REGISTO CRIMINAL
NÃO TRANSCRIÇÃO DE CONDENAÇÃO
CANCELAMENTO
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

Se a não transcrição não foi ordenada pelo tribunal da condenação (na sentença, ou em despacho proferido até ao trânsito em julgado daquela), apenas o Tribunal de Execução de Penas poderá determinar o cancelamento total ou parcial das decisões nos certificados requeridos nos termos dos n.ºs 5 e 6 do Art.º 10º da Lei n° 37/2015, de 5 de Maio, modificando a sentença penal transitada em julgado.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os juízes da secção criminal da Relação de Évora:
No processo nº 238/21.7PBFAR.E1 do Tribunal Judicial da Comarca de … - Juízo Local Criminal de … - Juiz …, o arguido AA, inconformado com a decisão proferida pelo tribunal a quo – que indeferiu o pedido de não transcrição da sentença proferida nos autos, para o registo criminal do Arguido, quando o mesmo for requerido para efeitos profissionais/laborais –, veio interpor recurso da mesma, com os fundamentos constantes da respectiva motivação e as seguintes conclusões:

“I. Recorre-se do Despacho Judicial de 26.02.2024, que nestes autos indeferiu o requerimento do recorrente a pedir que não fosse mencionada a sua condenação em certificado de registo criminal do arguido por razões de emprego e para efeitos profissionais / laborais.

II. O que se mostra necessário para poder ele continuar a exercer a sua profissão de motorista profissional de TVDE; pois que tal menção no registo criminal impede o Recorrente de continuar a trabalhar para as operadoras já que, para isso, exigem o registo criminal sem quaisquer menções.

III. À data desse requerimento, já a extinção da sua pena ocorrera (em Dezembro de 2023).

IV. Ao não deferir o seu requerimento no sentido em que não fosse mencionada a condenação dos presentes autos em certificado de registo criminal do Recorrente para efeitos profissionais / laborais, o Tribunal a quo efectuou uma interpretação errónea do artigo 13º nº 1 da Lei 37/2015 de 5 de Maio; interpretação que acarretará graves consequências pessoais, sociais, familiares e laborais na vida do requerente, consequências que vão muito para lá do que é a condenação que lhe foi aplicada.

V. O Recorrente, com todo o respeito por opinião diversa, tem preenchidos todos os requisitos quer formais quer materiais para poder ver deferido o que requereu; e quanto ao requisito formal o próprio douto Despacho Judicial ora posto em crise o reconhece expressamente; mas entendeu, todavia, o Mmº Juiz “a quo” não estarem preenchidos os requisitos materiais, pois não se pode alcançar um juízo de prognose favorável.

VI. Ora, o arguido cumpriu todas as medidas que lhe foram impostas; e este pedido de não transcrição tem que ver unicamente com uma situação muito concreta do Recorrente, qual seja a de poder exercer uma profissão que sempre exerceu até hoje – condutor de TVDE –; e já nada tem que ver com possível reiteração de condutas e/ou descontrole de impulsos, como se diz no Despacho recorrido.

VII. O Arguido apenas quer continuar a poder exercer uma profissão e com isso garantir não só o seu sustento como o sustento de todo o seu agregado familiar; e não se deixar cair numa situação de degradação financeira e social, que poderá levá-lo a si e aos seus a um estado de indigência. Por isso precisa do seu registo criminal sem menções para efeitos de trabalho.

VIII. A condenação -- que aliás cumpriu – não pode extravasar de tal modo o âmbito da prevenção geral e da prevenção especial que, indo para lá delas, condicione de modo inelutável todos os aspectos da vida do recorrente, numa sucessão de eventos trágicos que se adivinham.

IX. Ao considerar o Tribunal “a quo” que deve manter-se essa menção o registo criminal, mesmo para efeitos profissionais permite que os efeitos da condenação sejam outros e mais gravosos do que os normais, afectando aliás terceiros familiares do recorrente.

X. O fundamento do requerimento do arguido não choca com essas finalidades de prevenção; apenas acautela a ocorrência de um impedimento concreto ao recorrente de exercer uma profissão que é a sua profissão.

XI. Manter-se a transcrição, impedindo desse modo o Recorrente de manter o seu trabalho, como nos parece ser aqui o caso, é impedir até a ressocialização do próprio recorrente; e pelo contrário criar um conjunto situacional que poderá ter o efeito absolutamente contrário e, portanto, contraproducente.

XII. Assim, entende o Recorrente estarem igualmente cumpridos todos os requisitos formais e materiais de que depende a não transcrição da sentença para o registo criminal, pois o recorrente não tem no seu CRC qualquer condenação pela prática de um crime de igual natureza e/ou outro; inexistindo quaisquer comportamentos delinquentes e desviantes passados, nem havendo motivo para não existir a prognose favorável.

XIII. O douto Tribunal “a quo” fez uma interpretação errónea do artigo 13.º n.º 1 da Lei n.º 37/2015 de 5 de Maio, violando-o; e numa interpretação correcta dessa norma, feita sistemática e teleologicamente, mostram-se preenchidos os requisitos de que a norma legal faz depender as não transcrições das sentenças nos registos criminais quando requerido para efeitos de emprego.

XIV. Deve ser, pois, o presente despacho ora em crise revogado e substituído por outro que determine a não transcrição da sentença dos presentes autos no registo criminal do ora recorrente, quando o mesmo for requerido para efeitos de emprego.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser o douto Despacho do Tribunal “a quo” substituído por outro que determine a não transcrição em certificado de registo criminal do arguido para efeitos profissionais / laborais.

ASSIM SE FAZENDO JUSTIÇA!”

O Digno Magistrado do Ministério Público respondeu, concluindo pela improcedência do recurso.

Neste Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto teve Vista dos autos, emitindo parecer.

O recorrente, notificado nos termos e para os efeitos previstos no art.º 417º, nº 2 do CPP, quedou-se pelo silêncio, nada tendo vindo alegar.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre agora apreciar e decidir.

DECISÃO RECORRIDA

“Veio o arguido requerer a não transcrição da sentença proferida nos presentes autos para efeitos de trabalho.

O Ministério Público promoveu que se indeferisse o requerido.

Estatui o art.º 13.º, n.º 1, da Lei 37/2015, de 5 de Maio que “sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.os 5 e 6 do artigo 10.º.

Do preceito legal ora transcrito decorre, pois, que a decisão de não transcrição de uma sentença deve obedecer a dois requisitos, um requisito formal e um requisito material.

O requisito formal exige que o arguido seja pessoa singular e que a pena aplicada seja pena de prisão até um ano ou pena não privativa de liberdade; o requisito material, por seu turno, impõe que das circunstâncias que acompanharam o crime não se possa induzir perigo da prática de novos crimes.

Nenhum óbice se vislumbra, no presente caso, quanto ao requisito formal, uma vez que a pena aplicada ao arguido no âmbito dos presentes autos foi uma pena de prisão suspensa na sua execução.

Na verificação do requisito material, porém, entendeu o tribunal, em despacho de 10 de Março de 2022, aí tendo mencionado que “os factos praticados pelo arguido e que determinaram a sua condenação, pela prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º n.º 1. Alínea b), do Código Penal, revestem acentuada gravidade, designadamente considerando a reiteração de condutas e as consequências sofridas pela vítima, sem olvidar a personalidade do arguido, diagnosticado com depressão ansiosa, descontrole de impulsos, o que não permitem concluir pelo juízo de prognose favorável de que “não permitem induzir o perigo da prática de novos crimes pelo condenado”.

Não se ignorando o cabal cumprimento, por parte do arguido, da pena que lhe foi aplicada, o que conduziu à sua extinção por cumprimento, importa frisar que o preceito normativo mencionado exige uma apreciação por reporte à data da prática dos factos, a qual já foi feito no despacho referido, não consentindo alterações supervenientes com base na conduta posterior do arguido, ainda que favorável, sem prejuízo de que o arguido, caso se verifiquem os necessários pressupostos, possa requerer o cancelamento provisório da decisão perante o tribunal competente (art.º 12.º Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio).

Face ao exposto, indefere-se o requerido.

Notifique."

O OBJECTO DO PRESENTE RECURSO

Como se sabe, é pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem, sem prejuízo para a apreciação de questões de oficioso conhecimento e de que ainda se possa conhecer (cfr. o Ac do STJ de 3.2.99 in BMJ nº 484, pág 271; o Ac do STJ de 25.6.98 in BMJ nº 478, pág 242; o Ac do STJ de 13.5.98 in BMJ nº 477, pág 263; SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal”, 5ª. ed., 2002, pp. 74 e 93; GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, pág. 335; JOSÉ NARCISO DA CUNHA RODRIGUES in “Recursos”, “Jornadas de Direito Processual Penal/O Novo Código de Processo Penal”, 1988, p. 387; e ALBERTO DOS REIS in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, págs. 362 e 363).

«São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões [da respectiva motivação] que o tribunal [ad quem] tem de apreciar» (GERMANO MARQUES DA SILVA in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 2ª ed., 2000, p. 335) «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões» (SIMAS SANTOS/LEAL HENRIQUES in “Recursos em Processo Penal”, 5ª. ed., 2002, p. 93, nota 108).

A única questão suscitada pelo Recorrente (nas conclusões da sua motivação) é a seguinte:

- Eventual revogação do despacho recorrido, na medida em que, ao indeferir-se, o pedido de não transcrição da condenação da pena aplicada nos presentes autos, nele se fez uma interpretação errada do previsto no Art.º 13° da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.

O MÉRITO DO RECURSO

No caso dos autos, o arguido AA ora recorrente foi condenado, por sentença transitada em julgado em 20-12-2021, pela prática de um crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos de prisão suspensa por igual período, mediante regime de prova

Esta pena já foi declarada extinta em 20.12.2023

O arguido recorrente após a sobredita data, veio apresentar requerimento datado de 30 /01/2024 no qual solicita ao Tribunal da condenação que «o certificado de registo criminal para efeitos profissionais/laborais seja emitido sem a menção da condenação decidida nestes autos».

Sobre a problemática em análise pronunciou-se em termos que se têm como inequivocamente correctos, o acórdão da 3ª secção criminal do Tribunal da Relação Lisboa de 07-01-2015, cuja fundamentação se irá seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade.

Compulsados os autos, verificamos que a sentença proferida nos autos, transitou em julgado em 20-12-2021 (conforme já referido) e ordenou a remessa de boletim ao registo criminal, tendo formado, pois, caso julgado.

Deste modo, a partir desse momento, a jurisdição sobre a matéria em causa passa para o Tribunal de Execução de Penas.

Tal decorre da conjugação das normas que reproduzimos de seguida:

Artigo 13.º Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio

Decisões de não transcrição

«1 - Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, com respeito aos crimes previstos no artigo 152.º, no artigo 152.º-A e no capítulo V do título I do livro II do Código Penal, os tribunais que condenem pessoa singular em pena de prisão até 1 ano ou em pena não privativa da liberdade podem determinar na sentença ou em despacho posterior, se o arguido não tiver sofrido condenação anterior por crime da mesma natureza e sempre que das circunstâncias que acompanharam o crime não se puder induzir perigo de prática de novos crimes, a não transcrição da respetiva sentença nos certificados a que se referem os n.os 5 e 6 do artigo 10.º

(…)».

A referida norma deve ser articulada com a competência material dos Tribunais de Execução das Penas, preceituando o artigo 138º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade o seguinte:

Artigo 138.º

Competência material

«1 – (…).

2 - Após o trânsito em julgado da sentença que determinou a aplicação de pena ou medida privativa da liberdade, compete ao tribunal de execução das penas acompanhar e fiscalizar a respectiva execução e decidir da sua modificação, substituição e extinção, sem prejuízo do disposto no artigo 371.º-A do Código de Processo Penal.

(…)

4 - Sem prejuízo de outras disposições legais, compete aos tribunais de execução das penas, em razão da matéria:

(…)

z) Decidir sobre o cancelamento provisório de factos ou decisões inscritos no registo criminal;

aa) Julgar o recurso sobre a legalidade da transcrição nos certificados do registo criminal.

(…)»

Os artigos 229º e seguintes do citado diploma legal regulam a tramitação do processo de cancelamento provisório do registo criminal, dispondo que:

Artigo 229.º

Finalidade do cancelamento e legitimidade

«1 - Para fins de emprego, público ou privado, de exercício de profissão ou actividade cujo exercício dependa de título público, de autorização ou homologação da autoridade pública, ou para quaisquer outros fins legalmente permitidos, pode ser requerido o cancelamento, total ou parcial, de decisões que devessem constar de certificados de registo criminal emitidos para aqueles fins.

2 - O cancelamento pode ser pedido pelo interessado, pelo representante legal, pelo cônjuge ou por pessoa, de outro ou do mesmo sexo, com quem o condenado mantenha uma relação análoga à dos cônjuges, ou por familiar em requerimento fundamentado, que especifique a finalidade a que se destina o cancelamento, instruído com documento comprovativo do pagamento das indemnizações em que tenha sido condenado.

(…).»

Norma esta que está em harmonização com o disposto no artigo 12.º da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, onde se pode ler:

Artigo 12.º

Cancelamento provisório

« Sem prejuízo do disposto na Lei n.º 113/2009, de 17 de setembro, estando em causa qualquer dos fins a que se destina o certificado requerido nos termos dos n.os 5 e 6 do artigo 10.º pode o tribunal de execução das penas determinar o cancelamento, total ou parcial, das decisões que dele deveriam constar, desde que:

a) Já tenham sido extintas as penas aplicadas;

b) O interessado se tiver comportado de forma que seja razoável supor encontrar-se readaptado; e

c) O interessado haja cumprido a obrigação de indemnizar o ofendido, justificado a sua extinção por qualquer meio legal ou provado a impossibilidade do seu cumprimento.»

Destarte, se a não transcrição não foi ordenada pelo tribunal da condenação (na sentença, ou em despacho proferido até ao trânsito em julgado daquela), apenas o Tribunal de Execução das Penas poderá determinar o cancelamento total ou parcial das decisões nos certificados requeridos nos termos dos n.ºs 5 e 6 do Art.º 10º da Lei n° 37/2015, de 5 de Maio, modificando a sentença penal transitada em julgado.

Assim sendo, na data em que o arguido apresentou em juízo o requerimento apreciado no despacho recorrido (30/01/2024), já se mostrava esgotado o poder jurisdicional do Tribunal da condenação, na medida em que já ocorrera o trânsito em julgado da decisão condenatória em 20-12-2021 e a pena aplicada já havia sido declarada extinta em 20.12.2023.

Por conseguinte, mais nada nos resta senão mencionar que o despacho recorrido não podia ter apreciado o mérito do requerimento, por carecer o Tribunal a quo de competência material para o efeito.

E, como tal, deveria ter-se declarado a incompetência do Tribunal em razão da matéria.

Ao apreciar o mérito do requerimento, para o qual era materialmente incompetente, incorreu o Tribunal de 1ª Instância na nulidade insanável tipificada no Art.º 119º, alínea e), do C. P. Penal, a qual se conhece e declara nesta decisão.

Assim, atenta a data do trânsito em julgado da decisão proferida nos presentes autos - 20-12-2021 e a data da extinção da pena aplicada – 20.12.2023, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Évora em:

a) julgar não provido o recurso interposto pelo arguido AA.

b) declarar a nulidade do despacho recorrido, por incompetência material do Tribunal a quo para decidir o requerimento em causa.

Fixa-se a taxa de justiça devida pelo Arguido Recorrente em 4 (quatro) UCs.

Évora, 23 / 04 / 2024