REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
CONFIRMAÇÃO DA SENTENÇA
REGULAÇÃO DO EXERCÍCIO DAS RESPONSABILIDADES PARENTAIS
ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES
CASO JULGADO
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Sumário


De acordo com os arts. 978º, 1, e 980º, d), do CPC e dos arts. 4º e 5º, 4, da Convenção de Haia sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões relativas às Obrigações Alimentares, é de rever e confirmar sentença proferida em tribunal suíço sobre acção que define prestação de alimentos relativa a menor, transitada em julgado, ainda que haja sentença posteriormente proferida em tribunal português, sobre regulação de responsabilidades parentais, incluindo as prestações de alimentos devidas, sem identidade de causa de pedir e com prevenção de jurisdição verificada pelo tribunal suíço, e sem se verificar inutilidade superveniente do reconhecimento pretendido da sentença estrangeira, produtora de efeitos nas circunstâncias de facto e termos relativos à petição correspondente e nos limites temporais de exequibilidade a que corresponde.

Texto Integral



Processo n.º 264/22.9YRCBR.S1


Revista (em 2.ª instância: art. 985º, 1, CPC) – Tribunal recorrido: Relação de Coimbra, ... Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. AA, solteira e maior, intentou a presente acção especial de revisão e confirmação de sentença estrangeira contra BB, solteiro e maior, visando a confirmação da sentença para todos os efeitos legais, designdamente para a regulação do exercício das responsabilidades parentais, alegando em síntese: (i) Autora e Réu são os progenitores de CC, menor, nascido em .../.../2017, em ..., Suíça; (ii) por sentença proferida pelo competente Tribunal de Comarca de ..., transitada em julgado, com efeitos desde 30/10/2018, atendendo a que Autora, Réu e o sobredito menor ali residiam àquela data, foi estabelecida a regulação do exercício das responsabilidades parentais referentes a este último, juntando certidão; (iii) impõe-se rever e confirmar aquela decisão judicial, nomeadamente para efeito de averbamento ao respectivo Assento de Nascimento do aludido menor, nos termos do preceituado na alínea f) do artigo 1.º do Código do Registo Civil, de modo a que produza plenos efeitos jurídicos em Portugal; (iv) a decisão em causa consta de documento cuja autenticidade e inteligência não merecem quaisquer dúvidas, havendo a mesma e sido objecto da necessária Apostila (Doc. 2); (v) provém de Tribunal estrangeiro cuja competência não foi provocada em fraude à lei, nem versa sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses; (vi) acresce que não se poderá invocar excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a Tribunal português, na justa medida em que não foi proferida, até ao presente, qualquer decisão judicial pela jurisdição portuguesa, com trânsito em julgado, sobre a mesma matéria, havendo a douta sentença sub judice sido proferida em momento anterior à instauração de qualquer acção de regulação do exercício das responsabilidades parentais junto de qualquer outro Tribunal; (vii) foram plenamente respeitados os princípios do contraditório e da igualdade das partes no processo que correu termos junto do Tribunal de Comarca de ..., referindo-se que a sentença proferida homologou um acordo alcançado entre Autora e Réu em sede do mesmo, subscrevendo ambos, pelo seu próprio punho, o documento que o corporizou (Doc. 2); (viii) a sentença em apreço não contém decisão contrária aos princípios de ordem pública internacional do Estado Português.


2. Citado, o Requerido apresentou Contestação e pugnou pela insusceptibilidade e indeferimento da revisão e confirmação pretendidas, alegando em suma: (i) a sentença estrangeira não procede a qualquer regulação das responsabilidades parentais, por um lado, como pelo outro, tal matéria já foi objecto de decisão, transitada em julgado, por parte de tribunais portugueses; (ii) a decisão que aqui se pretende rever e confirmar foi proferida por um tribunal suíço no dia 9 de outubro de 2018; (iii) a decisão em causa debruça-se única e exclusivamente sobre a obrigação alimentícia ao menor CC e em nada se confunde com algo muito mais abrangente como é o exercício da regulação das responsabilidades parentais contemplada pela legislação portuguesa, nomeadamente no RGPTC; (iv) no dia 31/12/2019, o menor e a requerente regressaram definitivamente a Portugal onde passaram a residir com carácter habitual e permanente desde então até à data presente; (v) desde o referido dia 31/12/2019 requerente e menor, ambos de exclusiva nacionalidade portuguesa, deixaram de ter qualquer ponto de contacto com o ordenamento jurídico suíço; (vi) o requerido (também ele de exclusiva nacionalidade portuguesa) também já abandonou, há sensivelmente um ano, definitivamente a Suíça, já não mais ali residindo ou trabalhando, deixando, assim, de ter qualquer ponto de contacto com aquele ordenamento jurídico; (vii) em face dos inúmeros desentendimentos entre requerente e requerido e pelo facto de as responsabilidades parentais quanto ao menor CC não se mostrarem reguladas (quer seja na Suíça, quer seja em Portugal), o aqui requerido instaurou no dia 2/9/2022, no Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., um processo de regulação das responsabilidades rarentais quanto ao referido menor, processo esse que viria a ser autuado sob o n.º 145/22.6...; (viii) a conferência de pais a que alude o disposto no art. 35º do RGPTC viria a ser realizada naqueles autos no dia 2/9/2022; (ix) no dia em que o presente processo de revisão e confirmação de sentença estrangeira deu entrada em juízo [25-10-2022], já aqueloutro, o único a debruçar-se efetivamente sobre o exercício e regulação das responsabilidades parentais, se mostrava pendente nos tribunais portugueses; (x) no dia 11/5/2023, em sede de conferência de pais quanto à regulação das responsabilidades parentais realizada no âmbito daquele processo n.º 145/22.6..., requerente e requerido lograram alcançar acordo quanto a todos os aspetos relacionados com a regulação das responsabilidades parentais do menor CC, à exceçpão do que diz respeito à prestação de alimentos, porque a aqui requerente a isso se opôs; (xi) requerente e requerido já acordaram naqueles autos quanto à regulação das responsabilidades parentais do menor; (xii) o referido acordo viria ali a ser homologado por sentença, transitada em julgado; (xiii) atenta a oposição manifestada pela requerente em fixar por acordo o valor de uma prestação alimentícia ao menor CC, foi, por douto despacho proferido naqueles mesmos autos no dia 2/6/2023, fixado um regime provisório quanto a alimentos devidos ao menor, despacho transitado em julgado, cujo regime nele previsto está em vigor e a ser cumprido; (xiv) a decisão que aqui se pretende rever e confirmar em nada se confunde com aquilo que é uma verdadeira regulação do exercício das responsabilidades parentais e resolução de questões conexas, como aquela que já se mostra parcialmente decidida pelo Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ... no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais sob o n.º 145/22.6..., onde apenas falta fixar o regime definitivo quanto a alimentos; (xv) a decisão proferida pelo tribunal suíço tem por pressuposto a residência do menor e da requerente naquele país, pressuposto esse que já deixou de estar verificado há mais de 3 anos e meio quando a requerente e o menor abandonaram definitivamente aquele país e há um ano atrás quando também o requerido o fez; (xvi) a requerente pretende que seja revista e confirmada uma sentença proferida por um tribunal suíço num momento em que nem requerente, nem requerido, nem menor têm qualquer elemento de contacto com aquele país, e assumidamente nem nenhum deles pretende vir a ter (pelo menos num futuro próximo), bem como num momento em que um tribunal português já decidiu precisamente a concreta matéria objecto daquela sentença estrangeira; (xvii) a requerente alega que se impõe rever e confirmar a decisão do tribunal suíço para efeito de averbamento no assento de nascimento do menor, nos termos do preceituado na alínea f) do art. 1.º do Código do Registo Civil, para que a mesma produza plenos efeitos jurídicos em Portugal, sendo que esta alínea f) tem por objeto a regulação do exercício do poder paternal, sua alteração e cessação – o que manifestamente não é o caso dos autos, onde apenas se pretende e rever e confirmar uma sentença que se debruça única e exclusivamente sobre um acordo quanto à obrigação alimentícia e não sobre a regulação do exercício do poder paternal, sua alteração e cessação em sentido amplo, pelo que o referido desiderato também não poderia alcançar pela presente via; (xviii) não assiste razão à requerente na justa medida em que os aqui requerente e requerido já acordaram na regulação das responsabilidades parentais do menor (à excepção da obrigação alimentícia porque a aqui requerente a isso se opôs), tendo tal acordo sido homologado por sentença já transitada em julgado; (xix) o sistema português de revisão de sentença estrangeira não se destina a um reexame do mérito da causa, mas tão só à verificação do preenchimento dos requisitos previstos nas diversas alíneas do art. 980.º do CPC; daquele elenco consta, nomeadamente, a alínea d), segundo a qual, “Para que a sentença seja confirmada é necessário [...] que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição”; nos termos do disposto no art. 983º n.º 1 do CPC, “O pedido só pode ser impugnado com fundamento na falta de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º (...)”; até à concessão do «exequatur», a sentença estrangeira é desprovida de efeitos no ordenamento jurídico nacional; as sentenças estrangeiras só relevam no nosso ordenamento jurídico após um processo de acolhimento interno; até à prolação da decisão de revisão e confirmação, a decisão proferida pelo tribunal estrangeiro configura-se apenas como um acto jurídico, com eficácia pendente, até que se mostre preenchida a condição requerida, ou seja, aquela decisão de revisão e confirmação proferida por tribunal português; admitir a revisão e confirmação da sentença estrangeira como pretende a requerente seria admitir a violação do caso julgado quanto às decisões entretanto já proferidas pelo Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ... no âmbito do processo de Regulação das Responsabilidades Parentais sob o n.º 145/22.6..., quer quanto à regulação (definitiva) das responsabilidades parentais do menor, quer também quanto ao regime provisório já fixado a título de pensão de alimentos, processo esse que já se mostrava pendente à data em que foi instaurado o presente processo de revisão; (xx) sem prejuízo, também já ocorreu a inutilidade superveniente desta lide, que tem de conduzir à extinção desta instância nos termos do art. 277º, alínea e), do CPC, a partir do momento em que a própria requerente aceitou regular por acordo a regulação das responsabilidades parentais do menor no Proc. n.º 145/22.6...


3. Notificada, a Requerente apresentou Resposta, alegando (transcrevendo-se sem numeração):


A – Do pedido constante da Petição Inicial


- Entende o Requerido que a presente acção não poderá proceder porquanto a Requerente solicitou a sua confirmação, para todos os devidos efeitos legais, “designadamente para que a regulação do exercício das responsabilidades parentais sub judice produza plenos efeitos em Portugal”, não tendo lugar na sentença revidenda qualquer “regulação do exercício das responsabilidades parentais” mas, tão-só, a fixação de alimentos devidos ao filho menor comum de ambos;


- Colocando de parte habilidades semânticas, dir-se-á que nos termos do disposto no artigo 1878.º do Código Civil, no que concerne ao conteúdo das responsabilidades parentais, compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los e administrar os seus bens;


- Decorrendo do artigo 1905.º do C.C., incluído na Subsecção IV (Exercício das responsabilidades parentais), a forma como são devidos alimentos ao filho em caso de divórcio;


- Consequentemente, caberá ao Tribunal, em sede de regulação do exercício das responsabilidades parentais, determinar a quem será confiada a criança, qual será a sua residência, qual o regime de visitas estabelecido por forma a permitir a partilha do tempo com a mesma, eventualmente a quem caberá a administração dos seus bens e, bem assim, fixar os alimentos devidos à criança;


- Ora, em sede da sentença revidenda, foi fixado o pagamento de uma pensão alímentícia pelo Requerido ao seu filho menor, solicitada pela Requerente, enquanto “proprietária de cuidado parental” – vide tradução junta aos presentes autos;


- Ou seja, tendo como pressuposto que o menor se encontrava confiado à sua mãe, aqui Requerente, e com ela residia foi fixado o valor a pagar pelo Requerido ao primeiro, a título de alimentos, porquanto seu progenitor;


- Atento o acima vertido, salvo o devido respeito por opinião diversa, a fixação de alimentos de progenitor a filho menor, destinado ao seu sustento, enquadra-se no âmbito da regulação do exercício das responsabilidades parentais, não sendo tal afastado pelo seu tratamento separado no âmbito dos artigos 40.º e 45.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e/ou 1905.º e 1906.º do C.C.;


- Em todo o caso, mesmo assim não sendo entendido, é evidente que tal não obstaria à confirmação da sentença que fixou os termos em que o Requerido deveria prover ao sustento do seu filho menor, mediante a fixação de uma prestação alimentícia, conforme expressamente requerido pela Requerente em sede de Petição Inicial;


- Em nada, rigorosamente nada, relevando para tal efeito se a referida fixação de alimentos integra ou não, efectivamente, a regulação do exercício das responsabilidades parentais;


B – Do objecto dos presentes autos já haver sido decidido, por decisão transitada em julgado, por parte de tribunais portugueses e consequente violação de caso julgado


- Sustenta também o Requerido que no âmbito do processo 145/22.6..., que corre actualmente seus termos pelo Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., em 02/06/2023, houve lugar à fixação de um regime provisório quanto a alimentos, o que obstará à confirmação pretendida pela Requerente;


- Ora, tal como resulta do douto despacho proferido pelo Juízo de Competência Genérica de ..., a decisão proferida relativa a alimentos terá apenas efeitos “de ora em diante, a nada obstando a pendência e até a confirmação de uma decisão estrangeira que teve por base uma situação pretérita distinta (a da residência da criança – e dos progenitores – na Suíça” – (sic);


- Havendo dissenso dos progenitores quanto à fixação de uma prestação alimentícia impunha-se àquele Tribunal assegurar provisoriamente o pagamento de uma pensão de alimentos a um filho menor, a fim de assegurar o seu sustento imediato, a qual, conforme expressamente reconhecido pelo Requerido nunca foi paga pelo mesmo;


- De qualquer forma, nos termos do disposto na alínea d) do artigo 980.º do Código de Processo Civil, a contrario sensu, a invocação da excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português apenas relevará se o tribunal estrangeiro não houver prevenido a jurisdição, o que manifestamente sucedeu no caso vertentevide, nesse sentido, o douto acórdão emanado deste Venerando Tribunal, de 21/09/2020, proferido por unanimidade, acessível in www.dgsi.pt;


- Com efeito, a sentença revidenda não só foi proferida no âmbito de um processo instaurado em data anterior à instauração daquele que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... (havendo este último sido instaurado em 02/09/2022, conforme documentação agora junta pelo Requerido), como transitou em julgado em data anterior (30/10/2018, conforme tradução junta aos autos);


- Do supra vertido decorre, assim, que não só o Tribunal Judicial da Comarca ... não se pronunciou quanto à fixação de alimentos devidos ao menor de forma definitiva como o fez em momento em muito posterior à jurisdição prévia do competente Tribunal da Suíça, devendo, assim, soçobrar a pretensão do Requerido, inexistindo, s.m.o., caso julgado relevante que obste à confirmação da sentença estrangeira sob apreciação;


C – Da alteração de residência da Requerente, Requerido e do menor, filho comum de ambos


- Diz, ainda, o Requerido que a Requerente alterou a sua residência para território português em 31/12/2019 e o próprio em Agosto de 2022, o que igualmente deveria obstar à confirmação da sentença revidenda;


- Ora, o próprio Requerido reconhece que em 09/10/2018 e 30/10/2018, data em que a sentença revidenda foi proferida e data em que transitou em julgado, ambas as partes nos presentes autos e, bem assim, o seu filho menor residiam em território suíço, sendo esse o Tribunal competente para proceder à fixação de alimentos devidos;


- Não se alcança de que forma a ulterior alteração de residência de todos os intervenientes possa ferir uma sentença proferida pelo Tribunal à data reconhecidamente competente de qualquer vício que obste à sua confirmação por este Venerando Tribunal.


D) - Da inutilidade superveniente da lide


- Invoca, por último, o Requerido, em verdadeiro desespero de causa, que estamos perante uma inutilidade superveniente da lide porquanto, entretanto, foi regulado o exercício das responsabilidades parentais referentes ao menor em causa;


- Ora, a inutilidade superveniente da lide ocorre quando sobrevém uma circunstância na pendência da lide que impede a manutenção da pretensão formulada, quer por via de desaparecimento de sujeitos ou do objecto do processo quer por se encontrar satisfação para a pretensão formulada fora do próprio processo, deixando de ter interesse a solução propugnada, dando lugar à extinção da instância sem apreciação do mérito da acusa – vide Acórdão do Venerando Supremo Tribunal de Justiça, de 22/06/2021, acessível in www.dgsi.pt, com a devida vénia parcialmente reproduzido;


- A pretensão imediata da Requerente, sendo essa salvo melhor opinião aquela a considerar, é a confirmação da sentença estrangeira sob apreciação e não outra, pelo que a decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ... em nada releva;


- Porém, mesmo a considerar a eventual pretensão mediata da Requerente, atento o conteúdo da sentença revidenda, teríamos que a pensão de alimentos devida ao menor pelo Requerido, ali discutida, não foi fixada de forma definitiva pelo Tribunal Judicial da Comarca ... não sendo, assim, satisfeita a sua pretensão fora do presente processo;


- Ademais, a sentença revidenda reporta-se à pensão de alimentos devida pelo Requerido ao seu filho menor desde Outubro de 2018, incluindo o abono de família devido a este último mas entregue ao seu progenitor, aqui Requerido, e não a mera pensão de alimentos fixada provisoriamente desde Junho de 2023, ou seja, de forma alguma seria a pretensão mediata da Requerente satisfeita com a decisão do Tribunal Judicial da Comarca ...;


- Carecendo, assim, o Requerido de razão quanto à verificação de tal excepção dilatória;


Acresce ainda que,


- A decisão deste Venerando Tribunal não se limita a uma mera leitura formalista do invocado pela Requerente e Requerido totalmente afastada da realidade que lhe é apresentada;


- Na verdade, conforme resulta inequivocamente dos autos, em Outubro de 2018 foi fixado pelo competente Tribunal suíço o pagamento de uma pensão de alimentos pelo Requerido ao seu filho menor, a qual reconhecidamente jamais foi paga e incluía a entrega do abono de família recebido pelo mesmo;


- Pretende o Requerido afastar a aplicação de uma sentença estrangeira que fixou a entrega da predita pensão de alimentos em 2018 ao seu filho menor, não só se eximindo de qualquer pagamento a esse título durante cinco anos como fazendo seu o abono de família a entregar àquele – Pasme-se !!!;


- A proceder a pretensão do Requerido, sendo improcedente a presente acção, haveria uma clara violação da ordem pública internacional do Estado Português, restringindo-se o direito do filho menor do mesmo ao seu sustento, durante cinco anos, e legitimando que o seu pai se apropriasse dos valores destinados ao segundo que lhe eram entregues em sua representação a título de abono de família;


- Tudo ao arrepio de válida decisão judicial proferida em sentido contrário, o que sempre seria inadmissível.


E – Concluindo


- O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras é, em regra, de revisão meramente formal, face ao que o Tribunal português competente para a revisão e confirmação deve verificar se o documento apresentado como sentença estrangeira revidenda satisfaz certos requisitos de forma, tal como elencados no artigo 980.º do C.P.C.;


- Da Oposição apresentada pelo Requerido não consta, salvo o devido respeito, a falta efectiva de qualquer dos requisitos mencionados no artigo 980.º ou algum dos casos de revisão especificados nas alíneas a, c) e g) do artigo 696.º, ambos do C.P.C.;


- Consequentemente, carece de fundamento válido para impugnar o pedido deduzido, nos termos do preceituado no artigo 983.º do C.P.C., a contrario sensu;


- Pelo que, s.m.o., deverá a presente acção ser julgada procedente, confirmando-se a sentença revidenda.”


4. Cumprido o art. 982º, 1, do CPC, foram apresentadas alegações pelo Ministério Público (favorável à revisão da decisão) e pelas partes.


5. Foi proferido acórdão no qual se confirmou a sentença a rever, proferida no Tribunal de Comarca de ..., Suíça, proferida em 9/10 e transitada em julgado em 30/10/2018, que fixou pensão alimentícia ao menor CC.


6. Inconformado, o Requerido pai interpôs recurso de revista para o STJ, tendo em vista a revogação do acórdão recorrido.


A Requerida apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.


7. Admitido o recurso e subidos os autos, o Requerido e Recorrente juntou cópia da sentença de homologação do acordo de regulação de responsabilidades parentais da criança CC, obtido no processo n.º 145/22.6..., do Juízo de Competência Genérica de ... (Tribunal Judicial da Comarca ...), com acordo definitivo sobre a prestação de alimentos, em conjugação com o regime de regulação acordado em 11/5/2023, nos termos do disposto nos arts. 283º e ss do CPC, e 37º, 2, do RGPTC (Lei 141/2015, de 8 de Setembro), ex vi art. 42º, e certidão comprovativa do respectivo trânsito em julgado em 20/3/2024 (cfr. ref.as CITIUS 204551 e 205200).





No exercício do contraditório, a Requerente e Recorrida veio aos autos, reiterando que “inexiste qualquer decisão judicial proferida pelos Tribunais portugueses que incida sobre a pensão de alimentos devida pelo Recorrente ao seu filho menor no período decorrido entre a data da prolação da sentença revidenda e a do despacho proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca ... em 02/02/2023, ou, muito menos, da sentença ora junta, proferida em 05/03/2024”, “produzindo tais decisões efeitos ex nunc e não ex tunc”, pelo que “não entende que as mesmas determinem a obrigação de proceder a qualquer pagamento a título de pensão de alimentos ao seu filho no período decorrido entre 09/10/2018 e 02/06/2023”.





Colhidos os vistos nos termos legais, sendo regular a instância, cumpre apreciar e decidir.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


1. Analisadas as alegações de recurso em conjugação com as respectivas conclusões, que delimitam o objecto recursivo, a questão decidenda reside na apreciação dos pressupostos de reconhecimento de sentença estrangeira em face das objecções do Recorrente, tendo em conta o previsto nos arts. 979º e 980º do CPC e na Convenção de Haia de 1973 sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões relativas às Obrigações Alimentares.


2. Factualidade apurada


Foi considerado provado como pertinente pelo acórdão recorrido o seguinte:


1. Autora e Réu são os progenitores de CC, menor, nascido em .../.../2017, em ..., Suíça.


2. Em 9/10/2018, foi proferida sentença, no Tribunal de Comarca de ..., onde foi estabelecida a regulação do exercício do poder paternal, relativamente a prestação alimentícia, referente ao menor CC, transitada em 30/10/2018.


3. Provém de Tribunal estrangeiro cuja competência não foi provocada em fraude à lei, nem versa sobre matéria da exclusiva competência dos Tribunais Portugueses.


4. No dia 31 de dezembro de 2019 o menor e a requerente regressaram definitivamente a Portugal onde passaram a residir com caráter habitual e permanente desde então até à data presente.


5. Desde o referido dia 31 de dezembro de 2019 que requerente e menor, ambos de exclusiva nacionalidade portuguesa, deixaram de ter qualquer ponto de contacto com o ordenamento jurídico suíço.


6. O aqui requerido instaurou no dia 02-09-2022 no Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ... um processo de Regulação das Responsabilidades Parentais quanto ao referido menor, processo esse que viria a ser autuado sob o n.º 145/22.6...


7. No dia 11-05-2023, (…) realizou-se a conferência de pais quanto à regulação das responsabilidades parentais realizada no âmbito daquele Proc.º n.º 145/22.6... do Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., tendo os pais do menor, chegado a acordo quanto às responsabilidades parentais, mormente às questões de particular importância para a vida do menor – referindo quanto a estas (que serão exercidas em conjunto, salvo os casos de urgência manifesta em que qualquer dos progenitores deverá agir sozinho, devendo prestar declarações ao outro, o exercício das responsabilidades parentais relativos aos actos da vida corrente do menor cabem à mãe, com quem sempre viveu e o qual continuará a residir, ou ao pai, quando com ele se encontre temporariamente. Porém, o pai não poderá contrariar as orientações educativas mais relevantes que sejam definidas pela mãe), acordaram também o regime de visitas, já não quanto à questão alimentícia), acordo homologado por sentença.


8. Em 2/6/2023 foi proferido despacho a fixar o regime provisório de alimentos, nos seguintes termos:


Pelo exposto, ao abrigo do estatuído no artigo 38.º do Regime Geral do Processo Tutelar Civil, decido fixar o seguinte regime provisório das responsabilidades parentais, a título de alimentos devidos a CC:


- O requerente/progenitor contribuirá, a título de alimentos, com a quantia mensal de € 120,00 (cento e vinte euros), a entregar à mãe/requerida, até ao dia 8 (oito) de cada mês, a efetuar por transferência bancária para a conta que a mesma virá a indicar nestes autos;


- As despesas médicas e medicamentosas (nas quais se inclui designadamente consultas médicas, cirurgias, internamentos, meios auxiliares de diagnóstico e vacinas medicamente prescritas), bem como as despesas escolares (nomeadamente com livros, materiais escolares, creche e ATL) serão suportadas por cada um dos progenitores, na proporção de metade para cada um, devendo a requerida/progenitora apresentar os documentos que comprovem esses pagamentos, que enviará ao requerente/progenitor e este pagará em 30 (trinta) dias após a sua receção, por transferência bancária para a conta a indicar por aquela para o efeito”.


9. A sentença a rever deu entrada em 25/10/2022.


Em acrescento, nos termos dos arts. 607º, 4, 663º, 2, e 679º, do CPC, releva ainda:


10. No âmbito do processo referido sob 6., foi proferida, em 5/3/2024, sentença de homologação do acordo definitivo de regulação das responsabilidades parentais da criança CC, integrando o acordo obtido em 11/5/2023 e o acordo definitivo quanto à prestação de alimentos, sentença esta transitada em julgado em 20/3/2024.


3. Direito aplicável


3.1. Nos termos do disposto no art. 978º, 1, do CPC, “[s]em prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada


Este reconhecimento, através de uma acção constitutiva, é condição para a produção e estabilização dos respectivos efeitos jurisdicionais na ordem jurídica interna: em primeiro lugar, para que o caso julgado material do país de origem da prolação da sentença seja eficaz, de modo que possa ser respeitado como imodificável (no seu efeito positivo e negativo) por qualquer outro tribunal no Estado de recepção quanto à situação jurídica regulada e dirimida1; em segundo lugar, para que se constitua como “título executivo” (v., desde logo, os arts. 703º, 1, a), e 706º, 1, do CPC); em terceiro lugar, para que possa valer como “título de registo” (arts. 7º (e 1º, 1) do CRCiv. e 711º do CCiv.).


Os requisitos necessários para tal revisão e confirmação estão determinados no art. 980º do CPC:


«a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;


b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;


c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;


d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;


e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem, e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;


f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.»





No que concerne ao sistema de reconhecimento de efeitos de sentença estrangeira, a nossa lei estabelece um sistema de reconhecimento individualizado, na medida em que faz depender o reconhecimento da verificação da conformidade da sentença estrangeira com determinadas condições normativamente indicadas, de índole formal e sem revisão de fund 2.


Em termos genéricos, este reconhecimento individualizado poderia implicar um controlo de mérito e/ou formal, sendo que o controlo de mérito tem vindo a ser abandonado progressivamente. Efectivamente, os sistemas de reconhecimento de decisões judiciais estrangeiras assentam numa confiança recíproca na administração da justiça no seio dos sistemas jurídicos dos países contratantes, que favorece o reconhecimento de sentenças proferidas no estrangeiro, a não ser em casos excepcionais que justifiquem a sua recusa; o nosso sistema de delibação assenta na “regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”3.





Porém, de acordo com a 1.ª parte do art. 978º, 1, há que observar preliminarmente as fontes internacionais (em especial, convenções multilalterais ou bilaterais) e as fontes de direito europeu, que, aliás, têm precedência sobre as fontes de direito interno, tal como determina o art. 8º da CRP.


Logo, no caso, sendo peticionado o reconhecimento de uma sentença proferida por um tribunal suíço, em 2018, situado fora da União Europeia, convoca-se o processo especial previsto nos arts. 978º e ss do CPC (em regra aplicável a decisões estrangeiras proferidas em processo de jurisdição voluntária4), devendo equacionar-se preliminarmente a aplicação de instrumentos internacionais dos quais a Suíça e Portugal façam parte.


3.2. Neste âmbito, tem plena aplicação a Convenção de Haia sobre o Reconhecimento e Execução das Decisões relativas às Obrigações Alimentares, de 2/10/1973 (doravante: Convenção)5, adoptada sob os auspícios da Conferência da Haia de Direito Internacional Privado (HCCC; Convenção n.º 23)6.


De acordo com o seu art. 1º, “é aplicável às decisões em matéria de obrigações alimentares provenientes de relações de família, de parentesco, de casamento ou de afinidade, incluindo as obrigações alimentares para com um filho ilegítimo, proferidas pelas autoridades judiciais ou administrativas de um Estado contratante entre: 1. Um credor e um devedor de alimentos; ou 2. Um devedor de alimentos e uma instituição pública que reclame o reembolso de prestação paga a um credor de alimentos. / É igualmente aplicável às transacções celebradas sobre esta matéria perante essas autoridades e entre essas pessoas”.


Dispõe o art. 4.º da Convenção que “uma decisão proferida num Estado deve ser reconhecida ou declarada executória noutro Estado contratante: 1. Se tiver sido proferida por uma autoridade considerada competente segundo os artigos 7.º ou 8.º; e 2. Se não puder já ser sujeita a recurso ordinário no Estado de origem. / As decisões provisoriamente executórias e as medidas provisórias são, embora susceptíveis de recurso ordinário, reconhecidas ou declaradas executórias no Estado requerido, se semelhantes decisões aí puderem ser proferidas e executadas”.


Pois bem.


A Convenção em análise exclui, expressamente, qualquer controlo de mérito ou de conteúdo intrínseco da decisão (art. 12º).


Por seu turno, os fundamentos de recusa encontram-se contemplados, de forma taxativa, no art. 5º:


«O reconhecimento ou a execução de decisão podem, contudo, ser recusados:


1. Se o reconhecimento ou a execução da decisão for manifestamente incompatível com a ordem pública do Estado requerido; ou


2. Se a decisão resultar de fraude cometida no processo; ou


3. Se existir litígio pendente entre as mesmas partes e com o mesmo objecto instaurado em primeiro lugar perante uma autoridade do Estado requerido; ou


4. Se a decisão for incompatível com outra proferida entre as mesmas partes e sobre a mesma matéria, quer no Estado requerido, quer noutro Estado, desde que, neste último caso, ele reúna as condições necessárias para o seu reconhecimento e execução no Estado requerido


3.3. Não se desconhece que a Convenção em análise (art. 23º) admite o seu próprio afastamento perante instrumentos internacionais que se afigurem, em concreto, mais favoráveis ao interessado no reconhecimento, nomeadamente quanto ao sistema de reconhecimento perante decisões relativas a alimentos legais. Mas essa não é questão que surja em recurso de uma decisão anteriormente proferida e que aceitou a competência para este processo especial. E é claro que o interesse da Autora no reconhecimento da sentença estrangeira em análise nos autos surge inteiramente acautelado por via da aplicação da Convenção de Haia: a sentença deve ser reconhecida caso (i) tenha sido proferida por quem tenha competência para o efeito e (ii) se mostre transitada em julgado, sendo que o reconhecimento apenas pode ser negado nos casos expressamente previstos no art. 5.º da Convenção.


Assim sendo.


3.4. A competência do Estado de origem encontra-se definida no art. 7º:


«A autoridade do Estado de origem é considerada competente no sentido da Convenção:


1. Se o devedor ou o credor de alimentos tinha a sua residência habitual no Estado de origem, quando da instauração do processo; ou


2. Se o devedor e o credor de alimentos tinham a nacionalidade do Estado de origem, quando da instauração do processo; ou


3. Se o demandado se submeteu à competência daquela autoridade, quer expressamente, quer ao defender-se sobre o mérito da causa sem reservas quanto à competência.»


Não restam dúvidas de que o devedor e o credor de alimentos residiam, à data da sentença, na Suíça, não estando em causa, como de resto resulta da posição assumida pelas partes, quaisquer questões relacionadas com a competência do tribunal de origem.


3.5. Não se colocam, de igual modo, quaisquer questões relacionadas com o carácter definitivo da sentença, já que resultou demonstrada a data do trânsito em julgado da decisão a reconhecer – cfr. facto provado 2.


3.6. Por fim, necessário se torna enfatizar posição sobre a alegada consideração de que a sentença estrangeira apenas produz efeitos após o seu reconhecimento pelos tribunais portugueses. É que – importa notar, em face da ligação com o requisito do carácter definitivo da sentença revivenda e a reconhecer – o momento do reconhecimento de efeitos da sentença estrangeira não coinicide com o da produção de efeitos stricto sensu.


Como explica a doutrina, no que toca à atribuição de força executiva, “[a] sentença estrangeira reconhecida tem o mesmo valor como título executivo que uma sentença interna do mesmo tipo”, registando-se “uma receção dos efeitos produzidos segundo o Direito do Estado de origem da decisão”; assegura “a harmonia de soluções com este Direito e evita a atribuição à sentença estrangeira de efeitos com que não se podia contar no momento da propositura da ação ou durante o desenrolar do processo” – princípio da equiparação7.


Neste contexto, os tribunais portugueses não têm o poder de determinar o momento da produção de efeitos de sentenças estrangeiras, podendo apenas reconhecer tais efeitos na nossa ordem jurídica. Isto significa que, ao contrário do que parece ser o entendimento do Recorrente, a sentença estrangeira não produz efeitos apenas após reconhecimento; pelo contrário, são os efeitos produzidos na ordem jurídica estrangeira, desde o início da sua produção, que são reconhecidos em Portugal, como se de uma decisão nacional, nos seus termos e efeitos, se tratasse8.


3.7. Prescrutando os fundamentos de recusa previstos no art. 5.º da Convenção, é manifesto que o único relevante, atenta a pretensão recursiva, é o constante do n.º 4: o reconhecimento da sentença deve ser recusado “se a decisão for incompatível com outra proferida entre as mesmas partes e sobre a mesma matéria, quer no Estado requerido, quer noutro Estado, desde que, neste último caso, ele reúna as condições necessárias para o seu reconhecimento e execução no Estado requerido”.


O Recorrente invoca que a sentença proferida no tribunal suíço não pode ser objecto de reconhecimento, na medida em que os progenitores já não residem na Suíça, mas sim em Portugal, sendo que os tribunais portugueses já proferiram decisões sobre a prestação de alimentos em processo de regulação parental: primeiro, em despacho com efeitos provisórios – cfr. facto provado 8.; depois, por sentença homologatória de acordo definitivo dos alimentos devidos ao menor – cfr. facto provado 10; e, por isso, não poderiam coexistir duas decisões judiciais sobre a mesma matéria.


Alega (Conclusão AA):


A partir do momento em que a recorrida aceitou regular POR ACORDO as responsabilidades parentais do menor CC no âmbito do processo de Regulação das Responsabilidades Parentais sob o n.º 145/22.6... e que o Juízo de Competência Genérica de ... fixou um regime provisório de alimentos que se encontra vigente e a ser cumprido pelo recorrente ocorreu a inutilidade superveniente desta lide, que tem de conduzir à extinção desta instância – cfr. art. 277.º alínea e) do C.P.C., pois deixa de fazer sentido reconhecer no ordenamento jurídico interno uma decisão de um tribunal estrangeiro quando os próprios tribunais portugueses já proferiram uma decisão transitada em julgado quanto a essa mesma matéria.”


Estaria, assim, encontrada uma eventual incompatibilidade com outra decisão proferida quanto às mesmas partes no Estado requerido.


Quid juris?


3.8. Em rigor, o Recorrente, numa primeira perspectiva, vem sustentar que o processo de regulação do exercício de responsabilidades parentais, intentado e decidido nos tribunais do Estado requerido – cfr. arts. 3º, c), d), 34º e ss, 45º-47º, RGPTC – constitui uma alteração superveniente que obsta à pretensão de reconhecimento de sentença estrangeira.


Mas o princípio não é esse: havendo, posteriormente à sentença revidenda, alteração de circunstâncias, ela não pode ser atendida no processo de revisão e confirmação, onde não há lugar à produção de prova de novos factos – pois a sentença revivenda vale factualmente por si só9 –, nem pode ser equacionada como tal para a recusa, pois essa consideração de factos supervenientes implicaria uma reanálise de mérito, que se mostra vedada pela Convenção e pelo sistema gizado pelos arts. 978º e 980º do CPC.


3.9. Numa segunda perspectiva, alega o Recorrente (Conclusão AC):


“Rever agora sentença estrangeira após a prolação de uma decisão por parte dos tribunais portugueses significa violar o caso julgado quanto às decisões transitadas em julgado entretanto já proferidas o Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ... no âmbito do processo de Regulação das Responsabilidades Parentais sob o n.º 145/22.6..., pois se as decisões proferidas por este tribunal estão em vigor, rever a sentença estrangeira significa necessariamente alterar e perturbar o que já se encontra definido e estabilizado no âmbito do ordenamento jurídico português quanto ao menor CC.”


Recorde-se que a al. d) do art. 980º impede o reconhecimento se houver excepção de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal português, que implicasse o surgimento de dois casos julgados contraditórios na ordem jurídica portuguesa: a decisão constitutiva de caso julgado no Estado requerido e a decisão a reconhecer e proferido no Estado estrangeiro.


Sem prejuízo, no caso.


Primus, falha sem mais a identidade do quadro factual tido em conta pelo tribunal suíço em relação ao que foi tido em conta para o acordo homologado no tribunal português quanto aos alimentos devidos à criança menor. Por isso, falha a identidade de causa pedir (na tríplice identidade exigida por lei), nos termos definidos no art. 581º, 4, do CPC, para a excepção de caso julgado no seu efeito negativo: «quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico». E, sem esta, não há repetição de causas que possa imputar à sentença a reconhecer a ofensa do caso julgado em tribunal português.


No entanto, secundus, não é possível essa invocação de ofensa de caso julgado negativo – estatui a mesma al. d), 2.ª parte, do art. 980º do CPC – «se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição».


Isto é: “deve ser negada a confirmação quando perante tribunal português esteja a correr ou foi já decidida ação idêntica à julgada pela sentença cuja revisão se pede, salvo se, antes de a ação ser proposta em Portugal, já havia sido intentada perante o tribunal estrangeiro. Nisto consiste o fenómeno denominado de prevenção da jurisdição, o qual pressupõe um caso de competência eletiva, isto é, que para a mesma ação sejam simultaneamente competentes dois tribunais de diferentes Estados (…)”10.


Se a acção de alimentos foi proposta primeiro na Suiça – tendo como pedido o pagamento de uma pensão “a pagar até à conclusão de uma formação inicial adequada, mas pelo menos até à maioridade” – e só depois em Portugal, o tribunal suíço preveniu a jurisdição, o que significa que o facto de o mesmo tipo de acção estar depois pendente em tribunal português ou ter sido depois decidida por sentença de tribunal português transitada em julgado não obsta a que a sentença suíça, no enquadramento factual e temporal a que respeita antes da sucessiva sentença portuguesa, e, in casu, transitada em julgado em 30/10/2018, seja confirmada.


Esta análise é ainda reforçada, tertius, pela natureza da decisão a reconhecer. De facto, não é possível ignorar que estamos na presença de uma sentença que fixa alimentos a menor, que não assume uma natureza imutável (correspondente à vida em evolução e formação de uma criança), estando em linha com a circunstância de o caso julgado correspondente às resoluções proferidas no processo chamado de jurisdição voluntária, tendo a mesma força e eficácia, “não possuem o dom da “irrevogabilidade”, pois podem ser modificadas com fundamento num diferente quadro factual superveniente que justifique a alteração (como o admite o art. 988.º do CPC)”11.


Veja-se que, como o próprio Recorrente reconhece, se verificou uma alteração das circunstâncias – mudança da progenitora requerente e do menor para Portugal (cfr. factos provados 4. e 5.) – que justificou um impulso da sua parte com vista à alteração dos alimentos devidos por este progenitor ao menor ou, se se preferir, uma nova regulação do exercício das responsabilidades parentais relativa a todos os aspectos da vida do CC (cfr. facto provado 6.), que se impunha face àquela alteração.


A situação relatada nos autos é, pois, idêntica ao que sucede em Portugal, já que, não raras vezes, através de sucessivas decisões judiciais, a pensão de alimentos é ajustada, uma e outra vez, à alteração das necessidades do alimentando ou da capacidade do alimentante – cfr. arts. 2012º do CCiv. e 42º, 1, do RGPTC.


Se assim é no confronto entre decisões judiciais portuguesas, não se vê como pode deixar de se observar o mesmo tratamento no caso de sucessão temporal de sentença estrangeira e sentença portuguesa, sem incompatibilidade de efeitos entre si e sem perturbação do definido em cada uma das sentenças sucessivamente proferidas no tempo e sem activação de casos julgados repetidos.


3.10. Aqui chegados, nem a alteração das circunstâncias, nem o proferimento de uma nova sentença no aqui Estado requerido, têm a virtualidade de privar de efeitos a sentença estrangeira, cujo caso julgado material, como vimos, se impõe desde a data da sua produção de efeitos, nos seus próprios termos de petição e com os seus limites temporais de exequibilidade a que corresponde, até ao início da produção de efeitos de nova decisão judicial com o mesmo objecto12.


Ora, como é consabido, os alimentos são devidos apenas desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora (art. 2006º do CC).


Se assim não fosse, estaria na disponibilidade de uma das partes, por via de um novo impulso processual, a desconsideração de uma decisão judicial eficaz, que, neste caso, conduziria a uma total desproteção do menor CC, cuja situação ficaria, durante vários anos e num quadro territorial originariamente distinto, sem qualquer regulação, no que aos alimentos diz respeito – referimos o período entre 31/10/2018 a 1/9/2022 (cfr. factos provados 2. e 6.) –, desde logo importante para a eventual convocação do regime da efectivação dos alimentos devidos e não satisfeitos.


3.11. É também por este motivo que não se vislumbra qualquer inutilidade superveniente no reconhecimento da sentença estrangeira que fixou alimentos ao menor CC no tribunal suíço, susceptível de conduzir à extinção da instância nos termos do art. 277º, e), do CPC.


Neste particular, acompanhamos integralmente o entendimento do acórdão recorrido, que se sufraga:


Porquanto, no processo n.º 145/22.6... do Juízo de Competência Genérica de ... do Tribunal Judicial da Comarca ..., se pede a regulação da relação parental do menor CC, onde se incluiu a pensão alimentícia, porém, só a partir da entrada do processo, sendo que, na sentença revidenda os alimentos são devidos desde 1/11/2018 e por essa razão, não se poderá afirmar, quanto a nós, que a prestação de alimentos, aludida na sentença revidenda, se encontre salvaguardada, nos presentes autos, desde logo, por em caso de incumprimento da prestação alimentícia, ficar a requerida sem possibilidade de reação.


Assim, quanto a nós, não se pode dizer, que a solução pretendida, revisão de sentença estrangeira, deixe de ter interesse, com base nos presentes autos”.


Como é evidente, tem a progenitora inteira legitimidade para peticionar o reconhecimento da sentença estrangeira, como antecâmara de uma eventual execução, já que durante todos os anos que mediaram o proferimento da sentença estrangeira e o proferimento da sentença portuguesa, continuou a suportar encargos relacionados com a vida do seu filho CC, quando estava o Recorrente obrigado por sentença a participar naqueles encargos.


Ora, se é certo que a mudança de residência pode causar um desacerto temporário entre os alimentos fixados pela sentença estrangeira e a realidade vivida pelo alimentante e pelo alimentado, não deixa de ser verdade que tal não implica uma qualquer limitação à produção de efeitos da sentença, nomeadamente a fixação da obrigação a cargo do alimentante.


Seja como for, até que, por impulso das partes, a pensão de alimentos venha a ser alterada por nova decisão judicial, continua a produzir efeitos a primeira sentença proferida que corresponde, no caso dos autos, à única sentença existente até à sentença proferida pelos tribunais portugueses.


O mesmo é dizer: o proferimento de uma sentença de fixação de alimentos para futuro não torna inútil ou ineficaz uma outra decisão judicial proferida anteriormente, que apenas tem a virtualidade de produzir efeitos até que uma nova decisão, que verse sobre a mesma obrigação de alimentos, mas agora com referência a novas circunstâncias de facto e de direito, venha a ser proferida.


No caso que nos ocupa, na medida em que o menor CC continuou a necessitar de alimentos após o proferimento da sentença suíça, não se mostra inútil (como causa de extinção da instância) o pedido de reconhecimento em análise, até porque, como vimos, tal reconhecimento se mostra necessário à constituição da sentença como título executivo.


III) DECISÃO


Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


Custas pelo Recorrente.


STJ/Lisboa, 30/4/2024


Ricardo Costa (Relator)


Leonel Serôdio


Maria Amélia Ribeiro


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)


_________________________________________________

1. V., desenvolvidamente, LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado, competência internacional e reconhecimento de decisões estrangeiras, Vol. III, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2012, págs. 349 e ss, 478.↩︎

2. V. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado… cit., págs. 374 e ss.↩︎

3. Por todos, ANTÓNIO FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, Almedina, Coimbra, 2000, págs. 462 e ss, em esp. 464.↩︎

4. V., para esta qualificação do processo ultimado pela sentença proferida e a reconhecer, de acordo com a nossa ordem jurídica, os (quanto a «providências tutelares cíveis») arts. 3º, d), 12º («Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária.») e 45º-48º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível (RGPTC; Lei 141/2015), e 986º-988º do CPC.↩︎

5. Aprovada para ratificação pelo Decreto 338/75, de 2 de Julho; com início de vigência relativamente a Portugal em 1 de Agosto de 1976 (Aviso in DR de 9/5/1977); in https://gddc.ministeriopublico.pt/.↩︎

6. Para os Estados-membros e respectivas Autoridades, cfr. https://www.hcch.net/pt/states/hcch-members; https://www.hcch.net/pt/states/authorities.↩︎

7. LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado… cit., págs. 350-351.↩︎

8. Neste sentido, v., entre outros, o Ac. do STJ de 23/3/2021, processo n.º 2652/19, Rel. GRAÇA AMARAL, in www.dgsi.pt: “Trata-se, pois, de um sistema de simples revisão formal em que o princípio do seu reconhecimento reside na aceitação da competência do órgão de onde emana, limitando-se o tribunal a verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema de origem, impondo-se, para o efeito, a observância dos requisitos previstos no artigo 980.º, do CPC, sendo de conhecimento oficioso a verificação dos pressupostos a que se referem as alíneas a) e f) do citado artigo 980.º”.↩︎

9. Ac. do STJ de 2/12/2020, processo n.º 210/19, Rel. PEDRO LIMA GONÇALVES, in www.dgsi.pt.↩︎

10. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, Código de Processo Civil anotado, Vol. II, Processo de execução, processos especiais e processo de inventário judicial, Artigos 703º a 1139º, Almedina, Coimbra, 2020, sub art. 980º, pág. 428; v. ainda ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, “Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações ao regime anterior)”, Aspectos do novo processo civil, Lex, Lisboa, 1997, págs. 120-121, LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado, Volume III, Tomo II, Reconhecimento de decisões estrangeiras, 3.ª ed., AAFDL Editora, Lisboa, 2019, págs. 224-226.↩︎

11. Ac. do STJ de 13/9/2016, processo n.º 671/12, Rel. ALEXANDRE REIS, in www.dgsi.pt.↩︎

12. V., quanto aos efeitos declarativos e constitutivos da sentença revivenda, v. ANTÓNIO FERRER CORREIA, ob. cit., pág. 454, LUÍS LIMA PINHEIRO, Direito internacional privado… cit., pág. 349.↩︎