DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIMINALIDADE VIOLENTA
VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL
Sumário

Estando em causa a prática de um crime de violência doméstica, importa referir expressamente, no que se reporta aos direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura, o teor da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, transposta para a ordem jurídica nacional através do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro, a Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, e como é claro, os normativos legais do Código de Processo Penal.
Segundo a sub-alínea iii), da alínea a), do nº 1, do artigo 67º-A do Código de Processo Penal, vítima é a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
Por outro lado, resulta do nº 3, do referido artº 67º-A (introduzido pela L. 2/2023 de 16/1) que as vítimas de criminalidade violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis.
Nos termos dos artº 1º, al. f), do C.P.P. e 152º, nºs 1, al. a) e 2, al. a), do Cód. Penal, o crime de violência doméstica está abrangido pelo conceito de criminalidade violenta.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM A SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
RELATÓRIO

No âmbito dos presentes autos o Ministério Público formulou o seguinte requerimento:

“ DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA

Apresente de imediato os presentes autos ao Mmo. Juiz de Instrução a quem se requer que sejam tomadas declarações para memória futura à criança AA, nascida a …2016 (cfr. fls. 174) e BB, nascido a …2018 (cfr. fls. 175) - cfr. ponto IV. A. 2) e B. da Diretiva n.º 5/2019, da Procuradoria Geral da República e artigos 67.º-A, n.º 1 als. a) i., b), c), d) n.º 3 e 271.º do CPP, artigos 22.º e 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 15.º, n.º 1 e 22.º, n.º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro.

Porquanto,

Afigura-se-nos essencial a inquirição das crianças porquanto, serão testemunhas presenciais de alguns dos factos denunciados (cfr. depoimento de fls. 72).

Às vítimas especialmente vulneráveis, bem como aos seus familiares elencados na alínea c) do n.º 1 do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, são aplicáveis, além das normas processuais penais, as medidas de protecção previstas na Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima, de entre as quais se mostra prevista a tomada de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade das respostas – cfr. artigos 15.º, n.º 1 e 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º, ambos do mencionado diploma legal.

In casu, atenta a natureza do crime em investigação, a relação familiar (o arguido é progenitor da testemunha menor), assim como a idade da testemunha, afigura-se-nos que se deva proceder à sua inquirição durante a fase de inquérito, de modo a que as declarações pela mesma prestadas possam ser tomadas em conta no julgamento (na eventualidade do processo prosseguir para essa fase processual), não sendo as crianças sujeitas a semelhante diligência, com as consequências negativas que, ao nível psicológico e estabilidade emocional para as mesmas possam advir. Por outro lado, sendo as declarações para memória futura tomadas em ambiente menos constrangedor do que seria em sede julgamento, poder-se-á obter uma maior espontaneidade por parte da testemunha.

Afigura-se, pois, ser essencial, a fim de minorar os efeitos da vitimização secundária, decorrentes da exposição ao contacto com o sistema judicial, que a criança seja, então, inquirida em sede de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, de modo a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas e a salvaguardar a estabilidade emocional dos menores, não sujeitando as crianças a semelhante diligência numa ulterior fase do processo.

Face ao exposto, o Ministério Público requer que seja designada data para a tomada de declarações para memória futura à criança acima identificada.

Mais se requer que:

- seja determinado que a tomada de declarações para memória futura seja realizada com afastamento do arguido da sala de audiências, de forma a assegurar, no decurso da sua inquirição, a obtenção de respostas livres, espontâneas e sinceras;

- seja determinada a presença de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento das testemunhas, se for caso disso, e proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado – artigo 27º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (Protecção de Testemunhas) e 33.º, n.º 3 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, facultando-se os necessários contactos com a antecedência necessária a esse acompanhamento.”

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Sobre o referido requerimento recaiu o seguinte despacho judicial:

“No presente inquérito investiga-se a prática de um crime de violência doméstica praticado contra a ofendida CC.

Veio o Ministério Público requerer,

Nos termos dos artigos 22º e 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro (Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica), e 15º nº 1 e 22º da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima),

A tomada de declarações para memória futura de duas testemunhas que não são, tanto quanto decorre até agora do inquérito, vítimas elas próprias (cfr. despachos de 15/10/2023 e 26/10/2023).

Dispõe, no que importa ao caso, o art. 33º da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro (Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica) o seguinte:

Artigo 33º

Declarações para memória futura

1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.

(...)

6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.

7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.

Por seu lado, o art. 22º da Lei nº 112/2009 não é nunca fundamento para deferir a requerida diligência uma vez que estatui, tão-somente, que a vítima de violência doméstica é ouvida em ambiente informal e reservado, o que, naturalmente, pode ocorrer na audiência de julgamento.

Lê-se, no que ora importa, no art. 24º da Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima) o seguinte:

Artigo 24º

Declarações para memória futura

1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271º do Código de Processo Penal.

(...)

Por seu lado, o art. 15º da Lei nº 130/2015 trata, tão-somente, de medidas de protecção genéricas às vítimas, sendo que a prestação de declarações para memória futura é regida pelas normas especiais consagradas no art. 24º do diploma.

Posto o que precede, uma vez que nenhuma das pessoas a quem se pretende sejam tomadas declarações para memória futura é vítima do crime investigado1 é patente que não se verifica qualquer dos fundamento legais invocados.

Motivo pelo qual, sem necessidade de outras considerações, indefiro o requerido.

1 Sendo que os familiares que se consideram vítimas para afeitos do art. 67º A do Código de Processo Penal são apenas aqueles que em caso de morte de uma pessoa que tenham sofrido um dano em consequência dessa morte , inexistindo no caso indício e qualquer destes requisitos; E sabendo que não são investigados no presente inquérito danos ou maus tratos praticados contra as testemunhas em causa.

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O Ministério Público recorreu do referido despacho, tendo terminado a motivação de recurso com as seguintes conclusões:

“1. No âmbito do presente inquérito, foi requerida a tomada de declarações para memória futura a AA, nascida a …2016, e BB, nascido a …2018, que foi indeferida por despacho judicial.

2. Decidiu o Mmo. Juiz, em conclusão, que “posto o que precede, uma vez que nenhuma das pessoas a quem se pretende sejam tomadas declarações para memória futura é vítima do crime investigado é patente que não se verifica qualquer dos fundamentos legais invocados. Motivo pelo qual, sem necessidade de outras considerações, indefiro o requerido.”.

3. Nestes autos investiga-se a eventual prática, pelo arguido DD, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do C. Penal, sendo ofendida CC, progenitora das crianças cuja tomada de declarações para memória futura ora se requereu.

4. Estando em causa a prática de um crime de violência doméstica, importa referir expressamente, no que se reporta aos direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura, o teor da Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, transposta para a ordem jurídica nacional através do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro, a Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, e como é claro, os normativos legais do Código de Processo Penal.

5. Segundo a sub-alínea iii), da alínea a), do nº 1, do artigo 67º-A do Código de Processo Penal, vítima é a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.

6. A factualidade exposta pelo Ministério Público no requerimento para tomada de declarações para memória futuras às crianças refere expressamente que estas terão assistido a condutas maltratantes do arguido DD (pai das crianças) contra a ofendida CC (mãe das crianças).

7. De acordo com literatura científica, as crianças que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a ela assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, "vitimas" de tal crime.

8. Ultrapassada a dificuldade em considerar como vítimas as crianças indicadas para serem inquiridas em memórias futuras, cumpre referir o disposto no art. 33º, nº 1, da Lei 112/2009, segundo o qual “o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, norma que constituiu fundamento legal para proceder à tomada de declarações para memória futura das crianças indicadas pelo Ministério Público.

9. Considera o Ministério Público que estas crianças são, não só vítimas, mas sim vítimas especialmente vulneráveis.

10. Com efeito, o nº 3 do artigo 67º-A do Código de Processo Penal refere expressamente que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis”, sendo que o crime de violência doméstica configura expressa e legalmente criminalidade violenta –cfr. art. 1º, al. j) do CPP.

11. Acresce, que no caso concreto, as duas crianças são especialmente vulneráveis, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque contam com 8 anos e 6 anos de idade, respectivamente; assistiram a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica, em que a ofendida é a própria mãe e o arguido o próprio pai, situação que potencia um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança às crianças; possuem íntima relação familiar com o arguido que, in casu, é progenitor das mesmas, e figura parental de referência, atenta a proximidade da sua relação afectiva.

12. Ora, segundo o disposto no artigo 24.º, n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima) “o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”, pelo que também este normativo legal consagra expressamente a possibilidade de proceder à tomada de declarações para memória futura às crianças.

13. Sem prescindir, ainda que as crianças não fossem vítimas, ou vítimas especialmente vulneráveis, seriam sempre “testemunhas especialmente vulneráveis”, para efeitos do disposto nos artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que referem:

“Artigo 26.º (Testemunhas especialmente vulneráveis)

1- Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.

2- A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.

Artigo 28.º (Intervenção no inquérito)

Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”.

14. Na verdade, o regime constante no artigo 271° do CPP aplica-se igualmente às testemunhas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 28°, n° 2, da Lei n° 93/99, de 14-07, dispondo este preceito, no seu n° 1, que durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

15. Ou seja, também estes normativos legais fornecem sustentação jurídica à tomada de declarações para memória futura das crianças.

16. E, pelos fundamentos aduzidos supra quanto a especial vulnerabilidade das crianças como vítimas, crê-se que materialmente se cumprem os requisitos para as considerar como testemunhas especialmente vulneráveis

17. Numa perpectiva mais abrangente do nosso ordenamento jurídico, cumpre ainda referir o disposto no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa "as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições."

18. Por outro lado, é consabido que a Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.0, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor.

19. Ora, da conjugação de todas estas normas resulta inequívoco que a Constituição da República Portuguesa apenas admite a interpretação de que as crianças/menores que testemunham actos de violência doméstica, são "vítimas especialmente vulneráveis" na acepção dos artigos artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas i) e B, e n.º 3 do Código de Processo Penal.

20. As crianças/os jovens exigem protecção e urge assumi-la, face aos preceitos aludidos, no processo penal, afigurando-se, pois, ser essencial, a fim de minorar os efeitos da vitimização secundária, decorrentes da exposição ao contacto com o sistema judicial, que sejam inquiridos em sede de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, de modo a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas e a salvaguardar a estabilidade emocional dos menores, não sujeitando as crianças a semelhante diligência numa ulterior fase do processo.

21. A decisão recorrida violou os artigos 67.º-A, n.º 1, e nº 3, e 271.º, do Código de Processo Penal, os artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, e o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

22. Todo o regime jurídico acima mencionado impunha, salvo melhor entendimento, que o Mmo. Juiz tomasse decisão diversa, mormente determinando a tomada de declarações para memória futura.

23. Nesta senda, deverá ser julgado procedente o presente recurso, devendo ser ordenada a tomada de declarações para memória futura às crianças AA e BB, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça!”

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Neste tribunal da relação, a Exmª P.G.A. emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e, cumprido que foi o disposto no artº 417º, nº 2, do C.P.P., não foi oferecida resposta.

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APRECIAÇÃO

A única questão que importa apreciar é a de saber se estão, ou não, preenchidos os requisitos legais para que sejam tomadas as declarações para memória futura, tal como requerido pelo recorrente.

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Lido o despacho recorrido resulta que o requerimento do Ministério Público foi indeferido, desde logo, porque se considerou que as crianças cujas declarações para memória futura se solicitou não são vítimas do crime de violência doméstica em investigação.

Ora, resulta dos autos que o arguido é pai das referidas crianças, estando em causa um crime de violência doméstica na pessoa da mãe das crianças,

Por outro lado, resulta dos autos, designadamente do auto de notícia, que, tal como se refere no requerimento sobre o qual recaiu o despacho recorrido, as crianças terão assistido a factos consubtanciadores do indiciado crime.

Temos, assim, claramente que a situação se enquadra no artº 67º-A, nº 1, al. a), iii), do C.P.P. (norma introduzida pela L. 57/2021 de 16/8, não referida no despacho recorrido), com a seguinte redacção:

Artº 67º-A

1 – Considera-se vítima

(…)

iii) A criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica;

Assim sendo, as crianças em causa são indiciariamente vítimas do crime de violência doméstica, sendo escusado tecer outras considerações para se concluir que assim é. O referido preceito legal é claro e surge na sequência do projecto de Lei 361/XIV1ª, em cuja exposição de motivos se refere:

«Acolhemos a argumentação expressa no parecer do Conselho Superior do Ministério Público a propósito da Proposta de Lei n.º 28/XIV/1.ª quando afirma que o reconhecimento expresso das crianças enquanto vítimas do crime de violência doméstica quando vivenciam esse contexto no seu seio familiar ou quando se constituem testemunhas presenciais desses atos de violência «cumpre a Lei Fundamental que determina ao Estado português a consagração do direito das crianças à proteção da sociedade e do Estado com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições» (artigo 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa). Acrescenta que cumpre igualmente a Convenção sobre os Direitos da Criança quando determina que «os Estados Partes tomam todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educativas adequadas à proteção das crianças contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada». E por fim, que cumpre a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica (Convenção de Istambul), quando reconhece que «as crianças são vítimas de violência doméstica, designadamente como testemunhas de violência na família (artigo 26º)»

Por outro lado, resulta do nº 3, do referido artº 67º-A (introduzido pela L. 2/2023 de 16/1) que as vítimas de criminalidade violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis.

Nos termos dos artº 1º, al. f), do C.P.P. e 152º, nºs 1, al. a) e 2, al. a), do Cód. Penal, o crime de violência doméstica está abrangido pelo conceito de criminalidade violenta.

Conclusão: as crianças em causa nos autos são vítimas especialmente vulneráveis.

Assim sendo, nos termos do artº 33.º Lei n.º 112/2009, de 16/9 e 24º, nº 1, da L. 130/2015 de 4/9, podem as crianças em causa prestar declarações para memória futura, tal como referido.

Podem, e devem, pois que como se sabe, especialmente quando estão em causa depoimentos de crianças, quanto mais cedo as mesmas prestarem declarações, mais facilmente se recordam dos factos em causa.

Mesmo que se considerasse que as crianças não eram, como efectivamente são, vítimas especialmente vulneráveis do crime de violência doméstica em investigação, sempre se deveria ter em conta o disposto no artº 28º da L. 93/99 de 14/7, com a seguinte redacção:

“Artigo 28.º

Intervenção no inquérito

1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.

2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”

Resta referir que os despachos de 6/10/2023 (supõe-se que seja esta a data correcta, em vez de 15/10/2023, tal como se constatou pela consulta no citius do processo principal) e 26/10/2023, referidos no despacho recorrido, em nada podem alterar o que acima se concluiu, sendo certo que a qualidade de vítima especialmente vulnerável das crianças em causa resulta necessariamente das disposições legais acima referidas, não consideradas no despacho recorrido.

Não nos parece necessário tecer mais considerações para concluir que assiste razão ao recorrente.

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DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes em julgar procedente o recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido, o qual deverá substituído por outro que defira o solicitado pelo recorrente.

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Sem tributação.

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Évora, 23 de Abril de 2024

Nuno Garcia

Jorge Antunes

Artur Vargues