RECURSO PER SALTUM
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I. No que respeita à decisão sobre a pena, o Supremo tem reafirmado que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, não se tratando de um re-julgamento da causa; o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção, e não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância.
II. Não se justifica a intervenção correctiva do Supremo na pena de 6 anos e 6 meses de prisão aplicada a condenado por crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º do D.L 15/93, a quem foram designadamente apreendidas 84 embalagens de heroína com o peso líquido de 23,288g e 235 embalagens de cocaína com o peso líquido de 30,361g, e que, entre outras, sofrera já duas condenações em penas de prisão suspensa por crimes da mesma natureza.

Texto Integral




Processo n.º 60/22.3SWLSB.S1

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 60/22.3SWLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa -... foi proferido acórdão a condenar, entre outros, o arguido AA como co-autor de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º n.º 1 do DL n.º 15/93, na pena de 6 (seis) anos e 6 (seis meses) de prisão.

Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo:

“1. O douto acórdão proferido, na determinação da medida concreta da pena, não aplicou devidamente os critérios legais devidos, não tendo ponderado devidamente o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, nem o modo de execução nem a gravidade da consequência.

2. O douto acórdão proferido tão pouco teve em conta os sentimentos manifestados pelo recorrente no cometimento do crime nem os motivos que o determinaram.

3. O douto acórdão proferido tão pouco teve em conta as situações pessoais do recorrente e a sua situação económica.

4. O douto acórdão proferido não ponderou devidamente a confissão parcial dos factos feita pelo arguido quer em sede de audiência de discussão e julgamento, quer ao longo de todo o processo, nem o arrependimento sincero manifestado.

5. A pensa de prisão de 6 anos e 6 meses é manifestamente exagerada, e não teve em conta qualquer juízo de equidade de decisões proferidas por instâncias superiores quanto ao mesmo tipo de crime.

6. O grau de ilicitude dos factos praticados pelo arguido não pode considerar-se elevado, porquanto, não obstante estar em causa a proteção do bem jurídico saúde pública, os factos ocorreram apenas num único dia, o produto estupefaciente apreendido foi cocaína e heroína, cujo grau de pureza não está cabalmente demonstrado, e a quantidade apreendida é diminuta.

7. O modo de execução foi manifestamente amador, sem qualquer tipo de organização, não existindo qualquer planeamento prévio.

8. Aquando da prática dos factos, o recorrente atravessava um período de carência económica, o qual nem sequer foi mencionado pelo tribunal.

9. O recorrente é uma pessoa instruída, com um percurso de vida normal, que atravessou uma fase profissional menos positiva, causada em grande parte pela situação de desemprego decorrente da pandemia.

10. O recorrente, quer no inquérito, quer na instrução, sempre manteve a postura de confessar os factos.

11. Em sede de audiência de discussão e julgamento, o recorrente confessou parcialmente os factos, ou seja, confessou a prática do crime, não podendo confessar, por não corresponder à verdade, que tivesse qualquer plano ou organização com os demais arguidos.

12. O tribunal a quo aplicou ao arguido uma pena de prisão de 6 anos e 6 meses, manifestamente exagerada.

13. O tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos arts. 71º e 72º CP.

14. A pena de prisão aplicada, porque a conduta do recorrente deve ser sancionada, atenta a existência de ilícito criminal, confessado, deve ser reduzida.”

O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo:

“O arguido, não se conformando com tal decisão no que à medida da pena respeita, veio dela recorrer pugnando pela redução da pena em que foi condenado.

2. Defende, em síntese, que na determinação da medida concreta da pena, não aplicou devidamente os critérios legais devidos, não tendo ponderado devidamente o grau de ilicitude dos factos praticados pelo recorrente, nem o modo de execução nem a gravidade da consequência.

3. O crime pelo qual o arguido foi condenado é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos de prisão.

4. Para aplicar uma pena inferior, ou seja, junto do limite mínimo, teríamos de concluir que, no caso concreto, não se verifica qualquer circunstância que justifique situar a pena acima do limite mínimo da moldura penal, nomeadamente tendo em conta os elementos previstos – de forma não taxativa - no artigo 70º, 2, do Código Penal.

5. Todavia, atenta a gravidade da conduta praticada pelo arguido torna infundada a alegação de que deveria ser aplicada uma pena situada junto do limite mínimo da moldura penal.

6. Ora, não só, conforme salienta o acórdão recorrido, o recorrente agiu com dolo direto (o grau mais intenso de dolo, embora neste tipo de crime seja o normal), tem antecedentes criminais pela prática deste mesmo tipo de crime, ao que acresce que praticou os factos dos presentes durante o período de suspensão pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente.

7. Praticou o crime em grupo, agravando a perigosidade da conduta face aos casos, que também integram o tipo legal, de prática isolada do crime, grupo este que o arguido liderava e que agia com a divisão de funções, conforme resulta dos factos provados, em que o ora recorrente procedia à venda e geria o negócio, enquanto que os outros co-arguidos tinham como função essencialmente encaminhar os consumidores e exercer funções de vigilância, com vista a detetar a aproximação das autoridades policiais.

8. A confissão dos factos não assume grande relevância porque no essencial só assumiu os factos que foram presenciados pelas autoridades policiais durante as vigilâncias efetuadas e resultante das apreensões.

9. A atitude e postura mantida em julgamento não é demostrativa de qualquer censura ou arrependimento.

10. Estes elementos agravam a conduta praticada tornando infundada a alegação de que deveria ser aplicada uma pena mais reduzida, tornando a pena concreta aplicada adequada à gravidade da conduta e ao comportamento do arguido posterior aos factos.

11. Entendemos que a pena, tendo em conta a moldura penal aplicável, é adequada, tendo em conta os factos, a culpa grave e as elevadíssimas necessidades de prevenção geral e também especial.

12. As exigências de prevenção geral são igualmente muito elevadas, tendo em conta que o crime de tráfico é cometido com muita frequência, e que a sociedade em geral reprova estes crimes.

13. As elevadíssimas necessidades de prevenção, geral e especial, tendo em conta as condições pessoais do recorrente, à data dos factos com antecedentes criminais e o facto de ter praticado os mesmos no decurso do prazo de uma outra pena de prisão, e ter sido recentemente condenado em pena de prisão efetiva pela pratica do mesmo tipo de crime, impede que o arguido ainda beneficie da aplicação de uma pena que se situa a um nível inferior da pena em que foi condenado.

14. Por todo o exposto, o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.”

Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido e bem fundamentado parecer, concluindo que “a pena concreta aplicada respeita os princípios constitucionais da intervenção mínima, da proporcionalidade das penas e da igualdade, e sobretudo o princípio da culpa, pois a realização da justiça penal num Estado de Direito democrático tanto se alcança na proibição da punição sem culpa ou para além da culpa (nulla poena sine culpa – princípio da proibição do excesso), como se cumpre por meio de uma punição adequada dos culpados, quando necessária for para salvaguarda do interesse púbico subjacente ao respeito pelo Direito do próprio Estado (nulla culpa sine poena – princípio da realização do Estado de Direito); ou seja, a adequada proteção de bens jurídicos, enquanto finalidade principal das penas, deve estar alinhada com a reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade.

Neste caso, a reintegração ocorrerá através do cumprimento efetivo da pena aplicada, que não é excessiva, mas antes adequada e necessária à reação penal que o caso justifica, situando–se pouco abaixo do primeiro terço do intervalo da pena abstrata aplicável e que não deve merecer censura.”

O arguido nada acrescentou, o processo foi aos vistos e teve lugar a conferência.

1.2. O acórdão recorrido, na parte que releva para o recurso, tem o seguinte teor:

“1.1. Factos provados

1. Os arguidos no dia ........2022 congeminaram um plano que se traduzia na entrega concertada de produtos estupefacientes a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.

2. Na prossecução do apontado projeto, no dia ........2022, os arguidos encontravam-se na ..., em ....

3. Pelas 09h45m o arguido BB posicionou-se junto ao ..., da referida artéria.

4. Mais tarde, pelas 10h15m, os arguidos CC e DD juntaram-se ao arguido BB e todos conversaram entre si.

5. No decurso da conversação, o arguido BB indicou aos arguidos CC e DD onde estes se deviam posicionar e assumir a função de vigias.

6. Nessa sequência o arguido DD posicionou-se junto ao Lote 6-B, com visibilidade para a entrada Sul do bairro.

7. O arguido CC, por seu turno, colocou-se junto ao Lote 4-B, com visibilidade para a entrada Norte do bairro e para a ....

8. Imediatamente depois, o arguido BB entrou no referido ... e percorreu todos os seus andares, no sentido de verificar que aí não se encontravam elementos policiais.

9. O arguido BB regressou ao exterior do edifício, onde reuniu com os arguidos EE e FF, que ali se haviam dirigido.

10. O arguido BB deu indicações ao arguido FF para permanecer na entrada desse prédio a vigiar a via pública, o que este fez.

11. Depois, os arguidos BB e EE dirigiram-se juntos para o interior do ....

12. O arguido BB retirou do bolso do casaco um saco que continha embalagens com cocaína e heroína e colocou algumas delas nos bolsos das calças.

13. Cerca das 10h25m o arguido BB deu indicações aos arguidos EE e FF para fazerem entrar no ... os compradores de produtos estupefacientes que aguardavam junto à porta.

14. Os arguidos EE e FF acataram as instruções do arguido BB e encaminharam diversas pessoas para o interior do prédio.

15. O arguido BB manteve-se no interior do prédio e realizou vendas sucessivas de cocaína e heroína aos indivíduos que ali se dirigiram, dizendo-lhes “aqui não há fiado”, “guita na mão!”, “há cavalo e há branca, é só escolher”, “chega-te à frente”, entre outras expressões semelhantes.

16. Enquanto isso decorria, os arguidos EE e FF vigiavam a via pública, no sentido de alertaram o arguido BB, caso avistassem a polícia.

17. Aqueles arguidos também se asseguravam que as vendas de estupefacientes se desenvolviam em condições de segurança para o arguido BB, controlando os compradores de estupefacientes.

18. O arguido FF, que vestia um colete refletor e transportava um pincel e um balde de tinta para se fazer passar por um pintor da construção civil, dava ordens aos compradores de estupefacientes, dizendo-lhes “encosta à parede” e “olha a fila”, entre outras coisas.

19. Durante as aludidas entregas de estupefacientes os arguidos CC e DD vigiavam as entradas do bairro, como acima descrito, no sentido de avistar a presença da polícia.

20. Pelas 11h35 passou no local uma viatura da PSP, tendo os arguidos DD e CC imediatamente gritado “uga!”, expressão alusiva à polícia.

21. Alertado pelos referidos gritos, o arguido BB refugiou-se no interior no primeiro andar do ....

22. Depois da passagem da viatura policial, o arguido CC gritou “bora, tá limpo!”, o que permitiu a saída do arguido BB do seu refúgio.

23. Mais tarde, cerca das 12h00, a testemunha GG acorreu ao ..., a fim de adquirir heroína para o seu consumo pessoal.

24. O arguido BB entregou à testemunha GG uma embalagem que continha heroína com o peso líquido de 0,314g e recebeu em troca a quantia de €10.

25. Cerca das 13h05m uma viatura da PSP circulou no local, o que motivou que os arguidos CC e DD tenham gritado “uga!”.

26. Os arguidos BB e EE refugiaram-se no interior da fração sita no 1.º D, do referido ....

27. Os arguidos BB e EE saíram da fração, após o arguido FF ter gritado “tá limpo!”.

28. Pelas 13h30m diversos elementos da PSP avançaram na direção dos arguidos.

29. Os arguidos CC e DD gritaram, sucessivamente, a expressão “uga!”.

30. O arguido BB fugiu na direção da aludida fração, tendo sido intercetado pela PSP.

31. Os restantes arguidos foram igualmente intercetados pela polícia.

32. O arguido BB tinha consigo:

1. Oitenta e quatro embalagens que continham heroína com o peso líquido de 23,288g;

2. Duzentas e trinta e cinco embalagens que continham cocaína (éster metílico de benzoilecgonina) com o peso líquido de 30,361g;

3. A quantia de €596.

33. O arguido EE tinha consigo duas embalagens que continham cocaína (éster metílico de benzoilecgonina) com o peso líquido de 0,214g e a quantia de €47.

34. O arguido FF tinha consigo a quantia de €20.

35. Os arguidos destinavam os referidos produtos estupefacientes a terceiros, a troco de quantias monetárias.

36. As aludidas quantias monetárias foram entregues aos arguidos em troca de produtos estupefacientes.

37. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços e no desenvolvimento de um plano previamente arquitetado, com o propósito concretizado de receber e ter consigo os referidos produtos estupefacientes, cujas características, naturezas e quantidades conheciam, com o fito de os entregar a terceiros, a troco do recebimento de quantias monetárias.

38. Os arguidos atuaram de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

39. O arguido BB admitiu parcialmente a prática dos factos.

Das condições pessoais dos arguidos:

40. O arguido HH regista os seguintes antecedentes pessoais:

a) No processo n.º 35/16.1SWLSB, por acórdão, de 09.07.2018, transitado em 08.08.2018, foi o arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

b) No processo n.º 216/21.6SCLSB, por sentença, de 10.01.2022, transitada em 28.01.2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

c) No processo n.º 91/20.8SHLSB, por sentença, de 24.02.2022, transitada em 28.03.2022, foi o arguido condenado pela prática de um crime de difamação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00.

d) No processo n.º 46/21.5SWLSB, por acórdão, de 01.07.2022, transitado em 08.03.2023, foi o arguido condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

(…)

45. O arguido BB é o terceiro filho de uma fratria de 3 irmãos e o seu desenvolvimento decorreu no seio de uma família estruturada, com uma dinâmica relacional harmoniosa e uma boa relação entre irmãos.

46. Frequentou o ensino particular até ao 9º ano de escolaridade, que teve de deixar devido a dificuldades económicas decorrentes da insolvência da empresa para a qual o pai trabalhava e da doença cancerígena deste. Nos anos subsequentes e pelo facto do negócio da progenitora também passar por dificuldades, abandonou a escola quando completou o 12º ano, para começar a trabalhar.

47. Aos 18 anos ingressou no mundo laboral como rececionista e transportador de bagagens para o hotel Ritz, contrato interrompido temporariamente pelo cumprimento do serviço militar, ao fim do qual retomou funções no hotel, que se prolongaram por mais 2 anos. Até aos 26 anos manteve trabalho similar noutros hotéis, até ter ingressado como ... na .... Nesta empresa automóvel veio posteriormente a exercer o serviço rent a car para o mesmo grupo.

48. Entre 2013 iniciou funções na área de turismo, como motorista, salientando que o seu domínio de línguas estrangeiras contribuiu para um crescente sucesso profissional nesta função, em que se manteve durante vários anos e até à pandemia Covid 19.

49. BB estabeleceu uma relação afetiva em ..., vindo a casar em .... Desta relação nasceram 2 filhos atualmente com 22 e 16 anos. O seu casamento não foi bem aceite pela família do arguido devido a diferenças socio culturais entre as famílias.

50. Em ... como consequência da pandemia Covid 19, passou por uma situação prolongada de desemprego, com fortes constrangimentos económicos, que se refletiram a nível da subsistência do agregado familiar e tiveram um forte impacto negativo a nível emocional sobre o arguido.

(…)

Como fatores concretos da medida da pena, deverão ser levadas em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente (artigo 71.º, n.º 1), nomeadamente as circunstâncias elencadas no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal, designadamente:

O grau de ilicitude do facto (o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente).

A circunstância do grau de ilicitude da conduta ter relevado no precedente momento da determinação da moldura penal, sendo fundamental nessa escolha, não impede aquela outra intervenção. Com efeito, como sucede com vários outros tipos de crime previstos no Código Penal, a ilicitude intervém para agravar ou privilegiar o crime de tráfico de estupefacientes, numa primeira operação de determinação da medida da pena: a moldura penal abstrata. Numa segunda operação, é dentro dessa moldura penal, que funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- A intensidade do dolo ou negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

A pena tem, pois, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, o que quer dizer que não pode haver uma pena sem culpa, por um lado, e que é a culpa que determina a pena, por outro lado.

Sendo a culpa pressuposto da validade da pena e seu limite máximo, a pena concreta tem de fixar-se entre um limite mínimo já adequado a ela, e um limite máximo ainda adequado à mesma, ambos determinados também com a consideração das finalidades próprias da punição.

Quanto à pena concreta a fixar, dir-se-á que é elevada a ilicitude dos factos (estão em jogo múltiplos bens jurídicos que podem ser reconduzidos a um mais geral: a saúde pública, a modalidade da ação, a quantidade e qualidade do estupefaciente - cocaína e heroína - e o modo de execução) e o dolo é direto, São especialmente prementes as exigências de prevenção geral deste tipo de crimes, atenta a sua natureza, a gravidade das suas consequências nos indivíduos consumidores e na própria sociedade e a dimensão que o fenómeno atingiu, e de prevenção especial, atento o perigo de afastar os arguidos da prática de novos crimes.

Traficar, é fazer conscientemente mal a outrem, acto dotado de ressonância ética, punível dentro de uma moldura penal de 1 a 5 por aplicação do artigo 25.º do retro mencionado diploma legal.

A punição do narcotráfico, mais do que uma luta localizada, é um combate que se dirige a um flagelo à escala universal, conhecendo o consumo entre nós de heroína uma estabilização, o de cocaína um aumento ligeiro.

O traficante é insensível à desgraça alheia, cria alarme e insegurança e descrença nos órgãos aplicadores da lei caso estes não ofereçam um ponto ótimo de quantum punitivo capaz de assegurar uma tutela efetiva e consistente dos bens jurídicos, não sendo aconselhável descer abaixo de um limiar mínimo abaixo do qual, comunitariamente, a punição não realiza a sua finalidade, além do mais de proteção dos importantes bens jurídicos que põe em crise – cfr. Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português.

Por isso importa pela via da medida concreta da pena atuar sobre o comum dos cidadãos, dissuadindo-os do cometimento de futuros crimes, que, pela sua reiteração, criam alarme, insegurança e descrença nos órgãos aplicadores da lei caso estes não atinjam um ponto ótimo capaz de assegurar uma tutela efetiva e consistente dos bens jurídicos.

As condições pessoais e a situação económica dos arguidos que resultou provada e que aqui se dá por reproduzida, com relevância que os arguidos não tinham ocupação laboral estável.

O nível do comportamento posterior aos factos, leva-se em linha de conta que não admitiram a prática dos factos e não se mostraram arrependidos.

A opção dos arguidos de não admitir os factos de que se encontram pronunciados tem, como consequência lógica, a renúncia por parte dele ao benefício da atenuante da confissão e, na generalidade dos casos, também da do arrependimento.

A exclusão do benefício pelos arguidos das atenuantes da confissão e do arrependimento não consubstancia uma valoração em detrimento dos arguidos, mas, por outro lado, também não os beneficia.

Contra a maioria dos arguidos, à exceção do arguido FF (que não tem antecedentes criminais) milita o facto de terem antecedentes criminais, sendo que todos eles já foram condenados, entre outros, pela prática de crimes da mesma natureza.

O arguido BB praticou os factos dos presentes durante o período de suspensão pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, tendo sido recentemente condenado (em ........2023) em pena de prisão efetiva pela prática do mesmo tipo de crime.

Importa ponderar, ainda, as exigências de prevenção geral e especial, sendo indubitavelmente elevadas as necessidades de prevenção geral, numa sociedade em que se assiste a um constante aumento do tráfico e consumo de estupefacientes e o alarme social que ocasionam, não se podendo ignorar o número crescente de pessoas que se dedicam a atividade desta natureza, bem como as suas consequências nefastas em termos de saúde pública e o aumento da criminalidade.

Há que também ter em conta que nos termos do artigo 29.º do Código Penal cada comparticipante deverá ser punido segundo a sua culpa, levando a que se tenha em conta o diferente papel desempenhado pelos arguidos.

Assim, dadas as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir, e de forma a fazer os arguidos compreender a necessidade de não adotar condutas semelhantes no futuro, entende-se adequado fixar as seguintes penas:

- ao arguido BB a pena de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo artigo 21.º do DL 15/93.(…)”

2. Fundamentação

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), a questão a apreciar circunscreve-se à medida da pena.

O arguido recorrente encontra-se condenado como co-autor de um crime de tráfico de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1 do Dec. Lei 15/93 de 22 de janeiro, na pena de 6 anos e 6 meses de prisão. E não discute a decisão sobre a matéria de facto, nem a qualificação jurídica destes, pelo que a decisão, nessa parte é de considerar definitivamente estabilizada, uma vez que, do exame do acórdão, também não resulta a existência de vício do art. 410.º, n.º 2, do CPP ou de nulidade de que cumprisse conhecer oficiosamente.

Pugna tão só o recorrente pela redução da medida da pena, que não concretiza quantitativamente, invocando razões que, em grande parte, não correspondem com a realidade dos factos provados.

Assim, invoca-se que “o douto acórdão não ponderou devidamente a confissão parcial dos factos feita pelo arguido quer em sede de audiência de discussão e julgamento, quer ao longo de todo o processo, nem o arrependimento sincero manifestado”, quando tais factos não integram a matéria de facto provada, matéria que, como se disse, não foi objecto de impugnação e se encontra estabilizada no processo. Assim a conclusão de que “a pena de prisão aplicada, atenta a existência de ilícito criminal confessado, deve ser reduzida” carece totalmente de base factual que a sustente.

Diz-se também que não foram igualmente ponderados “os sentimentos manifestados pelo recorrente no cometimento do crime nem os motivos que o determinaram”, quando nada de mais concreto se provou a esse propósito, concretização, aliás, a que também não se procede minimamente no recurso.

Refere-se, de novo injustificadamente, que a pena proferida no acórdão se mostra desenquadrada do referente jurisprudencial.

Sabendo-se embora que cada caso transporta em si a natureza de caso único, é de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada (na expressão impressiva de Figueiredo Dias) de determinação da pena.

A preocupação com o referente jurisprudencial contribui decisivamente para a atenuação (e, se possível, erradicação) de eventuais disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena.

Sucede que o recorrente não consegue sustentar a afirmação que faz, no sentido de que a pena aplicada no acórdão contraria esse referente jurisprudencial, em medida bastante a justificar qualquer intervenção correctiva do Supremo.

Da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça não resulta que a pena concretamente determinada exceda as penas aplicadas em casos idênticos, ou seja, de tráfico de heroína e de cocaína, nas quantidades apuradas, praticado por arguido com um passado criminal como o do recorrente.

Recorde-se que os factos foram praticados a ........2022, tendo o arguido sofrido, anteriormente, as seguintes condenações: por acórdão, de ........2018, transitado em ........2018, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente, na pena de 4 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período; por sentença de ........2022, transitada em ........2022, pela prática de um crime de detenção de arma proibida na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00; por sentença, de ........2022, transitada em ........2022, pela prática de um crime de difamação na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 5,00; por acórdão, de ........2022, transitado em ........2023, pela prática de um crime de tráfico de estupefaciente de menor gravidade na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Mesmo abstraindo da última condenação, que é anterior aos factos mas cujo trânsito ocorre posteriormente, os antecedentes criminais do arguido revelam exigências de prevenção especial elevadíssimas.

E recorda-se que, no que respeita à decisão sobre a pena, o Supremo tem reafirmado que o recurso mantém o arquétipo de remédio jurídico, não se tratando de um re-julgamento da causa. Ou seja, o Supremo intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções no processo aplicativo desenvolvido em 1.ª instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a determinação da sanção. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de 1.ª instância.

Assim, e especialmente no que respeita à medida da pena, o recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de julgamento enquanto componente individual do acto de julgar. E a sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, direccionada para o (des)respeito de princípios gerais, das operações de determinação impostas por lei, da desconsideração dos factores de medida da pena, “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídica do Crime 1993, §254, p. 197).

É dentro da margem de actuação assim definida que o Supremo exerce os seus poderes fiscalizadores. E do que já se deixou dito, olhando o acórdão recorrido, mormente o excerto transcrito em 2., constata-se que se observaram ali as exigências formais de fundamentação em matéria de pena: as exigências de facto, selecionando-se e discorrendo-se sobre todos os factos que realmente relevavam na determinação da sanção, e as exigências de direito, enunciando-se correctamente o quadro legal aplicável. E assim se chegou, também materialmente, a uma medida de pena compreensivelmente justificada.

A pena de 6 anos e 6 meses de prisão responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária ao cumprimento das suas formalidades, e não pode dizer-se que exceda o limite da culpa do arguido.

A pena prossegue finalidades exclusivamente preventivas. “Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção geral e especial; a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais” (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral I, Coimbra Editora, 2004, p.81).

A prevenção geral positiva ou de integração apresenta-se como a finalidade primordial a prosseguir com as penas, não podendo a prevenção especial positiva pôr em causa o mínimo de pena imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, tendo a culpa como limite. Culpa sempre entendida como “censurabilidade do comportamento humano, por o culpado ter actuado contra o dever quando podia ter actuado «de outra maneira», isto é, de acordo com o dever” (Figueiredo Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, 1995, p. 244), devendo o agente ser censurado pela personalidade revelada no facto, pelos aspectos desvaliosos da sua personalidade contrários ao direito e revelados nesse facto.

A personalidade do arguido revelada nos factos mostra-se desvaliosa na medida de valoração adequadamente efectuada no acórdão. A pena de 6 anos e 6 meses de prisão situa-se abaixo do ponto médio da pena abstracta, que é de quatro a doze anos de prisão.

Em suma, partindo das finalidades e princípios enunciados, como se adiantou, seguiram-se no acórdão os passos legais de ponderação sobre a pena, identificando-se correctamente as exigências de prevenção geral e especial, e respeitando o limite da culpa. E constata-se que se atendeu a todas as circunstâncias destacadas pelo recorrente a que cumpriria atender (ou seja, as que resultam dos factos provados), contextualizando-as no conjunto dos factos provados que relevavam para a determinação da sanção. Nestes, atendeu-se designadamente à qualidade de estupefaciente transaccionado (cocaína e heroína), com elevado grau de erosão no tecido social, ao período em que decorreu a actividade criminosa (um dia), ao dolo (directo).

De notar que o recorrente nenhuma alusão fez aos seus antecedentes criminais, os quais tinham de influir concretamente contra ele, como se disse. Sofreu condenação anterior em pena de prisão suspensa pela prática de crime semelhante ao presente, a prisão suspensa revelou-se insuficiente na prevenção da recidiva, e a recidiva evidencia necessidades de prevenção especial elevadas.

O desaproveitamento total das oportunidades de ressocialização anteriores, por um lado, e a recidiva criminosa dirigida agora, pela terceira vez, contra o mesmo bem jurídico, pelo outro, exigem uma pena que assegure também a reposição da confiança na norma jurídica violada.

E as exigências de prevenção especial convergem aqui com exigências de prevenção geral. Desde logo, evidenciam-se razões de prevenção geral elevadíssimas, que as penas têm, em concreto, de satisfazer. Como se lê, entre muitos, no acórdão do STJ de 05-02-2016 (Rel. Manuel Matos), “o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado que na fixação da pena nos crimes de tráfico de estupefacientes deve-se atender a fortes razões de prevenção geral impostas pela frequência desse fenómeno e das suas nefastas consequências para a comunidade”.

E no último Relatório Europeu sobre Drogas, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (Relatório de 2021), em sede de “Infrações à legislação em matéria de droga” pode ler-se, no que respeita à cocaína:

“As apreensões recorde de cocaína são um sinal preocupante de um potencial agravamento dos danos para a saúde. A cocaína continua a ser a segunda droga ilícita mais comummente consumida na Europa, e a procura dos consumidores faz dela uma parte lucrativa do comércio europeu de droga para os criminosos. O número recorde de 213 toneladas de droga apreendida em 2019 indica um aumento da oferta na União Europeia. A pureza da cocaína tem vindo a aumentar na última década e o número de pessoas que iniciam tratamento pela primeira vez aumentou nos últimos 5 anos. Estes e outros indicadores indicam um potencial aumento dos problemas relacionados com a cocaína. (…) A cocaína foi a segunda substância comunicada com mais frequência pelos hospitais ... em 2019, estando presente em 22% dos casos de intoxicações agudas relacionadas com droga.”

E no que respeita à heroína, no mesmo Relatório explicita-se: “As grandes apreensões de heroína podem indicar um potencial aumento do consumo e dos danos. Com grandes quantidades de heroína apreendidas na Europa em 2018 e 2019, existe uma preocupação crescente quanto ao impacto que um aumento da oferta pode ter nas taxas de consumo. Tal como em 2018, em 2019 foram detetadas grandes remessas individuais em portos de países europeus, (…) refletindo uma diversificação do tráfico de heroína para além das rotas terrestres. Na Europa, os dados de início de tratamento e outros indicadores sugerem que as pessoas que consomem heroína constituem um grupo que está a envelhecer e a diminuir. No entanto, é necessária uma maior vigilância, para detetar eventuais alterações no consumo de uma droga que continua a estar associada a uma grande parte do ónus de doença e morte associado ao consumo de drogas na Europa.”

Em suma, as razões de prevenção, geral e especial, justificam, no presente caso, a pena aplicada no acórdão. Justificam-na pelas razões expostas e, também, pela constatação da inexistência de concretas circunstâncias de forte relevo, que pudessem intervir significativamente em sentido contrário, atenuando em concreto essas exigências. Contém-se ainda no grau de culpa do condenado.

3. Decisão

Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso, confirmando-se o acórdão.

Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 6 UC’s – (arts 513º /1 e 514º/1 CPP e 8º/9 e Tab. III RCP).

Lisboa, 17.04.2024

Ana Barata Brito, relatora

Antero Luís, adjunto

Pedro Branquinho Dias, adjunto