentados como prova (cf., ainda, art.º 46º do Regulamento da União Europeia nº 910/2014, de 23/07/2014[3]), e têm força probatória nos termos previstos no art.º 3º daquele primeiro diploma, sendo que nas situações – como a dos autos – em que deles não conste uma assinatura digital certificada por uma entidade credenciada, são apreciados nos termos gerais de direito, isto é, de acordo com as regras gerais da prova documental (cf. art.º 362º e segs., do Código Civil), estabelecendo ainda o art.º 4º, do DL 290-D/99, quanto às cópias de documentos daquela natureza, que “As cópias de documentos eletrónicos, sobre idêntico ou diferente tipo de suporte, são válidas e eficazes nos termos gerais de direito e têm a força probatória atribuída às cópias fotográficas pelo n.º 2 do artigo 387.º do Código Civil (…), se forem observados os requisitos aí previstos.”»
Em suma, nada obsta à valoração, no caso vertente do conteúdo das mensagens trocadas entre o trabalhador e BB, por esta entregues, de forma voluntária, à empregadora (e por esta última juntas aos autos)”.
Vejamos.
A tutela da personalidade tem em vista um núcleo de direitos orientados à proteção da dignidade da pessoa humana.
Há assim um conjunto de direitos subjetivos que recaem sobre bens pessoalíssimos. Visa-se designadamente a proteção do direito à vida e à reserva da vida privada. E a sua tutela tem lugar em vários níveis, desde o constitucional (através de direitos fundamentais e princípios – vg, igualdade e não discriminação, art.º 13, vida e integridade, art.º 24 e 25, e outros, como os previstos nos artigos 26, 27, 34, 35 e 41), cível (na tutela geral da personalidade prevista no código civil, art.º 70 e ss.), penal (por meio da proteção de bens pessoais) e, no que agora importa em especial, no plano laboral (art.º 14 e ss.)
Em sede laboral, e no que ao caso respeita, releva em especial o disposto no art.º 16 do CT, que consagra a reserva da intimidade da vida privada, determinando que empregador e trabalhador devem respeitar os direitos de personalidade da contraparte, e que a reserva da vida privada abrange quer o acesso quer a divulgação de aspetos atinentes à esfera íntima e pessoal das partes.
Neste ponto há que ter em consideração a chamada teoria das três esferas, que distingue na vida dos sujeitos entre uma esfera pública, uma privada e uma íntima, sendo estas últimas naturalmente as que carecem de especial proteção, mormente a íntima.
A proteção da reserva da intimidade da vida privada é um direito de personalidade de cariz pessoalíssimo.
Neste caso, referente a comunicações via WhatsApp entre o trabalhador e a colega BB, põe-se a questão do seu acesso e utilização pela empregadora.
Há que notar que o acesso a comunicações é possível em termos gerais, como reconhece o n.º 4, do art.º 34 da Constituição. Como diz Teresa Moreira, em A Privacidade dos Trabalhadores e as Novas Tecnologias da Informação e Comunicação: Contributo Para Um Estudo dos Limites do Poder de Controlo Electrónico do Empregador, 783, “este direito ao sigilo das comunicações não é absoluto”.
Mais adiante refere: “o direito ao sigilo das comunicações abrange um tipo de comunicação fechada, isto é, uma comunicação individual que se destina a um receptor individualizado ou um círculo de destinatários previamente determinado. Assim, deve entender-se que abrange uma relação comunicacional que existe dentro de um «certo, preciso e determinado número de intervenientes»”. E, citando Faria Costa: “as partes querem “sem exceções, que o fluxo informacional que entre eles corre fique imorredoiramente ligado a esse restrito, auto-restrito, número de pessoas participantes do diálogo»” (idem, e nota 2714). Ainda a mesma autora acrescenta (idem, 784): “este direito implica, desde logo que ninguém as viole ou as devasse, no sentido de que a tomada de conhecimento não autorizada do conteúdo da correspondência é, em si própria, ilícita. (…) No caso dos controlos de e-mail por parte do empregador está em causa, sobretudo, a proibição do acesso de terceiros a comunicações privadas de outrem. Neste caso, o comportamento do empregador violador do direito não surge ligado a uma utilização abusiva da informação conhecida legitimamente pelos sujeitos com acesso a essa comunicação, mas o simples acesso ao conteúdo da comunicação por um terceiro, que não o destinatário nem o recetor da mensagem. (…). Deve notar-se, ainda, que se existir consentimento das partes o terceiro pode conhecer o conteúdo” (sublinhado do acórdão).
Ora, é este precisamente o caso, uma vez que resulta que foi a BB, interveniente nas mensagens com o trabalhador, quem as divulgou junto da empregadora. E nem o trabalhador põe isso em causa, insistindo simplesmente que as mensagens que trocou com aquela não poderiam ser divulgados nem pela própria BB por respeitarem à sua esfera privada (cf. art.º 17, 19, 20 da peça processual do trabalhador). Mas podia, e, assim, a entidade patronal podia efetivamente utilizar estas comunicações como meio de prova, não se vislumbrando qualquer intromissão na sua obtenção e nem excesso ou desproporção no seu uso.
Termos em que se julga lícita a prova utilizada.
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O exposto acima prejudica a impugnação da decisão quanto aos números 30 e 37 a 39. Com efeito, a prova produzida é suficiente e a prova documental em especial esclarecedora. Não havendo qualquer irregularidade quanto a esta prova documental a convicção do Tribunal a quo mostra-se perfeitamente alicerçada.
Pretende ainda o recorrente que as respostas aos números 20 e 21 sejam alteradas.
Desde logo, o tribunal deu tal matéria por assente com fundamento em acordo das partes que não existiu.
Verificamos que efetivamente na resposta ao articulado motivador do despedimento o trabalhador admitiu a matéria dos artigos 46 a 48 do articulado da empregadora e afirmou de seguida (art.º 2º) que toda matéria restante não correspondia à verdade.
O ónus de impugnação acarreta que quem contesta ou responde tome “posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor” – n.º 1 do art.º 574º do CPC. Referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pág. 572-573, que “Direta ou indireta, a impugnação repousa normalmente numa certeza. O réu afirma que o facto alegado pelo autor não se verificou ou que se verificou outro facto com ele incompatível. A afirmação e negação constituem declarações de ciência, que são informações sobre a realidade, baseadas no conhecimento do declarante: trata-se de manifestações da esfera cognoscitiva sobre fragmentos da realidade que é objeto do conhecimento”.
Todavia, também se verifica que, pronunciando-se especificamente sobre esta matéria no artigo 32, o trabalhador refere que “a trabalhadora BB deixou de laborar nas mesmas instalações onde trabalhava o autor no dia 16/08/2020, e não em 31/08/2020 conforme consta no artigo 58 do articulado” (da empregadora). Através deste artigo e dos seguintes o trabalhador admitiu parte significativa desta matéria.
Por outro lado, também é certo que no art.º 29 o trabalhador se refere à transferência da trabalhadora para a loja do ... Sintra.
Assim, no essencial tal foi realmente admitido por acordo.
E há elementos nos autos, resultantes da prova produzida, que vão no sentido da resposta dada.
Mas há mais. Com esta matéria o trabalhador pretende que se conclua não ter a empregadora legitimidade para o sancionar: “tal como resulta da matéria de facto que efetivamente se tem que ter por provada, os reflexos dos atos da vida privada do autor incidirão sobre pessoa diversa da ré XX, S.A., pois que, no momento da sua prática (fev. e março de 2021), BB já não era sua trabalhadora mas sim da XXM, S.A..
Ora, onde é que o recorrente levantou esta questão no seu articulado? Em lado nenhum. Onde é que pôs em crise a legitimidade da empregadora no saneamento (fls. 295-296)? Em lado nenhum. Onde é que sim surgiu pela sentença recorrida não ter conhecido a dita matéria não suscitada? Em lado nenhum. Ou seja: em plena fase de recurso o recorrente suscita uma questão nova. Acontece que os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais e não de conhecimento de questões novas. Como tal toda esta matéria é irrelevante, não cabendo agora conhecê-la.
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Deste modo julga-se improcedente a impugnação da decisão da matéria de facto.
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Factos assentes:
1. No dia 19-03-2021, a XX, S.A., determinou a instauração de um procedimento prévio de inquérito, com o propósito de apurar, em concreto, o circunstancialismo subjacente a diversos indícios da prática de um conjunto de ilícitos disciplinares [resposta ao artigo 5.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
2. Em 24-03-2021, a empregadora notificou o trabalhador, por escrito, da suspensão preventiva do exercício de funções, sem perda de retribuição, nos termos e para os efeitos do artigo 354.º, n.º 2 do Código do Trabalho [resposta ao artigo 8.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
3. Em 03-05-2021, foi deduzida Nota de Culpa contra o trabalhador, com intenção de despedimento, pela prática de comportamentos consubstanciadores de ilícitos disciplinares, a qual foi entregue ao trabalhador, por mão própria, no mesmo dia 03-05-2021 [resposta aos artigos 25.º e 26.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
4. Em 17-05-2021, a empregadora rececionou a Resposta à Nota de Culpa apresentada, em mão, pelo trabalhador [resposta ao artigo 29.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
5. Em 15-06-2021, foi elaborado Relatório final de Instrutoras, bem como a proposta de Decisão Final [resposta ao artigo 40.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
6. Em 29-06-2021, foi proferida Decisão Final de Despedimento pela empregadora, a qual foi remetida conjuntamente com o Relatório Final de Instrutoras ao trabalhador, por correio registado com aviso de receção, enviado no dia 29-06-2021 e recebido pelo trabalhador no dia 30-06-2021 [resposta ao artigo 41.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
7. O trabalhador não é representante sindical e não se encontra formada na empregadora uma Comissão de Trabalhadores [artigos 42.º e 43.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
8. A empregadora é uma empresa que se dedica, entre outras atividades, à restauração [artigo 45.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
9. O trabalhador foi admitido ao serviço da empregadora em 10-09-2009 [artigo 46.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
10. O trabalhador exerce atualmente as funções de Gestor de Unidade / Gerente Principal da XX ... de Alfragide, funções que ocupa desde 01-12-2018 [artigo 47.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
11. No âmbito das suas funções, o trabalhador é responsável por coordenar, controlar e fiscalizar o funcionamento das operações da unidade, verificando a execução das tarefas que competem aos trabalhadores das várias categorias profissionais que operam no estabelecimento em apreço, prestando-lhes assistência necessária e propondo medidas de correção e de inovação, com vista à melhoria da eficácia e da eficiência, ao nível dos recursos materiais, financeiros e humanos [artigo 48.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
12. No âmbito das suas funções, os colaboradores das empregadoras encontram-se sujeitos ao cumprimento de todas e quaisquer normas internas estabelecidas pelas empregadoras, entre as quais se incluem, mas sem limitar, o Código de Boa Conduta para a Prevenção e Combate ao Assédio no Trabalho [resposta ao artigo 50.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
13. A empregadora adotou um Código de Boa Conduta para a Prevenção e Combate ao Assédio no Trabalho em 01-10-2017, cuja cópia faz fls. 58 e ss. dos autos [resposta ao artigo 51.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
14. O Código de Boa Conduta da empregadora estabelece que a empregadora “…tem como princípios orientadores o respeito pela Lei, a isenção política e religiosa, a garantia de confidencialidade dos dados e informações recolhidos sobre os seus trabalhadores, fornecedores de bens e serviços e clientes, bem como o respeito pela diferença, na garantia da igualdade e da não discricionariedade” [resposta ao artigo 52.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
15. O Código de Boa Conduta da empregadora prevê expressamente que não são permitidas práticas de assédio no trabalho, de qualquer natureza, abrangendo relações entre colegas, superiores hierárquicos, clientes, fornecedores, parceiros, ou quaisquer pessoas com que interajam [resposta ao artigo 53.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
16. Qualificando como assédio, o comportamento indesejado praticado aquando do acesso ao emprego, no emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger, afetar a dignidade e criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador [resposta ao artigo 54.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
17. Nos termos do Código de Boa Conduta, todos os trabalhadores no exercício das suas funções, em intervalos ou pausas dentro das instalações da empregadora e quando ao serviço desta, ainda que fora do estabelecimento, deverão ter um comportamento normal, medido de acordo com os padrões de convivência, urbanidade e cidadania exigíveis no seu relacionamento com os membros da entidade empregadora ou seus representantes, colegas de trabalho, fornecedores de bens e serviços e clientes [resposta ao artigo 55.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
18. Devendo os trabalhadores da empregadora, entre outros [resposta ao artigo 56.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR]:
- Cumprir a Lei, o Instrumento de Regulamentação Coletiva aplicável e o Código de Boa Conduta;
- Agir, sempre que possível, de forma a evitar que se verifiquem comportamentos por si presenciados e suscetíveis de serem considerados assédio;
- Chamar a atenção junto do seu superior hierárquico ou representante da entidade empregadora, de eventuais situações que sejam suscetíveis de constituir prática de assédio;
- Participar por escrito a prática de assédio junto da entidade empregadora, seu representante legal ou superior hierárquico.
19. O Código de Boa Conduta é do conhecimento de todos os colaboradores da empregadora, encontrando-se disponível em todas as unidades da Empresa desde 01-10-2017 [resposta ao artigo 57.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
20. BB é funcionária da empregadora desde 03-11-2018, tendo iniciado as suas funções de empregada de mesa na XX ... de Alfragide, Unidade na qual esteve até Agosto de 2020, ocasião em que foi transferida para a Unidade da XX de Cascais e, posteriormente, para Sintra [artigo 58.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
21. BB foi transferida da XX ... de Alfragide para Cascais (de onde veio posteriormente a ser transferida para Sintra), a pedido do trabalhador, seu superior hierárquico [artigo 59.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
22. O pedido do trabalhador foi realizado na sequência de a sua mulher, KK, também trabalhadora da empregadora, ter descoberto que este e a BB mantinham uma relação amorosa e se ter dirigido à XX ... de Alfragide, para confrontar BB sobre a relação desta com o trabalhador [resposta ao artigo 60.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
23. Com efeito, o trabalhador manteve uma relação amorosa com BB desde o início de 2019 [resposta ao artigo 61.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
24. A relação amorosa havia começado por ser estritamente profissional, mas rapidamente o trabalhador começou a promover o contacto físico intencional e não solicitado, provocando abordagens físicas desnecessárias no local de trabalho, tais como tentativas de beijos, tentativas essas que foram, inicialmente, rejeitadas por BB [resposta ao artigo 62.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
25. BB, na altura das referidas abordagens físicas, não apresentou queixa, por ter receio que ninguém acreditasse nela e de ficar sem emprego [resposta ao artigo 63.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
26. Após várias tentativas, BB acabou por ceder às abordagens do trabalhador, iniciando então uma relação amorosa com o mesmo [resposta ao artigo 64.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
27. No início de janeiro de 2021, BB descobriu que estava grávida do trabalhador, tendo-lhe comunicado tal facto nessa mesma altura [resposta ao artigo 65.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
28. Na altura em que descobriu que estava grávida, BB não tinha a certeza se iria, ou não, interromper a gravidez [resposta ao artigo 66.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
29. No dia 01-02-2021 BB comunicou ao trabalhador a sua intenção em prosseguir com a gravidez [resposta ao artigo 67.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
30. A partir de então, o trabalhador, tentando demover BB da decisão em prosseguir com a gravidez, começou a persegui-la e a ameaçá-la fisicamente, nomeadamente através de conversas e do envio de diversas mensagens intimidatórias [resposta aos artigos 68.º e 69.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
31. No início de março de 2021, findo o período de lay-off, BB informou o seu superior hierárquico, FF, Gestor de Unidade do estabelecimento da XX ... de Sintra, que não se sentia segura para sair de casa e ir trabalhar, uma vez que acreditava que o trabalhador era capaz de concretizar as ameaças físicas que lhe havia feito [resposta ao artigo 71.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
32. BB informou o referido superior hierárquico que estava grávida de um filho do trabalhador e que este a havia ameaçado, com vista a que esta pusesse termo à gravidez [resposta ao artigo 72.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
33. Alguns dias depois, BB, informou também DD, Supervisor Operacional de cinco unidades da empregadora (entre as quais a XX, S.A. sita no ... Sintra) e seu superior hierárquico, que estava a ser alvo de ameaças, através de mensagens escritas enviadas pelo trabalhador, por não querer interromper a gravidez [resposta ao artigo 73.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
34. As ameaças, perpetuadas ao longo de vários meses pelo trabalhador, provocaram em BB um profundo desconforto, criando um ambiente de tal forma hostil e desagradável, que a mesma se viu obrigada a comunicar aos seus superiores hierárquicos que tinha receio de voltar ao trabalho [resposta ao artigo 75.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
35. Medo este que se traduzia no facto de saber que o trabalhador conhecia a sua morada, bem como as rotas que a mesma utilizava para se deslocar para o seu local de trabalho [resposta ao artigo 76.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
36. Face às condutas do trabalhador, BB sentiu receio pela sua própria vida, bem como pela do seu feto, o que denunciou formalmente à empregadora [resposta aos artigos 77.º e 78.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
37. No dia 01-02-2021, o trabalhador enviou através de WhatsApp, para o telemóvel pessoal de BB, entre outras, as seguintes mensagens dirigidas à mesma [resposta ao artigo 83.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR]: - “vai a merda… espero que nunca digas que vou ser pai da merda de filho… ok… filha da puta… mentirosa… odeio.te” - “vai merda pá… Que se foda tu e merda de filho.. e vcs tds…/ Ainda vão te partir a boca… caralho… fodas” - “próximo passo vai ser eu a fazer de tudo para saíres da XX, S.A. e ficar na merda como mereces… filha da puta… mentirosa…” - [em resposta à mensagem de BB com o seguinte teor: “E se fizeres algo pra me prejudicar na XX, pds ter a certeza q vou contar a toda gente,a começar por ai… Pk a minha intenção n é te prejudicar”] “mais vais ver… não conta comigo para nd mesmo… espero bem que percebas isso… mas para nd… se abrires a boca para dizer alguém k sou pai do teu filho não penso duas vezes e vou deitar atrás da grade… acredita… podes ter a certeza… odeio.te sua merda”
38. No dia 02-02-2021, o trabalhador enviou através de WhatsApp, para o telemóvel pessoal de BB, entre outras, as seguintes mensagens dirigidas à mesma [resposta ao artigo 84.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR]: - “so para te informar que a KK deverá ficar com a loja de Sintra brevemente, acho que poderias evitar problemas para breve…. já te odeia sem estar grávida, imagina estando… fodas pensa no teu futuro pá… vais estragar a vida de muitas pessoas… por causa de estares a pensar só em ti…” - “espero qu ainda consigas refletir e interromper esta gravidez indesejada.. ok” - “ela devar ser gerente oficial de Sintra para este ano…. / deverá… por isso vais a tempo de corrigir este erro” - “pk problema gravíssimo pela frente desnecessário” - [em resposta à mensagem de BB com o seguinte teor: “Estás a dizer isso pra me intimidar”] “eu não mando em nd…. por isso que estou a te avisar…. pk grávida para seres transferida nenhuma loja vai querer…. resta é XX, S.A. renegociar fim do teu contrato…. Pk mais fácil resolver do teu lado…. 90% que será ela próxima gerente de Sintra agora…” /“eu apanho as minha coisa e bazo deste país.. agora tu que queres comprar problema…. / pk grávida que ela vai focar mais em ti e fazer de tudp para te lixar… / Ainda vais a tempo de interromper a gravidez…. é acabar com este problema” - “objetivo neste momento acabares com esta gravidez e será mais fácil resolver o teu problema de loja/ estando grávida n existe forma de te tirarem de Sintra…. Mesmo que tu queiras pedir transf…. /sei que vai dar merda.. por isso vou te avisar… / Vais a tempo de resolver esta gravidez… estais a brincar com situação seria…”
39. O trabalhador enviou ainda, através de WhatsApp, para o telemóvel pessoal de BB, diversas outras mensagens, cujo teor se mostra transcrito nos prints que fazem fls. 75v. a 79 dos autos, com idêntico tom intimidatório e ameaças, nos dias 06-02-2021, 07-02-2021, 09-02-2021, 15-02-2021, 22-02-2021 e 23-02-2021 [resposta aos artigos 85.º, 86.º, 87.º, 89.º, 90.º e 91.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR]:
40. No dia 22-03-2021, BB apresentou queixa crime contra o trabalhador pelos factos acima descritos, a qual veio dar origem ao inquérito n.º 184/21.4PhAMD, que correu termos no DIAP de Sintra, 6.ª Secção (violência doméstica), em virtude de os mesmos serem susceptíveis de consubstanciar a prática de um crime de violência doméstica [resposta ao artigo 93.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
41. O trabalhador, não só pela sua antiguidade na bem como pelo cargo que ocupava, tinha plena noção de que era expressamente proibido qualquer comportamento indesejado com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador [resposta ao artigo 101.º do ARTICULADO DO EMPREGADOR].
42. A generalidade dos colegas do trabalhador e BB apenas se apercebeu da existência de um relacionamento entre ambos quando lhes foi transmitido pela própria BB ou com o decurso do processo disciplinar [artigo 36.º da CONTESTAÇÃO].
43. À data do despedimento o trabalhador auferia a retribuição base mensal de € 730,00, acrescida de € 332,00 mensais a título de “margem livre” e de € 238,95 a título de retribuição especial por isenção de horário de trabalho [artigos 79.º da CONTESTAÇÃO e 110.º do ARTICULADO DE RESPOSTA].
44. No âmbito das funções inerentes à categoria profissional de “Empregado de Balcão de 2ª”, que desempenhou entre 01-04-2012 e 28-02-2013, o trabalhador manuseava dinheiro; no âmbito das funções inerentes às demais categorias profissionais que posteriormente desempenhou, de “Chefe de Balcão com funções de Gestor de Unidade / Gerente Principal” (desde 01-03-2013) e de “Chefe de Operações com as funções de Gestor de Unidade / Gerente Principal” (desde 01-03-2016), o trabalhador manuseava dinheiro e tinha a responsabilidade de o guardar, a fim de o depositar [artigo 83.º da CONTESTAÇÃO].
45. A mulher do trabalhador é também funcionária da empregadora há vários anos [artigo 93.º da CONTESTAÇÃO – ASSENTE POR ACORDO DAS PARTES].
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De Direito
Como escreve Rosário Palma Ramalho, in Tratado de Direito do Trabalho - Parte II - Situações Laborais Individuais”, Volume II, Almedina, 4.ª Edição - Revista e Atualizada ao Código do Trabalho de 2009, com as alterações introduzidas em 2011 e 2012 -, Dezembro de 2012, páginas 817 e ss., que para que surja uma situação de justa causa para este efeito, é necessário que estejam preenchidos os requisitos do art.º 351.º, n.º 1 do CT (…) de verificarão cumulativa:
- Um comportamento ilícito, grave, em si mesmo ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjetivo da justa causa);
- A impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objetivo da justa causa);
- A verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem que decorrer, efetivamente, do comportamento do trabalhador (…)
Assim, relativamente ao elemento subjetivo da justa causa é exigido que o comportamento do trabalhador seja ilícito, grave e culposo. (…)
i) A exigência da ilicitude do comportamento do trabalhador não resulta expressamente do art.º 351.º, n.º 1, mas constitui um pressuposto geral do conceito de justa causa para despedimento, uma vez que, se a atuação do trabalhador for lícita, ele não incorre em infração que possa justificar o despedimento. Contudo, a ilicitude deve ser apreciada do ponto de vista dos deveres laborais afetados pelo comportamento do trabalhador (…)
ii) O comportamento do trabalhador deve ser culposo, podendo corresponder a uma situação de dolo ou de mera negligência. Nos termos gerais, será de qualificar como culposa a atuação do trabalhador que contrarie a diligência normalmente devida, segundo o critério do bom pai de família, mas o grau de diligência exigido ao trabalhador depende também, naturalmente, do seu perfil laboral específico (assim, consoante seja um trabalhador indiferenciado ou especializado, um trabalhador de base ou um técnico superior, o grau de diligência varia). Relevam e devem ainda ser valoradas, no contexto da apreciação da infração do trabalhador, as circunstâncias atenuantes e as causas de exculpação que, eventualmente, caibam ao caso.
iii) O comportamento do trabalhador deve ser grave, podendo a gravidade ser reportada ao comportamento em si mesmo ou as consequências que dele decorram para o vínculo laboral (…) A exigência da gravidade do comportamento decorre ainda do princípio geral da proporcionalidade das sanções disciplinares, enunciado no art.º 330.º, n.º 1 do CT e oportunamente apresentado: sendo o despedimento a sanção disciplinar mais forte, ela terá que corresponder a uma infração grave; se o comportamento do trabalhador, apesar de ilícito e culposo, não revestir particular gravidade, a sanção a aplicar deverá ser uma sanção conservatória do vínculo laboral.
(…) Para além destes elementos subjetivos, só se configura uma situação de justa causa de despedimento se do comportamento do trabalhador decorrer a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral - é o denominado requisito objetivo da justa causa. Fica assim claro que o comportamento do trabalhador, ainda que constitutivo de infração disciplinar, não é, por si só, justa causa para despedimento; para que esta surja, é necessário que concorram os dois outros elementos integrativos.
Naturalmente, porém, a impossibilidade a que alude o art.º 351, n.º 1, do Código do Trabalho, densificando aliás o disposto no art.º 53 da Constituição, não é física ou legal, constituindo antes uma inexigibilidade: verifica-se quando nenhuma outra sanção seja susceptível de sanar a crise contratual grave aberta com aquele comportamento, quando seja irremediável a rotura, o que ocorre quando não se possa impor a um “bonus pater famílias”, um “empregador normal”, a manutenção do contrato. Dito de outro modo, quando o interesse do trabalhador na estabilidade laboral, protegido constitucionalmente pelo referido art.º 53, deva, ante uma sã valoração, ceder o passo, mercê da sua própria conduta incorrecta, ao interesse do empregador na extinção daquele vínculo (que também não é alheio a valorações constitucionais, nomeadamente em sede de liberdade de empresa); quando, em suma, o comportamento do prestador da actividade faz com que a pretensão da manutenção daquela situação laboral redunde numa insuportável e injusta imposição ao empregador, ferindo exagerada e violentamente a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador. “A gravidade do comportamento (do trabalhador) deve entender-se como um conceito objectivo-normativo e não subjetivo-normativo, isto é, a resposta à questão de saber se um determinado comportamento é ou não grave em si e nas suas consequências não pode obter-se através do recurso a critérios de valoração subjetiva mas a critérios de razoabilidade (ingrediente objetivo), tendo em conta a natureza da relação de trabalho, as circunstâncias do caso e os interesses da empresa”. (…) “Uma vez mais, não é pelo critério do empregador, com a sua particular sensibilidade ou a sua ordem de valores próprios, que se deve pautar o aplicador do direito na apreciação deste elemento, mas pelo critério do empregador razoável (Jorge Leite, cfr. “Colectânea de Leis do Trabalho”, pág. 250).
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Ora, não se vislumbra que a valoração feita pela sentença recorrida relativamente à justa causa mereça qualquer censura. Efetivamente, a conduta do recorrente é muito grave, surge no âmbito de uma relação laboral e põe em causa o ambiente seguro e sadio que deve existir no local de trabalho, e que cabe ao empregador assegurar (art.º 127/1/c, CT). Aliás, a matéria de facto é tão óbvia e descritiva (como resulta por exemplo dos n.ºs 24 e seguintes e 31 e seguintes da factualidade provada) que nenhuma dúvida subsiste sobre a inadmissibilidade de uma tal conduta. É também manifesta a conexão entre o seu comportamento e o espaço laboral, sendo evidente que o autor aproveitou o ambiente profissional para abordar a BB, levá-la a manter um relacionamento íntimo com ele e depois ameaçá-la com consequências infelizes se não acatasse a vontade do ora recorrente, tudo isto independentemente do efeito que tal pudesse ter para a mesma.
Note-se que, sendo a empregadora responsável por garantir o ambiente de trabalho seguro e sadio, as “boas condições de trabalho, do ponto de vista físico e moral” no dizer da lei, não é apenas a produtividade e o relacionamento com os clientes que está em causa. Consequentemente, a empregadora não deve permitir a existência de fatores ponham em causa essas boas condições de trabalho, sob pena de poder ser eventualmente responsabilizada.
Destarte conclui-se que a sentença não merece censura.
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Da litigância de má fé.
Nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 542.º do Código de Processo Civil, “diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão”.
Existe litigância de má fé quando a parte defende posição cuja falta de fundamento não desconheça ou não deva ignorar, deliberadamente falseie os factos ou omita factos essenciais ou utilize o processo com um objectivo ilegal, dificultando a ação da justiça ou impedindo a descoberta da verdade.
É de grande importância o “policiamento do processo6, em que intervém este instituto, na área processual laboral7, sem o que será muito mais difícil garantir não apenas a celeridade dos processos laborais mas até a justeza da decisão final8.
Não se descortinam, porém, quaisquer elementos que mostrem que a R. litigou de má fé, inexistindo motivo para a sancionar a este título.
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Deste modo, conclui-se que a sentença recorrida não merece censura
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Não se admite a junção dos documentos apresentados pelo recorrente com as alegações de recurso, determinando-se o seu oportuno desentranhamento e restituição ao requerente.
III.
Pelo exposto, o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a sentença recorrida.
Pelo não admissão dos documentos vai o A./requerente condenado no pagamento da multa de meia (0,5) UC.s (art.º 443/1, CPC e 27/1, RCP).
Custas do recurso pelo recorrente.

Lisboa, 24 de abril de 2024
Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega
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1. Cf. o que é corolário das regras do direito substantivo cível art.º 396 (“A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal”), 391 (“O resultado da inspecção é livremente apreciado pelo tribunal”) e 389 (“A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal”).
2. “O que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas processuais. O que decide é a verdade material e não a verdade formal” (Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Cb. Edit., 384).
3. “O princípio traduz-se principalmente no contacto pessoal entre o juiz e as diversas fontes de prova (Manuel de Andrade, idem, 386).
4. E ainda, acrescente-se, o da oralidade.
5. E o problema não está no mero áudio mas na natureza estática da documentação. Ainda que se grave som e imagem é fácil ver que só o Tribunal que recolhe a prova pode pôr as testemunhas à prova para dissipar duvidas, aperceber-se in loco de cumplicidades e tensões inconfessadas, etc.
6. “A litigância de má fé permite ao juiz, quando necessário, proceder a uma “polícia” imediata do processo” – Menezes Cordeiro, Litigância de Má-Fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa “In Eligendo”, 2ª ed. 2011, pag. 191
7. Veja-se sobre isto Alejandro Sosa Ortiz, “El proceso español del despido: un estudio comparado con el proceso nacional”, na Revista del Instituto de la Judicatura Federal, 71 e ss., disponível em http://www.ijf.cjf.gob.mx/publicaciones/revista/26/RIJ26-04FSosa.pdf, o qual, interrogando-se sobre as razões pelas quais é muito mais frequente o empregador negar, falsamente, o despedimento no México do que em Espanha, escreve: é que “no sistema espanhol há uma preocupação maior no sancionamento da conduta processual incorrecta, o que restringe o oferecimento de provas apócrifas, como testemunhos ou documentos falsos”. E uma das propostas que formula afinal consiste precisamente em “reprimir a conduta processual incorrecta das partes” (tradução do relator).
8. Exemplo de litigância de má fé é a situação, demasiado frequente, em que o empregador despede e depois nega-o nos autos, o mesmo se passando quando o trabalhador abandona o trabalho e acusa a contraparte de despedimento: em ambos os casos a parte sabe bem que está a mentir.
Exemplo de oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar será, cremos, o do empregador que despede sem procedimento disciplinar e ainda assim propõe-se arrastar a ação defendendo ter “razões atendíveis para a cessação”.