LEI Nº38-A/2023
DE 2 DE AGOSTO
DESTINATÁRIOS
Sumário

I - As medidas de clemência estabelecidas pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto têm como destinatários apenas os jovens que já tenham completado 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade, pois que, ainda que se quisesse arredar o argumento lógico formal ancorado na literalidade do artigo 2º nº 1 da referida lei, a interpretação que pretende incluir no seu campo de aplicação os jovens com 30 anos e que ainda não tenham completado 31 não subsiste à análise da génese da norma em causa.
II - A equivocidade da fórmula utilizada na Lei 38-A/2023, de 2 de agosto para delimitar subjetivamente os destinatários das medidas de clemência – “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” – exige especial cuidado na exegese do preceito e, querendo alcançar-se o pensamento legislativo, mostra-se de primordial importância atentarmos nas considerações consignadas na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023 de 02.08, da qual resulta uma clara identificação dos jovens abrangidos pelas JMJ.

Texto Integral

Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
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I – RELATÓRIO

Nos autos de processo comum com intervenção do tribunal singular que correm termos no Juízo de Local Criminal de … - J…, do Tribunal Judicial da Comarca de …, com o nº. 2128/13.8TASTB, foi proferido despacho determinando a aplicação ao arguido AA, identificado nos autos, do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto (Perdão de Penas e Amnistia de Infrações).

Inconformado com tal decisão, veio o Ministério Público interpor recurso da mesma, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões:

“1. AA, nascido em … de … de 1982, foi condenado pela prática, em 19 de Dezembro de 2012, para além do mais, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Cód. Penal, na pena de oito meses de prisão, substituída por 240 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

2.Os factos pelos quais o Arguido AA se encontra acusado remontam a 19.12.2012.

3.O Arguido nasceu em … de … de 1982.

4.O Arguido na dada dos factos, isto é, em 19.12.2021 tinha 30 anos, 4 meses e 22 dias.

5.A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1.º do referido diploma legal).

6.Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.

7.A exposição de motivos da PROPOSTA DE LEI Nº 97/XV/1.ª que Estabelece perdão de penas e amnistia de infrações praticadas por jovens referiu:

“Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens.

Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ.”

8.As leis de amnistia e de perdão, como “medidas de graça”, são excecionais e por isso devem ser interpretadas e aplicadas nos precisos termos em que estão redigidas, sem ampliações nem restrições que nelas não venham expressas, impondo-se, apenas, uma interpretação declarativa.

9.No caso concreto, a norma estabelece como data limite para aplicação do perdão reportada à data dos factos o limite de 30 anos e 0 dias.

10.Salvo melhor opinião, encontra-se ultrapassado tal limite temporal da idade porque à data da prática dos factos a Arguida tinha 30 anos. 4 meses e 22 dias.

11.O tribunal a quo, salvo melhor opinião, fez uma errada interpretação do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto.

12. Pois o seu raciocínio permite a conclusão que a idade limite plasmada no artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023 será até perfazer 31 anos.

13.Com efeito, deveria considerar como limite máximo de 30 anos e 0 dias à data da prática dos factos.

14.O tribunal a quo ao declarar, perdoada a pena de prisão substituída por 240 dias de multa aplicada ao condenado AA, por referência a 1 de Setembro de 2023, sob condição resolutiva de o mesmo não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor e ainda sob condição resolutiva de proceder ao pagamento da indemnização a que foi condenado no prazo de 90 dias imediatos à notificação para o efeito, fez uma errada interpretação do artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, fez uma interpretação extensiva ao considerar como idade limite até perfazer 31 anos e, portanto, não afastou a aplicação da Lei n.º 38-A/2023 ao caso concreto, violando, assim, a norma do artigo 2.º.

15. O despacho que declarou perdoada a referida pena deve ser revogado.”

Terminou, pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que não determine a aplicação do perdão à pena de multa aplicada em substituição da pena de prisão pela qual o arguido foi condenado nos presentes autos.

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O recurso foi admitido, não tendo sido apresentadas contra-alegações.

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A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal da Relação emitiu parecer, tendo-se pronunciado no sentido da procedência do recurso.

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Foi cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do CPP, não tendo sido apresentada qualquer resposta.

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Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre decidir.

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II – QUESTÕES A DECIDIR.

Como é pacificamente entendido, o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, vol. III, 2ª ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6ª ed., 2007, pág. 103, e, entre muitos outros, o Ac. do S.T.J. de

05.12.2007, Procº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412.°, n.° 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)

No presente recurso e considerando as conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, é apenas uma a questão a apreciar e a decidir, a saber:

- Determinar se a decisão recorrida, ao aplicar ao arguido o perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, não respeitou os critérios legalmente estabelecidos para o efeito e, consequentemente, se deverá ser revogada.

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III – TRANSCRIÇÃO DA DECISÃO RECORRIDA.

A decisão recorrida, proferida após promoção do Ministério Público no sentido de que não se procedesse à aplicação ao arguido do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, apresenta o seguinte teor:

“AA, nascido em … de … de 1982, foi condenado pela prática, em 19 de Dezembro de 2012, para além do mais, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Cód. Penal, na pena de oito meses de prisão, substituída por 240 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.

A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude (artigo 1.º do referido diploma legal).

São perdoadas as penas de substituição, excepto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova, relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de Junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigos 3.º, n.º 2, alínea d), e 2.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto).

O agente, à data dos factos, tem que ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive. – Pedro José Esteves de Brito, in “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/20023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, Julgar Online, Agosto de 2023, acessível em www.julgar.pt.

Considerando a idade do condenado à data da prática dos factos (30 anos, ou seja, ainda não tinha atingido os 31 anos de idade), a data da prática dos factos (19 de Dezembro de 2012) e o crime aqui em causa (ofensa à integridade física qualificada), a pena substitutiva aplicada ao condenado está abrangida pelo perdão estabelecido pelo referido diploma legal.

Assim sendo, declara-se o perdão da pena de prisão substituída por 240 dias de multa aplicada ao condenado AA, por referência a 1 de Setembro de 2023, sob condição resolutiva de o mesmo não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor e ainda sob condição resolutiva de proceder ao pagamento da indemnização a que foi condenado no prazo de 90 dias imediatos à notificação para o efeito.

Notifique, sendo AA para proceder ao pagamento da indemnização a que foi condenado.

Notifique.

Após trânsito, remeta boletins ao registo criminal.”.

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IV – FUNDAMENTAÇÃO.

Conforme resulta dos autos, para a apreciação da questão a decidir, releva a seguinte factualidade:

- Por sentença datada de 22.05.2015, e por factos cometidos no dia 19 de dezembro de 2012, o arguido foi condenado, na parte criminal, nos seguintes termos:

a) Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143.º, n.º 1, 145.º, n.º1, alínea a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, substituída por 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

b) Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de dano qualificado, p. e p. pelos artigos 212.º, n.º 1 e 213.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos);

c) Pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p. e p. pelo artigo 291.º, n.º1, alínea b) do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos) e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados de qualquer categoria, pelo período de 5 (cinco) meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal.

d) Em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, foi o arguido condenado na pena única de 8 (oito) meses de prisão, substituídos por 240 (duzentos e quarenta) dias de multa à taxa diária de 5,50 €, num total de 1.320,00 € (mil, trezentos e vinte euros) e em 300 (trezentos) dias de multa à taxa diária de 5,50 € (cinco euros e cinquenta cêntimos), num total de 1.650,00 € (mil seiscentos e cinquenta euros).

- O arguido nasceu no dia … de … de 1982.

- Em 27.10.2023 o Ministério Público promoveu se não procedesse à aplicação ao arguido do perdão de penas previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto;

- Tal posição do Ministério Público não mereceu a concordância do tribunal a quo, que, a tal propósito, proferiu em 20.11.2023 o despacho recorrido, através do qual procedeu à aplicação do perdão à pena de 240 dias de multa aplicada em substituição da pena de 8 meses de prisão, por ter entendido que a mencionada lei é aplicável a jovens com idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos, inclusive.

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Defende o Ministério no recurso que deve ser revogada a decisão recorrida, fazendo assentar a sua pretensão na argumentação segundo a qual, tendo, à data da prática dos factos, 30 anos, 4 meses e 22 dias de idade, o arguido não se encontra abrangido pela previsão do artigo 2.º, nº 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, pois que da mesma se encontram excluídos os “agentes com idade superior a 30 anos e 0 dias”.

E tem razão.

Importa, antes de mais, proceder à delimitação do quadro legal aplicável à situação que nos ocupa.

Dispõem os artigos 1º e 2º da citada Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, que:

“Artigo 1.º

Objeto

A presente lei estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.

Artigo 2.º

Âmbito

1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º.

2 - Estão igualmente abrangidas pela presente lei as:

a) Sanções acessórias relativas a contraordenações praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 5.º;

b) Sanções relativas a infrações disciplinares e infrações disciplinares militares praticadas até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, nos termos definidos no artigo 6.º.”.

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A condenação dos presentes autos enquadra-se material e temporalmente no regime de clemência estabelecido pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto. Com efeito, no que diz respeito à materialidade, verificamos que o arguido foi condenado pela prática de crime que se não encontra excluído do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão nos termos do artigo 7º da referida lei – o crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo 145.º, n.º1, alínea a) e n.º 2 e 132.º, n.º 2, alínea h), todos do CP (1). Quanto ao requisito temporal, reportando-se a referida condenação a factos praticados em 19 de Dezembro de 2012, constatamos que o crime em causa, a cuja pena foi aplicado o perdão na decisão recorrida, ocorreu em data anterior a 19 de junho de 2023, cumprindo, pois, também o aludido requisito estipulado pelo artigo 2.º, n.º 1, da referida lei, a saber: terem os ilícitos sido praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023.

No que diz respeito ao requisito subjetivo, porém, ressalvado o devido respeito, não subscrevemos a linha de entendimento que conduziu à aplicação do perdão ao arguido, concordando, pelo contrário, com a linha argumentativa defendida no recurso.

Vejamos.

O cerne da questão a decidir centra-se na interpretação do nº 1 do preceito transcrito – artigo 2º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto – especialmente para efeitos de determinação dos jovens que deverão considerar-se abrangidos pela previsão da lei em referência.

Cabe determinar se ao estabelecer que “Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados (…) por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto”, o legislador quis significar que em tal janela temporal se incluem os jovens com 30 anos inclusive, ou seja, até perfazerem 31 anos ou, de outro modo, se pretendeu abranger apenas os jovens com idade inferior a 30 anos, ou seja, até perfazerem tal idade, deixando fora do seu campo de aplicação os que, à data da prática dos factos, já a tenham completado.

Ora, atendendo à redação do nº 1 do mencionado artigo 2º e às razões subjacentes à sua previsão, não temos dúvida em concluir que a opção legislativa foi no sentido de incluir no seu campo de aplicação apenas os jovens que já tenham completado 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade.

Não ignoramos que tal entendimento não tem colhido apoio unânime na jurisprudência dos nossos tribunais superiores, nem nos estudos conhecidos sobre as questões que a lei em análise tem vindo a colocar-nos. (2) Aos entendimentos divergentes não será certamente alheio o elemento literal da norma em causa que, longe de primar pela clareza, legitima as dúvidas do aplicador e propicia o estabelecimento de soluções interpretativas diferentes.

Porém, a nosso ver, os argumentos em que se ancora, sustentam cabalmente a solução que preconizamos.

Vejamos.

Começamos por reconhecer que a equivocidade da fórmula utilizada na Lei 38-A/2023, de 2 de agosto para delimitar subjetivamente os destinatários das medidas de clemência – “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” – exige especial cuidado na exegese do preceito. Por outro lado, não podemos olvidar que que as normas que estabelecem perdões, constituindo normas excecionais, devem ser interpretadas declarativamente, nos exatos termos em que estão redigidas – fazendo-se coincidir o elemento literal com o pensamento legislativo – não comportando uma interpretação extensiva ou restritiva e, muito menos qualquer aplicação analógica. (3)

É precisamente o pensamento legislativo que o nosso labor hermenêutico visa alcançar, para o que se mostra de primordial importância atentarmos nas considerações consignadas na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª, que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023, de 02.08, considerações que, na referida tarefa interpretativa, nos aportam valiosíssimos contributos. Aí se consignou explicitamente que: “Considerando a realização em Portugal da JMJ em agosto de 2023, que conta com a presença de Sua Santidade o Papa Francisco, cujo testemunho de vida e de pontificado está fortemente marcado pela

exortação da reinserção social das pessoas em conflito com a lei penal, tomando a experiência pretérita de concessão de perdão e amnistia aquando da visita a Portugal do representante máximo da Igreja Católica Apostólica Romana justifica-se adotar medidas de clemência focadas na faixa etária dos destinatários centrais do evento.

Uma vez que a JMJ abarca jovens até aos 30 anos, propõe-se um regime de perdão de penas e de amnistia que tenha como principais protagonistas os jovens. Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ. Assim, tal como em leis anteriores de perdão e amnistia em que os jovens foram destinatários de especiais benefícios, e porque o âmbito da JMJ é circunscrito, justifica-se moldar as medidas de clemência a adotar à realidade humana a que a mesma se destina.” (destacados nossos).

Do excerto transcrito, contrariamente ao que sucede com o texto da lei, ressalta uma identificação dos jovens abrangidos pelas Jornadas Mundiais da Juventude efetuada com absoluta clareza, identificação que o legislador, na exposição que fez dos motivos subjacentes ao ato legislativo, afirma pretender fazer coincidir com a dos destinatários da lei. Ali se optou pela utilização da proposição “até”, referindo-se concretamente que “a JMJ abarca jovens até aos 30 anos” e, reforçando o sentido inerente à utilização singela da referida preposição – qual seja o de que se encontram incluídos os jovens que até ao momento da prática dos factos não tenham completado 30 anos – consignou-se ainda mais explicitamente que os destinatários das Jornadas são “Especificamente, jovens a partir da maioridade penal, e até perfazerem 30 anos, idade limite das JMJ”.

Ora, sabendo-se que o sentido gramatical do verbo perfazer significa completar, ter atingido, resulta evidente que a sua utilização impõe o estabelecimento de um limite de alcance imediato na contagem temporal, o que se não coaduna com o entendimento que pretende atender, como referência para a referida contagem, ao último dia dos 365 subsequentes ao dia de aniversário da idade consignada na norma, ou seja, dos 30 anos do arguido/condenado.

Reforçando a linha de entendimento que defendemos – para a qual, como vimos, claramente aponta a clareza do elemento gramatical utilizado na exposição de motivos – assume ainda importância a sua análise comparativa com o sentido atribuído a outras previsões legais nas quais se utilizou a mesma fórmula delimitadora da idade relevante com recurso à preposição “entre”, análise que também nos auxilia na interpretação da norma em causa. Encontramos a opção por tal elemento literal nas normas penais incriminadoras dos crimes contra a autodeterminação sexual, designadamente nos artigos 172º (abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável) (4), 173º (atos sexuais com adolescentes) (5) e 174º (recurso à prostituição de menores) (6).

Conforme vem sendo defendido relativamente à delimitação do âmbito de proteção estabelecido por tais tipos penais, a concatenação e harmonização das referidas normas conduz-nos ao entendimento segundo o qual o limite temporal mínimo da janela temporal da proteção aí concedida corresponde à data em que se completem os 14 anos, correspondendo o limite superior à data em que se completam os 18 ou 16 anos, respetivamente. (7) Ou seja, à semelhança do que defendemos relativamente à interpretação do artigo 2º, nº 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, também na interpretação das referidas normas penais incriminadoras se entende que a previsão do hiato temporal relevante com recurso à preposição “entre”, inclui as pessoas que tenham completado a idade indicada como limite inferior, correspondente a 14 ou a 16 anos e, a partir de tal idade, todas as pessoas que ainda não tenham completado a idade indicada como limite superior, correspondente a 18 anos.

De referir ainda que o verbo “perfazer” utilizado no excerto da exposição de motivos acima transcrito é também utilizado nas disposições do Código Penal que regulam a extinção do direito de queixa (artigo 115º, nº 2) e a prescrição nos crimes contra a liberdade e autodeterminação de menores (artigo 118º, nº 5). No primeiro caso, referindo-se: “a contar da data em que o ofendido perfizer 18 anos”, querendo significar que a contagem do prazo se inicia a partir do dia em que a vítima faz 18 anos e não do último dia em que ainda tem essa idade. No segundo, mencionando-se: “antes de o ofendido perfazer 25 anos”, com o significado de que o procedimento criminal não se extingue por efeito da prescrição antes de o ofendido completar 25 anos.

Sufragamos, assim, sem hesitações, o entendimento defendido no recurso segundo o qual as medidas de clemência estabelecidas pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, têm como destinatários apenas os jovens que já tenham completado 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade, pois que, ainda que se quisesse arredar o argumento lógico formal ancorado na literalidade do artigo 2º, nº 1, da referida lei, a interpretação subjacente à decisão recorrida não subsiste à análise da génese da norma em causa, nos termos acima explanados.

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Para além disso, e não obstante termos reconhecido já a procedência do recurso, sempre diremos que, ainda que o arguido se encontrasse subjetivamente abrangido pela previsão do artigo 2º nº 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto – o que, como já vimos, não acontece, uma vez que o mesmo tinha, à data da prática dos factos, 30 anos, 4 meses e 22 dias – a pena à qual foi aplicado o perdão na decisão recorrida também se encontra fora da incidência da referida lei.

Com efeito, no artigo 3º, nº 2, alínea a) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, o legislador pretendeu incluir as penas de multa, aplicadas a título principal ou em substituição de penas de prisão, e fixadas em medida inferior ou igual a 120 dias, estando, pois, excluídas da aplicação do perdão as penas de multa aplicadas a título principal ou em substituição de penas de prisão, e fixadas em medida superior a 120 dias de multa.

Não encontra qualquer apoio no texto legislativo a interpretação na qual parece ter-se arrimado a decisão recorrida, segundo a qual na alínea d) daquele nº 2 do artigo 3º se teria pretendido incluir todas as penas de substituição. Na verdade, a tal interpretação obsta claramente a articulação da redação das citadas alíneas a) e d), onde se estabelece:

“2 - São ainda perdoadas:

a) As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão;

(…)

d) As demais penas de substituição, exceto a suspensão da execução da pena de prisão subordinada ao cumprimento de deveres ou de regras de conduta ou acompanhada de regime de prova. (…)”.

Da concatenação de tais previsões outro sentido não poderá extrair-se que não seja o de se considerarem incluídas na alínea a) as penas de multa aplicadas em substituição de penas de prisão, como a dos autos, e na alínea d), residualmente, as demais penas de substituição.

Neste exato sentido, se pronunciou expressamente José Esteves de Brito no seu estudo acima citado(8), referindo que:

“4. Do perdão das penas de multa de substituição (n.º 2, al. a), 2.ª parte):

Prevê-se um perdão da totalidade das penas de multa aplicadas em medida inferior ou igual a 120 dias, em substituição de penas de prisão aplicadas a título principal. (…) Assim, estão excluídas da aplicação do perdão aqui em causa as penas de multa aplicadas em medida superior a 120 dias de multa em substituição de penas de prisão.

(…)

8. Do perdão das demais penas de substituição (n.º 2, al. d):

São penas de substituição a pena de multa, de 10 a 360 dias, aplicada em substituição de uma pena de prisão até 1 ano (cfr. art.º 45.º do C.P.), a proibição, por um período de 2 a 8 anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, aplicada em substituição de uma pena de prisão até 3 anos (cfr. art.º 46.º do C.P.), a suspensão da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr. art.º 50.º do C.P.) e a prestação de trabalho a favor da comunidade, até 480 horas, em substituição de uma pena de prisão até 2 anos (cfr. art.º 58 do C.P.). Assim, face ao disposto no art.º 3.º, n.º 2, al. a), 2.ª parte, e al. d), 2.ª parte, da dita Lei, estão abrangidas pelo preceito em apreço a pena de proibição, por um período de 2 a 8 anos, do exercício de profissão, função ou atividade, públicas ou privadas, aplicada em substituição de uma pena de prisão até 3 anos (cfr. art.º 46.º do C.P.), bem como a suspensão da execução da pena de prisão até 5 anos (cfr. art.º 50.º do C.P.) que não tenha ficado subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime (cfr. art.º 51.º do C.P.) ou de regras de conduta (cfr. art.º 52.º do C.P.) ou acompanhada de regime de prova (cfr. art.º 53.º do C.P.) e a prestação de trabalho a favor da comunidade, até 480 horas, em substituição de uma pena de prisão até 2 anos (cfr. art.º 58 do C.P.).(…)” (destacados nossos).

Nesta conformidade, subsumindo a situação em apreciação no recurso a tal entendimento, temos que, tendo o arguido sido condenado numa pena de multa, aplicada em substituição de uma pena principal de prisão, cuja medida concreta é superior a 120 dias – fixada concretamente em 240 dias – não poderia o mesmo beneficiar do perdão estabelecido na Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, em virtude de a referida pena de multa aplicada em substituição de pena de prisão se encontrar fora da previsão do artigo 3º, nº 2, alínea a) da mesma lei.

Tudo isto, é claro, sem prejuízo do respeito pela proibição da reformatio in pejus, ou seja, da proibição de reformar a decisão em sentido mais desfavorável ao condenado, nos termos estabelecidos no artigo 409º, nº 1 do CPP, conquanto, como é sabido, tal questão subsuntiva não foi suscitada pelo Ministério Público, não constituindo, pois, objeto do recurso. (9)

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Por conseguinte, e em conformidade com o exposto, não temos dúvidas em considerar que a interpretação do artigo 2º, nº 1, da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto – no sentido de que as medidas de clemência estabelecidas por tal Lei têm como destinatários apenas os jovens que já tenham completado 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade – é a correta, não se subscrevendo a linha de entendimento subjacente à decisão que recorrida.

Na presente decisão seguimos, de perto, o entendimento exposto pela Sra. Desembargadora Maria Clara Figueiredo, in “Breve estudo sobre a delimitação subjetiva do âmbito de aplicação da Lei da Amnistia de 2023 e sobre a articulação das alíneas a) e d) do nº 2 do artigo 3º da referida Lei” (Estudo divulgado internamente na Secção Criminal da Relação de Évora e em vias de publicação no site oficial do Tribunal).

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Em resumo:

I - As medidas de clemência estabelecidas pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto têm como destinatários apenas os jovens que já tenham completado 16 anos e que ainda não tenham completado 30 anos de idade, pois que, ainda que se quisesse arredar o argumento lógico formal ancorado na literalidade do artigo 2º nº 1 da referida lei, a interpretação que pretende incluir no seu campo de aplicação os jovens com 30 anos e que ainda não tenham completado 31 não subsiste à análise da génese da norma em causa.

II - A equivocidade da fórmula utilizada na Lei 38-A/2023, de 2 de agosto para delimitar subjetivamente os destinatários das medidas de clemência – “pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto” – exige especial cuidado na exegese do preceito e, querendo alcançar-se o pensamento legislativo, mostra-se de primordial importância atentarmos nas considerações consignadas na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 97/XV/1.ª que esteve na origem da Lei n.º 38-A/2023 de 02.08, da qual resulta uma clara identificação dos jovens abrangidos pelas JMJ.

Termos em que o recurso procederá.

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V- DECISÃO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes Desembargadores na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em conceder provimento ao recurso e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida, determinando-se que no âmbito da condenação imposta no Processo nº. 2128/13.8TASTB, não beneficia o arguido AA do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.

Sem custas (artigo 522º, nº 1 do CPP).

DN.

O presente acórdão foi elaborado pelo Relator e por si integralmente revisto (art. 94º, n.º 2 do C.P.P.).

Évora, 23 de abril de 2024

Jorge Antunes (Relator)

Artur Vargues (1º Adjunto)

J. F. Moreira das Neves (2º Adjunto)

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1 Encontra-se excluído da aplicação do perdão, nos termos previstos no artigo 7º, nº 1, alínea a) iii) da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, apenas o crime de ofensa à integridade física qualificada previsto na alínea c) do n.º 1 do artigo 145.º do CP, pelo que se encontra fora de tal exclusão o previsto na alínea a) do nº 1 deste último preceito pelo qual o arguido foi condenado nos presentes autos e a cuja pena foi aplicado o perdão na decisão recorrida.

2 Em sentido contrário decidiu concretamente o acórdão desta Relação de 06.02.2024, relatado pelo Desembargador Carlos de Campos Lobo, disponível em www.dgsi.pt, que entendeu considerar incluídos na previsão do artigo 2º, nº 1 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto todos os jovens entre os 16 e os 30 anos inclusive, ou seja, até perfazerem 31 anos.

Em idêntico sentido, ou seja, contra a posição que defendemos, se pronunciou Pedro José Esteves de Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in Revista Julgar, online, agosto 2023, página 5, aí consignando – embora sem apresentação de qualquer argumento interpretativo que justifique tal entendimento – que: “3. Delimitação subjetiva (a idade do agente à data dos factos): O agente, à data dos factos, tem que ter entre 16 e 30 anos de idade, inclusive.”

3 Neste sentido, cfr. o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência, de 25 de outubro de 2001, proferido no processo n.º 00P3209, publicado no DR 264, Série I-A, de 14 novembro 2001, acessível in www.diariodarepublica.pt e, reportando-se a um específico um caso de perdão, o acórdão do STJ, de 13 de Outubro de 1999, proferido no processo n.º 984/99, 3.ª Secção, ambos citados no acórdão da Relação de Lisboa de 08.09.2020, relatado pelo Desembargador Jorge Gonçalves, que se pronuncia no mesmo sentido e que se encontra disponível para consulta em www.dgsi.pt..

4 “Artigo 172.º - Abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável

1 - Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos n.os 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos (…)”

5 “Artigo 173.º - Actos sexuais com adolescentes

1 - Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 16 anos (…)”

6 Artigo 174.º - Recurso à prostituição de menores

1 - Quem, sendo maior, praticar ato sexual de relevo com menor entre 14 e 18 anos (…)”

7 Neste preciso sentido decidiu o acórdão da Relação do Porto de 04.06.2014, relatado pela Desembargadora Maria Deolinda Dionísio, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

8 Pedro José Esteves de Brito, “Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude”, in Revista Julgar, online, agosto 2023, páginas 4/5 e 12/13.

9 Nesse sentido se pronunciam Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 6º Ed. 2007, pp. 86-87, qualificando tal entendimento como “tributário da concepção dos poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do Direito (v.g. da qualificação jurídica), poderes só limitados pela proibição da reformatio in pejus.” E também os acórdãos da Relação do Porto de 10.09.2008 e de 02.04.2008, prolatados, respetivamente nos processos nº 0841369 e 07P4197 e o acórdão desta Relação datado de 14.06.2018, proferido no processo nº 95/16.5T9MMN.E1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.