OPOSIÇÃO À PENHORA
ADMISSÃO LIMINAR
CASO JULGADO FORMAL
Sumário

I - A admissão liminar e tabelar do requerimento de oposição à penhora, não constitui caso julgado formal.
II - A litispendência pressupõe a repetição, em causas judiciais que ainda se mantêm em curso, dos sujeitos, pedido e causa de pedir. Falhando um destes pressupostos, não opera essa exceção.
III - O credor, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, não está obrigado a demanda-lo conjuntamente com o devedor afiançado.
IV - Só o devedor que for dono da coisa hipotecada, e não os outros devedores, tem o direito de se opor a que outros bens sejam penhorados na execução, enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia.

Texto Integral

Processo n.º 1027/22.7T8AGD-B.P1

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Sumário:
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Relator: João Diogo Rodrigues
Adjuntos: Fernando Vilares Ferreira;
Alberto Eduardo Monteiro de Paiva Taveira.





Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório

1- Na execução para pagamento de quantia certa que A... Sa Rl, instaurou contra, AA, BB, AA e BB, vieram os dois primeiros deduzir oposição à penhora, realizada no dia 11/04/2023, sobre 1/3 do subsídio de doença auferido pelo primeiro Executado, sustentando, para além do mais, que não podendo o exequente instaurar duas execuções distintas, uma, para fazer valer a sua garantia real e, outra, para se fazer pagar pelo produto da venda de bens de outros responsáveis pela mesma dívida, como sucedeu neste caso [em que a ora Exequente instaurou duas ações executivas distintas, com fundamento nos mesmos títulos executivos, uma, sob o nº 1495/21.0T8AGD, onde intervém como executada a sociedade mutuária, B..., Ldª, e, outra, sob o nº 1027/22.7T8AGD, onde intervêm como executados os fiadores daquela sociedade relativamente às mesmas responsabilidades reclamadas na ação nº 1495/21.0T8AGD, categoria em que incluem os ora Oponente], é esse motivo para determinar a sua ilegitimidade processual.

Por outro lado, ainda em razão das duas referidas ações executivas, ocorre a exceção de litispendência, pois que nelas são os mesmos sujeitos, do ponto de vista da sua qualidade jurídica, pedido e causa de pedir.

Acresce que ao proceder do modo indicado, a Exequente também não respeitou o regime insertos nos artigos 752.º, n.º 1, e 784.º, n.º 1, al. b), do CPC, uma vez que só depois de demonstrada a insuficiência do bem que constitui garantia real da dívida exequenda, poderiam ser penhorados outros bens.

Por estas razões, pois, pedem, entre o mais, que:

“A/1. As excepções invocadas devem ser julgadas totalmente procedentes, por provadas, recusando-se a execução e ordenando-se a sua imediata extinção;

OU, caso assim não se entenda,

A/2. A oposição à penhora deve ser julgada totalmente procedente, por provada, ordenando-se a imediata suspensão da execução e das penhoras em curso, em particular a penhora de que incide sobre o subsídio de doença auferido pelo executado/opoente, dispensando os executados/opoentes da prestação de caução”.

2- Perante esta oposição, foi liminarmente decidido o seguinte:

“Admito liminarmente o incidente de oposição à penhora.

Notifique o exequente para, querendo, em 10 dias, deduzir contestação à mesma – artigo 785/2 e 293/2 do Código de Processo Civil.

Notifique e dê conhecimento à Sr.ª Agente de Execução.

(…)”.

3- Contestou a Exequente pugnando pela solução contrária da pedida pelos Oponente. Isto porque, em síntese, não ocorre a exceção de litispendência, na medida em que os executados nas duas referidas execuções são diversos; a dívida é solidária e, assim, os devedores podiam ser demandados conjunta ou separadamente; e, por fim, a execução da hipoteca não está em curso nestes autos, sendo certo que os fiadores renunciaram todos eles ao benefício da excussão prévia. Isto, para além de não ser previsível que o valor do imóvel dado de garantia seja suficiente para saldar a dívida exequenda.

4- Seguidamente, no dia 09/10/2023, foi proferida sentença que indeferiu “liminarmente a oposição à penhora por falta de fundamento legal para o efeito e por manifesta improcedência ao abrigo do disposto no artigo 732.º1, alíneas b-) e c-) do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” artigo 785.º do mesmo diploma legal”.

Isto porque a “questão suscitada pelos executados, relativa à exceção dilatória da litispendência e da legitimidade, não integra nenhuma das alíneas do artigo 784.º do Código de Processo Civil, nem se prende com o decretamento ou não da penhora propriamente dita, no sentido de atingir ou não aqueles concretos bens, com que extensão os atinge ou devia ou não atingir”.

E, quanto ao benefício da excussão prévia e da violação do art.º 752.º do CPC, pese “embora a dívida original seja garantida por hipoteca, a execução da hipoteca não se encontra em curso no âmbito da presente ação.

Ademais, os opoentes/fiadores renunciaram ao benefício da excussão prévia, pelo que, a penhora dos seus bens, não padece de qualquer violação da lei”.

5- Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso os Oponentes, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões:

“I. A decisão que indeferiu liminarmente a oposição à penhora deduzida pelos aqui apelantes é ilegal e injusta, na medida em que faz uma incorrecta interpretação e aplicação do Direito.

Violação de caso julgado – indeferimento liminar da oposição à penhora

II. No dia 05/06/2023 foi proferido douto despacho com a Ref.ª 127771692, no apenso que corre termos no Tribunal Judicial de Aveiro – Juízo de Execução de Águeda sob o nº 1027/22.7T8AGD-B, admitindo liminarmente a oposição à penhora deduzida pelos aqui recorrentes, despacho esse que transitou em julgado, sendo aplicável ao processamento do incidente o disposto no art.º 785º, cujo nº 2 remete para os nºs 1 e 3 do art.º 732º e para os art.ºs 293º a 295º, todos do CPC.

III. Os recorrentes foram surpreendidos com a sentença objecto do presente recurso, a qual veio indeferir liminarmente a mesma oposição à penhora anteriormente admitida, o que se consubstancia numa manifesta contradição de caso julgado anterior, em violação do disposto nos artºs 620º, 625º, 785º, nº 2, 732º, nº 1 e 295º, todos do CPC, excepção dilatória prevista na al. f) do art.º 577º do mesmo Código, impondo-se a sua revogação, substituindo-se tal decisão de indeferimento liminar por outra que determine o prosseguimento dos autos, nos termos do art.º 295º do CPC.

Excepções dilatórias da legitimidade e da litispendência:

IV. O Tribunal a quo pronunciou-se sobre as excepções dilatórias da litispendência e da legitimidade, oportunamente deduzidas pelos aqui recorrentes em sede de oposição à penhora, julgando que as mesmas não são atendíveis por não integrarem nenhuma das alíneas do art.º 784.º do CPC, entendendo que apenas poderiam ser deduzidas em sede de oposição à execução.

V. No plano factual, correm termos duas acções executivas distintas no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo de Execução de Águeda, ambas instauradas pela exequente com fundamento nos mesmos contratos de mútuo e respectivos títulos executivos, onde a exequente reclama as mesmas dívidas originais, uma sob o nº 1495/21.0T8AGD, onde é executada a sociedade mutuária, B..., LDA (B...), e outra sob o nº 1027/22.7T8AGD, onde são executados apenas os fiadores daquela sociedade (onde se integram os aqui recorrentes).

V. Ao instaurar aquela acção executiva nº 1495/21.0T8AGD, a exequente pretendeu fazer-se valer da garantia hipotecária que foi constituída a seu favor pela B..., sobre um bem imóvel que é propriedade desta sociedade mutuária e que se encontra na sua posse, não tendo a exequente alegado, sequer, o eventual reconhecimento da insuficiência daquele bem imóvel para garantir as responsabilidades reclamadas naquela acção executiva para vir, mais tarde, a instaurar a execução nº 1027/22.7T8AGD.

VI. O nº 1 do art.º 53º do CPC estabelece que “a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tinha a posição de devedor”, e o art.º 54º do CPC estabelece os possíveis desvios à regra geral da legitimidade das partes na acção executiva.

VII. Da conjugação daquelas disposições legais, resulta que o exequente, quando pretenda fazer-se valer da garantia real constituída a seu favor, está obrigado a instaurar a execução contra o proprietário do bem dado de garantia, podendo (ou não) demandar, desde logo e na mesma acção, os demais responsáveis, pelo que à exequente não era legítimo instaurar uma acção executiva autónoma contra os aqui recorrentes, quando se encontra em curso uma acção onde deu aquela hipoteca à execução, pois não se encontra verificada (nem a exequente alega) nenhuma das situações de desvio à legitimidade passiva estabelecidas no art.º54º do CPC, pelo que a acção executivanº1027/22.7T8AGD não se encontra conforme ao título no que respeita aos executados e aqui recorrentes, precisamente porque a B... não foi demandada nesta acção.

VIII. Esta ilegitimidade dos aqui recorrentes constitui uma excepção dilatória (art.º 577º, al. e) do CPC), na medida em que corresponde à ausência de um pressuposto processual essencial, não é susceptível de sanação ou suprimento, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e determina a absolvição da instância, sendo de conhecimento oficioso (art.º 578º do CPC).

IX. A excepção da ilegitimidade é um meio de defesa de que o Tribunal pode e deve conhecer oficiosamente (art.º 608.º, nº 2 do CPC), sendo lícito ao demandado deduzi-la a todo o tempo, a coberto da última parte do nº 2 do art.º 573.º do CPC, não constituindo meio de defesa exclusivo do incidente de oposição à execução, pelo que, a decisão aqui em crise, na parte em que faz referência à dita excepção, viola as disposições conjugadas do nº 2 do art.º 576º, da alínea e) do art.º 577º e do art.º 578º, todos do CPC, devendo ser revogada nessa parte, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção da ilegitimidade dos executados e, em consequência, absolvendo os aqui recorrentes da instância.

X. Por outro lado, estamos perante duas acções instauradas pela exequente que são idênticas quanto ao pedido e à causa de pedir, apenas não se verificando a integral identidade quanto aos sujeitos – embora haja coincidência na sua qualidade jurídica – porque a exequente, não obstante pretender fazer-se valer daquela garantia hipotecária constituída a seu favor, optou por instaurar uma outra acção executiva apenas contra os fiadores, os quais garantem as mesmas dívidas originais, fazendo-o, como se viu, em manifesta violação dos já mencionados nº 1 do art.º 53º e art.º 54º, ambos do CPC.

XI. A excepção da litispendência é, igualmente, um meio de defesa de que o Tribunal pode e deve conhecer oficiosamente (art.º 608.º, nº 2 do CPC), não dependendo da sua dedução pelas partes, pelo que a decisão aqui em crise, na parte em que faz referência à dita excepção, viola as disposições conjugadas do nº 2 do art.º 576º, da alínea f) do art.º 577ºe do art.º 578º, todos do CPC, devendo ser revogada nessa parte, substituindo-a por outra que julgue verificada a excepção da litispendência e, em consequência, absolvendo os aqui recorrentes da instância.

Violação do disposto no art.º 752.º do CPC:

XII. Na decisão aqui em crise, o Tribunal a quo entendeu não ser aplicável o disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, fazendo constar que, “pese embora a dívida original seja garantida por hipoteca, a execução da hipoteca não se encontra em curso no âmbito da presente ação.”

XIII. Ao abrigo do disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, os bens dos aqui recorrentes só responderão pelo valor que, eventualmente, venha a apurar-se estar ainda em dívida, depois de eventualmente reconhecida a insuficiência do imóvel da B..., onerado com hipotecas constituídas a favor da exequente, para garantia específica do pagamento das obrigações reclamadas nas acções executivas nº 1495/21.0T8AGD e nº 1027/22.7T8AGD, circunstância que funciona como verdadeira condição legalmente imposta para que a exequente possa avançar com a penhora dos bens dos aqui recorrentes.

XIX. A obrigação do fiador não perde a sua qualidade acessória, nos termos do disposto no nº 2 do art.º 627º do Código Civil, e mesmo considerando que essa característica acessória não permitirá aos fiadores beneficiar da excussão prévia dos bens da devedora principal, manter-se-á quanto aos limites do exercício da garantia pela credora, que deve respeito ao princípio da boa-fé, traduzida na “normalidade comportamental” expectável, que no processo executivo apontaria para que a exequente aguardasse pelo eventual reconhecimento da insuficiência do bem onerado com garantias reais para a satisfação integral dos seus créditos e, só depois, recorresse aos bens dos aqui recorrentes e dos demais fiadores para alcançar o fim da execução.

XX. É que, apesar de os recorrentes serem principais pagadores, tendo renunciado ao benefício da excussão prévia, na prática o carácter acessório da sua responsabilidade encontra-se salvaguardado pelo disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, ao estabelecer a ordem da penhora de bens para a satisfação do crédito da exequente, sendo que os bens dos recorrentes apenas responderão pela dívida exequenda se(e quando) vier a concluir-se pela insuficiência do bem imóvel onerado com garantia real específica relativa às dívidas exequendas reclamadas nas duas acções executivas supra identificadas.

XXI. Deste modo, é forçoso concluir que se encontra preenchida a hipótese da al.b) do nº 1 do art.º 784º do CPC, o que também fundamenta a oposição à penhora deduzida pelos recorrentes, norma que o Tribunal a quo entendeu não ser aplicável ao caso em apreço, simplesmente porque a execução da hipoteca não se encontra em curso na acção executiva nº1027/22.7T8AGD,quando isto apenas ocorre porque aexequente optou por instaurar duas execuções distintas para cobrança das mesmas dívidas originais, e isto mesmo depois do Tribunal a quo reconhecer que tais dívidas originais se encontram garantidas por garantias reais constituídas sobre um bem da sociedade devedora originária.

XXII. Com a decisão proferida, o Tribunal a quo violou a norma do nº 1 do art.º 752º do CPC, esvaziando-o de qualquer efeito e sentido práticos, ao entender que aquele dispositivo só seria aplicável se a execução da garantia real ocorresse no mesmo processo executivo, condição que nem sequer se pode extrair da letra daquela norma, pois o que se pretende com tal dispositivo é, isso sim, nos casos em que o exequente pretenda fazer-se valer da garantia real constituída a seu favor, e independentemente da acção em que se execute essa garantia real, a penhora sobre outros bens, sejam estes do devedor ou de terceiros, só poderá verificar-se depois de reconhecida a insuficiência daqueles bens onerados com garantia real, o que manifestamente ainda não ocorreu no caso em apreço.

XXIII. Ao proferir a sentença aqui em crise, o Tribunal a quo violou as disposições conjugadas do nº1 do art.º752º e da al.b) do nº1 do art.º784º do CPC, permitindo desse modo que a exequente proceda à penhora prematura de bens dos aqui recorrentes, sem que previamente se verifique aquela condição legalmente estabelecida, de reconhecimento da insuficiência dos bens onerados com garantia real e pertencentes à sociedade devedora para obter o fim da execução, devendo por isso revogar-se a decisão também nesta parte, substituindo-a por outra que que determine o imediato levantamento da penhora sobre 1/3 do subsídio de doença auferido pelo aqui recorrente, AA, constante no Auto de Penhora de 11/04/2023”.

Terminam pedindo que se julgue procedente o presente recurso, que se revogue, em consequência, a sentença recorrida e se conclua nos termos por si expostos.

6- A Exequente respondeu pugnando pela confirmação do julgado.

7- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.


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            II - Mérito do recurso

A- Definição do respetivo objeto

Esse objeto, como é sabido, é delimitado em regra e ressalvadas, designadamente, as questões de conhecimento oficioso, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608º, nº 2, “in fine”, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, todos do Código de Processo Civil (CPC)]. Mas, não só. Também o delimitam o próprio teor da decisão recorrida e as questões que nela foram ou deveriam ter sido decididas.

Observando, pois, este critério, verifica-se que, no caso presente, o objeto do recurso em análise se resume, essencialmente, a saber se:

a) Ocorre a invocada violação do caso julgado;

b) Estão verificados os pressupostos das exceções de ilegitimidade e litispendência, arguidas;

c) Houve violação do disposto no artigo 752.º e no artigo 784.º, n.º 1, al. b), ambos do CPC.


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B- Fundamentação de facto

Para além dos factos que resultam do relatório supra exarado, é importante ainda, para a apreciação das questões enunciadas, levar em consideração os seguintes factos, que resultam do histórico eletrónico deste processo e do processo principal:

1- No dia 05/05/2022, a Exequente, invocando a qualidade de cessionária do crédito exequendo, instaurou contra AA, BB, AA e BB, execução destinada à cobrança coerciva daquele crédito, resultante dos contratos de abertura de crédito, designados por  ...91 e  ...90, celebrados entre a Banco 1..., a sociedade, B..., Ldª e os referidos Executados, na qualidade de “fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Exequente em consequência do empréstimo contratado”.

2- No âmbito da aludida execução, foi penhorado, no dia 11/04/2023, 1/3 do subsídio de doença auferido pelo primeiro Executado.

3- A mesma Exequente, A... Sa Rl, invocando a mesma qualidade de cessionária do dito crédito, instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo de Execução de Águeda, o Processo executivo n.º 1945/21.0T8AGD, contra a sociedade, B..., Ldª, baseando-se nos mesmos contratos de abertura de crédito ( ...91 e  ...90) e indicando que para garantia dos mesmos foram constituídas hipotecas sobre imóveis que identifica.


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C- Fundamentação jurídica

Como vimos, começa por estar em causa no presente recurso a questão de saber se a sentença recorrida atentou contra o decidido no despacho liminar, já transitado em julgado. Isto porque nesse despacho se admitiu liminarmente a presente oposição à penhora e naquela sentença decidiu-se, literalmente, indeferir “liminarmente a oposição à penhora por falta de fundamento legal para o efeito e por manifesta improcedência ao abrigo do disposto no artigo 732.º1, alíneas b-) e c-) do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” artigo 785.º do mesmo diploma legal”.

Poderia, assim, ser-se tentado a concluir, como concluem os Apelantes, que há violação do caso julgado.

Mas, como veremos, não é assim.

Começamos por recordar que o processo civil é um conjunto de atos ordenados, tendo em vista a aplicação do direito. Nele, cada um dos sujeitos processuais desempenha o seu papel de modo juridicamente conformado. Se o não fizer, fica em causa a validade da sua atuação. E, em relação ao juiz, não é de maneira diferente. Quando decide, tem de o fazer respeitando o formalismo legalmente prescrito. Além disso, não pode decidir duas ou mais vezes a mesma questão, com base em idênticos pressupostos. Uma vez proferida a sentença ou despacho, como resulta do artigo 613.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, fica imediatamente esgotado o seu poder jurisdicional; salvo no que toca ao poder de retificação e reforma nos estritos termos previstos na lei. Mas, no mais[1], o seu poder jurisdicional fica extinto. O que significa que não pode voltar a pronunciar-se sobre as questões já decididas. Seja para as confirmar, seja para as contrariar. Aliás, tal como resulta do disposto no artigo 619.º, n.º 1, “[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702.º”; isto é, sem prejuízo do recurso de revisão. Do mesmo modo, por regra, as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual ficam a ter força obrigatória dentro do processo (artigo 620.º, n.º 1, do CPC). O que significa que também aí não podem ser contrariados pelo seu autor. Se o forem, havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão ou sobre a mesma questão concreta da relação processual, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. É o que estipula o artigo 625.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.

Ponto é que se verifique a referida identidade. E essa, não se afere apenas pela decisão. Afere-se igualmente pelos seus fundamentos. Como assinala Miguel Teixeira de Sousa, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão[2].

Tem-se entendido, por isso, que a determinação dos limites do caso julgado e a sua eficácia passam pela interpretação do conteúdo da decisão judicial e dos respetivos fundamentos.

Ora, tendo presente este critério, é para nós linear que, no caso em apreço, não houve qualquer violação do caso julgado.

Em primeiro lugar, porque no despacho inicial, proferido no dia 05/06/2023, não se adiantou nenhum fundamento para o recebimento liminar desta oposição e, pelo contrário, na sentença recorrida, analisaram-se as razões naquela esgrimidas, que foram julgadas improcedente.

E, depois, porque a admissão liminar do requerimento inicial, não preclude a possibilidade de, mais tarde, serem apreciadas e decididas questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar. O artigo 226.º, n.º 5, do CPC, claramente aponta nesse sentido ao dispor que o despacho de citação não implica que se considerem “precludidas as questões que podiam ter sido motivo de indeferimento liminar”. Ou seja, dito por outras palavras, a admissão liminar de tal requerimento, não constitui caso julgado formal[3]. O que, de resto, tem sido considerado aplicável também a outras hipóteses em que há lugar a despacho liminar, como, por exemplo, na oposição à execução ou na oposição à penhora (artigos 732.º, n.ºs 1 e 2, e 785, n.º 2, do CPC)[4].

Em qualquer dos casos, não há caso julgado formal sobre questões que, podendo ter sido, não foram, motivo de indeferimento liminar.

Logo, no caso, não houve nenhuma violação do caso julgado.

É certo que, como vimos, na sentença recorrida se decidiu decidiu-se indeferir “liminarmente” a oposição à penhora. Mas, esta menção não pode, no contexto em que foi proferida e tendo em conta a fundamentação que a precede e lhe sucede, bem como todo o processado já havido, ser entendida senão como um mero lapso de linguagem, insuscetível de modificar a natureza do ato em que essa menção está inserida. E os Apelantes, de resto, assim parecem também ter entendido, uma vez que impugnaram também os fundamentos de tal sentença.

Daí que, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, se considere que não houve a invocada violação do caso julgado.

Prosseguem, depois, os Apelantes alegando que ocorre litispendência entre a execução à qual está apensa esta oposição e o processo executivo n.º 1945/21.0T8AGD, que Exequente instaurou contra a sociedade, B..., Ldª.

Mas, também não é assim.

Qualificada pelo legislador como exceção dilatória de conhecimento oficioso (artigos 577.º, al i) e 578.º, do CPC), a litispendência, tal como a exceção do caso julgado, pressupõem a repetição de uma causa judicial. Mas, enquanto no caso julgado a causa idêntica já foi decidida por sentença transitada em julgado, na litispendência a causa análoga ainda se mantém em curso.

Por outro lado, a dita repetição pressupõe uma tríplice identidade: quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de causa de pedir, quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico; e há identidade de pedido, quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico (artigo 581.º do CPC). O mesmo efeito jurídico e não necessariamente o mesmo efeito prático. O pedido, com efeito, “é a enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo Autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar (…)”[5]. É, no fundo, a pretensão processual em termos de tutela jurisdicional, ou seja, “o feito jurídico pretendido (pretensão processual) e, em regra, deve ser único, certo e exigível”[6].

Ora, tomando por base este enquadramento, o que verificamos, como já adiantámos, é que não ocorre a exceção de litispendência. Desde logo, porque os executados em cada uma das execuções são diversos. Naquele processo (n.º 1945/21.0T8AGD), a Executada é a sociedade, B..., Ldª. E no processo executivo ao qual estes autos estão apensos, aquela sociedade não foi demandada. Logo, falha a coincidência de sujeitos. O que é bastante para que se julgue improcedente aquela exceção (que não é motivo de oposição à penhora, mas é de conhecimento oficioso – (artigos 578.º e 784.º, do CPC).

Sustentam ainda os Apelantes que são parte ilegítima na execução que lhes foi movida. O exequente - alegam (cl.VII) -, “quando pretenda fazer-se valer da garantia real constituída a seu favor, está obrigado a instaurar a execução contra o proprietário do bem dado de garantia, podendo (ou não) demandar, desde logo e na mesma acção, os demais responsáveis, pelo que à exequente não era legítimo instaurar uma acção executiva autónoma contra os aqui recorrentes, quando se encontra em curso uma acção onde deu aquela hipoteca à execução, pois não se encontra verificada (nem a exequente alega) nenhuma das situações de desvio à legitimidade passiva estabelecidas no art.º54º do CPC, pelo que a acção executiva nº1027/22.7T8AGD não se encontra conforme ao título no que respeita aos executados e aqui recorrentes, precisamente porque a B... não foi demandada nesta acção”.

Ora, não é assim. Como prescreve o artigo 641.º, n.º 1, do Código Civil, “[o] credor, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, pode demandá-lo só ou juntamente com o devedor”. Basta que o título lho permita. E, no caso, permite, uma vez que os Executados assumiram nos contratos que servem de base à execução a qualidade de fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Exequente em consequência dos empréstimos contratados. Logo, tendo em conta o disposto no artigo 640.º, al. a), do Código Civil e artigo 53.º n.º 1, do CPC, não há qualquer razão para os considerar parte ilegítima. Ilegitimidade que, mais uma vez, não é fundamento de oposição à penhora, mas de que aqui se trata apenas por ser uma exceção de conhecimento oficioso (artigos 577.º, al e), 578.º e 784.º, do CPC).

Por fim, defendem os Apelantes que, apesar de “serem principais pagadores, tendo renunciado ao benefício da excussão prévia, na prática o carácter acessório da sua responsabilidade encontra-se salvaguardado pelo disposto no nº 1 do art.º 752º do CPC, ao estabelecer a ordem da penhora de bens para a satisfação do crédito da exequente, sendo que os bens dos recorrentes apenas responderão pela dívida exequenda se (e quando) vier a concluir-se pela insuficiência do bem imóvel onerado com garantia real específica relativa às dívidas exequendas reclamadas nas duas acções executivas supra identificadas”. Ou seja, verificar-se-ia a hipótese prevista no artigo 784.º, n.º 1, al. b), do CPC, que lhes permitiria opor-se à penhora quando os bens concretamente penhorados “só subsidiariamente respondam pela dívida exequenda”.

Mas, também não é assim. Não há, no caso presente, essa subsidiariedade. Os Oponentes, como vimos, vincularam-se ao cumprimento da obrigação exequenda como principais pagadores, o que significa que assumiram essa obrigação solidariamente e não subsidiariamente, e, por outro lado, não são eles os donos dos imóveis hipotecados.

Ora, só o devedor que assuma esta última qualidade pode exercitar esse direito. Isto é, só o “devedor que for dono da coisa hipotecada tem o direito de se opor […] a que outros bens sejam penhorados na execução enquanto se não reconhecer a insuficiência da garantia” - artigo 697.º, do Código Civil. Se não tiver essa qualidade, ainda que seja também devedor, não tem direito a que a penhora se inicie pelos bens alheios[7]. Dito por outras palavras, “a prioridade na penhora dos bens onerados com garantia real só é conferida ao próprio devedor, não podendo beneficiar desse regime condevedores executados; em relação aos condevedores, nada obsta que se penhorem imediatamente os seus bens, sem necessidade de aguardar pela execução dos que se encontrem onerados com garantia real”[8].

Deste modo, e em suma, também este fundamento não pode ser acolhido.

Em síntese: este recurso é de julgar totalmente improcedente e confirmada a decisão de improcedência da oposição, tomada na sentença recorrida.


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III- Dispositivo

Pelas razões expostas, acorda-se em negar provimento ao presente recurso e, por consequência, confirma-se a improcedência da oposição, decidida na sentença recorrida.


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- Em função deste resultado, as custas deste recurso serão suportadas pelos Apelantes- artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.





Porto, 19/3/2024
João Diogo Rodrigues
Fernando Vilares Ferreira
Alberto Taveira
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[1] E ressalvada a subsequente tramitação em ordem à apreciação de eventuais recursos.
[2] “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579, citado no Ac. do STJ de 12.07.2011, Pº 129/07.4.TBPST.S1, já referido.
[3] Neste sentido, Ac. RP de 29/10/2002, Processo n.º 0120267, cujo sumário pode ser consultado em www.dgsi.pt
[4] Neste sentido, ainda que no domínio da legislação anterior, mas, neste aspeto, idêntica, pronunciou-se o Ac. STJ de 10/07/2008, Processo n.º 08B794, consultável em www.dgsi.pt, cujo sumário é o seguinte:
“1. O despacho que, nos termos do nº 2 do artigo 817º do Código de Processo Civil, determina a notificação do exequente para contestar a oposição à execução, não faz caso julgado formal quanto à não verificação dos motivos que poderiam ter conduzido ao indeferimento liminar.
2. É o que resulta do disposto no nº 5 do artigo 234º do Código de Processo Civil, aplicável por força da conjugação do nº 2 do artigo 817º com o nº 1 do artigo 463º do mesmo Código.
3. Tal despacho não impede, assim, que a oposição seja indeferida por extemporaneidade”.
No mesmo sentido, Ac. RLx de 25/05/2023, Processo n.º 3216/14.9T8LRS-C.L1-8, consultável em www.dgsi.pt.
[5] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 321.
[6] Ac.RC de 21/03/2013, Processo n.º 390/11.0TBNLS.C1, consultável em www.dgsi.pt.
[7] Neste sentido, Rui Pinto, A Ação Executiva, 2018, AAFDL, pág. 469.
[8] Ac. TRE de 11/03/2021, Processo n.º 351/19.0T8ANS-B.E1, consultável em www.dgsi.pt.