LITISPENDÊNCIA
IDENTIDADE DE CAUSA DE PEDIR
PEDIDO GENÉRICO
Sumário

I - Não ocorre litispendência - por falta do requisito da identidade da causa de pedir - quando numa ação com vista à reparação de infiltrações ocorridas no interior de fração de edifício constituído em propriedade horizontal se descrevem danos distintos e se alega que os mesmos tiveram origem em parte comum desse edifício que é diversa da indicada em ação previamente proposta.
II - O facto de na anterior ação se ter formulado pedido genérico para reparação de danos futuros que viessem a ter origem na causa ali indicada não impede que em nova ação seja pedida a reparação de danos diversos, com diferente origem.
III - A formulação de uma condenação genérica – no caso, de reparação de danos futuros -, tem que ser suficientemente detalhada para que possam dela ser retirados os limites da condenação, nomeadamente por via da descrição da causa dos danos cuja reparação é determinada na sentença.

Texto Integral

Processo número 1487/23.9T8MTS Juízo Local Cível de Matosinhos, Juiz 2


Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeiro adjunto: Manuel Fernandes
Segundo adjunto: Jorge Martins Ribeiro

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I – Relatório:

1. Em 15-03-2023 AA intentou ação a seguir a forma de processo comum contra Condomínio ..., ..., pedindo a sua condenação na execução de obras para reparação de danos na sua habitação e indemnização por danos não patrimoniais no valor de 1000 €. Para tanto alegou ter detetado infiltrações na sua habitação em 02-01-2023, situadas no “teto do corredor, teto do quarto da Autora e teto do hall de entrada que se expande até à entrada da sala”, e descreveu as diligências feitas por si e pela Ré na sequência da comunicação que fez a esta dos alegados defeitos, bem como os padecimentos morais que lhe advieram destes.

2. Citado, o Réu contestou alegando que os danos invocados pela Autora decorrem da canalização de fração acima da sua e excecionando a litispendência decorrente do facto de a Autora ter instaurado, antes desta, outra ação a correr termos no mesmo tribunal, em que se discute a responsabilidade de problemas de infiltrações provenientes dos terraços dos andares que ficam por cima da fração que a Autora habita. Pede, ainda, a sua condenação como litigante de má-fé por a mesma ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento conhece.

3. Por despacho de 23-05-2023 foi facultado contraditório à Autora relativamente à matéria de exceção e ao pedido de condenação como litigante de má-fé.

4. A mesma veio a exercê-lo, a 13-06-2023, alegando que os danos que ora descreve na petição inicial se verificam em compartimentos da sua habitação diferentes dos descritos na ação previamente proposta e ocorreram muito depois destes, e impugnando os fundamentos alegados para o pedido da sua condenação como litigante de má-fé.

5. A 08-09-2023 foi proferido despacho a convidar a Autora a aperfeiçoar a sua petição inicial, “especificando quais as alegadas áreas comuns do prédio que estão na origem dos danos invocados e, desde logo, se estes danos provêm do dito terraço de cobertura do andar que fica por cima da fração da autora.”.

6. A 18-09-2023 a Autora respondeu a tal convite concretizando que a área comum em que tiveram origem os danos cuja reparação demanda foi a fachada do prédio e solicitando que o tribunal ordenasse à Ré a junção de relatório de pesquisa de infiltrações que ordenou na sequência da sua reclamação.

7. A 12-10-2023 foi proferida sentença em que julgou procedente a exceção dilatória de litispendência.

II - O recurso:

É desta sentença que recorre a Autora, pretendendo a sua revogação e o prosseguimento dos autos.

Para tanto, alega o que sumaria da seguinte forma em sede de conclusões de recurso:

“1. Vem o presente Recurso interposto da Sentença proferida nos autos do processo supra identificado que julgou procedente a exceção dilatória da litispendência e, consequentemente, absolveu o Réu da instância.

2. A douta Sentença recorrida merece reparo, devendo consagrar as alterações supra referidas e refletidas nas presentes conclusões.

3. O objeto do presente Recurso limita-se à questão de apurar se o Tribunal “a quo” decidiu corretamente ao declarar a exceção dilatória de litispendência.

4. É convicção da Recorrente de que, após a Superior apreciação, o sentido da sentença venha a demonstrar o verdadeiro sentido da Justiça!

5. A litispendência é uma exceção dilatória que tem por objetivo evitar que o Tribunal profira decisões iguais ou contraditórias, entendendo o Tribunal “a quo” que se encontra preenchida a tríplice identidade da litispendência, realidade com a qual a Recorrente não pode concordar, uma vez que entende não existir uma identidade quanto ao pedido e à causa de pedir!

6. A exceção dilatória de litispendência vem consagrada no n.º 1 do art.º 580 do Código de Processo Civil e consiste na repetição de uma causa, estando a anterior ainda pendente, quando se verifica simultaneamente a identidade de sujeitos, do pedido e da causa de pedir.

7. A identidade do pedido verifica-se quando numa e noutra causa se pretende a obtenção do mesmo efeito jurídico.

8. Entende o Tribunal “a quo” que em ambas as ações a pretensão jurídica da Autora consiste na reparação dos danos sofridos, com a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação. Ora,

9. Na primeira ação (Processo n.º 3851/21.9T8MTS) pretende-se a reparação dos danos do quarto da filha BB, danos esses que se reportam a Outubro de 2018 e Fevereiro de 2021; na segunda ação (Processo n.º 1487/23.9T8MTS - alvo do presente Recurso) pretende-se a reparação do teto do quarto da Autora, do teto do corredor e do teto do hall de entrada que se expande até à entrada da sala, danos que se reportam a Janeiro de 2023.

10.Tal como é entendimento do Tribunal “a quo” que os danos alegados na primeira ação (Processo n.º 3851/21.9T8MTS) se reportam a Outubro de 2018 e Fevereiro de 2021 e os danos da segunda ação (Processo n.º 1487/23.9T8MTS) são distintos, reportando-se a Janeiro de 2023.

11. Nesse sentido, a pretensão deduzida nas duas ações não decorre do mesmo facto jurídico.

12. Estamos perante pedidos e causas de pedir completamente distintas e, como tal, não se encontram preenchidos os requisitos cumulativos da verificação da exceção da litispendência.

13. Ora, perante o exposto, não subsistem dúvidas de que a decisão merece reparo, restando a sua alteração para que se possa efetivar a pertinente Justiça!”


*

O Recorrido não contra-alegou.

III – Questões a resolver:
Em face das conclusões da Recorrente nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, a única questão a resolver é a da ocorrência de litispendência entre esta ação e a que corre termos sob o número 3851/21.9T8MTS no juízo local cível de Matosinhos.

IV – Fundamentação:

Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa.

1. No âmbito do processo n.º 3851/21.9T8MTS, a 06/09/2021, a autora AA instaurou ação declarativa sob a forma de processo comum contra o réu Condomínio ..., ..., tendo aí formulado os seguintes pedidos: “Nestes termos, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, em consequência, o réu condenado a a) Executar, com a contratação de empresa diferente da que realizou a última empreitada, as obras necessárias para fazer cessar a infiltração de água que provoca humidades na divisão descrita da dita habitação; b) Reparar todos os estragos que as infiltrações de humidade causaram – e que acima foram descritos – e os que possam vir a causar, devendo os termos de tal reparação, atento o alegado e a natureza continuada do dano até à reparação do defeito, ser fixados em momento posterior; c) Em alternativa, pagar, a título de danos patrimoniais a quantia de 5.000,00 (cinco mil euros), para a realização das obras necessárias. d) Pagar, a título de danos não patrimoniais, uma quantia nunca inferior a 1000,00€ (mil euros);”.

2. Alegou a autora na referida ação, além do mais, que:

“(…) 1º A autora figura como cabeça de casal da herança de seu marido, CC, falecido em ../../2020, tendo como herdeiros a cônjuge e os filhos DD e BB, conforme demonstram os docs. nº 1 e 2,

2º E nessa qualidade, dado que a presente ação não prejudica a herança, a mesma age sozinha. Posto isto,

3º O autor da herança era dono e legítimo possuidor da fracção autónoma, designada pela letra “L”, correspondente a uma habitação no 4º andar centro, do prédio urbano localizado na Rua ..., esquina com a Rua ..., inscrita na matriz predial sob o nº ...44..., no Distrito do Porto, Concelho de Matosinhos e União de Freguesias ..., ... e ... (doc. nº 3) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número ...8.

4º A autora e sua família habitam na fracção “L”, e desde o momento que estabeleceram a sua residência, no ano de 2003, foram alvos de incómodos e prejuízos decorrentes de danos que têm origem nas áreas comuns do prédio.

5º Em 19.09.2003, foram aprovadas em reunião da Assembleia Geral de Condóminos, a realização de obras de conservação e reparação, efectuadas pela A..., Lda.

6º A empreitada consistia, entre outras reparações na estrutura do prédio, no levantamento de todo o terraço da fração correspondente ao 5º andar centro, com aplicação de duas telas asfálticas e isolamento térmico e geotêxtil.

7º Contudo, as obras foram efetuadas de maneira insatisfatória, sem a devida diligência.

8º Por conta disto, foram realizadas novas empreitadas, com empresas diferentes, que também não cumpriram as reparações necessárias.

9º Pelo que em ulteriores reuniões de Assembleia Geral do condomínio foi denunciada a existência de humidades e infiltrações de água de modo a pingar água dos tectos de alguns compartimentos da fração da autora.

10º Em 2015 foi realizada pelo réu a última empreitada, executada pela B..., Lda., após aprovação em reunião da Assembleia Geral de Condóminos (doc. nº 4 e doc. nº 5). Ocorre que,

11º Durante todos estes anos, a autora e sua família sofreram com graves problemas de infiltração e humidade, vindos dos terraços do andar superior, como se pode constatar no relatório realizado pelo engenheiro EE em 2011 (doc. nº 6), bem como das imagens contidas no doc. nº 7.

12º Tendo, inclusive, a autora e seu falecido marido proposto contra o réu a ação declarativa nº 5301/11.0TBMTS, que tramitou no Juízo Local Cível de Matosinhos – Juiz 4,

13º onde restou acordado, em 2017, que o réu, tendo em vista as infiltrações e humidades originárias das áreas comuns do condomínio, “obriga-se a reparar o quarto dos autores e o quarto da filha BB, comprometendo-se ainda a reparar metade do quarto do filho DD” (doc. nº 8).

14º Desta forma, as obras de responsabilidade do réu foram realizadas e entregues em janeiro de 2018, pela B..., Lda, mesma empresa que anos antes havia intervencionado as áreas comuns do condomínio.

15º Tendo sido colocado no quarto da autora e de seu falecido marido, no quarto da filha BB e no quarto do filho DD tetos falsos em gesso cartonado hidrófugo, além de realizadas outras intervenções para reparar a parte interna da fração (doc. nº 9). Facto é que,

16º Mesmo após as últimas intervenções, a autora e sua família continuam com problemas de humidade e infiltração em sua habitação.

17º Em outubro de 2018, voltaram a surgir manchas de humidade nos locais intervencionados pela B..., Lda, o que gerou um desconto no valor da empreitada realizada na parte interna da habitação.

18º Em fevereiro de 2021 a autora novamente verificou que no teto falso em gesso cartonado hidrófugo instalado no quarto da filha BB, voltaram a aparecer infiltrações e humidade, como se vê nas fotografias tiradas no mês de fevereiro de 2021. (doc. nº 10).

19º O que demonstra que a empreitada não foi bem executada, pois o mesmo problema, advindo da parte exterior, nomeadamente do terraço, volta a aparecer constantemente.

20º Diante disso, a autora interpelou o réu por email, nos mês de fevereiro, e em maio de 2021, por carta registada com A/R, denunciando os problemas que voltaram a surgir,

21º e reclamando a intervenção do réu, como responsável pelas áreas comuns, a sua urgente reparação (doc. nº 11).

22º Contudo, o réu não desenvolveu qualquer iniciativa no sentido de pôr termo à deplorável situação em que volta a se encontrar a habitação da autora.

23º O que não deixou escolha a não ser recorrer a este Tribunal.

24º O réu, como representante dos condóminos, possui responsabilidade sobre a conservação e manutenção das partes comuns do prédio.

25º E o terraço, independentemente do piso em que se situe e de o seu uso estar, em exclusivo, afeto a algum dos condóminos, deve ser considerado área comum do prédio, conforme dispõe o artigo 1421º, nº1, alínea b, do Código Civil,

26º cabendo ao réu a responsabilidade pela sua conservação e impermeabilização. (…)

28º No presente caso, os terraços do 5º andar centro (já anteriormente intervencionado) e do 5º andar esquerdo (nunca intervencionado), servem de cobertura para a fracção desta autora;

29º Pelo que as infiltrações e humidade que voltam a surgir estão situadas no tecto imediatamente abaixo de ambos os terraços,

30º Não restando dúvidas de que se trata de uma deficiência estrutural dos terraços que asseguram a sua função enquanto cobertura, e que, com o passar dos anos somente piora.

31º No mais, se o teto falso encontra-se com manchas de humidade advindas de infiltração, o teto verdadeiro estará em pior estado. (…)

33º Todo este rosário de problemas levou a um desgaste físico e mental que a autora e sua família tiveram de suportar durante todos esses anos, além da morosidade do réu em resolver o problema.

34º A autora tem dificuldades respiratórias que se agravaram com a presença de bolor, vindos das áreas com humidade,

35º Além da angústia, incómodos, aborrecimentos e tristeza, por ver sua habitação sempre danificada,

36º E ter que frequentemente estar a efetuar telefonemas, envio de cartas e instaurar processos judiciais para a resolução da mesma questão.

37º Assim, por todos os danos não patrimoniais causados à autora, em consequência direta e necessária das atuações e comportamentos do réu, deve esta ser indemnizada com uma quantia nunca inferior a 1000€ (mil euros). (…)”.

3. Nos referidos autos, o Condomínio réu foi citado a 09/09/2021.

4. Os presentes autos foram instaurados a 15/03/2023, pela autora AA contra o réu Condomínio ..., ..., aqui se peticionando que: “Termos em que, deve a presente ação ser julgada procedente, por provada e, consequentemente:

a) Ser a Ré condenada a executar todas as obras necessárias para reposição das condições de habitabilidade do imóvel da Autora, referentes aos danos descritos nos articulados 5.º e 9.º;

b) Ser a Ré condenada a pagar à Autora uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, em quantia nunca inferior a 1.000,00€ (mil euros).”.

5. Alegou para tanto que:

“(…) 1. A Autora é proprietária e cabeça de casal da herança indivisa em cujo património se integra parte da fração autónoma, designada pela letra “L”, do prédio sito na Rua ..., ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., em Matosinhos, inscrito na matriz sob o artigo n.º ...44. – Cfr. Doc. n.º 1, 2 e 3.

2. A Autora habita na fração “L” do descrito imóvel desde 2003 e, desde que lá estabeleceu a sua residência, foi alvo de incómodos e prejuízos decorrentes de danos que têm origem nas áreas comuns do prédio.

3. Situações essas que sempre foram transmitidas à Administração do Condomínio.

4. Das diversas situações comunicadas à Administração do Condomínio, foram sido realizadas algumas intervenções pontuais, contudo, de forma deficiente.

5. No dia 02-01-2023, a Autora, mais uma vez, identificou danos de infiltrações em diversas divisões do imóvel, a saber: teto do corredor, teto do quarto da Autora e teto do hall de entrada que se expande até à entrada da sala. – Cfr. Doc. n.º 4.

6. Perante tal situação, a Autora entrou em contacto com a Ré no dia 02-01-2023, via e-mail, participando a ocorrência.

7. A Autora participou a ocorrência, também em 02-01-2023 à Proteção Civil de Matosinhos, que na mesma data se deslocou ao imóvel e elaborou um relatório da ocorrência, no qual consta que “(…) foi possível verificar infiltrações de água e humidade em algumas divisões do apartamento.” – Cfr. Doc. n.º 5.

8. No dia 03-01-2023, a Ré deslocou-se à habitação da Autora para verificar os danos reclamados.

9. Até ao dia 12-01-2023 a Ré não iniciou nenhuma diligencia para por termo à situação previamente reclamada e por si constatada, verificando-se que os danos provocados pelas infiltrações de água estavam a piorar. 10. Nesse mesmo dia, entrou novamente em contacto com a Ré, via e-mail, solicitando a intervenção da administração de condomínio, remetendo fotografias para o efeito - Cfr. Doc. n.º 6;

11. Face à reiterada inercia da Ré, a Autora decidiu fazer uma participação à PSP, no dia 13-01-2023, tendo o autuante referido na participação que: “No local foi possível visualizar a humidade nas paredes e tetos dos 3 quartos, assim como a humidade na parede e teto da sala, no teto do hall de entrada e no teto do corredor.” – Cfr. Doc. n.º 7.

12. Na assembleia geral ordinária de condóminos, realizada no dia 25-01-2023, a Autora mais uma vez apresentou o problema relacionado com os danos provenientes de infiltrações na sua fração, não tendo a mesma obtido qualquer proposta de solução por parte da Ré.

13. No dia 17-02-2023, a empresa C..., Lda., a pedido a Ré, deslocou-se ao imóvel da Autora para efetuar uma pesquisa de infiltração, através de método não destrutivo. – Cfr. Doc. n.º 8.

14. A Autora solicitou, via e-mail, o relatório da pesquisa de infiltração realizada no dia 17-02-2023, mas a Ré respondeu negativamente.

15. Dado que a Ré continua sem desenvolver qualquer iniciativa no sentido de pôr termo à deplorável situação em que se volta a encontrar a habitação da Autora, a mesma não teve outra escolha que não fosse recorrer a este Tribunal.

16. Cabe à Ré, na qualidade de representante dos condóminos, a responsabilidade pela conservação e manutenção das partes comuns do prédio, devendo a Ré realizar as obras necessárias de forma a fazer cessar as infiltrações que danificam a fração da Autora, além de reparar os danos internos na sua habitação. Importa ainda referir que,

17. Toda a situação tem acarretado graves inconvenientes e prejuízos para a Autora, designadamente os encargos com a limpeza, situações de insalubridade e agravamento do seu estado de saúde,

18. Além de todo o desgaste físico e mental que a Autora e sua família tem sofrido durante todos esses anos, acrescentando ainda a falta de inércia por parte da Ré em resolver a raiz do problema.

19. A Autora encontra-se profundamente esgotada pelo facto de ter constantemente a sua fração danificada e ter de recorrentemente socorrer-se das instâncias legais para a resolução do problema das infiltrações de água, que nunca acontece com eficácia.

20. Durante vários dias a Autora não pôde ligar as luzes do corredor, com receio que pudesse acontecer uma descarga elétrica ou um curto-circuito na rede elétrica do imóvel.

21. A Autora tem também sofrido com toda a presente situação pelo facto de ser asmática; devido às infiltrações e exposição ao ambiente húmido que se faz sentir na sua habitação, a Autora tem crises de asma constantes e tem necessidade de utilizar a bomba da asma todos os dias, de manhã e à noite. – Cfr. Doc. n.º 9

22. Por esse mesmo motivo, a Autora teve de passar a utilizar outro quarto da sua fração, que pertencia à sua filha, uma vez que tinha ataques de asma constantes devido à exposição ao ambiente húmido do seu quarto, onde inclusivamente pingava água do teto.

23. Com a presente ação, a Autora procura que a Ré resolva eficazmente o problema em apreço, o que até agora não se verificou.

24. Deste modo, e tendo em conta todos os danos não patrimoniais causados à Autora, por consequência direta da falta de atuação eficaz da Ré, deve a Autora ser indemnizada em quantia nunca inferior a 1.000,00€ (mil euros).”.

6. Nos presentes autos, o Réu foi citado a 22/03/2023.


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De acordo com o previsto no artigo 580.º do Código de Processo Civil, a exceção da litispendência ocorre “(...) se a causa se repete estando a anterior ainda em curso (...)”. O artigo 581.º do mesmo Diploma, por sua vez, explicita que se repete “(…) a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.” Do mesmo preceito resulta, dos seus números 2 a 4, que “há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica” , “há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeitos jurídico” e  que “há identidade da causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico”.

Da fundamentação da decisão recorrida salienta-se o que ali se exarou relativamente à identidade de pedido e causa de pedir, sendo líquida e indiscutível a verificação da identidade das partes, que a Recorrente não nega.

Quanto à identidade dos pedidos, afirma-se na sentença recorrida que “(…) em ambos os casos estamos perante o típico pedido que visa o cumprimento da obrigação indemnizatória que decorre dos artigos 562.º e segs. do Código Civil, ou seja, em ambos os casos a pretensão jurídica da autora consiste na reparação dos danos sofridos, com a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, sendo que, quanto aos danos morais, tal reconstituição operará mediante o peticionado pagamento de uma compensação nos termos do artigo 566.º do Código Civil. A circunstância de, no processo nº 3851/21.9T8MTS, a autora apresentar um pedido alternativo de condenação do réu ao pagamento de uma quantia indemnizatória de 5.000,00 Euros, não altera a referida identidade de pedidos, pois ainda aqui, estamos no quadro da pretensão da obrigação indemnizatória com vista à “realização das obras necessárias”, ou seja, à reconstituição da situação anterior ao evento danoso (a alternatividade dos pedidos encontra-se formulada em moldes impróprios, dado que não estamos perante obrigações alternativas, mas perante uma única e mesma obrigação a ser realizada em moldes distintos.”.

Manuel Andrade define o pedido como “(…) o efeito jurídico pretendido pelo autor[1].

Ocorrerá identidade de pedidos entre duas ações quando a providência jurisdicional solicitada pelo Autor seja a mesma, isto é, quando a segunda ação é proposta para exercer o mesmo direito que se já se exerceu ou está a exercer na primeira.

A Autora, nesta ação, pede a condenação do Réu na execução de obras de reparação no interior da sua fração, bem como a indemnizá-la por danos não patrimoniais decorrentes dos danos ali existentes.

Os mesmos pedidos – de realização de obras de reparação e de ressarcimento por danos não patrimoniais -, formulou a Autora na ação antes interposta, ali deduzindo, ainda, pedido alternativo de indemnização com vista a que fosse ela mesma a proceder a tais reparações suportando a Ré os respetivos custos.

Na primeira ação proposta a Autora formulava, quanto à pretensão de reparação, pedido genérico com vista ao conserto de danos futuros, peticionando que a Ré fosse condenada a: “b) Reparar todos os estragos que as infiltrações de humidade causaram – e que acima foram descritos – e os que possam vir a causar, devendo os termos de tal reparação, atento o alegado e a natureza continuada do dano até à reparação do defeito, ser fixados em momento posterior.”.

A autora pretende em ambas as ações obter o mesmo efeito jurídico – a condenação do Réu na reparação de defeitos e no pagamento de indemnização pelos seus danos de natureza não patrimonial. Todavia, os defeitos cuja reparação se requer são diferentemente descritos numa e noutra ação.

Desde logo, os danos que a Autora descreve nesta ação situam-se em diferentes divisões da sua habitação.

A dúvida que esta diferença suscita é ultrapassada na sentença da seguinte forma: “Acresce, com maior relevo, que no referido processo n.º 3851/21.9T8MTS, a autora deduziu ainda um pedido genérico, com vista ao ressarcimento dos danos futuros, isto é, daqueles que, à data da propositura da ação ainda não são conhecidos e que, resultando do mesmo facto danoso, vêm a surgir ulteriormente. Assim, na alínea b) daquele petitório, pretende-se a reparação, não só dos danos causados e descritos, mas também “… (d)os que possam vir a causar, devendo os termos de tal reparação, atento o alegado e a natureza continuada do dano até à reparação do defeito, ser fixados em momento posterior”.

É certo que o pedido de reparação de novos danos que possam, entretanto, surgir do mesmo facto danoso abarca qualquer pretensão que a eles se refira, pretensão essa que a Autora já não poderia exercer nessa ação.

Todavia, a limitação desse pedido a danos decorrentes do mesmo facto danoso impõe que não se possa afirmar que as reparações aqui pedidas possam ser abrangidas pelo pedido genérico formulado na anterior ação e pela condenação genérica que ali possa vir a ser proferida.

Não oferece dúvidas que a Autora, ao abrigo de condenação genérica de reparação de futuros defeitos que viessem a surgir na sua habitação, nunca poderia vir a pedir, em incidente ulterior de liquidação, a reparação de danos com origem distinta da que foi descrita como causa de pedir da anterior ação. Nunca a condenação genérica ali a proferir assim poderia ser interpretada, sob pena de ofensa dos limites da condenação previstos no artigo 609º do Código de Processo Civil.

Prevê o artigo 556º, número 1 do Código de Processo Civil que o autor possa formular pedido genérico, nomeadamente e no que aqui importa convocar: “b) Quanto não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequências do facto ilícito ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 569º do Código Civil.”.

O número 2 do mesmo artigo prevê que, nesse caso, o pedido é concretizado através de liquidação.

A liquidação do pedido genérico importa, assim, a concretização de uma pretensão que está previamente delimitada por uma causa de pedir. A formulação de uma condenação genérica – no caso, de reparação de danos futuros -, tem que ser suficientemente detalhada para que possa dela ser retirados os limites da condenação. Não pode o tribunal, por exemplo, condenar um condomínio a reparar todos os danos que o condómino venha a sofrer na sua fração e que tenham origem nas partes comuns do edifício. Deve, a condenação genérica concretizar, nomeadamente por referência à sua causa, quais os danos que foram objeto de instrução e decisão. Sob pena de se formular decisão indeterminada em vez de genérica. Ora, nas palavras de Salvador da Costa, “(…) a liquidação da sentença só visa concretizar o objeto da condenação, com respeito pelo caso julgado decorrente da ação declarativa, ou seja, a determinação do objeto da causa, isto é, a existência do dano não é relegável para o referido incidente” [2].

Em face do que acima se disse sobre a necessária delimitação das condenações genéricas por forma a que possam ser concretizadas mediante liquidação ulterior, conclui-se que em incidente de liquidação da condenação genérica que pudesse vir a ser proferida na anterior ação a aqui Autora não poderia pedir a reparação de danos com origem ali não alegada nem discutida.

No caso, a natureza genérica de um dos pedidos formulados na anterior ação e a possível condenação, também genérica, daí decorrente, obrigam a que se analisem os pedidos de ambas as ações tendo no horizonte a respetiva causa de pedir.

Estamos, assim, chegados à obrigatória verificação da identidade de causa de pedir entre as duas ações, que, como vimos, o legislador define no artigo 581º número 4, como a que ocorre “(…) quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.”.

Factos jurídicos são, nas palavras de Alberto dos Reis, “(…) os factos materiais vistos à luz das normas e critérios do direito” [3].

Ora, na ação antes proposta a Autora indicou como causa de pedir não só os danos ocorridos no interior da sua fração (em compartimentos diferentes dos que ora quer ver reparados), como a causa dos mesmos: “uma deficiência dos terraços que asseguram a sua função enquanto cobertura”.

Já nesta ação a Autora, na petição inicial nada afirmou quanto à causa das infiltrações que pretende ver reparadas apenas indicando, genericamente, que tais danos “têm origem nas áreas comuns do prédio”.

Foi, contudo, convidada a especificar “(…) quais as alegadas áreas comuns do prédio que estão na origem dos danos invocados e, desde logo, se estes danos provêm do dito terraço de cobertura do andar que fica por cima da fração da autora.”.

Ora, a 18-09-2023 a Autora respondeu a tal convite concretizando que a área comum em tiveram origem os danos cuja reparação demanda foi a fachada do prédio.

Sendo a causa de pedir composta pelo conjunto de factos juridicamente relevantes que servem de suporte às pretensões das partes, dúvidas não há que nesta e naquela ação a Autora alega diferentes factos juridicamente relevantes.

São distintos os danos alegados numa e noutra ação, porque os ora descritos, além de ocorridos supervenientemente, são diferentes na sua configuração/manifestação material, e é, também, distinta a sua causa ou origem.

É certo que, caso se estivesse perante a alegação de novos danos decorrentes da mesma causa teria todo o sentido a argumentação esgrimida na sentença recorrida a propósito da natureza genérica do pedido de reparação de danos futuros. Todavia, não alega a Autora novos danos decorrentes da mesma causa, antes outros, provenientes de outras partes comuns do edifício, o que resultou de aperfeiçoamento da petição inicial feito a convite do Tribunal.

A propósito da natureza complexa de certas causas de pedir, e referindo-se concretamente às ações decorrentes de acidentes de viação, afirmam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa[4] que estas têm uma causa de pedir complexa integrada pela culpa/risco e pelos danos, inexistindo, por isso, identidade de causa de pedir e de pedido entre duas ações sobre o mesmo acidente em que os prejuízos alegados e peticionados não sejam coincidentes e  que “(…) sobre o autor não incide nenhum ónus de concentração de todas as causas de pedir na ação que proponha”.

Claro está que, não podendo, na primeira ação serem indemnizados danos “que, em relação a essa ação, devam ser considerados supervenientes” [5], não há identidade de pedidos, nem de causa de pedir entre essa ação e a que venha a ser proposta para pedir a reparação destes últimos.

O que não fica ultrapassado pelo mero facto de na anterior ação se ter formulado pedido genérico.

No caso em apreço, mais do que a mera alegação de novos danos decorrentes da mesma causa (e, assim, passíveis de serem integrados em pedido de reparação de danos futuros já antes formulado noutra ação), a Autora alegou novos danos decorrentes de diferente causa, porque oriundos de outro local do mesmo edifício: já não os terraços sobre a sua fração, mas a fachada do prédio.

Dispõe o número 2 do artigo 580º do Código Civil que as exceções do caso julgado e da litispendência têm por fim evitar que o tribunal “(…) seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.”

Miguel Teixeira de Sousa, em anotação a Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2022 [6] sugere como critério para aferir, na dúvida, se há ou não identidade entre duas ações o já antes indicado por Alberto dos Reis [7], e formulando-o nos seguintes termos: “Quando haja dúvidas sobre a identidade das ações, deve lançar-se mão do princípio segundo o qual o tribunal pode correr o risco de contradizer ou reproduzir decisão proferida na primeira ação. Se isso acontecer – (…) – então estaremos perante duas ações idênticas.”.

Ora, em face da causa de pedir resultante da petição inicial e do aperfeiçoamento à mesma que a Autora fez em resposta a convite do Tribunal, é de concluir que não há, no caso em apreço o risco de se vir a contradizer nesta ação o que na outra vier a ser decidido, pois nesta apenas podem ser apreciados danos decorrentes de infiltrações provenientes da “fachada do edifício” em propriedade horizontal que se integra a fração da Autora e que se manifestam “(…) no teto do corredor, teto do quarto da Autora e teto do hall de entrada que se expande até à entrada da sala (…).

Resta afirmar que, ainda que se conclua, da instrução dos autos, que a causa das infiltrações descritas na petição inicial é, afinal, diversa da concretizada no aperfeiçoamento desse articulado, não poderá o tribunal considerar essa(s) outra(s) causa(s) por lhe estar vedado conhecer factos essenciais não alegados.

O artigo 5º do Código de Processo Civil e a alínea d) do número 1 do artigo 552º do mesmo Diploma preveem a obrigação das partes de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir ou o suporte para as exceções que invocam.

A alegação da causa concreta dos danos que a Autora quer ver reparada é facto essencial à sua pretensão não cabendo ao Tribunal averiguar essa causa, mas à Autora alegá-la, como fez e como melhor concretizou, a convite do Tribunal.

Por via da referida concretização da causa de pedir nesta ação, e concluindo, fica definitivamente afastada a possibilidade de se considerar verificada a tríplice identidade que a exceção de litispendência exige para que se tenha por verificada, pelo que deve ser revogada a decisão, devendo os autos prosseguir para saneamento e instrução da causa.

V – Decisão:

Nestes termos julga-se a apelação procedente, revogando a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos.

Custas pelo Recorrente uma vez que o Recorrido não contra-alegou e foi aquele quem dos autos tirou proveito, no nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.


Porto 18/3/2004.
Ana Olívia Loureiro
Manuel Domingos Fernandes
Jorge Martins Ribeiro
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[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1976, página 111.
[2] Os Incidentes da Instância, 9.ª Edição, Almedina, 2017, pp. 233-234.
[3] Código de Processo Civil Anotado, Coimbra Editora, 3ª edição, Volume III, página 209, onde define “factos materiais” como “as ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos entre os homens”.
[4] Código de Processo Civil Anotado, Volume I, Parte Geral e Processo de Declaração, Coimbra, 2018, página 668.
[5] Socorremo-nos aqui das palavras de Miguel Teixeira de Sousa em anotação a Acórdão da Relação de Guimarães de 27-02-2024, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2024/02/jurisprudencia-2023-118.html.
[6] Disponível em https://blogippc.blogspot.com/2018/05/jurisprudencia-833.html.
[7] Op. cit. Volume III, página 90.