HOMICÍDIO
INDÍCIOS SUFICIENTES
FORTE PROBABILIDADE DE FUTURA CONDENAÇÃO
LEGÍTIMA DEFESA
NÃO PRONÚNCIA
Sumário

I. Iluminado e impregnado pelos princípios da presunção de inocência, a lei exige que a acusação assente na existência de indícios probatórios suficientes da autoria e da prática do ilícito (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP), sendo esse mesmo juízo probatório o exigido para a pronúncia (artigo 308.º, § 1.º CPP).
II. Embora a lei exprima de modo literalmente algo diverso («indícios suficientes» (artigo 283.º, § 1.º e 2.º CPP) e «fortes indícios» (p. ex. no § 1.º do artigo 202.º CPP), a verdade é que nesses momentos expressa uma mesma convicção: a de se estar perante uma consistência probatória geradora de uma forte probabilidade de futura condenação do arguido.
III. Só uma alta possibilidade de condenação em Juízo justifica a dedução da acusação ou, na fase de instrução, legitimará a prolação de despacho de pronúncia
IV. A decisão de pronúncia tem, pois, de assentar na alta probabilidade de condenação do arguido em julgamento, arrimando-se esse critério no referido princípio fundamental do Estado de Direito democrático que é a presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º da Constituição; artigo 6.º, § 2.º Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 14.º, § 2.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e artigo 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia).
V. Mostrando-se indubitável a verificação dos pressupostos de uma causa de exclusão da ilicitude (legítima defesa), não pode haver pronúncia.

Texto Integral

I - Relatório
a. No termo do inquérito o Ministério Público acusou AA, BB, CC e DD, todos militares da GNR, com os demais sinais dos autos, da prática de factos em coautoria, que qualificou como sendo integradores de um crime de homicídio, previsto no artigo 131.º do Código Penal (CP) por referência aos artigos 14.º, § 3.º, artigo 2.º, § 1.º e 2.º, e artigo 3.º, § 2.º; artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de novembro, e artigo 153.º, § 2.º do Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana.

Os arguidos requereram a abertura da instrução, por considerarem que da prova recolhida nos autos não emergem indícios da prática dos factos que lhe foram imputados pela acusação, a mais de a descrição factológica desta peça processual, ainda assim, não ser suficiente para sustentar a imputação em coautoria do referido crime de homicídio.

Recebidos os autos no Juízo de Instrução Criminal de …, procedeu-se à instrução, no termo da qual o Mm.o Juiz considerou não terem resultado suficientemente indiciados alguns dos factos que se narravam na acusação, nem, também por isso, a imputação de homicídio em coautoria, que fora feita aos arguidos.

b. Inconformado com tal decisão o Ministério Públio interpôs o presente recurso, extraindo-se da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«2. Estará aqui em causa, no que ora mais interessa no que tange à douta decisão instrutória, de não pronúncia, ora recorrida, aquilatar da sua (eventual) nulidade, bem assim do acerto (ou não) do juízo do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal relativamente à apreciação/valoração da prova, à factualidade (suficientemente) indiciada (ou não), aos fundamentos conducentes ao decidido e à própria decisão;

3. Tendo sido dada, no seu essencial, como suficientemente indiciada a factualidade narrada no libelo acusatório do art.º 1.º ao art.º 42.º, a saber, até, inclusive, à parte reportada aos factos que traduzem a causação da morte de EE na sequência da operação policial então levada a cabo que visava a localização/detenção do mesmo indivíduo, sendo que semelhante factualidade teria, a priori, e em abstracto, toda a virtualidade de corresponder ao preenchimento do tipo criminal do ilícito imputado nessa acusação, pelo menos, na sua vertente objetiva, temos depois que (inexistindo outros factos mais dados como suficientemente indiciados) surge a menção de que “[n]ão resultaram indiciados quaisquer outros factos relevantes para a presente decisão, nomeadamente que: (…).”;

4. Considerando toda a facticidade tida como indiciada nos exactos termos constantes da douta decisão de não pronúncia, vemos, nessa sequência, faltar toda e qualquer enunciação de factos, indiciados ou não indiciados, em que depois se alicerce a exposição dos motivos, de facto e de direito, fundamentadores da mesma decisão, sendo que esta última sempre deverá resultar, de modo inquestionável, compreensível em face do juízo então firmado relativamente a tal factualidade indiciada ou não indiciada;

5. Ora, para além de, segundo entendemos, não ser de aceitar, em nome da indispensável certeza jurídica, a utilização do advérbio “nomeadamente” para exemplificar matéria em que se concluiu no sentido de se estar perante factos não indiciados, não logram os três factos nesse contexto enunciados, de modo algum, tornar per se apreensível o raciocínio efectuado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal e que conduziu à decisão proferida, afigurando-se-nos que a por demais flagrante tibieza da menção daqueles factos equivalerá, em absoluto, em termos de perceptibilidade da decisão de não pronúncia aqui posta em crise, à falta de narração minimamente circunstanciada de semelhantes factos para tanto indispensáveis, não sendo, por consequência, possível, ante tal deficiência, aquilatar do bem fundado do decidido;

6. Referindo os arguidos no seu requerimento de abertura de instrução não ser sustentável a imputação de crime de homicídio doloso ou negligente e o mesmo Juiz a quo, em jeito de conclusão, não se vislumbrar qualquer conduta ilícita tentada ou consumada, sem que, contudo, tenha feito a devida abordagem à suscitada (pelos mencionados arguidos) questão da legítima defesa, quid juris relativamente à factualidade indiciada ou não indiciada que fundamente, de modo cristalino, a não pronúncia, sendo que dela (factualidade), garantidamente, e no mais, nada, absolutamente nada, se retira no que tange àquela questão?;

7. Conforme, a título meramente exemplificativo, se refere, de modo lapidar, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 26.02.2013, Processo n.º 348/11.9T2ODM.E1, Relator: Sérgio Corvacho, acessível in www.dgsi.pt: “Quando revista o conteúdo de um despacho de não pronúncia, a decisão instrutória assume um elevado grau de homologia com a sentença, ao nível dos seus efeitos jurídicos, pois, tal como esta, põe termo ao processo. O nº 2 do art. 379º do CPP prevê que as nulidades da sentença, tipificadas no nº 1 do mesmo normativo, possam ser conhecidas em sede de recurso dessa decisão, independentemente de terem sido ou não arguidas pelo recorrente. Tudo visto, poderemos que a extensão do regime geral de sanação de nulidades às invalidades da decisão de não pronúncia redundaria numa falta de normação, que a aplicação, por analogia, do regime de cognição das nulidades da sentença, previsto no nº 2 do art. 379º do CPP, seria susceptível de colmatar. Nesse sentido, é lícito a este Tribunal da Relação conhecer, no âmbito de presente recurso, da detectada nulidade da decisão instrutória recorrida e declará-la, com as legais consequências”; caso não seja entendido dever ser in casu, em conformidade com o supra explanado, declarada a nulidade da douta decisão instrutória, de não pronúncia, ora recorrida (e do demais processado subsequente), com o consequente suprimento de tal vício processual, e sem conceder,

8. Discordamos do juízo probatório conducente a ter sido dado como (suficientemente) indiciado o facto constante do art.º 14.º da factualidade indiciada, designadamente, na parte em que é mencionado – como se isso pudesse ter acontecido em momento anterior àqueloutro referido no subsequente art.º 15.º (da mesma factualidade) em que “foi organizado o Posto de Comando do Incidente” – que “[o]s elementos do NIC reportaram aos arguidos BB [dever-se-á ler aqui, atento o manifesto lapso, AA – parêntesis nosso] e BB (…) a informação de que (…) EE (…) carregava os próprios cartuchos manualmente e (…) tinham sido encontrados na habitação pequenos fragmentos de metal produzidos pelo próprio”, quando é, antes, e ao invés, certo que o conhecimento sobre tal ocorreu, ainda que nesse mesmo dia 07.12.2021, mais tarde, a saber, entre as 13:45 horas e as 14:30 horas, no decurso de busca domiciliária realizada naquela habitação;

9. De facto, encontrando-se junta a fls. 1086-1224 cópia certificada, integral, do Processo n.º 341/21.3…, resulta, designadamente, de fls. 1145-1168 que foi no ora aludido circunstancialismo espaço-temporal encontrado o material que permitiu semelhante conhecimento – tendo o cumprimento do competente mandado para tanto emitido sido certificado pelo Cabo da GNR FF, cfr. fls. 1145 e 1147, foi então elaborado o correspondente Auto de Busca e Apreensão, cfr. fls. 1148-1150;

10. Sucede que veio o mesmo Cabo da GNR FF a ser inquirido em sede de instrução, sendo que relativamente a tal consta da douta decisão instrutória que “a última testemunha inquirida — a requerimento interposto pelo Ministério Público já nesta sede —, FF, cabo da Guarda Nacional Republicana, denotou, pelo contrário, lamentável muito pouca credibilidade: insistiu que os fragmentos de metal (mencionados no ponto 14 da acusação pública) teriam sido observados no parapeito exterior da janela da habitação [negrito e sublinhado nossos] alvo de busca ainda antes da busca e da chegada ao local do GIOE. Quando confrontado (pelo próprio Ministério Público) com a circunstância de tais peças (que constam da fotografia n.º 35 a folhas 1162) terem sido encontrados no interior de um bau de madeira [negrito e sublinhado nossos] (conforme auto de apreensão, com cópia a folhas 1149, elaborado pela própria testemunha), manifestou atrapalhação e incapacidade de explicação a contradição”; em conformidade com o acima expendido, deverá, antes, e ao invés, ser feito constar da factualidade não indiciada a parte, ora controvertida, do mesmo facto (14.º);

11. Discordamos também do juízo probatório conducente a não ter sido dado como (suficientemente) indiciado, na sua íntegra, o facto constante do art.º 36.º da acusação, sendo que, nesta parte, entendeu, antes, e ao invés, o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal não resultar (suficientemente) indiciado que “[t]enha EE, após sair da zona de arbustos e arvoredo descrita, se “mantido estático” (sic)” ou que “[t]enha EE saído daquela zona de arbustos e arvoredo quando os militares “já se encontravam em posição de disparo” (sic)”, bem assim nada ser de inscrever, na factualidade indiciada ou na factualidade não indiciada, relativamente ao facto de não ter o referido EE, no circunstancialismo previsto no mesmo art.º 36.º, “efectuado qualquer disparo”; ora, existem fundados motivos a título indiciário para todos aqueles três segmentos factuais constarem do referido art.º 36.º, devendo, assim, em conformidade, ser feito constar da factualidade indiciada a integralidade do facto constante desse artigo; senão vejamos;

12. Conforme constante do Auto de Inquirição de fls. 187-188, respeitante a GG, relativamente ao acto efectuado pelo dito EE de empunhar a sua arma no circunstancialismo referido no art.º 36.º da acusação, “o individuo acaba por se encostar à mencionada árvore e ali, sem nunca largar a mesma, acaba por empunhar uma espingarda “curta”, e exibindo o tronco e, aparentando estar desorientado, olha para eles os quatro e olha para baixo, por diversas vezes, acabando o depoente por deixar de ter campo de visão, e ouvir os disparos da força, constatando que quem os deu foi o Tenente CC e o Cabo DD “[o termo empunhar tem ali, de modo evidente, o sentido de apontar, sendo que com o mesmo sentido semântico também é declarado a fls. 165 “empunhado a espingarda na sua direção” e a fls. 209 v.º “contrariamente ao que era expectável, o mesmo reagiu e empunhou a arma na direção deles, obrigando a que aqueles reagissem”], daqui se retirando ter existido um já relevante e não insignificante momento de hesitação e inação por parte do aludido EE antes dos disparos referenciados no (seguinte) art.º 37.º do libelo acusatório;

13. Teriam já os militares que vieram a efectuar os disparos mencionados no art.º 37.º da acusação aquando do circunstancialismo referido no ora controvertido e antecedente art.º 36.º (desse libelo) as suas armas direccionadas/apontadas para o local onde então se encontrava o mencionado EE, sendo que até mesmo nos instantes imediatamente anteriores, de progressão no terreno até se fixarem a apenas cerca de 15 metros do mesmo indivíduo, teriam já os primeiros, com toda a certeza, assumido semelhante posição de disparo, como o exigiria a situação em curso, de total estado de prontidão para, se assim fosse decidido, “abrir fogo”, de acordo, aqui se recorrendo à lógica e às regras de experiência comum, com aquele que será o treino ministrado a tais militares; e

14. Não ter o referido EE efectuado qualquer disparo aquando do espaço de tempo a que alude o art.º 36.º da acusação resulta de toda a prova produzida, podendo ver-se, quanto a tal, a título meramente exemplificativo, o acima citado Auto de Inquirição de fls. 187-188, respeitante a GG, afigurando-se-nos, assim, que semelhante trecho deverá constar da factualidade indiciada, ademais, tendo o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal entendido dar como não (suficientemente) indiciado que o mesmo EE se tenha então “mantido estático”, pois que não satisfaz, nesta parte, as exigências legais querer deixar apenas pretensamente subentendido (como que a contrario) que tendo sido sequencialmente dado como facto (suficientemente) indiciado que de imediato os militares dispararam nada mais teria o primeiro, naturalmente, feito entretanto;

15. Discordamos igualmente do juízo probatório conducente a que, no que tange ao facto constante do art.º 39.º da acusação, apenas tenha sido dado como não (suficientemente) indiciado que “[o]s disparos sobre EE tenham ocorrido 43 minutos após o início da execução do plano de batida” (sendo que se sufraga, nesta parte, o decidido), sem que, a par disso, vindo o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal a consignar, quanto ao facto ora em apreço, que ao aludido espaço temporal “corresponde um máximo de 28 minutos”, tenha sido considerado (suficientemente) indiciado aquele que será o facto que espelha o sucedido, sendo que, nessa conformidade, deverá, assim, na referida parte, ser feito constar da factualidade indiciada facto similar àquele narrado no mesmo art.º 39.º, com a única correcção, em matéria de minutos, de 43 para 28;

16. Discordamos, por último, do juízo probatório conducente a não ter sido dada como (suficientemente) indiciada a factualidade constante do art.º 43.º ao art.º 60.º da acusação [sem prejuízo de (também) no art.º 56.º dever ter lugar a já mencionada correcção de 43 para 28 (minutos)], sendo que, como resulta do supra transcrito, estará, nesta parte, em causa, no essencial, o seguinte: tendo havido a dado momento conhecimento da localização de EE não ter sido reformulado o plano de abordagem inicial, existirem meios à disposição como aqueles referenciados no art.º 44.º da acusação, mormente, os cães e os negociadores, tendo em vista a detenção de tal indivíduo, e que foram desperdiçados em função do uso de armas de fogo, meio letal, apenas utilizável como último recurso, e terem sido efectuados disparos (também) para zonas letais (do corpo do dito EE), sendo possível a militares altamente treinados acertar noutras zonas – devendo, para tanto, atentar-se, com particular interesse, no constante dos seguintes elementos probatórios, acima exaustivamente explicitados: Autos de Inquirição de fls. 125-126 (HH), 185-186 (II), 187-188 (GG), 216/216 v.º (II), 531-533 (JJ), 535-537 (KK), 539-541 (LL) e 542-545 (MM), Autos de Interrogatório de Arguido de fls. 556-558 (CC) e 559-561 (DD), Auto de Inspecção Judiciária de fls. 104-108, Relatórios do Exame Pericial de fls. 131-145 e 146-160, Cronograma da GNR de fls. 176 v.º-178 v.º, Relatório da Unidade de Intervenção – GIOE de fls. 179-182 v.º, Relatório de Exame Pericial de fls. 319-357 e cópia certificada, integral, do Processo n.º 341/21.3… junta a fls. 1086-1224;

17. Percorrendo o texto da douta decisão instrutória, não se compreende, nem se aceita, a retórica aí discorrida que traduz a negação da evidência de terem, efectivamente, sido desperdiçados os ditos meios não letais, designadamente, quando é afirmado que “não concretiza a acusação qualquer forma de avaliação (técnica, empírica ou outra) que indique qual a probabilidade de os demais canídeos terem reação distinta do primeiro” ou sugerido bastar a presença dos negociadores no local e o posterior avanço da viatura blindada para demonstrar ter existido verdadeiro intuito de dialogar com o ora falecido EE e ter sido esgotada essa possibilidade, nada se dizendo depois sobre não ter sido decidido, ao invés do que sucedeu, aguardar pela aproximação de tal viatura;

18. Mais se contesta que a localização, a dado momento, do mesmo EE e a imediata introdução deste na zona onde viria a ser atingido, não traduzissem, verdadeiramente, qualquer alteração das circunstâncias que relevasse em termos de operação policial, sendo que, como tal, “neste contexto, a manutenção do plano inicial — batida — é compreensível e lógico”, bem assim que tenha sido escamoteado que aquando do trágico desfecho dos acontecimentos restariam 02:33 horas até ocorrer o por do sol, que nesse dia teria lugar pelas 17:13 horas, sendo a esse propósito plasmada a afirmação de que “a redução da luz solar inicia-se de facto muito antes”, como se actuação diversa dos militares exigisse o decurso de inúmeras horas mais…;

19. Afiançando-se na douta decisão instrutória que “[a] própria acusação pública, por isso, apenas elenca como alvo aceitável a “parte superior das pernas” (conferir ponto 51)”, tal não é, porém, o que consta nesse trecho do libelo acusatório, importando, neste ponto, ter em conta que, dado tal ser realizável, foi o mencionado EE atingido em alguns membros, zonas não letais do corpo, como refere aquele art.º 51.º;

20. Dizendo a douta decisão instrutória que “[n]enhuma dúvida se pode ter que, independentemente de qualquer plano, execução, iniciativa ou inércia, sempre persistiria — como se disse — a possibilidade de EE reaparecer, a qualquer momento, munido da sua caçadeira e de novo disparar contra os militares, risco que condicionava e reforçava os cuidados e constrangimentos da operação que decorria”, é depois referido que “[u]m desfecho que abrangesse a neutralização da ameaça pela morte seria naturalmente uma possibilidade, em particular ante o padrão comportamental de EE até então. Mas provável? Não se vislumbra como terá podido qualquer um dos militares antecipar, com relativa confiança, o que viria a acontecer”; ora, em face daquele mesmo padrão – lembre-se que, no mais, ainda momentos antes, aquando da deslocação do dito EE para a zona onde posteriormente foi atingido, tinha o mesmo indivíduo disparado a algumas dezenas de metros de distância na direcção dos militares do GIOE –, como não ter a hipótese de vir então tal indivíduo a, sentindo-se agora acoitado pelo arvoredo, renovar semelhante postura ofensiva como altamente provável? E bastaria semelhante esboçar de hostilidade para desencadear o que veio a suceder, pois, como também se lê na douta decisão instrutória – que enfatiza particularmente a dificuldade de lograrem tais militares a uma distância não particularmente significativa atingir com precisão zonas não letais do corpo – “[m]uito dificilmente poderiam os militares fazer qualquer outra coisa que não de imediato reagir — com disparos — assim que EE lhes apontou a sua caçadeira”;

21. Cumpre referir que em face do constante do Auto de Inspecção Judiciária de fls. 104-108, do Relatório do Exame Pericial de fls. 131-145 e do Relatório do Exame Pericial de fls. 146-160, reportados a diligências efectuadas no local da ocorrência dos factos (…), os dois primeiros no próprio dia em que aqueles tiveram lugar (07.12.2021) e o último passados 3 dias (10.12.2021), e todos eles documentados fotograficamente, atestando, no mais, como se encontrava o mesmo local, sempre será de concluir no sentido de não ser expressiva a vegetação rasteira então aí existente, designadamente, em termos de poder obstar à visibilidade ou à progressão no terreno [nada tendo a ver com aqueloutra que o referido local já apresenta em 04.07.2022 – o normal ciclo da natureza conduz a tal –, aquando da realização da diligência alusiva à reconstituição dos mencionados factos, também documentada fotograficamente e à qual se reporta o Relatório de Exame Pericial de fls. 319-357], tão pouco sendo expressiva a área onde o ora falecido EE e os militares da GNR mais de perto envolvidos na operação policial se encontravam, isso sendo verificável ante a foto n.º 1 de fls. 105 (tendo como medida de comparação os telhados das habitações), que nos indica a residência desse indivíduo, onde foi encontrado um cartucho deflagrado e onde o dito EE foi mortalmente atingido;

22. Conforme resulta da prova obtida, entendemos ter sido, em absoluto, precipitada a actuação dos militares a partir do momento em que EE foi localizado no terreno (como se a operação policial então em curso tivesse de estar terminada “no minuto seguinte”, quando o por do sol iria ocorrer apenas às 17:13 horas), já que não teve lugar, como deveria, o aproveitamento e consequente esgotamento de todos os meios não letais então disponíveis;

23. Sendo certo que, com reporte ao mesmo EE, “havia conhecimento que possuía problemas psiquiátricos”, conforme consta do Auto de Inquirição de fls. 187-188, referente ao militar do GIOE GG, e não podia ser desconsiderado que aquele já tinha, durante todo esse dia, mostrado patente hostilidade, mormente, empregando arma de fogo – note-se que, retratando esse padrão comportamental, e como já se disse acima, “no mais, ainda momentos antes, aquando da deslocação (…) para a zona onde posteriormente foi atingido, tinha o mesmo indivíduo disparado a algumas dezenas de metros de distância na direcção dos militares do GIOE” –, requeria o desenvolvimento da operação policial particular cuidado, para salvaguarda, não só mas também, do próprio EE, podendo a vida deste ter sido “poupada” – o bem jurídico protegido VIDA tem um valor supremo, o qual não foi, porém, devidamente ponderado nem reflectido na montagem da operação policial e na sua concretização, como era dever dos arguidos, sendo que, mesmo no caso de um desfecho menos trágico, também a integridade física careceria, de modo inquestionável, da correspondente protecção;

24. Sendo exequível, com o recurso aos militares que se mostrassem para tanto necessários, a contenção de EE na zona de vegetação onde se tinha refugiado, importava então diligenciar pela melhor recolocação no terreno e consequente utilização dos canídeos existentes (só um foi largado, a partir do sítio em que se encontrava nesse preciso instante, e, apesar de as fotografias juntas aos autos indiciarem o inverso, pode, por mera hipótese ter encontrado à sua frente uma parcela de terreno menos favorável àquela que seria a sua missão), isso requerendo, porém, algum tempo mais, bem assim aguardar pela aproximação da viatura blindada, o que acautelaria em absoluto a integridade física e a vida de todos os presentes, cumprindo aqui relembrar que o Relatório da Unidade de Intervenção – GIOE de fls. 179-182 v.º salienta “o facto de os militares do GIOE não possuírem capacetes balísticos que garantam a sua segurança”, sucedendo, porém, que, ao invés, tal viatura “possuía proteção balística”, conforme consta do Auto de Inquirição de fls. 535-537, referente ao militar do GIOE KK;

25. E sempre se diga que a intervenção dos negociadores, mesmo que à distância, poderia ter captado a atenção do falecido EE, tal possibilitando que, com recurso, se necessário, a todos os elementos das forças presentes, pudesse, tendo lugar a devida reorganização, ser reformulada a abordagem a fazer ao referido indivíduo quando ele já estava localizado e poderia ser contido na zona onde se encontrava, tal consistindo, no fundo, numa manobra de diversão;

26. Ora, veio a ser, ao invés, escolhida a opção de avançarem até escassos metros do mesmo EE militares do GIOE munidos com armas, sendo, em face de tudo o que já havia sucedido anteriormente (mostrar-se aquele, antes de ter sido atingido mortalmente, muito reactivo à presença de militares), elevada a probabilidade da ocorrência de um desfecho infeliz para quem quer que fosse, mormente, para o mencionado indivíduo, então numa posição de manifesta inferioridade;

27. Importa salientar, no que tange ao alvejamento de EE, que da visualização conjugada das fotos n.ºs 33-36 (a fls. 158-159) do Relatório do Exame Pericial de fls. 146-160 (que documentam o enquadramento e localização de dois impactos/vestígios provocados por disparo de arma de fogo, no tronco de uma árvore, junto ao local onde se encontrava EE) e 59 e 69-70 do Relatório de Exame Pericial de fls. 319-357 (este reportado à reconstituição dos factos ocorridos em 07.12.2021) é possível extrair, tendo em conta aquela que seria a posição de EE (junto àquele tronco) quando se encontrava de pé e foi atingido mortalmente (caindo em seguida), ser manifesto que os militares dispararam, mesmo, em direcção à parte superior do corpo de tal indivíduo, mormente ao nível da cabeça;

28. Referindo o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, quase a final, que “[a] disparidade de meios poderia, razoavelmente, suscitar em EE a consciencialização da impossibilidade de fuga ou sucesso e a necessidade de se entregar. Assim, infelizmente, não aconteceu”, importa aqui, contestando semelhante consideração, afirmar que tal cenário apenas não veio, de todo, a poder ter lugar ante o que veio a ser decidido em matéria de operação policial;

29. Com reporte à questão da eventual legítima defesa, cumpre frisar aqui que, podendo ter evitado tal recorrendo a outros meios, foram os militares que, com utilização exclusiva do meio letal, avançaram até muito perto do referido EE, verdadeiramente, confrontando-o, sabendo-o armado, sendo, assim, certo que se se colocaram nessa posição de legítima defesa não podem depois invocar esta para excluir a ilicitude dos seus actos, em face do que entendemos não colher a sustentação de que possa, em face de semelhante fundamento, estar afastada a responsabilidade criminal dos militares;

30. A propósito da mesma questão, cumpre trazer aqui à colação, a título meramente exemplificativo, o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11.12.2013, Processo n.º 154/05.0GARSD.P1, Relatora: Eduarda Lobo, acessível in www.dgsi.pt, onde se defende uma tese “concordante com a doutrina de Fernanda Palma, exarada no artigo «Legítima Defesa», incluído na obra «Casos e Materiais de Direito Penal»[19]: «A legítima defesa exige uma efetiva consciência pelo defendente da situação defensiva. Não se configura como defesa nem uma proteção inconsciente e causal do agente relativamente a uma agressão nem a provocação pré-ordenada pelo defendente de uma situação de legítima defesa [negrito e sublinhado nossos]. Não será, exigível, propriamente, um animus defendendi, no sentido de a defesa ser a exclusiva motivação do defendente, mas é necessário que a conduta que se opõe à agressão ilícita seja explicável como defesa na linguagem social – o que impõe uma ação conscientemente dirigida à defesa, em que a agressão seja motivo determinante do agir». Ora, a ausência dessa consciência impede a justificação por legítima defesa”;

31. Abordando agora, por último, a questão da suficiência indiciária, cumpre começar por referir que na fase da instrução, como na do inquérito, não se cura de uma prova plena sobre os factos, sendo, antes, certo que norteará as mesmas fases processuais um critério meramente indiciário, devendo, para poder/dever ser proferida acusação ou decisão de pronúncia, ser recolhidos indícios suficientes da prática de ilícito criminal, sucedendo que entendemos que, in casu, uma vez cotejados os autos e sopesados todos os elementos probatórios recolhidos durante tais fases, encontrar-se-á suficientemente indiciada a prática por parte dos arguidos do supra referenciado crime de homicídio;

32. De facto, verificar-se-á uma possibilidade razoável de, em julgamento, virem os arguidos a ser condenados pela prática de tal ilícito criminal, impondo-se, pois, consequentemente, a prolação, quanto aos mesmos, de despacho de pronúncia, sendo que, conforme, de modo lapidar, se refere no sumário do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2022, Processo n.º 5670/16.5T9PRT.P1, Relatora: Maria Joana Grácio, também acessível in www.dgsi.pt: “I - O sentido da expressão indícios suficientes na fase de instrução é o mesmo que se verifica para a decisão de acusar, devendo considerar-se que os mesmos existem quando deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança. II - A probabilidade razoável mencionada não equivale à certeza para além da dúvida razoável balizada pelo princípio in dubio pro reoexigida na apreciação da prova em julgamento. III - Tão-pouco atinge o grau de exigência imposto pela verificação de fortes indícios de crime para efeitos de aplicação medidas de coação mais gravosas. (…) V - A admitir-se o recurso ao princípio in dubio pro reo na fase de instrução, o mesmo deve ser usado com a consciência de que o grau de dúvida que permite decidir pela pronúncia do arguido é necessariamente diferente daquele que ocorre em fase de julgamento, devendo aceitar-se que seja mais acentuado do que aquele que determina a prova do facto em julgamento, sob pena de estarmos a transferir para a fase de instrução as exigências subjacentes à condenação, mas deixando de fora todo o contexto de prova que permite exigir tal rigor”;

33. Tendo decidido como o fez o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, foi, assim, violado o preceituado, por um lado – com reporte à questão da nulidade da douta decisão instrutória, de não pronúncia, ora recorrida –, no art.º 308.º, n.º 2, com referência ao art.º 283.º, n.º 3, al. b), e, por outro lado – com reporte à questão do acerto (ou não) do juízo efectuado relativamente à apreciação/valoração da prova, à factualidade (suficientemente) indiciada (ou não), aos fundamentos conducentes ao decidido e à própria decisão –, no art.º 308.º, n.ºs 1 e 2, este último número com referência ao art.º 283.º, n.º 2, ambos os artigos ora indicados do Código de Processo Penal;

34. Face ao exposto, dever-se-á, assim, concluir no sentido de ser dado provimento ao presente recurso e, por consequência: ser declarada a nulidade da douta decisão instrutória, de não pronúncia, ora recorrida (e do demais processado subsequente) e, com vista a suprir tal nulidade, determinada a reformulação daquela decisão de modo a fazer constar da mesma a indicação dos factos constantes do libelo acusatório e do requerimento de abertura de instrução, tidos como relevantes para a decisão a proferir, julgados ou não suficientemente indiciados, bem como a motivação desse juízo probatório indiciário, sendo, consequentemente, proferida, em função de semelhante factualidade, nova decisão instrutória (de pronúncia ou não pronúncia); ou, caso assim não seja entendido, e sem conceder, ser a decisão instrutória aqui em crise revogada e substituída por outra que, em conformidade com toda a fundamentação constante supra, pronuncie os arguidos AA, BB, CC e DD pela prática, em co-autoria (art.º 26.º, 2.ª parte, do Código Penal) e na forma consumada, de um crime de homicídio, previsto e punido pelos art.ºs 14.º, n.º 3, e 131.º do Código Penal, por referência aos art.ºs 2.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 2, e 5.º do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05.11, e 153.º, n.º 2, do Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana.

No entanto, V. Exas. melhor decidirão, fazendo como sempre a costumada JUSTIÇA.»

c. Também inconformada, a assistente NN, interpôs recurso, nele formulando as seguintes conclusões (transcrição):

III. Considera a aqui Recorrente que foram incorrectamente julgados não indiciados os seguintes factos:

a. Tenha EE, após sair da zona de arbustos e arvoredo descrita, se “mantido estático” (sic).

b. Tenha EE saído daquela zona de arbustos e arvoredo quando os militares “já se encontravam em posição de disparo” (sic).

IV - Referindo-nos agora somente à questão da estaticidade de EE no momento fatídico, o Tribunal a quo acabou por considerar não indiciado que EE tenha, nesse momento, permanecido estático.

V - Entende a aqui Recorrente que dos elementos constantes dos autos, nomeadamente, das declarações prestadas pelos Arguidos CC e DD, só poderia resultar a conclusão oposta, ou seja, de que existiu, de facto, um período de tempo não negligenciável entre o último reaparecimento de EE e o momento em que é alvejado pelos mesmos Arguidos em que EE se manteve estático e sem efectuar qualquer disparo.

VI - Quanto ao segundo facto constante da acusação que o Tribunal a quo considerou não indiciado (o de que os Arguidos CC e DD já estariam em posição de tiro quando EE reaparece), resulta igualmente dos elementos constantes dos autos – uma vez mais, as declarações dos próprios Arguidos em fase de inquérito – e das próprias características dos agentes – militares altamente treinados e munidos de armamento sofisticado – a conclusão inversa à que o Tribunal a quo alcançou.

VII - Por outro lado, no primeiro parágrafo do ponto I (“Da Factualidade Indiciada”) da Decisão Instrutória, o Tribunal a quo refere que da mesma decisão foram “expurgadas as redundâncias, considerações, conceitos de direito e conclusões constantes da acusação pública”.

VIII - Salvo melhor entendimento, ao fazê-lo, o Tribunal a quo acaba por não dar como indiciados os pontos 43 a 60 da Acusação Pública, entendendo a aqui Recorrente que os mesmos deveriam ter sido julgados como indiciados.

IX - Acresce que ao fazer este exercício de expurgação, o que na realidade o Tribunal a quo está a fazer é julgar não indiciados os referidos factos, embora sem os enumerar expressamente, como se lhe impunha, o que gera uma nulidade da decisão instrutória.

X - Para além disso, aderindo o Tribunal ad quem à posição aqui sustentada pela Recorrente em relação à impugnação da decisão em crise quanto à matéria de facto, forçoso se tornará dar igualmente como indiciados os pontos 43 a 60 da Acusação Pública, dado que, não poderá deixar de considerar que os arguidos agiram em comparticipação e com dolo eventual, praticando, assim, o crime de homicídio, o que, no fundo, é o que sustentam os referidos pontos 43 a 60 da Acusação Pública.

XI - No que toca ao erro de julgamento em que incorre a decisão instrutória em matéria de Direito, considera desde logo a aqui Recorrente que a decisão instrutória ora colocada em crise viola o disposto no artigo 32.º do CP e ainda o disposto nos artigos 2.º, n.º 1 e 2 e 3.º, n.º 2 e 5.º do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de Novembro, na medida em que considerou, de forma errada, que os Arguidos CC e DD fizeram uso de armas de fogo em sua legítima defesa, assim se excluindo a ilicitude da sua conduta.

XII - Com efeito, inexistem nos autos quaisquer elementos que permitam sustentar que a conduta dos Arguidos CC e DD descrita na Acusação Pública se deveu ao exercício de legítima defesa.

XIII - Nenhum dos pressupostos de que depende a legítima defesa enquanto causa de exclusão da ilicitude (verificação de uma agressão actual e ilícita de interesses juridicamente protegidos do agente; o acto praticado pelo agente mostrar-se como o necessário para repelir a agressão; “animus defendendi”) se acha verificado naquela conduta.

XIV – Verifica-se ainda que dos próprios factos considerados indiciados pelo Tribunal a quo, o que significa que, na óptica da aqui Recorrente, esses mesmos factos deveriam ter conduzido à pronúncia dos Arguidos CC e DD.

XV - Com efeito, os factos considerados indiciados deveriam ter levado o Tribunal a quo a concluir que não se encontravam reunidos os pressupostos da legítima defesa.

XVI - Tendo o Tribunal a quo alcançado a conclusão oposta, regista-se uma flagrante e insanável contradição entre a decisão e a sua própria fundamentação, o que configura um vício endógeno da decisão recorrida, nos termos do artigo 410º, nº 2 do CPP.

XVII - Ainda no que diz respeito ao erro de julgamento da decisão instrutória em matéria de Direito, considera ainda a aqui Recorrente que, ao não pronunciar os Arguidos AA e BB, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 153.º n.º 2 do Regulamento Geral de Serviço da Guarda Nacional Republicana e no artigo 31.º, n.º 2, al. c), a contrario, do CP, atendendo a que considerou justificada, à luz da lei, a actuação dos mesmos enquanto comandantes do Incidente Táctico-Policial (ITP) que veio a culminar com a morte de EE, o que igualmente, segundo o Tribunal a quo, exclui a ilicitude dos factos praticados pelos referidos Arguidos.

XVIII - Os elementos constantes dos autos revelam que no momento final da batida realizada em cumprimento do plano gizado por estes Arguidos tendo em vista a captura de EE, os militares da GNR presentes no local detectaram o local em que este se encontrava.

XIX - Nesse momento, EE estava totalmente cercado pelos 66 militares da GNR que ali se encontravam.

XX - A possibilidade de fuga encontrava-se ainda limitada pelo facto de existirem cursos de água naquele local e pelas próprias características físicas e psicológicas de EE.

XXI - Impunha-se, pois, uma alteração do plano de captura de EE, privilegiando meios não letais, como o recurso aos negociadores, munidos de altifalantes audíveis a dezenas de metros, que para ali haviam sido destacados e fazendo uso das horas de luz solar remanescentes.

XXII - Ao invés de fazerem tal alteração de planos, os Arguidos AA e BB optaram por não fazer uso dos extensos meios operacionais que tinham ao seu dispor e por manter a estratégia inicial.

XXIII - Tiveram, pois, de representar como possível o reaparecimento da vítima com a sua arma, pois tal até já tinha sucedido, conformando-se com o resultado mais provável, que seria a morte de EE, como veio a suceder.

XXIV - Ao manterem o plano inicial, os Arguidos AA e BB propiciaram o recurso indevido a armas de fogo, assim violando a lei, nomeadamente o disposto no artigo 3.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05 de Novembro.

XXV - Ao não alterar o plano inicial no momento em que tal se impunha, os Arguidos AA e BB criaram uma situação de risco desnecessário para a vida de terceiros, que veio mesmo a vitimar EE. Violaram, desse modo, o disposto no artigo 153º, nº 2 do Regulamento Geral do Serviço da GNR.

XXVI - Pelo exposto, conclui-se que a actuação dos Arguidos AA e BB não foi justificada pelo cumprimento de qualquer dever legal, antes pelo contrário.

XXVII - Assim, por tudo quanto exposto, estão recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena pelo crime de homicídio, devendo, como tal, ser revogada a decisão em crise e substituída por outra que pronuncie os aqui Arguidos pelo crime de homicídio.

Nestes termos, e nos do douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente Recurso ser julgado procedente e em consequência:

a) Declarar-se a nulidade da Decisão instrutória recorrida, por não enumerar expressamente os pontos 43 a 60 da Acusação Pública como factos indiciados ou não indiciados, como legalmente se lhe impunha, nos termos do disposto nos arts. 283.º n.º 3, ex-vi art. 308.º n.º 2, e 120.º do CPP;

b) Declarar-se a existência do invocado vício endógeno do Acórdão recorrido de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, nos termos do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, e, consequentemente, alterar-se a decisão recorrida em conformidade com a expurgação de tal vício e com a matéria de facto impugnada pela Recorrente e respectiva matéria de direito;

c) Alterar-se a matéria de facto e a matéria de direito da decisão recorrida em conformidade com a impugnação da Recorrente e com a procedência da nulidade e do vício invocados;

d) Revogar-se a decisão recorrida e substituir-se a mesma por outra que pronuncie os arguidos AA, BB, CC e DD pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de homicídio previsto e punível nos termos artigo 131.º e 14.º n.º 3 do Código Penal, por referência aos artigos 2.º n.º 1 e 2, 3.º n.º 2 e n.º 5 do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de novembro e ainda artigo 153.º n.º 2 do Regulamento Geral de Serviço da Guarda Nacional Republicana, e o consequente prosseguimento dos autos.

d. Admitidos os recursos, os arguidos/acusados BB e AA responderam pugnando pela sua improcedência, aduzindo em síntese:

- BB, que:

* A haver alguma invalidade da decisão instrutória mais não seria que mera irregularidade;

* Sabia que o suspeito estava armado, porque este já tinha efetuado disparos na direção do NIC e da patrulha, estava na posse de uma caçadeira de dois disparos e munido de uma cinta de cartuchos, tinha diversas armas de fogo, sinais de instabilidade psicológica, tinha histórico de violência contra a GNR e vizinhos, era caçador, carregava os próprios cartuchos manualmente;

* O meio canino foi utilizado;

* Os negociadores integravam a equipa que estava no terreno;

* Foram, pois, utilizados todos os meios não letais disponíveis;

* A situação com que os militares se depararam era qualificada não apenas uma ITP, mas uma ITP grave;

* Quando chegou ao local foi-lhe expressamente dito que era deconhecido o paradeiro do EE;

* Toda a intervenção foi acompanhada ao minuto pelo Comando Operacional da GNR;

* Não vislumbra que outra estratégia pudesse ter-se nos 16’ que mediaram a localização do EE e a sua neutralização;

* Em nenhuma circunstância os factos indiciariamente alegados pelo Ministério Público e pela assistente seriam suficientes para preencher o tipo de crime de homicídio doloso.

- E AA, que:

* A decisão recorrida não padece de qualquer nulidade. E a haver qualquer irregularidade a mesma já deveria ter sido arguida em momento anterior ao recurso;

* Contrariamente ao que afirma a assistente EE não se encontrava estático, uma vez que empunhava uma arma pronta a disparar contra as forças da autoridade – à semelhança do que em momento anterior desse dia já havia sucedido;

* As suas funções de responsável pelo funcionamento do Posto de Comando de Incidente decorrem do Plano de Coordenação, Controlo e Comando Operacional das Forças e Serviços de Segurança;

* Não lhe competia alterar este Plano;

* A classificação da ocorrência como ITP decorreu do facto de EE, que ia apenas ser alvo de busca domiciliária, ter recebido os militares da GNR, em cumprimento de um mandado, com tiros de caçadeira, sem cumprir as suas ordens expressas, pondo-se por fim em fuga;

* Depois das ameaças e desobediência por aquele a ocorrência passou a ser mais grave;

* Os arguidos não tinham como perspetivar que EE voltasse a surgir pronto para disparar a arma que empunhava;

* Em momento algum o arguido agiu com dolo de homicídio, em qualquer das suas modalidades.

e. O Ministério Público veio ainda apresentar o que denominou «resposta» ao recurso da assistente! Mas tal «resposta é inadmissível, na medida em que lhe falha a legitimidade para tal. Porquanto, nos termos da lei, o assistente é um sujeito processual que colabora com o Ministério Publico, a cuja atividade subordina a sua intervenção, «salvas as exceções da lei» (artigo 69.º, § 1.º CPP).

Como nas circunstâncias do caso presente não estamos perante nenhuma dessas exceções, tal «resposta» é processualmente inadmissível, e nessa medida dela se não conhecerá.

f. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância, na intervenção a que alude o artigo 416.° do CPP, apôs o seu «visto».

Os autos foram aos vistos e à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A. Delimitação do objeto do recurso

As motivações dos recursos enunciam especificamente os fundamentos dos mesmos e terminam pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que os recorrentes resumem as razões dos seus pedidos (artigo 412.º CPP), desse modo delimitando o âmbito dos recursos.

De acordo com as conclusões dos recorrentes, verificamos haver apenas duas questões aportadas ao conhecimento desta instância:

i. nulidade da decisão instrutória;

ii. saber se os autos contêm indícios suficientes da coautoria pelos arguidos da prática de factos suscetíveis de integrarem o crime de homicídio, previsto no artigo 131.º CP, que lhes vem foi imputado pela acusação.

B. A acusação do Ministério Público, colocada em crise pela decisão recorrida, tem o seguinte teor:

«1. No dia 07/12/2021, cerca das 10h.45m., OO, 2.º Sargento e chefe do Núcleo de Investigação Criminal (NIC) da Guarda Nacional Republicana (GNR) de …, PP, cabo, e QQ, guarda principal, acompanhados por uma equipa do Posto Territorial do …, composta pelos guardas RR e SS e pelo guarda provisório TT, dirigiram-se à residência de EE, sita em …, com o intuito de cumprirem um mandado de busca domiciliária, emitido no âmbito do processo n.º 341/21.3…, no qual foi apresentada queixa contra este pela prática de dois crimes de coação, p. e p. pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal, agravado por força do estatuído no artigo 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02 (RJAM), e de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), e d), da Lei n.º 5/2006, de 23/02.

2. O mandado de busca visava, essencialmente, apreender a EE todas as armas de fogo e munições que o mesmo tivesse guardadas em sua casa.

3. Chegados ao local, os elementos da GNR aproximaram-se da habitação e constataram que esta se encontrava desocupada.

4. Volvidos poucos minutos, viram EE nas imediações da habitação, numa zona de mato, a encaminhar-se na direção onde se encontravam, transportando uma arma de fogo, tipo caçadeira e uma bolsa a tiracolo, semelhante a uma cartucheira.

5. De imediato, os elementos policiais do NIC, em tom de voz alto, identificaram-se, informando EE do seu propósito ali, e pediram-lhe para colocar a arma de fogo que empunhava no chão; já os elementos policiais do Posto Territorial do … exibiram-se, devidamente fardados.

6. Em resposta e em tom de voz alto, por se encontrar a cerca de 150 metros de distância daqueles, EE proferiu as seguintes expressões: “Vão para o caralho”, “Vão embora daqui”, “A mim não me levam” e “Desapareçam daqui”.

7. Ato contínuo, EE premiu o gatilho da espingarda-caçadeira que empunhava, efetuou um disparo e, aproveitando esse facto, escondeu-se, novamente, na vegetação, desaparecendo.

8. Com medo, e por não se encontrarem devidamente equipados, nomeadamente com coletes e capacetes táticos à prova de balas, os militares da GNR dispersaram-se e refugiaram-se atrás das edificações em alvenaria que ali existiam, tentando, no entanto, manter o diálogo com EE, em tom de voz alto, mas sem sucesso.

9. De imediato, o 2.º Sargento OO contactou telefonicamente com o Comandante do Destacamento Territorial de …, Capitão UU, que, cerca das 11h.15m., compareceu no local acompanhado de sua adjunta, VV, bem como de outros militares dos Postos Territoriais de … e de …, que imediatamente tentaram ajustar o cerco de segurança inicialmente montado.

10. Chegado ao local, o Capitão UU, analisando a dimensão do local em causa e considerando a existência e utilização de arma de fogo por parte de EE, reportou a situação ao arguido AA, Tenente-Coronel, Comandante do Comando Territorial de …, que, por sua vez, cerca das 11h.42m., solicitou a intervenção imediata do Grupo de Intervenção e Operações Especiais (GIOE).

11. Sensivelmente, entre as 11h.15m. e as 12h.42, os militares da GNR de …, apesar de não saberem onde EE se encontrava ou se ainda estava no local, tentaram dialogar com este gritando quais as suas intenções, no entanto, nunca receberam qualquer resposta deste.

12. Entretanto, também chegou ao local o arguido AA por ser o responsável máximo territorial sobre o local da ocorrência, tornando-se, por inerência, o Comandante Gestor do Incidente (CmdtGI).

13. Cerca das 12h.42m., o GIOE, composto por vinte e sete elementos, a saber: o arguido Tenente-Coronel BB, responsável pela unidade de intervenção), os Tenentes GG e o arguido CC, os Sargentos XX, YY e ZZ, os Cabos o arguido DD, AAA, BBB, CCC, DDD, EEE, FFF, Guardas, JJ e KK, os Guardas Principais GGG, HHH, III, JJJ, KKK, LLL, MMM e NNN e os Guardas OOO, PPP, III e QQQ, chegou ao local.

14. Os elementos da GNR do NIC de … reportaram aos arguidos AA e BB toda a informação de que dispunham acerca de EE, nomeadamente de que se tratava de “um indivíduo do sexo masculino com 62 anos de idade, que habitava sozinho, tinha várias armas de fogo, apresentava sinais de instabilidade psicológica, tinha histórico de violência contra a GNR e vizinhos, tendo inclusivamente, naquela manhã, disparado na direção dos militares da GNR (a cerca de 150 metros de distância), era caçador, carregava os próprios cartuchos manualmente e que tinham sido encontrados na habitação pequenos fragmentos de metal produzidos pelo próprio.”

15. Nessa sequência, foi organizado o Posto de Comando do Incidente (PCI), congregando os responsáveis pelas unidades/entidades intervenientes, com vista a auxiliar o arguido AA, enquanto Comandante Gestor do Incidente, na tomada de decisões e na garantia da implementação das mesmas.

16. Na posse da informação disponível, os arguidos AA e BB iniciaram, então, o processo de substituição dos militares da contenção, tendo os militares do GIOE assumido as posições que estavam a ser asseguradas pelos militares do Comando Territorial de …, em coordenação com o Comando da Unidade de Intervenção Tática, chefiado pelo arguido BB.

17. Por desconhecerem se EE ainda ali se encontrava, lançaram mão de uma aeronave não tripulada, vulgarmente designada por drone, e de uma câmara térmica, as quais sobrevoaram o terreno; contudo, nenhum dos equipamentos detetou a presença de EE.

18. Cerca das 13h.25m., as áreas de maior probabilidade de contacto com EE, designadas por “perímetro interior”, foram assumidas pelos elementos do GIOE e o restante perímetro, vulgarmente designado por perímetro exterior, estava controlado pelos elementos do GIOP, formando, assim, dois perímetros de contenção, com vista à deteção e detenção de EE numa possível fuga por este encetada para campos limítrofes à sua propriedade.

19. O arguido BB, Comandante do GIOE, reportou ao arguido AA, Comandante Gestor do Incidente, a sua estratégia de atuação para a concreta situação, tendo em conta toda a informação a ambos partilhada previamente, sugerindo a este uma manobra de batida ao terreno dentro do perímetro delineado, com o objetivo de localizar EE.

20. A mencionada manobra consistia, então: na criação de uma linha composta por catorze elementos da unidade de intervenção, que se estendia entre os limites Norte e Sul da área do perímetro delineado, sentido da marcha Oeste-Este, estando integrados naquela linha três binómios (homem e cão) de intervenção tática do GIC, um no setor Norte, um ao centro e outro no setor Sul;

21. no caminho de terra, muito atrás da linha de batida, ficaria a aguardar a viatura blindada de marca …, modelo …, com dois negociadores no interior, devidamente preparados para a negociação, dotados de um megafone audível a dezenas de metros de distância, com vista a negociar a eventual rendição de EE, caso fosse localizado e não oferecesse resistência; e

22. toda a operação deveria ser acompanhada do drone, com vista a detetar qualquer movimento humano.

23. Devidamente explicada a estratégia de atuação, o arguido AA concordou com a mesma, não apresentando outras alternativas de atuação e não alvitrando ou exigindo outra forma de atuação caso EE fosse detetado.

24. Obtendo a concordância do responsável máximo da operação, cerca das 14h.09m., o arguido BB, deu ordem à sua equipa, composta por catorze elementos, para iniciar a batida, nos moldes referidos nos pontos 20 a 22, seguindo ele próprio na retaguarda, aproximadamente a 2 metros de distância daquela, mantendo-se mais próximo dos coarguidos CC e DD que se encontravam à sua frente, dando indicações a todos os militares através de intercomunicadores.

25. Percorridos cerca de 50 metros para a zona Este, após o início da movimentação dos militares do GIOE que integravam a linha de batida ao terreno, o cabo CCC, que se encontrava em cima de um telhado de uma pequena casa a vários metros de distância, deu indicação ao arguido BB, através do intercomunicador, que todos tinham, que EE se encontrava a cerca de 40 metros de distância da linha, na vegetação.

26. De imediato, o arguido BB e os restantes militares gritaram, repetidas vezes, na direção indicada pelo cabo CCC: “GNR, largue a arma”.

27. Constatando que os militares se continuavam a aproximar, EE começou a correr no sentido Este, isto é, no sentido contrário ao local onde se encontravam os militares que compunham a linha de batida, afastando-se destes, introduzindo-se numa zona de árvores e arbustos altos existentes junto às margens de uma linha de água que por ali passa.

28. Enquanto corria numa zona mais descampada sem arvoredo para se esconder, EE efetuou um disparo com a espingarda caçadeira que empunhava.

29. Nesse momento, o arguido BB ordenou que fosse lançado o canídeo que se encontrava na formação da linha a Norte, no entanto, este, provavelmente por não ter visto o seu alvo, devido à erva existente no local, não seguiu no encalce de EE, muito menos lhe imobilizou o braço ou a arma de fogo.

30. Apesar de um dos canídeos não ter alcançado EE, o arguido BB não determinou que um dos outros canídeos ali existentes e igualmente operacionais atuasse com o mesmo propósito.

31. Apesar de todos terem tomado conhecimento, naquele momento, de que EE se encontrava no local, os arguidos AA e BB decidiram manter o plano inicial nos seus exatos termos, sem ponderarem este novo facto.

32. Ao verem que EE se introduziu numa zona de vegetação junto à linha de água, a linha de batida formada pelos militares do GIOE continuou a sua progressão em direção àquele local, mantendo o arguido BB a sua posição, isto é, na retaguarda dos militares, nomeadamente dos coarguidos CC e DD.

33. Durante a progressão, os militares efetuaram quatro disparos de advertência, intercalados com advertências verbais, pedindo a EE para se “entregar e largar a arma de fogo”.

34. Entretanto, foi dada ordem à equipa de negociadores para avançar e aproximar-se da linha de batida, o que tentaram fazer procurando um caminho em melhor estado, contornando, para o efeito a residência de EE.

35. No entanto, a linha de batida manteve-se em movimento e o arguido BB deu ordem para os arguidos CC e DD e o guarda II, que tinha o escudo de proteção, se aproximarem e se fixarem a apenas cerca de 15 metros do local onde tinham visto EE a entrar.

36. Quando aqueles já se encontravam em posição de disparo, EE saiu de dentro da moita de arbustos e arvoredo, ficado escondidos ¾ das suas duas pernas (permanecendo à vista a parte superior das duas coxas), empunhando na direção dos militares a sua espingarda caçadeira, mantendo-se estático e sem efetuar qualquer disparo.

37. De imediato, os arguidos CC e DD fazendo, cada um, uso de sua arma, concretamente uma pistola metralhadora …, calibre … …, com o n.º de série …, acompanhada de um supressor de som modelo …, um aparelho de pontaria …, uma lanterna e um carregador de trinta munições e uma pistola …, com o n.º …, acompanhada de um carregador de dezassete munições e de uma lanterna, respetivamente, efetuaram, no total, onze disparos na direção de EE, sendo que apenas cinco destes disparos atingiram o corpo deste: dois com porta de entrada no abdómen, um no antebraço direito, um na coxa da perna direita e outro com porta de entrada na nuca.

38. Às 14h.39m., EE já se encontrava caído no chão, inanimado.

39. Os arguidos dispararam sobre EE 43 minutos após o início da execução do plano de batida.

40. EE tinha na sua posse uma espingarda caçadeira de marca “…”, carregada com dois cartuchos calibre 12, uma cartucheira contendo dezanove cartuchos e um canivete.

41. Como consequência direta e necessária da conduta de todos os arguidos, EE sofreu as seguintes lesões:

- na cabeça:

a) ferida orificial na região occipital, ligeiramente à esquerda da crista occipital e abaixo da protuberância occipital, localizada 159cm acima da planta do pé direito, com 0,6x0,6cm de maiores dimensões; apresentava orla de contusão com 4mm de maior espessura na metade esquerda;

b) ferida contusa localizada 1,8cm à direita da crista occipital e 160cm acima da planta do pé esquerdo, oblíqua infero-medialmente, com 1,9x0,5cm de maiores dimensões; e

c) área escoriada, heterogénea, na metade lateral da região infra-orbitária esquerda, com 2x1cm de maior eixo vertical;

d) ferida orificial localizada 5cm abaixo da anteriormente descrita, no mesmo plano coronário, 106cm acima da planta do pé direito, com 1x0,5cm de maior eixo transversal;

- no membro superior direito:

a) ferida orificial na face anterior do terço médio do antebraço direito, oblíqua infero-medialmente, com 1,5x0,6cm de maiores dimensões; apresenta orla de contusão com 6mm de maior espessura distal; e, b) ferida contusa na face posterior do terço proximal do antebraço direito, com 5x1cm de maior eixo vertical, com exposição de esquírolas ósseas e com presença de fragmentos metálicos;

- no membro inferior direito:

a) ferida orificial na face interna do terço proximal da coxa direita, localizada 79cm acima da planta do pé direito, com 2x1cm de maior eixo transversal, apresenta orla de contusão com maior espessura infero-medial; e b) ferida orificial na face póstero-lateral do terço proximal da coxa direita, imediatamente abaixo do sulco infra-glúteo, localizada 80,5cm acima da planta do pé direito, oblíqua infero-medialmente, com 1x0,6cm de maiores dimensões; e

- no membro inferior esquerdo:

- ferida tangencial na face interna do terço proximal da coxa esquerda, localizada 78cm acima da planta do pé esquerdo, com 5x5x2cm de maior eixo transversal; apresentava orla de contusão em todo o perímetro.

42. A morte de EE derivou das graves lesões traumáticas crânio-encefálicas e abdominais provocadas pelos disparos das duas armas de fogo, tendo sido declarada no próprio local, às 15h.40m.

43. Todos os arguidos, mas sobretudo os arguidos AA e BB, depois de tomarem conhecimento de que EE se encontrava naquele terreno e que estava localizado, poderiam e deveriam ter reformulado o plano de abordagem inicial, pois, não foi aventada qualquer estratégia para esta situação que poderia acontecer, como veio a ocorrer.

44. Os arguidos tinham à sua disposição os cães patrulha, um carro blindado com dois negociadores, megafones, 66 (sessenta e seis) militares da GNR, e, eventualmente, outros recursos e meios caso fossem solicitados para o local, com vista a conseguir que EE se entregasse voluntariamente, no entanto, desperdiçaram-nos, utilizando apenas o recurso letal.

45. No dia em causa, o por do sol estava previsto para as 17h.13m., pelo que, os arguidos ainda tinham 02h.33m. de atuação com luz solar, podendo, neste período, e utilizando os meios não letais à sua disposição, fazer com que EE se entregasse voluntariamente sem lhe sacrificar a vida.

46. Os arguidos sabiam perfeitamente que só podem utilizar armas de fogo contra pessoas caso não seja possível utilizar outros meios não letais para atingir o fim, que no caso era deter EE.

47. Não obstante esse conhecimento, os arguidos CC e DD efetuaram cinco disparos precisos, sendo que três deles acertaram em zonas letais do corpo humano.

48. Os arguidos sabiam perfeitamente que o que levou os militares da GNR à residência foi o cumprimento de um mandado de busca domiciliária e não um mandado de detenção fora de flagrante delito.

49. Todos os arguidos conheciam perfeitamente as características das armas das quais foram efetuados os disparos.

50. Os arguidos CC e DD são militares altamente treinados, fazendo treino de tiro com grande regularidade, sendo fácil para ambos acertar em zonas especificas do seu alvo.

51. Os arguidos CC e DD, devido à sua precisão de tiro e proximidade física do alvo, poderiam ter acertado em zonas não letais do corpo de EE, como é o caso dos braços e das pernas, mais concretamente a parte superior das coxas – parte que se encontrava à vista –, não obstante decidiram também disparar para as zonas do abdómen e da nuca, regiões que alojam órgãos essenciais à vida humana, matando imediatamente aquele.

52. Ao manterem o plano inicial, cientes da disparidade de meios e alcance dos mesmos relativamente à arma detida por EE, insistindo no perseguimento persistente deste até ao local onde tinha entrado na vegetação, mesmo depois de ter efetuado um disparo com a arma de fogo que detinha, os arguidos representaram, obrigatoriamente, como possível o reaparecimento deste com a sua arma, pois tal já tinha, inclusivamente, acontecido.

53. Ao encurralarem EE, todos os arguidos prefiguraram como possível e provável a morte deste, aceitando-a e conformando-se com tal resultado, pois se assim não tivesse sido teriam esgotados todos os outros meios não letais que tinham disponíveis naquele momento ou que podiam requisitar.

54. Ao agirem do modo supra descrito, os arguidos não evitaram, como se lhes impunha, uma situação de risco desnecessário à sua própria segurança e à de EE.

55. Todos os arguidos, ao não reformularem o plano inicial, chamando à operação tática outros intervenientes, como por exemplo novamente os cães patrulha e os negociadores, depois de saberem que EE se encontrava num determinado espaço do terreno, representaram a morte deste como consequência muito provável da sua conduta, concretamente do encurralamento e da realização de disparos com armas de fogo.

56. Nos 43 minutos que mediaram a execução da batida e a morte de EE, sobretudo os arguidos AA e BB poderiam e deveriam traçar outro plano que não abrangesse recursos letais, como são as armas de fogo.

57. Apesar de ser o Comandante Gestor do Incidente e de ter conhecimento do que se passava no terreno, sobretudo do momento decisivo que se traduz na descoberta de EE no local, o arguido AA, que se encontrava no Posto de Comando do Incidente, não deu ordens ao arguido BB, como lhe competia, no sentido de, entre ambos, reformularem o plano inicial de abordagem/atuação, e, consequentemente, deter, com vida EE e apresenta-lo à autoridade judiciária competente.

58. À data dos factos, todos os arguidos possuíam capacidades para avaliar o carácter proibido dos seus atos e para se determinar de acordo com essa avaliação, capacidade que mantêm no presente.

59. Os arguidos agiram, assim, de forma deliberada, livre e consciente, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de encurralar EE e efetuar disparos na sua direção, cinco dos quais no corpo deste em zonas que alojam órgãos vitais do corpo humano, sabendo perfeitamente que tais disparos poderiam provocar-lhe a morte, como veio a acontecer em 07/12/2021, como consequência direta, necessária e imediata, conformando-se com isso.

60. Todos os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Pelo exposto:

Cometeram, assim, os arguidos AA, BB, CC e DD, em coautoria (art. 26.º, 2.ª parte, do Código Penal) e na forma consumada:

- um crime de homicídio, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 3 e 131.º, ambos do Código Penal, por referência aos artigos 2.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 2 e 5.º do Decreto-Lei n.º 457/99, de 05/11, 153.º, n.º 2 do Regulamento Geral do Serviço da Guarda Nacional Republicana.»

C. Por seu turno o despacho recorrido mostra-se elaborado nos termos seguintes:

I.

«DA FACTUALIDADE INDICIADA

Expurgadas as redundâncias, considerações, conceitos de direito e conclusões constantes da acusação pública, cumpre, da conjugação dos atos de instrução realizados nesta sede com os elementos probatórios resultantes do inquérito, dar como indiciada, e em síntese, a seguinte factualidade:

1. No dia 7 de dezembro de 2021, cerca das 10h45m, OO, 2.º Sargento e chefe do Núcleo de Investigação Criminal (adiante “NIC”) da Guarda Nacional Republicana (adiante “GNR”) de …, PP, cabo, e QQ, guarda principal, acompanhados por uma equipa do Posto Territorial do …, composta pelos guardas RR e SS e pelo guarda provisório TT, dirigiram-se à residência de EE, sita em …, com o intuito de cumprirem um mandado de busca domiciliária, emitido no âmbito do processo n.º 341/21.3…, no qual foi apresentada queixa contra este pela prática de dois crimes de coação e um crime de detenção de arma proibida.

2. O mandado de busca visava, essencialmente, apreender a EE todas as armas de fogo e munições que o mesmo tivesse guardadas em sua casa.

3. Chegados ao local, os elementos da GNR aproximaram-se da habitação e constataram que esta se encontrava desocupada.

4. Volvidos poucos minutos, viram EE nas imediações da habitação, numa zona de mato, a encaminhar-se na direção onde se encontravam, transportando uma arma de fogo, tipo caçadeira, e uma bolsa a tiracolo, semelhante a uma cartucheira.

5. De imediato os elementos policiais do NIC, em tom de voz alto, identificaram-se, informando EE do seu propósito ali, e pediram-lhe para colocar a arma de fogo que empunhava no chão; já os elementos policiais do Posto Territorial do … exibiram-se devidamente fardados.

6. Em resposta e em tom de voz alto, por se encontrar a cerca de 150 metros de distância daqueles, EE proferiu as seguintes expressões: “Vão para o caralho”, “Vão embora daqui”, “A mim não me levam” e “Desapareçam daqui”.

7. Ato contínuo, EE premiu o gatilho da espingarda-caçadeira que empunhava, efetuou um disparo e, aproveitando esse facto, escondeu-se, novamente, na vegetação, desaparecendo.

8. Com medo, e por não se encontrarem devidamente equipados, nomeadamente com coletes e capacetes táticos à prova de bala, os militares dispersaram-se e refugiaram-se atrás das edificações em alvenaria que ali existiam, tentando, no entanto, manter o diálogo com EE, em tom de voz alto, mas sem sucesso.

9. De imediato o 2.º Sargento OO contactou telefonicamente o Comandante do Destacamento Territorial de Palmela, Capitão UU, que, cerca das 11h15m, compareceu no local acompanhado da sua adjunta, VV, bem como de outros militares dos Postos Territoriais de … e de …, que imediatamente tentaram ajustar o cerco de segurança inicialmente montado.

10. Chegado ao local, o Capitão UU, analisando a dimensão do local em causa e considerando a existência e utilização de arma de fogo por parte de EE, reportou a situação ao arguido AA, Tenente-Coronel, Comandante do Comando Territorial de …, que, por sua vez, cerca das 11h42m, solicitou a intervenção imediata do Grupo de Intervenção e Operações Especiais (adiante “GIOE”).

11. Entre as 11h15m e as 12h42m, os militares da GNR, apesar de não saberem onde EE se encontrava ou se ainda estava sequer no local, tentaram dialogar com este, gritando quais as suas intenções, sem, no entanto, obterem qualquer resposta deste.

12. Entretanto, também chegou ao local o arguido AA, por ser o responsável máximo territorial sobre o local da ocorrência, tornando-se, por inerência, o Comandante Gestor do Incidente.

13. Cerca das 12h.42m., o GIOE, composto por vinte e sete elementos, a saber: o arguido Tenente-Coronel BB, responsável pela unidade de intervenção), os Tenentes GG e o arguido CC, os Sargentos XX, YY e ZZ, os Cabos o arguido DD, AAA, BBB, CCC, DDD, EEE, FFF, Guardas, JJ e KK, os Guardas Principais GGG, HHH, III, JJJ, KKK, LLL, MMM e NNN e os Guardas OOO, PPP, III e QQQ, chegou ao local.

14. Os elementos do NIC reportaram aos arguidos AA e BB toda a informação de que dispunham acerca de EE, nomeadamente de que se tratava de “um indivíduo do sexo masculino com 62 anos de idade, que habitava sozinho, tinha várias armas de fogo, apresentava sinais de instabilidade psicológica, tinha histórico de violência contra a GNR e vizinhos, tendo inclusivamente, naquela manhã, disparado na direção dos militares da GNR (a cerca de 150 metros de distância), era caçador, carregava os próprios cartuchos manualmente e que tinham sido encontrados na habitação pequenos fragmentos de metal produzidos pelo próprio.”

15. Nessa sequência, foi organizado o Posto de Comando do Incidente, congregando os responsáveis pelas unidades/entidades intervenientes, com vista a auxiliar o arguido AA, enquanto Comandante Gestor do Incidente, na tomada de decisões e na garantia da implementação das mesmas.

16. Na posse da informação disponível, os arguidos AA e BB iniciaram, então, o processo de substituição dos militares da contenção, tendo os militares do GIOE assumido as posições que estavam a ser asseguradas pelos militares do Comando Territorial de …, em coordenação com o Comando da Unidade de Intervenção Tática, chefiado pelo arguido BB.

17. Por desconhecerem se EE ainda ali se encontraria, lançaram mão de uma aeronave não tripulada, vulgarmente designada por drone, equipada com uma câmara térmica, que sobrevoou o terreno; contudo, nenhum dos equipamentos detetou a presença de EE.

18. Cerca das 13h25m, as áreas de maior probabilidade de contacto com EE — designadas por “perímetro interior” — foram definidas pelos elementos do GIOE e o restante perímetro — vulgarmente designado por perímetro exterior — ficou controlado pelos elementos do GIOE, formando dois perímetros de contenção com vista à deteção e detenção de EE numa possível fuga por este encetada para campos limítrofes.

19. O arguido BB, Comandante do GIOE, reportou ao arguido AA, Comandante Gestor do Incidente, a sua estratégia de atuação para a concreta situação, tendo em conta toda a informação a ambos previamente partilhada, sugerindo a este uma manobra de batida ao terreno dentro do perímetro delineado, com o objetivo de localizar EE.

20. Tal mencionada manobra consistia na criação de uma linha composta por catorze elementos da unidade de intervenção, que se estendia entre os limites norte e sul da área do perímetro delineado, com sentido da marcha oeste-este, estando integrados naquela linha três binómios composto por homem e cão de intervenção tática do GIC — um no setor norte, um ao centro e outro no setor sul.

21. No caminho de terra, muito atrás da linha de batida, ficaria a aguardar a viatura blindada de marca … modelo …, com dois negociadores no interior, devidamente preparados para a negociação, dotados de um megafone audível a dezenas de metros de distância, com vista a negociar a eventual rendição de EE, caso fosse localizado e não oferecesse resistência.

22. Toda a operação seria acompanhada pelo drone, com vista a detetar qualquer movimento humano.

23. Devidamente explicada a estratégia de atuação, o arguido AA concordou com a mesma, não apresentando outras alternativas de atuação e não alvitrando ou exigindo outra forma de atuação caso EE fosse detetado.

24. Cerca das 14h09m, o arguido BB deu ordem à sua equipa, composta por catorze elementos, para iniciar a batida, nos moldes referidos suprarreferidos, seguindo ele próprio na retaguarda, a aproximadamente a 2 metros de distância daquela, mantendo-se mais próximo dos coarguidos CC e DD que se encontravam à sua frente, dando indicações a todos os militares através de intercomunicadores;

25. Percorridos cerca de 50 metros para a zona este, após o início da movimentação dos militares do GIOE que integravam a linha de batida ao terreno, o cabo CCC, que se encontrava em cima de um telhado de uma pequena casa a vários metros de distância, deu indicação ao arguido BB, através do intercomunicador — que todos tinham — que EE se encontrava a cerca de 40 metros de distância da linha, na vegetação;

26. De imediato o arguido BB e os restantes militares gritaram, repetidas vezes, na direção indicada pelo cabo CCC: “GNR, largue a arma”.

27. Constatando que os militares se continuavam a aproximar, EE começou a correr no sentido este, isto é, no sentido contrário ao local onde se encontravam os militares que compunham a linha de batida, afastando-se destes e introduzindo-se numa zona de árvores e arbustos altos existentes junto às margens de uma linha de água que por ali passa.

28. Enquanto corria numa zona mais descampada sem arvoredo para se esconder, EE efetuou um disparo com a espingarda caçadeira que empunhava.

29. Nesse momento, o arguido BB ordenou que fosse lançado o canídeo que se encontrava na formação da linha a Norte, mas este, provavelmente por não ter visto o seu alvo devido à erva existente no local, não seguiu no encalce de EE e muito menos lhe imobilizou o braço ou a arma de fogo.

30. Não foi determinada a intervenção dos demais canídeos.

31. Os arguidos AA e BB decidiram manter o plano nos seus exatos termos.

32. A linha de batida formada pelos militares do GIOE continuou a sua progressão em direção à zona descrita no ponto 27, mantendo o arguido BB a sua posição na retaguarda dos militares, nomeadamente dos coarguidos CC e DD.

33. Durante a progressão, os militares efetuaram quatro disparos de advertência, intercalados com advertências verbais, pedindo a EE para se “entregar e largar a arma de fogo”.

34. Entretanto, foi dada ordem à equipa de negociadores para avançar e aproximar-se da linha de batida, o que tentaram fazer procurando um caminho em melhor estado, contornando, para o efeito a residência de EE.

35. A linha de batida manteve-se em movimento e o arguido BB deu ordem para os arguidos CC e DD e o guarda III, que tinha escudo de proteção, se aproximarem e se fixarem a cerca de 15 metros da zona descrita no ponto 27 e onde se tinha visto EE introduzir-se.

36. EE saiu então de dentro dos descritos arbustos e arvoredo, tendo permanecido escondidos três quartos das suas duas pernas — permanecendo à vista apenas a parte superior das duas coxas — e empunhando na direção dos militares a sua espingarda caçadeira.

37. De imediato os arguidos CC e DD fazendo, cada um, uso de sua arma, concretamente uma pistola metralhadora …, calibre … …, com o n.º de série …, acompanhada de um supressor de som modelo …, um aparelho de pontaria …, uma lanterna e um carregador de trinta munições e uma pistola …, com o n.º …, acompanhada de um carregador de dezassete munições e de uma lanterna, respetivamente, efetuaram, no total, onze disparos na direção de EE, sendo que daqueles onze apenas cinco atingiram o corpo de EE; dois com porta de entrada no abdómen, um no antebraço direito, um na coxa da perna direita e outro com porta de entrada na nuca.

38. Às 14h39m EE encontrava-se já caído no chão, inanimado.

39. EE tinha na sua posse uma espingarda caçadeira de marca “..”, carregada com dois cartuchos calibre 12, uma cartucheira contendo dezanove cartuchos e um canivete.

40. Como consequência direta e necessária da conduta dos disparos, EE sofreu as seguintes lesões:

41. Na cabeça: ferida orificial na região occipital, ligeiramente à esquerda da crista occipital e abaixo da protuberância occipital, localizada 159cm acima da planta do pé direito, com 0,6x0,6cm de maiores dimensões; apresentava orla de contusão com 4mm de maior espessura na metade esquerda; ferida contusa localizada 1,8cm à direita da crista occipital e 160cm acima da planta do pé esquerdo, oblíqua infero-medialmente, com 1,9x0,5cm de maiores dimensões; e área escoriada, heterogénea, na metade lateral da região infra-orbitária esquerda, com 2x1cm de maior eixo vertical;

42. No abdómen: ferida orificial, localizada no hipocôndrio direito, 3cm à direita do processo xifoide do esterno e 119cm acima da planta do pé direito, com 1x0,6cm de maior eixo transversal; apresenta orla de contusão excêntrica com 3mm de espessura máxima distal; ferida orificial localizada no hipocôndrio direito, 2cm para distal e 2cm para medial da anteriormente descrita e 117cm acima da planta do pé direito, com 1x0,6cm de maior eixo transversal apresenta orla de contusão excêntrica com 3 mm de maior espessura lateral; ferida orificial na região lombar direita, 7cm acima e 4cm para lateral da crista ilíaca póstero-superior, localizada 111cm acima da planta do pé direito, obliqua infero-medialmente, com 1x0,5cm de maiores dimensões; e ferida orificial localizada 5cm abaixo da anteriormente descrita, no mesmo plano coronário, 106cm acima da planta do pé direito, com 1x0,5cm de maior eixo transversal;

43. No membro superior direito: ferida orificial na face anterior do terço médio do antebraço direito, oblíqua infero-medialmente, com 1,5x0,6cm de maiores dimensões; apresenta orla de contusão com 6mm de maior espessura distal; e ferida contusa na face posterior do terço proximal do antebraço direito, com 5x1cm de maior eixo vertical, com exposição de esquírolas ósseas e com presença de fragmentos metálicos;

44. No membro inferior direito: ferida orificial na face interna do terço proximal da coxa direita, localizada 79cm acima da planta do pé direito, com 2x1cm de maior eixo transversal, apresenta orla de contusão com maior espessura infero-medial; e ferida orificial na face póstero-lateral do terço proximal da coxa direita, imediatamente abaixo do sulco infra-glúteo, localizada 80,5cm acima da planta do pé direito, oblíqua infero-medialmente, com 1x0,6cm de maiores dimensões;

45. No membro inferior esquerdo: ferida tangencial na face interna do terço proximal da coxa esquerda, localizada 78cm acima da planta do pé esquerdo, com 5x5x2cm de maior eixo transversal; apresentava orla de contusão em todo o perímetro.

46. A morte de EE, declarada no local às 15h40, derivou das lesões traumáticas crânio encefálicas e abdominais provocadas pelos disparos das duas armas de fogo.

Não resultaram indiciados quaisquer outros factos relevantes para a presente decisão, nomeadamente que:

a. Tenha EE, após sair da zona de arbustos e arvoredo descrita, se “mantido estático” (sic).

b. Tenha EE saído daquela zona de arbustos e arvoredo quando os militares “já se encontravam em posição de disparo” (sic).

c. Os disparos sobre EE tenham ocorrido 43 minutos após o início da execução do plano de batida.

II.

DA FUNDAMENTAÇÃO

A factualidade que consta da acusação — expurgada esta, portanto, das considerações, conceitos de direito e matéria conclusiva — foi quase integralmente dada como indiciada. Foram introduzidas pequenas alterações ao texto para síntese e clarificação, sem impacto material no seu significado. Nem foi a factualidade — com pequenas exceções e na sua essência —questionada pelos arguidos ou contradita pelos elementos probatórios: as pequenas divergências sobre o desenrolar dos acontecimentos — assentes, desde logo, nos múltiplos depoimentos angariados em sede de inquérito, relatórios periciais e de operação do GIOE, as designadas “linhas do tempo”, autos de apreensão, inspeção judiciária e reconstituição e transcrição de mensagens transmitidas via plataforma digital WhatsApp — não suscitam relevantes dissonâncias ou consideráveis dúvidas sobre o encadeamento dos factos ocorridos. Mais: disponibilizam uma discernível sucessão de acontecimentos que em momento algum colide com as regras da experiência comum. Ou (adianta-se) o quadro normativo — legal, regulamentar, procedimental.

Paralelamente, as quatro testemunhas inquiridas já nesta sede de instrução igual e rigorosamente nada acrescentaram, contradisseram ou suscitaram que permita ou promova um enquadramento distinto do resultava já dos elementos probatórios angariados em sede de inquérito (e elencados na acusação pública): RRR (Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana aquando dos factos), SSS (Tenente-Geral) e TTT (também militar da Guarda Nacional Republicana) limitaram-se a tecer, de forma aparentemente convicta, considerações genéricas sobre a atividade e dificuldades próprias da atividade da GNR: e, em concreto, pouco acrescentaram que assuma efetivo relevo ao que importa dirimir. Com uma (ainda que colateral e apenas moderadamente significativa) exceção: a primeira opinou (porque a isso instado) ser incomum o grau de violência e determinação encetado por EE. Finalmente, a última testemunha inquirida — a requerimento interposto pelo Ministério Público já nesta sede —, FF, cabo da Guarda Nacional Republicana, denotou, pelo contrário, lamentável muito pouca credibilidade: insistiu que os fragmentos de metal (mencionados no ponto 14 da acusação pública) teriam sido observados no parapeito exterior da janela da habitação alvo de busca ainda antes da busca e da chegada ao local do GIOE. Quando confrontado (pelo próprio Ministério Público) com a circunstância de tais peças (que constam da fotografia n.º 35 a folhas 1162) terem sido encontrados no interior de um bau de madeira (conforme auto de apreensão, com cópia a folhas 1149, elaborado pela própria testemunha), manifestou atrapalhação e incapacidade de explicação a contradição.

Portanto, e por distintas razões, não se afigura terem os atos de instrução agora concretizados propiciado qualquer efetiva, relevante mais-valia para melhor clarificação do sucedido.

No que respeita aos factos não indiciados, cumprirá adiantar integrarem os mesmos matéria que, não sendo tecnicamente conclusiva, é ainda assim sugestiva mas, de qualquer modo, sobre aqueles não existir quaisquer elementos probatórios que os sustentem.

Com efeito, nenhum documento ou depoimento nos autos indica ou sequer sugere que tenha EE se tenha mantido estático (e, naturalmente, sem disparar), porquanto tal afirmação implica o decurso de um (não insignificante) período de tempo entre o momento em que se fez ver com a arma apontada aos militares da GNR e os disparos perpetrados por estes. Nenhum elemento probatório denota ter EE permanecido imóvel durante qualquer (significativo) período de tempo: o relatório do GIOE (conferir folhas 181) refere o oposto (permanente movimento e ação); o auto de reconstituição, elaborado pela Polícia Judiciária, igualmente não faz menção de qualquer imobilidade de EE; e nenhuma dos descritivos que compõem linhas do tempo (cronograma da Guarda Nacional Republicana a folhas 177 e seguintes; registo das ocorrências da Guarda Nacional Republicana juntos como documento 1 pelo requerimento de abertura de instrução ou as mensagens trocadas entre os militares através da plataforma WhatsApp) permitem alcançar tal conclusão. Poder-se-á invocar que tal trecho apenas pretende indicar que EE não efetuou qualquer disparo, mas julgamos que o que sugere é uma (não comprovada) inatividade que, por sua vez, invoca uma menor necessidade de ação por parte dos militares que vieram a disparar. Com efeito — e pelo contrário —, o efetivo período temporal decorrido entre EE se revelar com a arma apontada aos militares e os disparos destes foi, ao que se pode concluir, negligenciável — o que é, de resto, compatível com as mais elementares regras de razão e bom senso. Muito dificilmente poderiam os militares fazer qualquer outra coisa que não de imediato reagir — com disparos — assim que EE lhes apontou a sua caçadeira.

No que respeita ao período de tempo decorrido entre o início da execução do plano de batida e os disparos sobre EE, nunca poderá aquele corresponder aos 43 minutos mencionados na acusação pública: entre a ordem proferida pelo arguido BB para execução da batida (consensualmente ocorrido pelas 14h09m) e os disparos (entre as 14h35 e as 14h37, variável conforme o cronograma por que se documentalmente opte) corresponde um máximo de 28 minutos, devendo ainda necessária e naturalisticamente ser descontado a esse período o (não rigorosamente concretizável) decorrido entre a ordem e o efetivo início da execução da batida.

Finalmente, também se não deu como indiciado que tenha EE saído da zona (de árvores e arbustos altos) onde se encontrava escondido quando os militares “já se encontravam em posição de disparo”, conforme relata a parte inicial do ponto 36 da acusação. Tal excerto indevidamente pressupõe, desde logo, que antes — e desde o início da batida — os militares que a compunham não estariam prontos a disparar se tal fosse necessário; mas sobretudo induz — sem fundamento, conforme explicitaremos — a conclusão de que a posição que os militares ocupavam descrita no ponto anterior (35 da acusação e também da presente decisão instrutória) visava a neutralização de EE — sobretudo ou exclusivamente — através de disparos sobre a sua pessoa.

Com efeito, EE encontrava-se não num específico, identificado ponto — como um qualquer concreto arbusto ou árvore — mas antes “numa zona de árvores e arbustos altos” (itálico nosso), podendo, portanto, surgir por de entre ou detrás de qualquer um daqueles elementos naturais; e não constituindo, por isso, um localizado, estático, visível alvo.

De qualquer forma — como se adiantou — não constitui esta (muito pouca) factualidade dada agora como não indiciada fator essencial à decisão.

Tivesse EE gritado o que quer que fosse que propiciasse qualquer tipo de diálogo (o que nunca fez); gritado para pararem; que se entregava (o que nunca gritou); ou tendo se deixado ver sem qualquer arma; ou — até — com a arma apontada para o ar (e não diretamente aos militares do GIOE, como por que optou), e estes careceriam de fundamento para — de imediato — procederem aos disparos que efetuaram para neutralização, daquela forma, da inequívoca ameaça que constituía EE. Pelo contrário, e optando este, sem nunca proferir uma única palavra, por surgir da zona onde se escondia e de imediato apontar a arma que empunhava diretamente aos militares, necessário se tem como não só inexigível mas também inconcebível que os estes pudessem ter qualquer tipo de reação não compatível com o exercício de legítima defesa e procedido — necessariamente através dos disparos que efetuaram — à neutralização da ameaça.

Mas cumpre para analisar mais detalhadamente o acervo de asserções e conclusões da acusação pública que suscita a imputação de que terão os arguidos agido “de forma deliberada, livre e consciente, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de encurralar EE e efetuar disparos na sua direção” (sic).

Entendemos, conforme decorre do supra entendimento já expresso, não permitir a factualidade indiciada sustentar tal entendimento.

Com efeito, aparenta a acusação concretizar a manifestação de tal propósito em dois momentos e dois complementares factos: não terem os arguidos procedido à alteração do plano de execução da batida quando EE foi avistado pelo cabo CCC antes de, de novo, desaparecer entre uma zona de vegetação e árvores (conferir ponto 31); terem-se posicionado os militares a 15 metros daquela zona (no que terá constituído o designado “encurralamento”); e tendo estas opções sido encetadas sem se não ter recorrido aos demais canídeos disponíveis no local (após o primeiro não ter seguido no encalce de EE) nem (de forma não concretizada) aos negociadores que se encontravam no local, concluindo a acusação não terem os arguidos — dessa forma — recorrido a meios não letais para atingirem o fim da operação: a detenção de EE.

Contudo, não concretiza a acusação qualquer forma de avaliação (técnica, empírica ou outra) que indique qual a probabilidade de os demais canídeos terem reação distinta do primeiro. Tivessem os militares recorrido a um segundo mas não ao terceiro teriam, ainda assim, “desperdiçado recursos” conforma afiança o ponto 44 da acusação? E tivessem (por não remota hipótese) no local mais canídeos, ter-se-ia — para não desperdício dos mencionados recursos — de recorrer a todos eles? Com que — reitera-se — critério?

Por outro lado, a presença — deste o primeiro instante — dos negociadores denotou pretender a GNR encetar, promover, possibilitar algum — qualquer — tipo de diálogo com EE.

Conforme ficou expresso no ponto 21 (da acusação e da presente decisão) “no caminho de terra, muito atrás da linha de batida, ficaria a aguardar a viatura blindada de marca…, modelo …, com dois negociadores no interior, devidamente preparados para a negociação”; e, nos pontos 33 e 34 (também da acusação e desta decisão) “Durante a progressão” da batida (...) “foi dada ordem à equipa de negociadores para avançar e aproximar-se da linha de batida, o que tentaram fazer procurando um caminho em melhor estado, contornando, para o efeito a residência de EE” (...) “com vista a negociar a eventual rendição de EE, caso fosse localizado e não oferecesse resistência”.

Qualquer diálogo requer (consabida) mútua vontade, disponibilidade; e a única interação verbal que EE encetou, naquele fatídico dia, com os militares foi após estes, ainda de manhã, se terem identificado e o informado do seu propósito ali, pedindo-lhe para colocar a arma de fogo que empunhava no chão. As indiciadas palavras de EE em resposta: “Vão para o caralho”, “Vão embora daqui”, “A mim não me levam” e “Desapareçam daqui”.

Importará ainda atender que uma visão retrospetiva (como a que ora se faz) do sucedido deve evitar desvalorizar as vicissitudes próprias da premente necessidade de decidir no campo e no momento, a cada momento, num contexto que encerrava múltiplas variáveis em permanente ou potencial mutação e perante uma ameaça — um indivíduo armado — de modo algum encerrado ou isolado num qualquer edifício mas antes num amplo terreno com elementos e obstáculos naturais e, portanto, propiciador de surgir a qualquer momento (como surgiu) de um ou outro arbusto, de uma ou outra arvore, e (novamente) disparar contra quem se lhe deparasse.

Uma acrescida decomposição do raciocínio e conclusões da acusação pública apenas reforçará o supra entendimento.

Argumenta a acusação que os arguidos podiam e deviam ter procedido à reformulação do plano inicial — a batida ao terreno — após conhecimento de que EE se encontrava naquele terreno e localizado.

Conforme expressamente resulta da acusação, EE encontrava-se em local incerto e, depois de avistado, efetuou disparo dirigido aos militares, voltando a esconder-se e desaparecer numa zona de vegetação e árvores. Pelo que as circunstâncias voltaram, em grande medida, a ser como as iniciais: os múltiplos perímetros de segurança sempre pressupuseram que o visado se encontraria na zona, não obstante o drone ter sido incapaz de o localizar. E, neste contexto, a manutenção do plano inicial — batida — é compreensível e lógico, não resultando claro nem sendo concretizado (no terreno ou na acusação pública), nestas circunstâncias, outro melhor, mais robusto ou seguro plano alternativo; e, menos ainda, assente em que normativos, regulamentos ou melhores práticas.

E quando a acusação recorda que o mandado de busca visava, essencialmente, apreender a EE todas as armas de fogo e munições que o mesmo tivesse guardadas em sua casa, aparenta ignorar que a forte alteração de circunstâncias decorreu única e exclusivamente por responsabilidade de EE que efetuou disparos na direção dos militares da GNR quando estes se limitavam a tentar cumprir tal mandado; e que, por isso, precipitou a estrita necessidade de a autoridade pública reestabelecer prioridades e proceder à neutralização da ameaça.

Também entendemos ser equívoca a consideração expressa na acusação pública de que ocorrendo no dia em causa o pôr do sol pelas 17h13m, os arguidos ainda tinham 02h33m de atuação com luz solar, podendo, nesse período, e utilizando os meios não letais à sua disposição, fazer com que EE se entregasse voluntariamente sem lhe sacrificar a vida. Mas, sendo o pôr do sol às 17h13m, a redução da luz solar inicia-se de facto muito antes dessa hora, numa medida sempre dependente das condições climáticas e atmosféricas (sendo que das fotos disponíveis nos autos resulta estar então o dia nublado — cfr. folhas 131), dificultando, dessa forma e ainda mais, a localização de um indivíduo em paradeiro relativamente incerto, num terreno não plano, com vegetação alta e um curso de água. O decurso do tempo tende normalmente a correr contra o sucesso de operações de busca, mesmo que de diferentes naturezas.

Afiança também a acusação pública ser fácil aos arguidos CC e DD, militares altamente treinados, acertar em zonas especificas de um alvo e terem podido optado por acertar em zonas não letais de EE, como os braços e as pernas.

Ora apenas um quarto das pernas se encontrava visível (conferir artigo 36 da acusação pública e da presente decisão) e os dois braços de EE encontravam-se à frente do tronco porquanto empunhavam a arma que dirigia aos militares. A própria acusação pública, por isso, apenas elenca como alvo aceitável a “parte superior das pernas” (conferir ponto 51). Não se vislumbra como poderiam aqueles arguidos, mediante uma arma de fogo contra si dirigida, realisticamente restringir o alvo ao quarto superior das pernas de EE, e menos ainda fazê-lo com sucesso: são duas manchas simplesmente muito pequenas e em contraste com uma ameaça muito grande. A prova dessa efetiva e concreta dificuldade é que, dos onze disparos, apenas cinco foram tidos pela acusação como “precisos” — por terem atingido o corpo de EE. E apenas um na “coxa da perna direita”:

Expressa ainda a acusação o entendimento de que ao manterem o plano inicial, cientes da disparidade de meios e alcance dos mesmos relativamente à arma detida por EE, os arguidos representaram como possível o reaparecimento deste com a sua arma. (...) Ao encurralarem EE, todos os arguidos prefiguraram como possível e provável a morte deste, aceitando-a e conformando-se com tal resultado.

Nenhuma dúvida se pode ter que, independentemente de qualquer plano, execução, iniciativa ou inércia, sempre persistiria — como se disse — a possibilidade de EE reaparecer, a qualquer momento, munido da sua caçadeira e de novo disparar contra os militares, risco que condicionava e reforçava os cuidados e constrangimentos da operação que decorria. Um desfecho que abrangesse a neutralização da ameaça pela morte seria naturalmente uma possibilidade, em particular ante o padrão comportamental de EE até então. Mas provável? Não se vislumbra como terá podido qualquer um dos militares antecipar, com relativa confiança, o que viria a acontecer. Tivesse EE, em qualquer momento, gritado a manifestar vontade de qualquer compromisso, aparecido sem arma ou até com ela apontada ao ar, e outras opções seriam conferidas aos militares (como a intervenção dos negociadores). A disparidade de meios poderia, razoavelmente, suscitar em EE a consciencialização da impossibilidade de fuga ou sucesso e a necessidade de se entregar. Assim, infelizmente, não aconteceu.

Conclui finalmente a acusação pública que os arguidos sabiam só poderem utilizar armas de fogo contra pessoas quando não possível utilizar outros meios não letais para atingir o fim (no caso, deter EE). E que agiram em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de encurralar EE e efetuar disparos na sua direção.

O uso das armas pelos arguidos só ocorreu quando lhes foi por EE apontada a sua própria arma, não se vislumbrando-se que outra (re)ação — para além dos disparos — poderia ter sido então encetada. Antes disso, outros meios foram — como se disse supra — tentados.

Nem se alcança — e, por isso, não se aceita — que a alegada “comunhão de esforços e intentos” dos arguidos para efetuar disparos na direção de EE requeresse canídeos, drone, negociadores, gritos e apelos.

Bastariam, tão só, tiros.

Aos arguidos é, em sede de acusação pública, imputada a prática de factos que se entendem consubstanciarem um crime de homicídio, previsto e punível nos termos do artigo 131.º e 14.º n.º 3 do Código Penal, por referência aos artigos 2.º n.º 1 e 2, 3.º n.º 2 e n.º 5 do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de novembro e ainda artigo 153.º n.º 2 do Regulamento Geral de Serviço da Guarda Nacional Republicana.

Como se explicitou, não se vislumbra nas opções e ações implementadas pelos arguidos — por que vem acusados e que se dão por indiciadas —, e naturalmente inseridas no concreto circunstancialismo que as acompanhou, a assunção de qualquer risco “desnecessário” à sua própria segurança e de terceiros; nem que, associadamente, o uso das armas de fogo constituísse qualquer outra coisa que não uma absoluta, flagrante necessidade.

No que respeita ao elemento subjetivo, optou finalmente a acusação por imputar aos arguidos o ilícito a título doloso, na forma eventual (artigo 14.º n.º 3 do Código Penal).

É consabido que a estrutura do dolo, independente da sua forma, comporta um elemento intelectual e um elemento volitivo: o primeiro consiste na representação pelo agente dos elementos que integram o facto ilícito e a consciência da sua ilicitude e prática censurável; o segundo — elemento volitivo — consiste no particular direcionamento da vontade do agente na concretização do facto ilícito, bastando — no caso do dolo eventual — a mera conformação da realização do facto como consequência possível da conduta.

Mas, como vimos, não se vislumbra na factualidade indiciada qualquer conduta ilícita — tentada ou consumada — e, por maioria de razão, qualquer forma de vontade de prática de facto não compatível com as leis, as regras, os procedimentos, a necessidade.

Num Estado de Direito saudavelmente espera-se, pretende-se e exige-se que toda e qualquer força pública exerça as suas funções na estrita medida da necessidade e força necessárias à prossecução dos seus legítimos propósitos e missões. De quando a quando tal implica ponderação e sacrifícios de direitos para que uns — os mais relevantes — prevaleçam sobre os demais. A existência humana é, fundamentalmente, isso: uma permanente e frequentemente sofisticada dialética de vontades, necessidades, conflitos, opções.

É neste complexo contexto que as forças de segurança devem compatibilizar a sua missão de garantia da nossa coletiva e individual defesa, paz e tranquilidade com a permanente prossecução e respeito da Lei. Com ponderação, equilíbrio, bom senso, cautelas; e frequentemente em contextos onde pequenas hesitações são fatais. Porque — conforme mensagem remetida por um dos arguidos aos seus colegas no dia dos factos em apreço — a “missão é salvar vidas” (cfr. folhas 96). Mas, nas curvas, esquinas e surpresas desta nossa coletiva existência, tal não é, por vezes, possível.

A comunidade deve confiar que as forças que a protege farão o melhor uso dos seus recursos, conhecimento e experiência para que esse seja sempre o último desfecho desejado e possível.

Mas também importará aos profissionais que as integram, e cujo exercício de funções ocorre regularmente em condições adversas e perigosas, confiar na clareza dos princípios, das regras e das prioridades. Saberem que a sua própria segurança e vida importa tanto como qualquer outra. E que o gatilho com que vivem e trabalham pode ser, deve ser, tem de ser, ocasionalmente premido.

III.

DA DECISÃO

Assim, e sem necessidade de mais considerações, determina-se a não pronúncia dos arguidos AA, BB, CC e DD pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de homicídio previsto e punível nos termos artigo 131.º e 14.º n.º 3 do Código Penal, por referência aos artigos 2.º n.º 1 e 2, 3.º n.º 2 e n.º 5 do Decreto-Lei n.º 457/99, de 5 de novembro e ainda artigo 153.º n.º 2 do Regulamento Geral de Serviço da Guarda Nacional Republicana, e o consequente arquivamento dos autos.»

D. Apreciando

D.0 Nota prévia

A decisão impugnada é um despacho judicial de não pronúncia. Não é uma sentença. Razão pela qual as referências aos vícios da decisão (artigo 410.º, § 2.º CPP, sendo vícios relativos à sentença, não se aplicam à decisão instrutória a que se reporta o artigo 307.º, do mesmo Código. (1) O mesmo sucedendo relativamente à impugnação de facto ou de direito com referência ao artigo 412.º CPP, aqui se mostram contextualmente deslocadas, porquanto também este normativo se reporta apenas às decisões finais (sentenças ou acórdãos).

D.1 Da nulidade da decisão instrutória

O recorrente pretende que a decisão instrutória é nula porquanto «na parte respeitante à factualidade indiciada e não indiciada, (…) ter sido in casu inobservado o preceituado no art.º 308.º, n.º 2, com referência ao art.º 283.º, n.º 3, al. b), ambos do Código de Processo Penal.» O mesmo entendimento manifesta a assistente. Sendo que os arguidos consideram que a haver invalidade esta seria apenas uma mera irregularidade, já sanada por não ter sido arguida no prazo previsto no § 1.º do artigo 123.º CPP. O que pretendem os recorrentes é assinalar que o despacho recorrido não indicou em segmentos autónomos: os factos que considerou indiciados; e os factos que considerou não indiciados.

Na verdade o despacho judicial recorrido enuncia expressamente os factos que considerou indiciados, justificando essa decisão, mas quanto aos não indiciados refere que os demais se não mostram indiciados. Fazendo-o deste modo:

«Não resultaram indiciados quaisquer outros factos relevantes para a presente decisão, nomeadamente que:

a. Tenha EE, após sair da zona de arbustos e arvoredo descrita, se “mantido estático” (sic).

b. Tenha EE saído daquela zona de arbustos e arvoredo quando os militares “já se encontravam em posição de disparo” (sic).

c. Os disparos sobre EE tenham ocorrido 43 minutos após o início da execução do plano de batida.»

A enunciação dos factos indiciados e não indiciados, prevista nos normativos assinalados pelos recorrentes, está funcionalmente adstrita à finalidade que é própria da fase de instrução (artigo 286.º, § 1.º CPP). Isto é, à suficiência de indícios de se verificarem ou não os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou uma medida de segurança, conexa com o critério de que depende a introdução do feito em juízo. (2) Daí a referência expressa ao normativo que rege o despacho de acusação (283.º, § 3.º CPP).

Mas, se bem se atentar, contrariamente ao que sucede relativamente ao despacho de acusação, as normas contidas nos artigos 307.º, § 1.º e 308.º, § 2.º CPP - especialmente respeitantes ao despacho de pronúncia e de não pronúncia - até permitem a remissão para outras peças processuais: para a acusação ou para o requerimento de abertura de instrução.

Ora, a fórmula utilizada no despacho recorrido, de enunciar expressamente os factos indiciados (e nos singulares termos em que eles se indiciam), afirmando depois que não resultaram indiciados quaisquer outros - precisando dentro destes os mais relevantes segundo a tese da acusação -, firma-se com normalidade nesse esteio normativo.

Breve: a ninguém sobra dúvidas sobre quais os factos julgados que o despacho recorrido considerou indiciados e não indiciados (bem assim como as razões em que se estriba tal juízo).

Não se verifica, pois, a assinalada nulidade.

D.2 Dos indícios suficientes da coautoria de homicídio

Assinalemos, de introito e em traços gerais, em que consiste a fase processual de instrução. A instrução constitui uma fase processual não obrigatória, sendo, essencialmente, caracterizada por um controlo externo (jurisdicional) da decisão do Ministério Público no encerramento do inquérito. (3) Controlo esse que é levado a efeito pelo poder judicial, mas cujo objeto não abrange toda a atividade do Ministério Público na fase de inquérito, cingindo-se à decisão que se impugna (o libelo acusatório), questionando-se o juízo que nela se encerra (arrigo 286.º, § 1.º CPP), em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, aferindo nomeadamente se se ficou aquém ou se foi além dos indícios constantes dos autos da prática de crime. (4) A decisão de pronúncia assenta na alta probabilidade de condenação do arguido em julgamento, arrimando-se este critério no princípio fundamental do Estado de Direito democrático que é a presunção de inocência (artigo 32.º, § 2.º da Constituição; artigo 6.º, § 2.º Convenção Europeia dos Direitos do Homem; artigo 14.º, § 2.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos; e artigo 48.º, § 1.º da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia). «O princípio da presunção de inocência encontra-se na base do Direito Processual Penal tal como o conhecemos, coexistindo sobre o mesmo uma abordagem puramente processual com outra intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana perante o poder punitivo do Estado.» (5) É indisputável que em processo penal não pode haver condenação sem um juízo de certeza para além de toda a dúvida razoável (e não um juízo de mera probabilidade), tal implicando (entre o mais) que não possam considerar-se provados os factos que, em decorrência da prova produzida, não arredem qualquer «dúvida razoável».

Este princípio de origem anglo saxónica «a doubt for which reasons can be given» (6), está umbilicalmente ligado ao in dubio pro reo e reporta-se a uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Importando, então, descortinar se a matéria indiciária constante dos autos é de molde a fundar a prolação do despacho de pronúncia e se o processo deverá, como pretendem os recorrentes, prosseguir para julgamento com a pronuncia dos arguidos pelo crime imputado na acusação.

Iluminado e impregnado dos princípios referidos, preceitua o Código de Processo Penal, nos § 1.º e 2.º do seu artigo 283.º, que para a decisão de acusação é necessária a existência de indícios probatórios suficientes da autoria e da prática do ilícito. Sendo esse mesmo juízo probatório o exigido para a pronúncia (artigo 308.º, § 1.º CPP).

Embora a lei se exprima de modo literalmente algo diverso («indícios suficientes» nos normativos citados; e «fortes indícios» p. ex. no § 1.º do artigo 202.º CPP), a verdade é que expressa nesses momentos uma mesma convicção: a de se estar perante uma consistência probatória geradora de uma forte probabilidade de futura condenação do arguido. Era, de resto, já assim que Figueiredo Dias (7) entendia o conceito, no contexto do CPP de 1929: «os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.» Mantendo essa mesma posição no respeitante ao atual código: «um juízo indiciário desta natureza implica para o juiz (…) um convencimento positivo de tal modo intenso sobre a existência de indícios da culpabilidade do arguido que deixa ele de poder ser visto como estando plenamente capaz de decidir a causa, em julgamento ou recurso, sem uma predisposição no sentido da condenação.» (8) Alinhado por essa mesma ideia, exprime Germano Marques da Silva (9) que: «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos formam a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido». Idêntica exegese dos preceitos citados faz Jorge Noronha e Silveira (1)0, considerando dever ser-se exigente quanto à suficiência dos indícios, não bastando uma maior possibilidade de condenação do que de absolvição, antes se «deve pressupor a formação de uma verdadeira convicção de probabilidade de futura condenação.» E é este também, inequivocamente, o sentido da jurisprudência, afirmando-se que: «de certo modo se equivalem o conceito de “fortes indícios” usado no artigo 202.º e o de “indícios suficientes” explicitado no artigo 283.º, n.º 2 CPP: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade bastante para tal.» (11)

Detendo-nos agora sobre o despacho de não pronúncia que está sob recurso, constatamos que o M.mo Juiz de Instrução a quo procedeu, na fase de instrução, a todas as diligências que entendeu necessárias, culminando o seu juízo numa análise tecnicamente rigorosa e bem fundada da factualidade apurada, tendo em perspetiva os parâmetros do direito penal. Claro que é sempre possível fazer mais. Mas seguramente que não é suposto fazer toda uma nova investigação, porquanto a fase de instrução é matricialmente uma fase garantística dos direitos fundamentais. A decisão instrutória recorrida elabora, de modo exaustivo e bem fundado, a avaliação dos indícios que emergem dos meios de prova disponíveis, articulando-os de modo a permitirem uma decisão segura, tendo em conta o enquadramento normativo dos factos respetivos. E em termos desmerecedores de qualquer reparo. O que, por assim ser, nos dispensa de repetir o que ali está dito. O recurso da decisão instrutória de não pronúncia preconiza que se sindique o juízo realizado pelo juiz de instrução sobre as provas indiciárias. Isto é, o que se giza é aferir se a decisão recorrida tem estribo no conjunto dos indícios recolhidos no inquérito e na instrução, para se decidir sobre a possibilidade de sendo a acusação levada a julgamento (através da pronúncia) existir uma probabilidade grande de condenação.

Atentemos, pois. Em primeiro lugar, tal como logo assinala o despacho judicial recorrido, a factualidade julgada indiciada coincide quase integralmente com a que consta do libelo do Ministério Público (incluindo os seus pontos 43 a 60) – expurgada, claro (e muito bem) das considerações subjetivas, das afirmações conclusivas e dos conceitos normativos (como exige o rigor garantístico que é apanágio dos juízes de instrução criminal) e das afirmações tendentes a demonstrar o preconizado (mas não indiciado) dolo eventual. Em traços grossos, mas incontroversos, face à prova indiciária (testemunhal, documental e pericial – mormente autos de notícia, de apreensão, de inspeção; de reconstituição, fotografias e mensagens trocadas via WhatsApp, o sucedido poderá sumariamente descrever-se do seguinte modo: - No âmbito de processo identificado e em curso, a GNR foi incumbida por mandado judicial de busca domiciliária, apreender ao suspeito armas de fogo e munições que este tivesse na sua residência; - Não se encontrando o buscado na sua residência, logo surgiu instantes depois, munido de uma arma de fogo e atitude agressiva; - Identificando-se os militares e dando-lhe ordem para pousar a arma, o suspeito respondeu com impropérios e ameaçadoramente fez um disparo com a arma de fogo, logo se pondo em fuga poe entre a profusa vegetação existente; - Encetaram-se os contactos necessários a garantir a segurança do cumprimento do mandado e deter o suspeito desobediente e ameaçador;

- Foi então, no âmbito de uma Intervenção Tática, com a participação do Grupo de Intervenção e Operações Especiais (GIOE), montado um dispositivo de segurança e encetadas as diligências para localização e detenção do suspeito, procurando que este se entregasse; - Tendo sido mobilizados meios de busca (drone) e de contenção do suspeito, visando que este se entregasse (canídeos e agentes negociadores); - Encetou-se então batida ao terreno adjacente à casa do suspeito, onde se cogitava que o mesmo se encontrasse; - Veio a localizar-se o suspeito e nessa circunstância foi-se encurtando a distância para o local onde o mesmo se escondia; - Foi-lhe gritado para que largasse a arma de fogo e se entregasse; - Mas ao invés disso o suspeito encetou fuga; - A dado passo, em zona mais aberta do terreno (com menos vegetação) o suspeito efetuou novo disparo; - Procurou-se que um canídeo fosse no seu encalço, o encontrasse e imobilizasse. Mas isso não logrou sucesso; - A batida para imobilizar e desarmar o suspeito continuou em progressão; - A proximidade que se cogitava relativamente ao paradeiro do suspeito, determinou que se chamassem os negociadores, para intervirem quando houvesse para isso condições; - A certa altura, sentindo-se prestes a ser apanhado, o suspeito surgiu dentre os arbustos empunhando uma espingarda caçadeira da direção dos seus perseguidores, altura em que foi dada ordem de fogo; - O perseguido veio a ser atingido por diversos projéteis, vindo a falecer dos ferimentos assim causados.

Os recursos do Ministério Público e da assistente, não assinalam nenhuma prova demonstrativa de que a atitude dos militares da GNR foi além do seu dever, perante as circunstâncias de facto verificadas no terreno. Muito menos que não tenham sido realizadas todas as diligências para permitissem ao suspeito da desobediência, das ameaças, das tentativas de agressão (disparos na direção dos militares) e da posse ilícita de armas de fogo, se entregasse. O facto de nas narradas circunstâncias ter falecido uma pessoa é algo que transtorna a consciência humana. Claro. Mas isso não pode, numa espécie de fuga cega para diante, apagar a realidade nas suas diversas dimensões. E sem o devido sentido crítico querer a toda a sorte encontrar e punir «culpados». As circunstâncias ditaram que a GNR montasse uma operação visando deter o suspeito. Nesse âmbito seguiram-se as regras táticas traçadas para este tipo de situações, o que se desenvolveu no estrito cumprimento da sua missão, visando fazer prevalecer o direito perante o não direito. Ao contrário do que conclusivamente afirma a acusação, os militares acusados não praticaram nenhum ato proibido, em razão das circunstâncias verificadas no terreno (no mundo real). Os militares da GNR só dispararam contra o suspeito, na sequência de agressão iminente dele contra a vida deles; havendo necessidade de pôr cobro a essa agressão iminente, que era evidentemente ilícita (artigo 32.º CP). Mais que rebuscadas face aos parâmetros do mundo do ser, as atuações alternativas cogitadas na acusação e que se repetem nos recursos, não encontram eco na da realidade do terreno e na sucessão dos acontecimentos (nem nas provas que os evidenciam), perante os quais eram circunstancialmente inexigíveis. Pelo contrário, em conformidade com o que (bem) refere o despacho recorrido: «tivesse EE gritado o que quer que fosse que propiciasse qualquer tipo de diálogo (o que nunca fez); gritado para pararem; que se entregava (o que nunca gritou); ou tendo se deixado ver sem qualquer arma; ou — até — com a arma apontada para o ar (e não diretamente aos militares do GIOE, como por que optou), e estes careceriam de fundamento para — de imediato — procederem aos disparos que efetuaram para neutralização, daquela forma, da inequívoca ameaça que constituía EE. Pelo contrário, e optando este, sem nunca proferir uma única palavra, por surgir da zona onde se escondia e de imediato apontar a arma que empunhava diretamente aos militares, necessário se tem como não só inexigível mas também inconcebível que estes pudessem ter qualquer tipo de reação não compatível com o exercício de legítima defesa e procedido — necessariamente através dos disparos que efetuaram — à neutralização da ameaça.» Mostra-se indubitável a verificação dos pressupostos da legítima defesa. E como deixámos dito, na decisão instrutória o que está em causa «não é a formação de uma convicção para além de toda a dúvida razoável sobre a existência de um facto e de quem foi o seu agente; mas apenas um juízo de probabilidade, em prognose, sobre se as provas reunidas - se mantidas quando confrontadas na audiência - fazem ou não supor a probabilidade da condenação». (12) Isto é, só uma alta possibilidade de condenação em Juízo justifica a dedução da acusação ou, no que aqui ora se cura, poderia legitimar a prolação de despacho de pronúncia. Mas não se logrando atingir essa convicção, pelas razões singelamente expostas, o Ministério Público tinha o dever de arquivar o inquérito; e o juiz de instrução criminal, no culminar da fase de instrução, não poderia senão não pronunciar (13) - como fez. Efetivamente, pelas razões bem alinhavadas e concretizadas no despacho recorrido, relativamente à sequência dos acontecimentos, firmadas numa criteriosa avaliação dos meios de prova disponíveis, aquela alta probabilidade não só não existe, como o que altamente se prefigura nos termos sobreditos - é exatamente o seu contrário. A bem dizer a acusação assenta no mito de que há sempre mais qualquer coisa a fazer! Que na complexidade das circunstâncias daquele dia ainda haveria um qualquer meio ou mais um modo de levar EE a fazer o que ele ex abundante foi demonstrando não estar disponível para fazer. E na insistência recursiva não se concretiza nenhuma razão objetiva e/ou plausível quanto à possibilidade de obter resultado diverso com a insistência na repetição dos meios que foram empregados; ou em diverso modo de utilização dos mesmos; sejam eles os demais canídeos ou os negociadores presentes no local ou o avanço da viatura blindada!

Ao invés disso, o que os acontecimentos provados demonstram é que se procurou, por todos os meios, que o falecido EE se entregasse. Mas este, em todos os momentos, deixou claro não ter nenhum propósito de tal fazer. E assim, por tudo quanto se deixou exposto, concluímos que o M.mo Juiz de Instrução recorrido decidiu bem ao não pronunciar os arguidos, não sendo por isso os recursos merecedores de provimento.

III – Dispositivo

Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

a) Negar provimento aos recursos e, em consequência, manter integralmente a decisão recorrida.

b) Custas pela assistente (artigo 515.º, § 1.º, al. a) CPP e Tabela III anexa Reg Custas Processuais), com taxa de justiça de 3 UCs; não as suportando o Ministério Público por delas estar isento (artigo 522.º CPP).

Évora, 23 de fevereiro de 2024

J. F. Moreira das Neves (relator)

Maria Filomena Soares

Artur Vargues

.............................................................................................................

1 Cf. Neste sentido decidiram entre muitos outros os seguintes arestos: Ac. TRLisboa, de 29/1/2020, proc. 5824/18.0T9LSB-3; Ac. TRPorto, de 9/1/2020, proc. 1204/19.8T8OAZ.P1; Ac. TRÉvora, de 7/5/2019, proc. 112/14.3TAVNO.E1 , todos disponíveis em www.dgsi.ptAC TRL de 31/10/2017, Acs. da Relação do Porto de 15/02/2012, Proc. nº 918/10.2TAPVZ.P1 e de 18/04/2012, Proc. nº 4454/10.9TAVNG.P1; Ac. R. de Évora de 03/07/2012, Proc. nº 4016/08.0TDLSB.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt

2 Neste sentido cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, t. II, 2.º ed., 2022, Almedina, p. 1346 (em anotação ao artigo 308.º CPP).

3 Jorge de Figueiredo Dias: «Para uma reforma global do processo penal português. Da sua necessidade e de algumas orientações fundamentais», in: AA. VV., Para uma Nova Justiça Penal, Almedina, 1983, p. 225 e ss.; «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», in: AA. VV., Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988 (reimp. 1993), p. 16; e «Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do Código de Processo Penal», RPCC, 1998, Fasc. n.º 2, pp. 207 e 211. Cf. ainda Germano Marques da Silva, Do Processo Penal Preliminar, Editorial Minerva, 1990, p. 241 e ss. e passim, Anabela Miranda Rodrigues, «A fase preparatória do processo penal – tendências na Europa. O caso português», Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Rogério Soares, BFDUC, 2001, p. 961, António Rodrigues Maximiano «Âmbito da instrução no novo Código de Processo Penal», RMP, n.º 50, 1992, p. 137, e Maria João Antunes, «O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção», in: Manuel da Costa Andrade et. al. (org.), Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, p. 1247 e s. (cit, por Nuno Brandão, RPCC, 2 e 3/2008, p. 227-255).

4 Neste sentido cf. Pedro Soares de Albergaria, Comentário Judiciário do Código de Processo penal, tomo III, 2.º ed., 2022, pp. 1241/1242.

5 Cláudia Maria Verdial Pina, O princípio da presunção de inocência encontra-se na base do Direito Processual Penal tal como o conhecemos, coexistindo sobre o mesmo uma abordagem puramente processual com outra intrinsecamente ligada à dignidade da pessoa humana perante o poder punitivo do Estado, jul 2015, Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.

6 Pode ver-se, mais detidamente, em: James Q. Whitman, The origins of reasonable doubt, Yale University Press, New Haven, London, 2008, pp. 186 ss.

7 Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004 (reimpressão da 1.ª edição 1974), pp. 132/133.

8 Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Sujeitos Processuais Penais: o Tribunal», pp. 20, Coimbra 2015, texto de apoio ao estudo da unidade curricular de Direito e Processo Penal, do Mestrado Forense da faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015, 2016).

9 Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, Verbo, 1994, pp. 182/183

10 Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, pp. 171.

11 Por todos, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28/8/2018, no Proc. n.º 142/17.3JBLSB-A.S1, Cons. Nuno Gomes da Silva.

12 Cf. António Henriques Gaspar, As exigências da investigação no processo penal durante a fase de instrução, in Que futuro para o direito processo penal, 2009, p. 101.

13 Jorge Noronha e Silveira, O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, coord. Fernanda Palma, Almedina, 2004, p. 171.