DECISÃO ADMINISTRATIVA
NULIDADE
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
Sumário

I - A jurisprudência tem divergido quanto à verdadeira natureza da decisão administrativa proferida no processo de contraordenação, se equivale a acusação ou se deverá ser entendida como equivalente a uma sentença.
II - Sufragando o entendimento de equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação, o que nos transporta para a disciplina do artigo 283° do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.
III - Entendendo-se que os factos considerados provados na decisão administrativa são insuscetíveis de preencher o elemento subjetivo da contra-ordenação imputada, deve, consequentemente, ser determinado o arquivamento dos autos.
No fundo, o que ocorreu foi uma violação do princípio da tipicidade, enquanto constituindo umas das vertentes do princípio da legalidade contra-ordenacional, consagrado nos artºs 1 e 2º do D.L. 433/82 de 27/10.
IV -O artigo 64° n° 3 do RGCC estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação", não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.
A consequência da declaração de nulidade da decisão administrativa é o arquivamento dos autos.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

O Município de … aplicou à AA, a coima de 2.000,00 (dois mil euros), pela pratica de uma infração de natureza urbanística por violação do disposto no n.° 5 do artigo 4.° do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

Inconformado com isso, a arguida impugnou judicialmente a decisão e, após a mesma e o Ministério Público terem declarado que não se opunham a que a decisão fosse proferida por despacho, foi proferida a seguinte decisão (na parte que interessa):

“ Não obstante a nulidade da decisão administrativa não ter sido inovada em sede de recurso impugnação entendemos que tal nulidade é do conhecimento oficioso tal como explanado no Acordão do TRE proferido no processo 2194/06-1.

A questão que importa agora apreciar e que é repetidamente invocada em sede de recursos de impugnação de decisão contraordenacional, consiste em saber se no âmbito da responsabilidade contraordenacional, a decisão administrativa que aplica a coima deve efetuar a imputação da contraordenação ao agente, quer na sua vertente objetiva, quer na vertente subjetiva e qual a consequência processual, caso a decisão seja omissa quanto ao elemento subjetivo da infração.

O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a proteção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reações que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal.

Na realidade, estamos perante comportamentos humanos — igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais.

“Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infrações correspondem reações de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respetivo ilícito e as reações que lhe cabem não são diretamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal”.( Cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281.)

Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social “a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções». No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência”/ Cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281.).

O DL n.° 433/82 de 27.10 estabeleceu o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contraordenações e às regras sobre o respetivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal.

Assim, dispõe o artigo 32.°: «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal». Também relativamente ao regime adjetivo, dispõe o art° 41° do mesmo diploma que "1. sempre que o contrário não resulte deste diploma, são aplicáveis, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal. 2. No processo de aplicação da coima e das sanções acessórias, as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal, sempre que o contrário não resulte do presente diploma".

Quanto à natureza das infrações em causa, dispõe o art° 1° do RGCC aprovado pelo Dec- Lei n° 433/82 de 27.10, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n° 244/95 de 14.09, que "constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima".

Por outro lado, o art° 8° n° 1 do mesmo diploma estabelece que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, como negligência".

Pese embora, como acima referimos, a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição.

E também aqui pode existir quer na modalidade de dolo, quer de mera negligência. Aliás, a necessidade desse elemento subjetivo resulta, desde logo, do citado art° 1°, que afasta a possibilidade de punição a título de contraordenação independentemente do carácter censurável do facto, pelo que se torna sempre necessário e imprescindível formular um juízo de culpa, seja a titulo de dolo, seja a titulo de negligência.

Sucede que nos presentes autos (e razão pela qual se notificou para recorrentes e Ministério Publico esclarecerem se não se opunham a que a decisão fosse tomada por despacho) não se trata de uma questão de prova de elementos objectivos e subjetivos , mas de efetiva alegação do elemento subjetivo da infração.

No apreço de uma situação como a dos presentes autos (violação do RJEU por construção ou movimentação de terras em terreno de RAN) a complexidade do facto imputado não é admissível uma presunção tout court dos elementos é exigível um nexo de imputação subjetiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente.

E essa imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, nomeadamente no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável.

Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.

No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados aos arguidos, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13°, 14° e 15° do Código Penal),porquanto refere apenas que a contra ordenação foi praticada de forma livre e consciente, ficamos pois sem saber se foi de forma voluntária (em qualquer modalidade do dolo) ou de forma negligente.

Aliás, a decisão administrativa (que conforme resulta de fls. 86 é designada como “despacho”) em termos de omissão vai mais longe, na medida em que apesar de constar em sede de relatório da proposta de decisão (que não é uma decisão) alguns elementos necessários e imprescindíveis à decisão administrativa, não os reproduz sequer, e nem sequer para os mesmos remete, sendo que não refere qual a norma violada com a conduta constando unicamente artigos do RGCO.

Impõe-se, assim, determinar qual a consequência jurídico-processual nos casos, como o presente, em que a administração omite pura e simplesmente, na descrição dos factos provados, os elementos subjetivos da infração.

Dispõe o art° 58.° do RGCO que a “decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter: [b] descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas”, havendo de considerar-se tais exigências satisfeitas quando as indicações contidas na decisão sejam suficientes para permitir ao arguido o exercício desses direitos.

De facto, os ditos requisitos visam, precisamente, a salvaguarda da possibilidade de exercício efetivo dos direitos de defesa, que só poderá existir com um conhecimento perfeito dos factos que lhe são imputados, das normas legais em que se enquadram e condições em que pode impugnar judicialmente aquela decisão (MANUEL SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA, Contra-Ordenações - Anotações ao Regime Geral das Contraordenações e Coimas, 2.a edição de Janeiro de 2003, Vislis Editores, p.334; assim como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.01.2007, processo n.° 06P3202, Henriques Gaspar).

Deve conter também os elementos do tipo subjetivo do ilícito contraordenacional, pois, nos termos do art. 8.° do RGCO só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos previstos na lei, com negligência. No caso sub judice, a contraordenação é punível a título de dolo ou negligência (Art° 98°, n° 9 do RGEU )pelo que teriam de constar dos factos (e não constam) também aquelas circunstâncias referidas à vontade de praticar o ato e à consciência da sua ilicitude, bem como ao seu carácter proibido, de modo a poder apreender-se se a arguida agiu com dolo em qualquer das suas modalidades.

A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.°, n.° 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contraordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.°, n.° 10).

Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 21/9/2006, que a “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.

Na fase de recurso de impugnação, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.°, n.° 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.°, n.° 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contraordenações (art. 41.°, n.° 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.

Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma ação ou omissão (uma narração objetiva, individualizada e concreta dos respectivos factos), e ainda uma caracterização daquelas circunstâncias que permitem estabelecer um nexo psicológico de ligação desses factos ao agente e uma sua imputação a título de dolo ou de negligência.

Para determinarmos qual a consequência jurídico-processual para a omissão, na decisão administrativa que aplica uma coima, do elemento subjetivo da infração, importa que apreciemos, antes de mais, a natureza da referida decisão.

Nos termos do art° 62° do RGCC "recebido o recurso, ... deve a autoridade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que os tornará presentes ao juiz, valendo este ato como acusação".

Porém, a circunstância de a lei fazer equivaler à acusação a apresentação ao juiz do recurso da autoridade administrativa, não significa, só por si, que deve ser aplicada a sanção prevista no art° 283° n° 3 do Código de Processo Penal à decisão da autoridade administrativa que não contenha os elementos indispensáveis a que alude o art° 58° do RGCC.

A jurisprudência tem divergido quanto à verdadeira natureza da decisão administrativa proferida no processo de contraordenação, se equivale a acusação ou se deverá ser entendida como equivalente a uma sentença.

Sufragamos o entendimento de equivalência da decisão administrativa, se judicialmente impugnada, à acusação, o que nos transporta para a disciplina do artigo 283° do CPP enquanto comina de nulidade a acusação que não contiver a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou medida de segurança; patologia esta que, respeitando à ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime, não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada, não se vendo razão para que o mesmo não seja aplicável ao ilícito contraordenacional.

Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 29.01.2007 entendeu que «embora de forma menos intensa, o conteúdo da decisão sancionatória da autoridade administrativa no processo de contraordenação aproxima-se da matriz da decisão condenatória em processo penal, nomeadamente no que respeita à enunciação dos factos provados, com indicação das provas obtidas. A função dos elementos da decisão no procedimento por contraordenação consiste, tal como na sentença penal, em permitir, tanto a apreensão externa dos fundamentos, como possibilitar, intraprocessualmente, o controlo da decisão por via de recurso.

A fundamentação da decisão constitui um pressuposto essencial para verificação, simultaneamente, da pertinência e adequação do processo argumentativo e racional que esteve na base da decisão, e uma garantia fundamental dos respetivos destinatários.

Por isso, a decisão que não contenha os elementos nos termos e pelo modo que a lei determina não é prestável para a função processual a que está vinculada - a definição do direito do caso, e consequentemente, é um ato que não suporta todos os elementos necessários à sua validade.

A consequência, no âmbito do processo penal, vem cominada no artigo 379°, n° 1, alínea a) do Código de Processo Penal (CPP): a nulidade da sentença que não contenha a enumeração dos factos provados e não provados, e a exposição dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.

Dada a natureza (sancionatória) do processo por contraordenação, os fundamentos da decisão que aplica uma coima (ou outra sanção prevista na lei para uma contraordenação) aproximam-na de duma decisão condenatória, mais do que a uma decisão da Administração que contenha um ato administrativo. Por isso, a fundamentação deve participar das exigências da fundamentação de uma decisão penal - na especificação dos factos, na enunciação das provas que os suportam e na indicação precisa das normas violadas.

A fundamentação da decisão deve exercer, também aqui, uma função de legitimação - interna, para permitir aos interessados conhecer, mais do que reconstituir, os motivos da decisão e o procedimento lógico que determinou a decisão em vista da formulação pelos interessados de um juízo sobre a oportunidade e a viabilidade e os motivos para uma eventual impugnação; e externa, para possibilitar o controlo, por quem nisso tiver interesse, sobre as razões da decisão.

Elementos essenciais da fundamentação de uma decisão sancionatória - a um tempo base e pressuposto de toda a fundamentação e da possibilidade de controlo da própria decisão - são os factos que forem considerados provados e que constituem a base sine qua da aplicação das normas chamadas a intervir.

A indicação precisa e discriminada dos elementos indicados na norma do artigo 58°, n° 1 do RGCOC constitui, também, elemento fundamental para garantia do direito de defesa do arguido, que só poderá ser efetivo com o adequado conhecimento dos factos imputados, das normas que integrem e das consequências sancionatórias que determinem.

A consequência da falta dos elementos essenciais que constituem a centralidade da própria decisão - sem o que nem pode ser considerada decisão em sentido processual e material - tem de ser encontrada no sistema de normas aplicável, se não direta quando não exista norma que especificamente se lhe refira, por remissão ou aplicação supletiva; é o que dispõe o artigo 41° do RGCOC sobre "direito subsidiário", que manda aplicar, devidamente adaptados, os preceitos reguladores do processo criminal.»

Independentemente da qualificação jurídico-processual que se atribua à decisão da autoridade administrativa, quer por referência à acusação (art° 283° n° 3 do C.P.P.), quer por referência à sentença penal (art° 379° n° 1 al. a) do CPP), o certo é que a consequência atribuída à omissão de factos nessa decisão (nomeadamente, de factos atinentes ao elemento subjetivo) não poderá deixar de se traduzir na nulidade dessa decisão.

No sentido da nulidade da acusação (por força da equivalência a que alude o art° 62° n° 1 do RGCC) pronunciaram-se, entre outros, o Ac. R. Guimarães de 19.05.2016 e o Ac. R. Coimbra de 11.11.2020.

No sentido da nulidade da sentença (art° 379° do C.P.P.) decidiram os Acs. do STJ de 29.01.2007 e de 06.11.2008.

No Ac. do STJ de 29.01.2007 concluiu-se que "a decisão da autoridade administrativa que aplique uma coima, e que não contenha os elementos que a lei impõe, é nula por aplicação do disposto no artigo 374°, n° 1, alínea a) do CPP para as decisões condenatórias". Por outro lado, no Ac. do STJ de 06.11.2008 concluiu-se que "a sanção para o incumprimento da alínea b) do n.° 1 do referido art. 58.° do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.°, n.° 3, 374.°, n.° 2 e 379.°, n.° 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente."

Inexiste, assim, qualquer fundamento para a revogação da decisão recorrida.

Face à apontada nulidade da decisão administrativa, a questão que ora se coloca consiste em saber se tal nulidade deve ser sanada pela autoridade administrativa ou se deverá determinar o arquivamento dos autos.

Uma parte da jurisprudência sustenta que a nulidade resultante da violação da al. b) do N° 1 do art° 58° do RGCC, enquanto não contém uma descrição completa dos factos imputados, deve ser suprida pela autoridade administrativa- cfr., v. g., o Ac. do STJ de 06.11.2008 (proc. n.° 08P2804), os Acs. do TRL de 28.04.2004 (proc. n.° 1947/2004-3), de 19.02.2013 (proc. n.° 854/11.5TAPDL.L1-5) e o Ac. do TRE de 25.09.2012 (proc. n.° 82/10.7TBORQ.E1). No mesmo sentido, escreve Pinto de Albuquerque: “O tribunal pode, no exercício dos seus poderes de controlo da legalidade, ainda declarar a nulidade da decisão administrativa recorrida e ordenar a remessa dos autos à autoridade administrativa competente para a sanação do vício”.

No sentido de que a referida nulidade determina a absolvição do arguido, pronunciaram- se o Ac. do STJ de 29.01.2007 (proc. n° 06P3202), Ac. do TRG de 19.05.2016 (proc. n° 4302/15.3T8VCT.G1 e Ac. do TRL de 31.10.2019 (proc. n° 344/19.8T9MFR.L1-9).

O artigo 64° n° 3 do RGCC estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação", não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.

Por outro lado, ao nível das consequências da nulidade da decisão, a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu.

Trata-se de problemática que se coloca muito antes do vicio da insuficiência, uma vez que tratando-se de uma absoluta ausência produzirá um efeito/consequência muito mais definitivo.

Acresce que, permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos do elemento subjetivo que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica.

Entendemos, por isso, que a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada", impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objeto (art° 64° n° 3 do RGCC).

III. DECISÃO

Face ao exposto declaro nula a decisão administrativa e determino o arquivamento dos autos.”

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Inconformado com a referida decisão, dela recorreu o Ministério Público, tendo terminado o recurso com as seguintes conclusões:

“1. O presente recurso versa sobre a sentença proferida pelo Tribunal a quo, que decidiu declarar nula a decisão administrativa que aplicou à arguida o pagamento de uma coima, por entender que não se encontra descrito o elemento subjectivo, bem como as normas violadas.

2. O Ministério Público não se pode conformar com tal decisão.

3. Efectivamente, o Município de … aplicou à arguida/recorrente AA, a coima de 2.000,00 (dois mil euros) à qual acrescem as custas no valor de 102,00 (cento e dois euros), pela prática de uma infração de natureza urbanística por violação do disposto nos artigos 4.°, n.° 5 e 98.°, n.° 1, al. d) e n.° 4, do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação.

4. Nos termos do preceituado pelo n.° 1 do artigo 58.°, do RGCO, e no que aqui releva, "A decisão que aplica a coima ou as sanções acessórias deve conter (sob pena de nulidade): (...) b) A descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas (...)" e "c) A indicação das normas segundo as quais se pune e a fundamentação da decisão".

5. Sucede que, a autoridade administrativa no despacho que aplicou a coima no âmbito contraordenacional deixou claro que a conduta da arguida foi praticada dolosamente:

"(...) 3. só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.". Mais adiante resulta que: "(h) Analisada a culpa da arguida, tendo em conta os elementos constantes do processo, parece resultar claro que a arguida praticou a infracção imputada no auto de notícia por contraordenação e, bem assim que agiu de forma livre e consciente, sendo a sua conduta típica, ilícita e culposa.". Resulta ainda da mesma que: "Realce-se que, compulsado o presente auto contraordenacional, não podemos proferir a pena de admoestação, uma vez que se encontra subjacente à sua aplicação, o grau reduzido de culpa, designadamente a prática do facto de modo negligente ou quando existam circunstâncias que atenuem a culpa, pressupostos estatuídos e definidos no artigo 51.° do RGCO, com a redação vigente, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14 de Setembro, os quais não se verificam no presente caso.".

6. Acresce que, da decisão condenatória também resultam as normas violadas, em concreto os artigos 4.°, n° 5, 98.°, n.° 1, al. d) e n.° 4, do Regime jurídico da Urbanização e da Edificação. Na mencionada decisão pode ler-se: "A presente acusação tem por base o relatório da instrutora a (fls. 23 a 28) do processo supra identificado, com o qual concordo na íntegra, e cujos fundamentos de facto e de direito adopto, e que nos termos do n.° 1, do artigo 153.°, do Código de Procedimento Administrativo (CPA), passa a fazer parte integrante deste ato".

7. Assim, entendemos que as exigências legais previstas no artigo 58.°, n.° 1, als. b) e c), do RGCC foram devidamente acauteladas, pelo que a decisão proferida não padece de quaisquer vícios, tanto mais que, acertadamente, não são sequer tais vícios invocados pela arguida.

8. Contudo, mesmo que assim não fosse, se a decisão administrativa não contiver todos os factos referentes ao dolo nunca seria de exigir o mesmo rigor formal que se exige para uma sentença judicial, pelo que a decisão administrativa, também por esta via, não padeceria de qualquer nulidade.

9. O elemento subjectivo mostra-se susceptível de apreensão directa, retirando-se a forma/motivação como a agente actuou dos factos objectivos.

10. Efectivamente, a culpa, nas contra-ordenações, baseia-se na violação de um certo comportamento imposto ao agente, bastando-se com a imputação do respectivo facto ao agente, o qual se encontra perfeitamente descrito no presente caso.

11. Mais ainda que assim não se entenda, o que se admite, apenas por mera cautela, há que referir que a falta da indicação/omissão dos factos considerandos necessários para o preenchimento do tipo subjectivo do ilícito contraordenacional em apreço, a considerar-se existir a nulidade preconizada, a mesma é de conhecimento oficioso, susceptível de apreciação em recurso , nos termos do artigo 379.°, n.° 2, do Código de Processo Penal, aplicável ex vi artigo 41.° e 58.°, n.° 1, alínea b) do RGCC.

12. A decisão do Tribunal a quo violou as normas dos artigos 1.°, 8.°, n.° 1, 41.°, 58.°, 62.°, n.° 1, do RGCC, artigo 98.°, n.° 9, do RJUE, artigos 13.°, 14.° e 15.°, do Código Penal e artigos 374.°, 379.°, n.° 1, al. a), 283.°, n.° 3 e 374.°, n.° 1, al. a), do Código de Processo Penal.

13. Face ao exposto, deverá o presente recurso ser julgado procedente, com a consequente revogação da sentença recorrida, determinando-se, em consequência, que seja proferida nova sentença, entendendo o Ministério Público que essa decisão deverá ser de manutenção da decisão da entidade administrativa.

14. Caso assim não se considere, e concordando-se que a decisão administrativa proferida padece, efectivamente, do vício invocado, uma vez que tal vício é sanável, deverá ser ordenado o envio do processo à autoridade administrativa com vista à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade.

Nestes termos, deverá o presente recurso merecer provimento, revogando-se a sentença recorrida, mas farão V.Exas., a tão costumada, Justiça.”

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A arguida respondeu ao recurso, tendo terminada a resposta com as seguintes conclusões:

“I-O recorrente sustenta que na decisão recorrida, estão preenchidos os necessários requisitos de fundamentação, do elemento subjetivo;

II-Para sustentar tal afirmação, lança mão da transcrição de considerações meramente conclusivas e não devidamente fundamentadas, constantes no Relatório do processo;

III-O que é inadmissível, atento o facto de que na decisão administrativa, não existe nenhuma declaração de adesão aos fundamentos do aludido relatório;

IV-A única consideração/alusão que consta na decisão recorrida, reportada ao dolo da arguida, é apresentada de forma meramente conclusiva, ausente de quaisquer premissas explicativas, devidamente correlacionadas com os factos pretensamente praticados pela ela, de manter um funcionamento numa garagem, uma oficina de radiadores, sem ter a necessária licença;

V-Só assim seria possível perceber o envolvimento psicológico da arguida, ao nível do entendimento e volição, no sentido de atuar de forma consciente e censurável, com vista à obtenção do resultado ilícito;

VI-Uma tal omissão, não é compaginável com as exigências de fundamentação, que devem constar numa decisão condenatória, ainda que em processo de contraordenação;

VII-Não tendo, por conseguinte, a decisão administrativa preenchido os requisitos de fundamentação, exigidas pelo artigo 58º, do RGCO;

VIII-Ora ainda que mais aligeirado, a decisão proferida em processo de contraordenação, sempre terá que conter o relatório, onde consta a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados e das provas obtidas, a fundamentação da decisão, com a indicação dos factos provados, não provados e a sua subsunção às normas ao caso aplicadas e o respetivo dispositivo, por forma a permitir ao destinatário perceber o iter racional, que levou a entidade administrativa, a aplicar-lhe uma coima;

IX-O que se alcança através da uma exposição, ainda que concisa, dos motivos de facto (factos apurados nos autos, que substanciam a atuação do agente) e de direito (normas jurídicas violadas), que fundamentam a decisão, com a indicação e exame crítico das provas, que serviram de base à formação da convicção da entidade administrativa;

X-Por seu lado, o exame crítico das provas, consiste na enumeração das razões de ciência extraídas das mesmas, a fundamentação radicada nos meios de prova, as opções relevantes tomadas por um ou outro dos meios probatórios, os motivos de credibilidade dos depoimentos, a valor dos documentos e tudo o mais que foi valorado pela entidade decisora, de modo a tornar ciente a lógica de raciocínio seguido por esta;

XI-O que a entidade administrativa não cumpriu, mormente quanto ao elemento subjetivo;

XII-O que atenta contra o direito do arguido, de saber as razões fundamentais, que constam no libelo acusatório, que se lhe é direcionado;

XIII-O recorrente, ao recorrer-se de elementos do relatório, para suprir a omissão de fundamentação da decisão administrativa, quando ao elemento subjetivo, de forma inaceitável, deixou de fora factos que constam no processo e que a entidade administrativa arbitrariamente omitiu, sem qualquer juízo crítico ou mera enunciação da existência dos mesmos;

XIV-Nomeadamente a celebração um contrato de arrendamento da garagem, entre a arguida, enquanto senhoria e BB, enquanto inquilino, sendo este o utilizador exclusivo da mesma;

XV-Que o objeto do contrato de arrendamento, destinava a utilização da garagem, à colocação de pertences e arrumos do arrendatário;

XVI-E que foi o inquilino e não a arguida, que montou no imóvel, uma oficina de radiadores;

XVII-Sem que para tanto estivesse autorizado pela senhoria, a quem nem sequer deu conhecimento da alteração de utilização do imóvel;

XVIII-Tendo a arguida declarado, aquando do exercício do direito de audiência e defesa, que era completamente desconhecedora de tal situação;

XIX-Tal desconhecimento completo dos factos da contraordenação, foram igualmente alegados pela arguida, no recurso de impugnação da decisão administrativa;

XX-A entidade administrativa, não logrou demonstrar o contrário, através de um juízo crítico abrangendo os factos constantes no processo;

XXI-O desconhecimento e/ou participação da arguida, no facto dos autos, não permite respetiva imputação objetiva ou subjetiva;

XXII-Na realidade, a utilização da garagem, para a instalação de uma oficina de radiadores, não permitida e não autorizada, foi exclusivamente protagonizada pelo arrendatário e não pela arguida;

XXIII-Por conseguinte, a entidade administrativa, nunca lhe poderia imputar qualquer culpa;

XXIV-A pretensão do recorrente, de que seja proferida nova sentença, de manutenção da decisão da entidade administrativa, corresponde a uma injustiça e a um grave erro de apreciação dos factos, que constam no processo;

XXV-O envio do processo à entidade administrativa, com vista à prolação de nova decisão, para suprimento dessa nulidade, não tem enquadramento em nenhuma disposição legal, ao caso aplicável, pelo que se revela inadmissível.

Nestes termos e fundamentos, deverá o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se válida a sentença de arquivamento, entretanto proferida, assim se fazendo JUSTIÇA.”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. apôs visto.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa analisar é a de se saber se a decisão do Município de … é nula por falta de indiciação do elemento subjectivo da contra-ordenação imputada à arguida e, em caso afirmativo, quais as consequências disso.

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No despacho recorrido entendeu-se declarar nula a decisão administrativa, uma vez que “…. da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados aos arguidos, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13°, 14° e 15° do Código Penal),porquanto refere apenas que a contra ordenação foi praticada de forma livre e consciente, ficamos pois sem saber se foi de forma voluntária (em qualquer modalidade do dolo) ou de forma negligente.”

E de facto assim é.

Vejamos:

A decisão administrativa do Município de …, tomada através do Presidente da Câmara de …, ao abrigo do disposto no artº 153º, nº 1, do código de procedimento administrativo, adoptou os fundamentos de facto e de direito constantes do relatório da instrutora do processo.

Ora, no referido relatório consta:

“VI. Dos Factos Provados

De relevante para a discussão da causa, resultou provado o seguinte circunstancialismo fático:

(a) (…)

b) (…)

No decorrer da fiscalização ao local foi verificado que a referida garagem estava a ser utilizada como oficina de reparação de radiadores encontrando-se em plena funcionamento, (…)

Em diligências efectuadas, foi apurado que a garagem estava arrendada a BB, (…), o qual faz uso da mesma como oficina de radiadores de veículos automóveis, estando a referida garagem identificada com o nº 18.

Em acto continuo à fiscalização, apurou-se que o prédio em apreço está registado em nome de AA (…).

É convicção do agente autuante que o locador do prédio urbano, não possui licença de utilização a emitir pela Câmara Municipal de …, considerando que foi contactada presencialmente a proprietário e locadora do espaço arrendado, a qual, não apresentou prova documental da referida licença de utilização.

(c) Ao contrário do alegado na defesa oral resulta provada a seguinte factualidade:

Celebrou um contrato de arrendamento não habitacional em 01/08/2020 (fls. 19-20) registado nas Finanças a 01/08/2020 (fls. 4), com BB.

Quando a arguida refere na sua defesa oral que celebrou o contrato em causa com o fim de o arrendatário utilizar esse espaço como arrumação dos seus artigos pessoais (após divórcio) mas não para exercício da actividade económica e, bem assim que desconhecia o uso contrário, não se pode dar como provado o alegado pela arguida, com base no clausulado do referido contrato, designadamente:

- A cláusula terceira do contrato de arrendamento para fins habitacionais com prazo certo, a qual, prevê que:

A local de arrendado destina-se a arrumos e outras, não podendo, por isso ser-lhe dado outro destino:

- Por sua vez a cláusula sexta estatui que:

“O segundo contraente, poderá fazer no local arrendado todas as obras interiores convenientes à adaptação do local ao seu tipo de actividade, desde que respeite a estrutura e segurança do prédio “(…)

III. Dos Factos Não provados

Inexistem factos não provados.

III Fundamentação

(…)”

Como se vê, na descrição factual efectuada não se vislumbra a mínima referência ao elemento subjectivo da contra-ordenação imputada à arguida, seja ele consubstanciado no dolo, seja na negligência (artº 8º do D.L. 433/82 de 27/10).

E tal era imprescindível, ainda para mais no caso dos autos em que está em causa um contrato de arrendamento com um conteúdo dúbio (sempre se dirá a este propósito que é completamente incompreensível como é que, perante o teor do contrato de arrendamento e a defesa oral que foi apresentada, não se procedeu à audição do arrendatário).

Como bem se refere no despacho recorrido, referindo-se ao D.L. 433/82 de 27/10:

“Por outro lado, o art° 8° n° 1 do mesmo diploma estabelece que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, como negligência".

Pese embora, como acima referimos, a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição.”

É certo que como refere o recorrente consta na decisão da autoridade administrativa que:

" 3. Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.".

"(h) Analisada a culpa da arguida, tendo em conta os elementos constantes do processo, parece resultar claro que a arguida praticou a infracção imputada no auto de notícia por contraordenação e, bem assim que agiu de forma livre e consciente, sendo a sua conduta típica, ilícita e culposa.".

"Realce-se que, compulsado o presente auto contraordenacional, não podemos proferir a pena de admoestação, uma vez que se encontra subjacente à sua aplicação, o grau reduzido de culpa, designadamente a prática do facto de modo negligente ou quando existam circunstâncias que atenuem a culpa, pressupostos estatuídos e definidos no artigo 51.° do RGCO, com a redação vigente, introduzida pelo Decreto-Lei n.° 244/95, de 14 de Setembro, os quais não se verificam no presente caso.".

Tratam-se, no entanto, de considerações gerais e que não permitem uma cabal defesa da arguida. Essa defesa deve ser feita em primeira linha relativamente aos factos, consubstanciem eles o elemento objectivo, ou o elemento subjectivo da contra-ordenação em causa.

Repete-se: desde logo tendo em conta o que está em causa, não consta na descrição factual que é imputada à arguida que a mesma sabia que o arrendado estava a ser utilizado como oficina de reparação de radiadores e que se conformou com isso.

Nem se diga que as exigências relativas à decisão administrativa não são as mesmas das sentenças judiciais e, consequentemente, a decisão administrativa está “completa”.

É verdade que as exigências não são as mesmas, mas isso é uma coisa, outra é a omissão total dos factos que consubstanciam a imputação subjectiva da infracção em causa.

Concorda-se também com a decisão recorrida quando entende que a consequência da declaração de nulidade da decisão administrativa é o arquivamento dos autos.

É que se se entendesse que a consequência seria o “reenvio” do processo para a autoridade administrativa a fim de “compor” a decisão que aplicou a coima, sujeitar-se-ia a arguida a novo procedimento, eventualmente com nova impugnação judicial e novo processo judicial/ recurso para este tribunal.

Aliás, no limite (enquanto não ocorresse a prescrição), poderia vir a existir nova causa de nulidade e novamente o processo seria “reenviado” para a entidade administrativa.

Seria inaceitável que isso acontecesse vezes sem conta, até à prescrição.

Julga-se mais adequado, assim, entender-se que os factos considerados provados na decisão administrativa, tal como o foram, são insusceptíveis de preencherem o elemento subjectivo da contra-ordenação imputada à arguida e, consequentemente, deve ser determinado, como foi, o arquivamento dos autos.

No fundo, o que ocorreu foi uma violação do princípio da tipicidade, enquanto constituindo umas das vertentes do princípio da legalidade contra-ordenacional, consagrado nos artºs 1 e 2º do D.L. 433/82 de 27/10. Como bem refere Tiago Lopes de Azevedo, Lições de Direito das Contra-Ordenações, pág. 138: “… o princípio da taxatividade no Direito contraordenacional impõe que haja um mínimo de determinabilidade que permita com precisão a composição de um nexo entre o comportamento do agente e a valoração jurídico-contraordenacional prevista na norma. Este mínimo de determinabilidade, clareza e segurança encontra acolhimento no princípio do Estado de Direito, previsto no artigo 2º da Constituição”.

É também como acertadamente se concluiu no despacho recorrido:

“O artigo 64° n° 3 do RGCC estatui que o "despacho pode ordenar o arquivamento do processo, absolver o arguido ou manter ou alterar a condenação", não prevendo a possibilidade de devolução dos autos à autoridade administrativa, para efeito de suprimento da nulidade da decisão proferida por manifestamente infundada.

Por outro lado, ao nível das consequências da nulidade da decisão, a questão não pode ser encarada como se de um vício da decisão se tratasse, designadamente do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a determinar o "reenvio" para a entidade que a proferiu.

Trata-se de problemática que se coloca muito antes do vicio da insuficiência, uma vez que tratando-se de uma absoluta ausência produzirá um efeito/consequência muito mais definitivo.

Acresce que, permitir-se a sanação da nulidade, através do acrescento de elementos constitutivos do elemento subjetivo que inicialmente não constavam da decisão administrativa, corresponderia a uma alteração fundamental da decisão, equivalendo a transformar uma conduta atípica numa conduta típica.

Entendemos, por isso, que a ausência de descrição completa dos elementos constitutivos do crime (no presente caso, contraordenação), não pode vir em momento processual subsequente a ser colmatada", impondo-se por isso o arquivamento dos autos por falta de objeto (art° 64° n° 3 do RGCC).”

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar o recurso improcedente.

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Sem tributação.

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Évora, 23 de Abril de 2024

Nuno Garcia

Laura Goulart Maurício

Jorge Antunes