PERDÃO DE PENAS (LEI 38-A/2023
DE 2.08)
PENA ÚNICA
PENAS DE MULTA IGUAIS OU INFERIORES A 120 DIAS
Sumário

I - Nas situações de condenação em pena única resultante da realização de cúmulo jurídico que englobou penas parcelares de multa aplicadas pela prática de crimes não excluídos do perdão e da amnistia nos termos previstos no artigo 7º, nº 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, o perdão estabelecido pelo artigo 3º, nº 2, alínea a) da referida lei deverá aplicar-se tão somente à pena única – nos termos previstos no nº 4 do mesmo preceito – não sendo aplicável às penas parcelares nas situações em que a pena única, atenta a sua dosimetria, se encontre fora do campo de aplicação da referida norma.
II - Em tais situações, não haverá, pois, que desfazer o cúmulo efetuado na sentença condenatória, por forma a aferir da aplicabilidade do perdão relativamente a cada uma das penas parcelares, uma vez que tal operação se encontra ab initio vedada pela determinação expressa de que o perdão apenas poderá ser aplicado à pena única abrangida pela previsão da norma que o estabelece.
III - Ao eleger a pena única como referente para determinar os pressupostos da aplicação do perdão, o legislador quis excluir as situações em que as várias condutas criminosas, valoradas conjuntamente, de acordo com as regras estabelecidas para a realização do cúmulo jurídico, tenham determinado a aplicação de uma pena única que, atendendo à imagem global do facto e exprimindo a gravidade do comportamento do condenado, seja superior à dosimetria máxima estabelecida para aplicação da referida medida de graça.
IV - Na previsão do artigo 3º, nº 2, alínea a) da Lei 38-A/2023, de 2 o legislador pretendeu incluir as penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 dias, estando, pois, excluídas da aplicação do perdão as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa

Texto Integral

Acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I - Relatório.

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Competência Genérica de …, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o n.º142/22.1PAMRA, foi proferido despacho indeferindo a aplicação ao arguido AA, identificado nos autos, do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Perdão de Penas e Amnistia de Infrações).

Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo apresentado, após a motivação, as conclusões que passamos a transcrever:

“I. O Ministério Público não se conforma com o despacho proferido nos autos que decidiu não aplicar o perdão de penas aplicadas ao arguido, com menos de 30 anos, à datada pratica dos factos, pelos crimes de ameaça agravada, na pena parcelar de 60 dias de multa e pelo crime de detenção de arma proibida, na pena parcelar de 120 dias de multa, ainda que em cúmulo de penas tenha sido o arguido condenado em 140 dias de multa.

II. Pois que o tribunal a quo entendeu que não era de aplicar a Lei 38-A/2023 de 2 de agosto, porque “Ora, dos referidos preceitos legais resulta que, perdendo as penas individuais autonomia por inseridas num cúmulo do qual resultou uma pena única, é esta que releva para aferir da verificação dos pressupostos da aplicação do perdão”,

III. O tribunal a quo entendeu assim que a pena aplicada em cúmulo seria a determinante, independentemente das penas parcelares aplicadas por outros crimes excluídos da lei da amnistia,

IV. Como se de uma pena unitária se tratasse, e não uma pena única, conforme optou o legislador português, contrariando assim as já sobejamente conhecidas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no processo sob o n.º 790/10.2JAPRT.S1, de 16-05-2019, disponível em www.dgsi.pt quando diz que “Optou o legislador penal, na punição do concurso de crimes, por um sistema de pena conjunta, e não de pena unitária, uma vez que impôs a fixação das penas correspondentes a cada um dos crimes em concurso, e é das penas parcelares que se parte para a fixação da moldura penal do concurso (enquanto que, segundo o sistema de pena unitária, seria aplicável uma única pena ao agente, sem determinação prévia das penas referentes a cada infração)”.

V. Uma vez que entrou em vigor legislação que procedeu a “alteração das circunstâncias que determinaram a condenação do arguido”, importaria, antes “anular (ou “desfazer”) o(s) cúmulo(s) anterior(es), e considerar somente, para a elaboração do novo cúmulo, o conjunto das penas parcelares, que readquirem autonomia”.

VI. Diga-se ainda, que, a proceder o despacho recorrido, seria o convite ao não pagamento da pena única de 140 dias de multa, e mercê da não existência de bens penhoráveis, ser esta substituída por pena de prisão, reduzida em 2/3, agora para 93 dias, e ali beneficiar o arguido do perdão da pena, por conta dos crimes pelos quais foi condenado.

VII. Não fazendo jus ao princípio basilar do direito penal, quanto ao princípio do conteúdo mais favorável ao arguido, nos termos e para os efeitos do n.º 4 do artigo 2.º do Código Penal.”

o despacho recorrido revogado e o arguido beneficiado no perdão da pena em 60 dias de multa pelo crime de ameaça agravada, e em 120 dias de multa pelo crime de detenção de arma proibida, nos termos e para os efeitos dos artigos para os efeitos do n.º 1, do artigo 2.º; al. a), do n.º 2 do artigo 3.º e artigo 7.º, à contrário, da Lei n.º 38-A/2023.”

Termina, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a aplicação do perdão às penas parcelares pelas quais o arguido foi condenado nos presentes autos.

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O recurso foi admitido, não tendo sido apresentadas contra-alegações.

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A Exm.ª Procurador Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.

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Não foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2 do CPP em virtude de não existirem sujeitos processuais afetados pelo recurso.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e tendo sido realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

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II – Fundamentação.

II.I Delimitação do objeto do recurso.

Nos termos consignados no artigo 412º nº 1 do CPP, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente na sua motivação, as quais definem os poderes cognitivos do tribunal ad quem, sem prejuízo de poderem ser apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

Em obediência a tal preceito legal, a motivação do recurso deverá enunciar especificamente os fundamentos do mesmo e deverá terminar pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, nas quais o recorrente resume as razões do seu pedido, de forma a permitir que o tribunal superior apreenda e conheça das razões da sua discordância em relação à decisão recorrida.

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:

- Determinar se a decisão recorrida, ao indeferir o requerimento do Ministério Público solicitando a aplicação ao arguido do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não respeitou os critérios legalmente estabelecidos para o efeito e, consequentemente, se deverá ser revogada.

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II.II - A decisão recorrida.

O requerimento do Ministério Público no sentido de que se procedesse à aplicação ao arguido do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, mereceu a prolação do despacho recorrido, com o seguinte conteúdo:

“Com a entrada em vigor da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, estabeleceu-se um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, aplicável a ilícitos cometidos até às 00:00 horas de 19/06/2023 por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos – cfr. artigos 1.º e 2.º, al. a), do referido diploma legal.

Por sentença transitada em julgado a 30/06/2023, o arguido, nascido a …/10/2004, foi condenado pela prática a 17/09/2022, em concurso efetivo, de um crime de ameaça agravada, na pena parcelar de 60 dias de multa, e de detenção de arma proibida, na pena parcelar de 120 dias de multa, e, após cúmulo jurídico, na pena única de 140 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

Determina o artigo 3.º, n.º 2, al. a) e 4, da Lei n.º 38-A/2023, que são perdoadas as penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão, sendo que no caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

Ora, dos referidos preceitos legais resulta que, perdendo as penas individuais autonomia por inseridas num cúmulo do qual resultou uma pena única, é esta que releva para aferir da verificação dos pressupostos da aplicação do perdão.

É esta a posição que, no nosso entender, sufraga Pedro José Esteves de Brito ao referir que “o perdão deve incidir sobre a pena única obtida a partir do cúmulo jurídico de todas as penas parcelares”, daí que, no caso de conhecimento superveniente de concurso em que ainda não tenha sido efetuado cúmulo jurídico, “em primeiro lugar deverá proceder-se a este e só depois, se for o caso, deverá aplicar-se o perdão à pena única fixada.”

Por tudo o exposto, tendo em consideração que o perdão incide sobre a pena única pois a lei não distingue a natureza da pena quando em causa esteja um concurso de crimes e que esta no caso é superior a 120 dias – 140 dias –, não é aplicável ao arguido o regime estabelecido na Lei n.º 38-A/2023, nada havendo a descontar.”

***

II.III - Apreciação do mérito do recurso.

Compulsados os autos, constatamos que, para análise da questão que somos chamados a apreciar, releva a seguinte factualidade:

- Por sentença datada de 31.05.2023 foi o arguido condenado nos seguintes termos:

a) Pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, n.º 1, al. a) do CP na pena de 60 (sessenta) dias de multa;

b) Pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1 d) ex vi do artigo 2.º, n.º , m) e 3.º, n.º 2, ab) do RJAM (Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro), na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa.

c) Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfez um total de 770,00 € (setecentos e setenta euros).

- Em 26.09.2023 o Ministério Público requereu se procedesse à aplicação ao arguido do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

- Tal requerimento mereceu a prolação do despacho recorrido através do qual se indeferiu a aplicação do perdão com fundamento na circunstância de a pena única aplicada ao arguido nos presentes autos ser superior a 120 dias de multa.

*

Defende o Ministério no seu recurso dever ser revogada a decisão recorrida, fazendo assentar a sua pretensão em duas ordens fundamentais de argumentos:

- Em primeiro lugar sustenta o recorrente que, ao considerar, para efeitos do n.º 2, al. a) do artigo 3.º da Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que a pena aplicada em cúmulo seria a determinante para afastar ou não a aplicação do perdão, o tribunal a quo considerou “uma pena unitária e não uma pena única, contrariando, com essa interpretação, o legislador português”.

- Em segundo lugar, propugna o recorrente que “para efeitos do n.º 4, do artigo 3.º da citada lei, “ Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, este encontra-se, diretamente ligado ao n.º 1 do mesmo artigo, e não ao n.º 2, al. a), pois que o n.º 1 do artigo 3 dispõe que “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”.

E é com base em tais argumentos que o recorrente conclui que o perdão estabelecido pelo artigo 3.º, n.º 2, al. a) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto deveria ter sido ser aplicado a cada uma das penas parcelares aplicadas nos autos ao arguido e não à pena única resultante do cúmulo jurídico no qual aquelas foram incluídas e que, não tendo procedido de acordo com tal entendimento, o tribunal desrespeitou o princípio da aplicação ao arguido da lei de conteúdo mais favorável, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 4 do CP.

Cremos, porém, que lhe não assiste razão e que não procedem os argumentos apresentados.

Importa, antes de mais, proceder à delimitação do quadro legal aplicável à situação que nos ocupa.

Dispõe o artigo 3º da citada Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, que:

“Artigo 3.º

Perdão de penas

1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.

2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

b) A prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa;

c) A pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição; e

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova.

3 - O perdão previsto no n.º 1 pode ter lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena.

4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.

5 - O disposto no n.º 1 abrange a execução da pena em regime de permanência na habitação.

6 - O perdão previsto no presente artigo é materialmente adicionável a perdões anteriores.” (1)

*

Conhecida a norma reguladora da situação com a qual o recurso nos confronta, importa primeiramente assentar em que a condenação dos presentes autos se enquadra subjetiva e temporalmente no regime de clemência estabelecido pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto. Com efeito, tendo o arguido nascido em ….10.2004 e sido condenado por factos praticados em 17.09.2022, constatamos que os crimes pelos quais o mesmo foi condenado ocorreram em data anterior a 19 de junho de 2023, e que o arguido tinha à data dos factos menos de 30 anos de idade, cumprindo, pois, os requisitos estipulados pelo artigo artigo 2.º, n.º 1, da referida Lei, a saber: terem os ilícitos sido praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática dos factos.

No que diz respeito ao mérito da decisão recorrida, concordamos inteiramente com sentido da mesma. Vejamos.

O cerne da questão a decidir centra-se na interpretação do normativo transcrito, especialmente para efeitos de determinação das penas de multa que deverão considerar-se abrangidas pelo perdão de penas aí estabelecido. Mais concretamente, caberá determinar se nas situações de condenação em pena única resultante da realização de cúmulo jurídico que englobou penas parcelares de multa aplicadas pela prática de crimes não excluídos do perdão e da amnistia nos termos previstos no artigo 7º, nº 1 da Lei em referência – situações nas quais se inclui a dos presentes autos – o perdão estabelecido pelo artigo 3º, nº 2, alínea a) acima transcrito deverá aplicar-se tão somente à pena única – nos termos previstos no nº 4 do mesmo preceito – ou se o mesmo é igualmente aplicável às penas parcelares nas situações em que a pena única, atenta a sua dosimetria, se encontre fora do campo de aplicação da referida norma.

Ora, atendendo aos termos da previsão do nº 4 do mencionado artigo 3º, não temos dúvida em concluir que a opção legislativa foi no sentido de que, em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incidisse sempre sobre pena única, nenhuma margem tendo sido deixada ao aplicador para desfazer o cúmulo e para proceder à aplicação do perdão às penas parcelares que o integram.

Este tem sido, aliás, o entendimento praticamente unânime que tem vindo a desenhar-se na jurisprudência dos nossos tribunais superiores sobre a questão em análise. (2) E, a nosso ver, os argumentos em que se ancora sustentam cabalmente a solução preconizada.

Com efeito, a redação do nº 4 do artigo 3º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, estabelecendo expressamente que “4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, não consente outra interpretação que não seja a de que, nas situações em que o arguido tenha sido condenado em pena única – resultante da realização de cúmulo jurídico de penas de prisão ou de multa (uma vez que a lei se reporta genericamente ao cúmulo jurídico sem qualquer referência ou distinção relativamente à natureza das penas cumuladas) – apenas a pena única deverá ser tida em conta para aferição dos pressupostos de aplicação do perdão. Daqui resulta que não pode ser aplicado qualquer perdão no caso de a pena única se encontrar fora da previsão do aludido artigo 3º que acima transcrevemos, quer as penas cumuladas isoladamente consideradas pudessem ou não beneficiar do perdão.

Subsumindo a situação em causa nos presentes autos a tal entendimento, temos que, tendo sido condenado numa pena única resultante de cúmulo jurídico cuja medida concreta é superior a 120 dias de multa – fixada concretamente em 140 dias – o arguido não poderá beneficiar do perdão estabelecido na lei em referência em virtude de a referida pena única de multa se entrar fora da previsão do artigo 3º, nº 2, alínea a) da mesma lei, que dispõe:

“2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;”

Contrariamente ao propugnado no recurso, não haverá, pois, que desfazer o cúmulo efetuado na sentença condenatória, por forma a aferir da aplicabilidade do perdão relativamente a cada uma das penas parcelares, uma vez que tal operação se encontra ab initio vedada pela determinação expressa de que o perdão apenas poderá ser aplicado à pena única abrangida pela previsão da norma que o estabelece. Não olvidemos que as normas que estabelecem perdões, constituindo normas excecionais, devem ser interpretadas declarativamente, nos exatos termos em que estão redigidas – fazendo-se coincidir o elemento literal com o pensamento legislativo – não comportando uma interpretação extensiva ou restritiva e, muito menos qualquer aplicação analógica. (3)

Reforçando a mesma linha de entendimento, apontando o elemento histórico que também nos auxilia na interpretação da norma em causa, refere Pedro José Esteves de Brito no seu estudo sobre a aplicação da à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que “(…)A partir da Lei n.º 16/86, de 11 de junho, nas várias leis de amnistia e perdão, sempre foi estipulado que, em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e não sobre as penas parcelares. (…)”. (4) No mesmo texto, em nota de rodapé, citam-se ainda as previsões das anteriores leis de amnistia e perdão que consagraram a opção legislativa de aplicação do perdão à pena única e não às penas parcelares integradas no cúmulo jurídico, nos termos que passamos a transcrever:“(…)“O perdão referido no n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores.” (cfr. art.º 13.º, n.º 2, da Lei n.º 16/86, de 11 de junho); “O perdão referido nas alíneas a) e b) do n.º 1 abrange as penas de prisão fixadas em alternativa a penas de multa e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena unitária, sendo materialmente adicionável a perdões anteriores” (cfr. art.º 14.º, n.º 3, da Lei n.º 23/91, de 04 de julho); “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 10.º” (cfr. art.º 8.º, n.º 4, da Lei n.º 15/94, de 11 de maio); e “Em caso de cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única e é materialmente adicionável a perdões anteriores, sem prejuízo do disposto no artigo 3.º” (cfr. art.º 1.º, n.º 4, da Lei n.º 29/99, de 12 de maio); e “O perdão referido nos números anteriores abrange a prisão subsidiária resultante da conversão da pena de multa e a execução da pena de prisão por não cumprimento da pena de multa de substituição e, em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única” (cfr. art.º 2.º, n.º 3, da Lei n.º 9/2020, de 10 de abril) (5)

Sufragamos, ainda, sem hesitações, o entendimento que vem sendo defendido na generalidade da jurisprudência recentemente produzida sobre a amplitude da incidência da Lei da amnistia de 2023 (6), no sentido de que, ao eleger a pena única como referente para determinar os pressupostos da aplicação do perdão, o legislador quis excluir as situações em que as várias condutas criminosas, valoradas conjuntamente, de acordo com as regras estabelecidas para a realização do cúmulo jurídico, tenham determinado a aplicação de uma pena única que, atendendo à imagem global do facto e exprimindo a gravidade do comportamento do condenado, seja superior à dosimetria máxima estabelecida para aplicação da referida medida de graça. (7) Na verdade, é o que inequivocamente resulta da redação do o nº 4 do art.º 3.º, sendo certo que se essa não tivesse sido a opção do legislador, ou seja, se se não tivesse pretendido alargar o campo das exclusões às situações que agora analisamos – i.e., aos casos em que, não obstante as penas parcelares consentirem a aplicação do perdão, a dosimetria da pena única o não consente – bastaria ter-se eliminado tal número da revisão do artigo 4º.

Finalmente, no que diz respeito à interpretação da norma aplicada in casu, que concretamente estabelece quais as penas de multa que beneficiam do perdão de penas – o artigo 3º, nº 2, (pretendeu incluir as penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 dias, estando, pois, excluídas da aplicação do perdão as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa.

Não encontra qualquer apoio no texto legislativo a interpretação segundo a qual em tal preceito se teriam pretendido incluir todas as penas de multa, reportando-se o limite dos 120 dias à medida do perdão e não à medida da pena que se visa perdoar. A tal interpretação obsta claramente a utilização do vocábulo “até” nas previsões em que se pretendeu estabelecer um limite nas penas concretas a perdoar – artigo 3º, nº1 (relativamente às penas de prisão) (8) e nº 2, alínea a) (relativamente às penas de multa) (9). O mesmo critério foi também seguido na determinação dos crimes a amnistiar, ao ter-se optado por estabelecer um limite máximo das molduras abstratas dos crimes incluídos na previsão do artigo 4º (10).

Sufragamos inteiramente a este respeito a linha argumentativa exposta no acórdão da Relação de Guimarães, de 09.01.2024, no qual se consignou que:“(...) se a intenção do legislador fosse a de perdoar 120 dias de multa em qualquer pena de multa que fosse aplicada, certamente que o teria dito, à semelhança do que fez quanto ao perdão reportado às penas de prisão ínsito no n.º 1 do invocado artigo 3.º.(…)”.(11) E o certo é que não o disse. Na verdade, a opção legislativa a este propósito não constitui propriamente uma novidade, pois, que, conforme se refere no acórdão da Relação de Guimarães, de 06.02.2024 (12), “uma conclusão é segura: o nosso ius condonandi, nos últimos cinquenta anos, não tem mostrado relevante apetência pela aplicação da graça à pecúnia. Como se viu, apenas por duas vezes, até à presente lei, tal opção teve lugar”.

*

Por conseguinte, e em conformidade com as precedentes explanações, somos a concluir que a interpretação do artigo 3º, nº 2, alínea a) e nº 4 da subjacente à decisão recorrida – no sentido de que, em caso de cúmulo jurídico de penas de multa, apenas a pena única não superior a 120 dias poderá beneficiar do perdão, não consentindo a lei que o mesmo se aplique às penas parcelares integrada no cúmulo – é a correta.

Não subscrevemos, de todo, a perspetiva veiculada no recurso, nem se nos afiguram ser de acolher os argumentos apresentados para a sustentar.

Com efeito, quanto ao argumento atinente à literalidade do preceito em causa, ao contrário do que refere o recorrente, o n.º 4 do artigo 3.º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto não se reporta apenas ao nº 1 do mesmo artigo, nem este último se reporta àquele. Cremos que a alegação do recorrente assentará num manifesto equívoco na leitura do texto, pois que no nº 1 do citado preceito terá lido nº 4 onde se encontra consignado “artigo 4.º”.

Já a exposição relativa às diferenças concetuais entre a pena unitária e a pena única se nos afiguram absolutamente deslocadas, não se descortinando de que forma a dimensão normativa resultante da interpretação efetuada pelo tribunal a quo contraria “o legislador português”. Ao invés, a interpretação constante da decisão recorrida, e que sufragamos, não só se apresenta como a única que respeita a literalidade e a ratio do mencionado artigo 3º, nº 4 – nos termos acima explanados – como se mostra respeitadora da dogmática do cúmulo jurídico que, como sabemos, culmina na fixação de uma pena única autónoma, face à qual, enquanto se mantiver válido o cúmulo, as penas parcelares perdem autonomia. De resto, a eleição da pena única como sendo a pena relevante para efeitos de aferição dos pressupostos da aplicação do perdão é uma opção do legislador (13) que, não se mostrado violadora de qualquer lei de categoria hierárquica superior, não nos compete sindicar, cabendo-nos apenas proceder à sua aplicação.

Finalmente, no que diz respeito à alegação de que, ao não ter aplicado o perdão a cada uma das penas parcelares, o tribunal desrespeitou o princípio da aplicação ao arguido da lei de conteúdo mais favorável, nos termos previstos no artigo 2.º, n.º 4 do CP, diremos apenas que não a compreendemos, de todo! Como é sabido, o princípio convocado pelo recorrente reporta-se a situações de sucessão de leis penais de conteúdos diferentes, determinado a norma citada que “(…) 4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.”. Ora, como está bom de ver, a situação dos autos e a pretensão recursiva não nos colocam perante qualquer sucessão de leis penais, pelo que se mostra absolutamente destituída de razoabilidade a convocação do aludido princípio.

Estas razões pelas quais não procedem os argumentos invocados no recurso para sustentar aplicação ao arguido o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não devendo, pois, ser, acolhida a pretensão do Ministério Público e devendo, de outra sorte, ser mantida a decisão recorrida. Termos em que o recurso improcederá.

***

III- Dispositivo.

Por tudo o exposto e considerando a fundamentação acima consignada, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso e, consequentemente, manter integralmente a decisão recorrida.

Sem custas (artigo 522º, nº 1 do CPP).

(Processado em computador pela relatora e revisto integralmente pelos signatários)

Évora, 5 de abril de 2024

Maria Clara Figueiredo

Maria Margarida Bacelar

António Condesso

Declaração de voto:

Dada a nossa inteira concordância com a argumentação e com a conclusão extraída no acórdão, votamos com a posição que fez vencimento.

É certo que a signatária já subscreveu nesta Relação um acórdão recente no qual fez vencimento posição diametralmente oposta relativamente à matéria objecto do presente recurso.

Porém, um estudo mais aprofundado da matéria e a ponderação dos argumentos e contra-argumentos a favor e contra as duas posições em confronto nesta sede, levou-me a rever a posição assumida enquanto adjunta no referido aresto.

Maria Margarida Bacelar

..............................................................................................................

1 Negritos acrescentados atendendo à relevância das partes assinaladas para a situação dos autos.

2 Neste sentido se pronunciaram os acórdãos da Relação de Lisboa de 23.01.24, relatados pelos Desembargadores Manuel José Ramos da Fonseca e Sandra Pinto e de 20.02.2023, relatado pela Desembargadora Luísa Alvoeiro; e os acórdãos da Relação do Porto de 10.01.2024, relatados pelos Desembargadores José Rodrigues da Cunha e Lígia Figueiredo e de 24.01.2024, relatado pela Desembargadora Maria Joana Grácio.

Em sentido contrário encontrámos apenas o acórdão desta Relação de 20.02.2024, relatado pelo Desembargador Nuno Garcia, que decidiu desfazer o cúmulo jurídico anteriormente realizado e aplicar o perdão a uma das penas parcelares.

3 Neste sentido, cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência, de 25 de outubro de 2001, proferido no processo n.º 00P3209, publicado no DR 264, Série I-A, de 14 novembro 2001, acessível in www.diariodarepublica.pt e, reportando-se a um específico um caso de perdão, o acórdão do STJ, de 13 de Outubro de 1999, proferido no processo n.º 984/99, 3.ª Secção, ambos citados no acórdão da Relação de Lisboa de 08.09.2020, relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves, que se pronuncia no mesmo sentido e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt..

4 Pedro José Esteves de Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in Revista Julgar, online, agosto 2023, páginas 15 e 16.

5 Nota de rodapé 24, ob cit.. Negritos acrescentados.

6 Jurisprudência que acima indicámos.

7 Neste concreto sentido, cfr. o acórdão da Relação de Lisboa de 23.01.2024, relatado pelo Desembargador Manuel José Ramos a da Fonseca e os acórdãos da Relação do Porto, relatados pelos Desembargadores José António Rodrigues da Cunha e Maria dos Prazeres Silva, ambos datados de 10.01.2024, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

8 “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.”

9 “2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;”

10 “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa.”

11 Acórdão da Relação de Guimarães, de 09.01.2024, relatado pela Desembargadora Isilda Pinho. No mesmo sentido se pronunciou também os acórdãos da Relação de Guimarães de 06.02.2024, relatado pelo Desembargador Bráulio Martins, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Sufragando o mesmo entendimento, Pedro Brito, in ob cit, pág. 8.: “3. Do perdão das penas de multa aplicadas a título principal (n.º 2, al. a), 1.ª parte): Prevê-se um perdão da totalidade das penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 dias, a título principal. Assim, estão excluídas da aplicação do perdão aqui em causa as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa a título principal”.

12 Acórdão da Relação de Guimarães de 06.02.2024, relatado pelo Desembargador Bráulio Martins, acima já citado.

13 Sustentada, aliás, nas razões acima explicitadas.