INSOLVÊNCIA
ACÇÃO COMUM
INUTILIDADE DA LIDE
Sumário

I – Os efeitos da insolvência de sociedade comercial, decretada por tribunal de um Estado-Membro da União Europeia – Luxemburgo –, sobre ação declarativa instaurada em Portugal, regem-se pelo direito nacional português.
II – À luz do Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações declarativas intentadas contra o insolvente, entre os quais a inutilidade da lide, carecem sempre de avaliação casuística dos concretos interesses pretendidos fazer valer.
III – A declaração de insolvência de sociedade comercial, ré em ação declarativa, não implica, por si só, a inutilidade do prosseguimento daquela ação para conhecimento do pedido, traduzido em declaração de extinção de um contrato de mútuo celebrado com a ré, com base em resolução por causa imputável à ré, com a consequente devolução pela autora do montante que a ré lhe entregou a título de capital mutuado, e consequente extinção dos direitos reais de garantia associados ao contrato de mútuo.

Texto Integral

PROCESSO N.º 2325/23.8T8VNG.P1

[Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível de Vila Nova de Gaia - Juiz 3]

Relator: Fernando Vilares Ferreira

Adjuntos: João Proença

Rodrigues Pires

SUMÁRIO:

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EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Desembargadores da 2.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.

RELATÓRIO

1.

Em 15.03.2023, A..., LDA. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra B..., S. A., deduzindo o seguinte pedido:

[a) Ser declarado como resolvido o contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre A. e R. em 9.03.2022, com o consequente cancelamento dos registos de hipoteca que se encontram referidos no artº 23º supra desta p. i., mediante a correspondente restituição do valor mutuado no montante de € 6.893.000,00;

b) Condenar-se a R. ao pagamento da quantia de €87.620,01, a título de indemnização pelo interesse contratual negativo da A.;

c) Condenar-se a R. ao pagamento à A. de uma indemnização correspondente ao aumento dos custos de construção verificados desde a data do seu incumprimento até à data da resolução do contrato, de acordo com os critérios referidos no artº 40º supra desta p. i., tudo conforme vier a ser liquidado em sede de execução de sentença, mas cujo valor de cifra, neste momento, em cerca de €6.096.655,00.

d) Reconhecer-se o direito a operar a compensação por parte da A. entre o valor a devolver pela A. à R. e o valor das indemnizações a que a R. for condenada a pagar a A., tudo nos termos e para os efeitos do disposto nos artº 847º, e seguintes do Código Civil].

Alegou, entre o mais:

- No dia 27.01.2022, A. e R. celebraram um contrato de mútuo, através do qual a R. se obrigava a entregar à A. a quantia de €17.000.000,00 (dezassete milhões de euros), em troca de um conjunto de garantias que a A. deveria prestar;

- A concessão de tal mútuo destinava-se à aquisição e urbanização, por parte da A., de três propriedades situadas em Portugal, distrito do Porto, concelho de Vila Nova de Gaia, freguesia ..., na esquina da Rua ... com a Rua ..., bem como à aquisição e desenvolvimento do “...”;

- Em 27.01.2022, em cumprimento do contrato de mútuo celebrado nessa data, a R. transferiu o montante de €6.803.095,00 para a conta de cliente da sociedade “C...- a favor da A., para que esta pudesse adquirir os imóveis objecto do “...”;

- Para efeitos de formalização do contrato de mútuo celebrado em 27.01.2022, no dia 9.03.2022 foi outorgada entre A. e R., no Cartório Notarial de Lisboa do Notário AA, escritura publica de mútuo com hipoteca;

- Para garantir o pontual e integral pagamento da quantia mutuada, respetivos juros remuneratórios, cláusula penal e despesas, a A. constituiu a favor da R. “hipoteca voluntária sobre os seguintes prédios, sitos na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia:

(i) rústico, denominado Campo, sito em Lugar ..., descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o número ... da referida freguesia - ... ... - com a aquisição registada a seu favor sob a ..., de um de fevereiro de dois mil e vinte e dois, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial atualizado de € 9.044,33;

(ii) misto, denominado ..., sito na Rua ..., números ... a ..., em Lugar ..., descrito na mencionada conservatória sob o número ... da referida freguesia - ... ... - com a aquisição registada a seu favor sob a apresentação número ..., de um de fevereiro de dois mil e vinte e dois, inscrito na respetiva matriz, a parte urbana sob os artigos ... e ..., com os valores patrimoniais respetivos de € 129.199,35 e de € 86.122,75, e a parte rústica sob o artigo ..., com o valor patrimonial atualizado de € 3.223,00;

(iii) urbano, sito na Rua ..., número ..., descrito na mencionada conservatória sob o número ... da referida freguesia - ... ... - com a aquisição registada a seu favor sob a apresentação número ..., de um de fevereiro de dois mil e vinte e dois, inscrito na respetiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial de€ 69.396,60”;

- Assim, em cumprimento do estipulado naquela escritura, as hipotecas foram registadas pela A. a favor de R., como se segue (cfr. Docs. nº 8 a 10, que aqui se juntam e se dão por integralmente reproduzidos):

(a) Edifício ...: AP. ... de 2022/03/15, com a seguinte inscrição:

“CAPITAL: 17,000,000.00 Euros

MONTANTE MÁXIMO ASSEGURADO: 25.330.000,00 Euros

(…)

Fundamento: Garantia de empréstimo.

Taxa de juro anual de 10%, acrescida de 5% por ano, em caso de mora, a título de cláusula penal.

Despesas: EUR 680.000,00.

(b) Edifício ...: AP. ... de 2022/03/15, com a seguinte inscrição:

“CAPITAL: 17,000,000.00 Euros

MONTANTE MÁXIMO ASSEGURADO: 25,330,000.00 Euros.

(…)

Fundamento: Garantia de empréstimo.

Taxa de juro anual de 10%, acrescida de 5% por ano, em caso de mora, título de cláusula penal.

Despesas: EUR 680.000,00.

(c) Prédio ...: AP. ... de 2022/03/15, com a seguinte inscrição:

CAPITAL: 17,000,000.00 Euros

MONTANTE MÁXIMO ASSEGURADO: 25.330.000,00 Euros

(…)

Fundamento: Garantia de empréstimo.

Taxa de juros anual de 10%, acrescida de 5% por ano, em caso de mora, título de cláusula penal

Despesas: EUR 680.000,00”;

- Sucede que, ao contrário do disposto no contrato de mútuo com hipoteca, a R. apenas entregou à A. parte do valor do mútuo acordado, nomeadamente, no montante global de €6.893.000,00 (seis milhões oitocentos e noventa e três mil euros);

- A verdade é que a R. não tem, atualmente, capacidade financeira para entregar à A. a parte do mútuo acordado e que se encontra ainda em falta, no montante de €10.107.000,00;

- Ora, devido ao incumprimento da R. quanto à obrigação assumida no contrato de mútuo de entrega da totalidade do capital mutuado no valor de €17.000.000,00, a A. sofreu, e continua a sofrer, prejuízos incalculáveis, encontrando-se impossibilitada de cumprir pontualmente as suas obrigações, bem como de adquirir ou de desenvolver o “...”;

- Assim e desde logo, a A. encontra-se impossibilitada de recorrer ao crédito bancário para cumprir as suas obrigações e desenvolver o “...”.

- De facto, as avaliações imobiliárias estimam o valor dos imóveis em cerca de €18.710.000,00 (cfr. Doc. nº 12, que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido), sendo que a A. tem já hipotecas registadas em tais imóveis até um montante máximo assegurado de €25.330.000,00, para garantia das obrigações decorrentes do mútuo;

- Os imóveis propriedade da A. são o seu único ativo patrimonial.]

2.

Na contestação que apresentou, a Ré, para além do mais, alegou a sua situação de insolvência, declarada em 6.3.2023 pelo Tribunal da Comarca do Luxemburgo, sustentando que qualquer ação destinada a reconhecer um crédito contra a si (i.e. contra a sua massa insolvente) só podia ter sido instaurada no âmbito desse mesmo processo, sendo da competência exclusiva do referido Tribunal do Luxemburgo (o que, aliás, a A. sabia), o que, por si só, é fundamento de absolvição da Ré da instância, por incompetência absoluta do Tribunal.

3.

Em 31.10.2023 foi prolatado saneador-sentença, com fundamentação e dispositivo que passamos a transcrever:

[Resulta da informação junta aos autos a 03.05.2023 (com cópia da decisão proferida e respetiva tradução), 22.05.2023 e com a contestação, que a ré foi declarada insolvente por sentença proferida em Tribunal do Luxemburgo a 06 de março de 2023, transitada em julgado.

As partes conhecem a informação junta aos autos, a declaração de insolvência da Ré e já se pronunciarem expressamente quanto à lei aplicável e à competência do tribunal – cf. contestação e requerimento de 12.09.2023.

Assim, exerceram já de forma plena o direito ao contraditório.

Importa, assim, analisar da influência da declaração de insolvência da Ré nos termos subsequentes dos presentes autos.

A primeira questão que se coloca, prévia ao saneamento dos autos, é a de verificar qual o direito nacional aplicável aos efeitos da declaração de insolvência da Ré - decretada por Tribunal de um Estado-Membro da União Europeia – o Luxemburgo - sobre a ação dos autos, instaurada após prolação da declaração de insolvência e, subsequentemente, analisar esses efeitos.

Sobre esta matéria rege o Regulamento (UE) 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência.

Convém, aqui, ressalvar que este regulamento não estabelece um Direito Europeu da Insolvência uma vez que os tribunais de cada Estado-Membro continuam a aplicar o direito processual interno às insolvências internacionais, mas regulam a competência internacional e a determinação do direito aplicável, tendo um conjunto de normas que visam a coordenação entre processos instaurados em vários Estados-Membros, a informação dos credores e a reclamação dos respetivos créditos, a adoção de medidas de publicidade, a cooperação e a coordenação em processos de insolvência relativos a membros de grupos de sociedades.

Nestes termos, o Regulamento Europeu sobre insolvência não prejudica, em princípio, a aplicação pelos tribunais portugueses do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em caso de conflito, prevalecem as normas dos Regulamentos, que são fontes do direito hierarquicamente superiores à lei ordinária na ordem jurídica interna.” (cf. Luís Lima Pinheiro, in “Direito Internacional Privado”, Vol. II, Almedina, 2015, pg. 551 e ss.)

Nos termos do artigo 7º/1 do citado Regulamento “Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo (‘Estado de abertura do processo’).

Nos artigos seguintes o Regulamento prevê exceções a esta regra geral.

No que se refere aos efeitos do processo de insolvência sobre ações judiciais estabelece o seu artigo 18º que os “Os efeitos do processo de insolvência sobre uma ação judicial ou sobre um processo de arbitragem pendente relativamente a um bem ou direito pertencente à massa insolvente do devedor regem-se exclusivamente pela lei do  Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente ou em que o Tribunal arbitral tem a sua sede.”.

Assim, no que se refere aos efeitos da declaração de insolvência de uma das partes rege o direito do estado em que a ação se encontra pendente, in casu, o direito nacional.

Do exposto resulta que é a lei processual nacional que determina se o processo deve ou não prosseguir e, a prosseguir, em que termos.

Como se refere no Acórdão do STJ, de 12.07.2018, proferido no processo nº 2153/08.0TVLSB.L1.S1, que se segue de perto, quando cita Miguel Virgòs/Francisco Garcimartín (The European Insolvency Regulation: Law and Practice, Kluwer, 2004, pg. 140 “Esta exceção à competência da lei reguladora da insolvência é justificada fundamentalmente por duas razões. Por um lado, nas ações declarativas não está em causa o princípio da ação coletiva aplicável aos processos de insolvência. Por outro, a estreita vinculação dessas ações com o regime processual do Estado em que estão pendentes.” Conclui-se, assim, que a norma do artigo 15º, do Regulamento nº 1346/2000, ao mandar aplicar o direito processual do Estado no qual a acção (não executiva) se encontra pendente, admite como possível que, em consequência da declaração de insolvência de devedor, na referida acção pendente seja decretada a extinção da instância, ou a suspensão da instância, ou ainda que seja admitida a prossecução da instância com medidas limitativas do poder do devedor.”

No caso em análise neste citado acórdão, proferido no âmbito do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, o Tribunal de Justiça da União Europeia proferiu acórdão, em 06.06.2018 (no processo C-250/17), com a seguinte decisão: “O artigo 15.° do Regulamento (CE) n.° 1346/2000 do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência, deve ser interpretado no sentido de que se aplica a uma ação pendente num órgão jurisdicional de um Estado-Membro que tenha por objeto a condenação de um devedor no pagamento de uma quantia pecuniária, devida por força de um contrato de prestação de serviços, e de uma indemnização pecuniária por incumprimento da mesma obrigação contratual, no caso de este devedor ter sido declarado insolvente num processo de insolvência aberto noutro Estado-Membro e de esta declaração de insolvência abranger todo o património do referido devedor.”

Nesse douto acórdão conclui-se que os processos de execução não estão abrangidos pelo âmbito de aplicação do artigo 15° do Regulamento n° 1346/2000, mas já o estão as ações declarativas.

No caso dos autos está em causa uma ação natureza declarativa em que se pretende o reconhecimento de direito da Autora à resolução de contrato, à condenação da Ré no pagamento de quantias pecuniárias e ao direito de fazer operar o instituto da compensação de créditos.

Por todo o exposto, conclui-se que o regime estabelecido no artigo 18º do Regulamento nº 2015/848 é aplicável nos autos e, consequentemente, os efeitos da declaração de insolvência da Ré devedora regem-se pelo direito do Estado-Membro em que a referida ação se encontra pendente, ou seja, pelo direito português.

Assim, é aplicável nos autos o regime estabelecido pelo Código das Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Nos termos deste diploma a declaração de insolvência acarreta:

- A privação dos poderes de administração e disposição do insolvente – artigo 81º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

- A necessidade de os credores procederem a reclamação de créditos no próprio processo de insolvência, mesmo que dotados de sentença definitiva que reconheça a existência do seu crédito – artigo 128º/5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Atendendo a que a ação dos autos versa sobre direitos patrimoniais, verifica-se uma ilegitimidade ad causam superveniente da ré atento o disposto no artigo 26º/3 do Código de Processo Civil.

Face ao exposto, a utilidade que, para a Autora, podia advir da presente ação, era a de vir a ser paga dos montantes referentes a créditos que possua.

Sucede, porém, que a Ré foi declarada insolvente por sentença que transitou em julgado.

Tendo sido decretada a insolvência, qualquer crédito, para ser feito valer contra a Ré, terá de ser reclamado no próprio processo de insolvência, por virtude do princípio da universalidade de tal processo, conforme resulta do disposto no artigo 128º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

Assim, mesmo a proceder a presente ação, os créditos nela reconhecidos de nada valerão se e na medida em que não tiverem sido oportunamente reclamados no processo de insolvência, já que nem os créditos judicialmente reconhecidos estão dispensados de reclamação, segundo o nº 3 do citado artigo 128º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Mais, a decisão que pudesse ser proferida nos presentes autos seria inoperante perante os demais credores e massa insolvente, nos termos do disposto no artigo 173º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

De facto, nos autos tem plena aplicabilidade a doutrina constante do acórdão uniformizador nº 1/2014, de 8 de maio de 2013, nos termos do qual: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287º do Código de Processo Civil”.

Neste sentido decidiu o citado Acórdão do STJ, de 12.07.2018, proferido no processo nº 2153/08.0TVLSB.L1.S1, onde se pode ler que: “Os argumentos relativos à não aplicabilidade do AUJ nº 1/2014 quando a insolvência tenha sido decretada em tribunal estrangeiro, fundam-se no pressuposto de que a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide prejudicaria irremediavelmente a satisfação do interesse do credor, que não poderia ser tutelado com a reclamação do respectivo crédito junto do tribunal do outro Estado-Membro onde a insolvência foi decretada; e, ainda, de que tal extinção da instância inviabilizaria qualquer possibilidade de efectiva satisfação do interesse do credor, designadamente pela via coerciva. (…) A norma de conflitos do artigo 15.º do Regulamento ao remeter para a lei do Estado-Membro, exclui qualquer remissão para as normas de DIP desse Estado-Membro, como acima se disse, pelo que é aplicável aos processos pendentes o mesmo regime legal, seja a insolvência decretada por um tribunal nacional ou por um tribunal estrangeiro. O CIRE não faz qualquer diferenciação positiva, pelo que a tratar-se de forma diferente as duas situações, geraria, face à lei portuguesa, uma violação do princípio da igualdade, potencialmente inconstitucional (artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa). Assim, a uniformização jurisprudencial relativa à interpretação do CIRE, em princípio, é aplicável quer a insolvência tenha sido decretada por um tribunal português ou por um tribunal estrangeiro membro da UE. (…) O regime da insolvência aplicado aos comerciantes, vigente no … Luxemburgo, é um regime de liquidação, onde vigoram os princípios da universalidade e da igualdade dos credores, sendo a declaração de falência da competência do Tribunal do Comércio (…) O falido fica inibido de pleno direito de administrar os seus bens, independentemente do país onde se encontrem (…) Todos os credores são chamados à insolvência para ali reclamarem os seus créditos, apresentando com a reclamação os respetivos títulos (…) O artigo 540.º/1.º deste Código – o luxemburguês - prevê expressamente que caso esteja em julgamento num tribunal estrangeiro um litígio com reflexos sobre o passivo da falência, a decisão que aprecia a contestação do crédito reclamado no processo de falência, não pode sofrer atrasos por essa razão, evidenciando que a decisão estrangeira não interfere, nem é imprescindível para a resolução da contestação do crédito reclamado. Este preceito indicia claramente que não se prevê no regime da insolvência luxemburguês a possibilidade do credor com crédito reconhecido por decisão judicial estrangeira, beneficiar de qualquer direito a ver automaticamente o seu crédito reconhecido ou a dispensá-lo de o reclamar no âmbito do processo de falência. (…) Resulta, assim, do regime de falência luxemburguês trazido aos autos, semelhanças com o regime insolvencial português, no que concerne ao princípio da universalidade, da igualdade de credores, da obrigatoriedade de reclamação dos créditos no âmbito da insolvência e das reclamações sobre as mesmas serem decididas no âmbito da mesma, de forma urgente, com contraditório, sem que a existência de reconhecimento do crédito por decisão anterior, incluindo a proferida por um tribunal estrangeiro, influa de modo automático e definitivo na decisão que julgue a contestação oposta à reclamação do crédito, impondo, consequentemente, a produção de prova no âmbito do processo que julga aquela contestação. (…) Conclui-se, assim, que não existe fundamento legal que justifique a não aplicação daquela jurisprudência uniformizadora quando a declaração de insolvência foi proferida por um tribunal luxemburguês.”.

Por todo o exposto, impõe-se concluir que a presente ação perdeu toda e qualquer utilidade com a declaração de insolvência da Ré, pelo que decido julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º/e) do Código de Processo Civil.

Custas por Autora e massa insolvente da Ré em partes iguais – artigo 536º/2/e) do Código de Processo Civil (tendo em conta que não resulta dos autos o conhecimento da declaração de insolvência da Ré por parte da Autora).]

4.

Inconformada, a Autora interpôs o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo, assente nas seguintes CONCLUSÕES:

1.ª A sentença recorrida decidiu julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, face à declaração de insolvência da Ré por sentença proferida pelo Tribunal do Luxemburgo em 6 de março de 2023, transitada em julgado;

2.ª Todavia, tal decisão não teve em conta o pedido formulado pela Apelante na al. a) do seu petitório, nomeadamente, que seja “declarado como resolvido o contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre A. e R. em 9.03.2022, com o consequente cancelamento dos registos de hipoteca que se encontram referidos no artº 23º supra desta p.i., mediante a correspondente restituição do valor mutuado no montante de € 6.893.000,00”;

3.ª De facto, a apreciação deste pedido constitui manifestamente matéria de direitos reais sobre imóveis e matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal, uma vez que, caso o mesmo venha a ser julgado procedente, implica o consequente cancelamento dos registos de hipoteca que se encontram referidos no artº 23º da p.i.;

4.ª Em matéria de direitos reais sobre imóveis e matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal, são exclusivamente competentes os tribunais portugueses, ex vi do disposto no artº 24º, nº 1 e 4 do Reg. (CE) nº 1215/2012, de 12/12; artº 14º do Reg. (CE) nº 2015/848 e artº 63º, als. a) e c) do C.P.C.;

5.ª Ou seja, o pedido formulado na al. a) extravasa manifestamente o âmbito de competência do Tribunal do Luxemburgo, sendo a sua apreciação da competência exclusiva dos tribunais portugueses;

6.ª Acresce que, também não corresponde à verdade a conclusão em que se estriba a sentença recorrida de que “a utilidade que, para a Autora, podia advir da presente acção, era de vir a ser paga dos montantes referentes a créditos que possua”, pelo que “impõe-se concluir que a presente acção perdeu toda e qualquer utilidade com a declaração de insolvência da Ré (…)”;

7.ª Isto porquanto, a utilidade que a Apelante pretende retirar da acção não se esgota no facto de poder vir a ser paga dos montantes referentes a eventuais créditos que possua sobre a Ré, na medida em que a Apelante também peticiona, no pedido formulado na al. a), o consequente cancelamento das hipotecas que se encontram registadas – por manifesto excesso – nos imóveis;

8.ª Só assim se permitindo que a Apelante se possa financiar junto da Banca com vista ao desenvolvimento do “...”, tal como referido no artº 49º da p.i., nisto consistindo também a utilidade do pedido formulado na al. a);

9.ª Assim, ao considerar que, face à declaração de insolvência da Ré, a presente instância se tornou supervenientemente inútil em relação a todos os pedidos formulados, por entender que os eventuais créditos da Apelante têm que ser reclamados naquele processo de insolvência, a decisão recorrida violou, relativamente ao pedido formulado na referida al. a), os artºs 24º, nº 1 e 4 do Reg. (CE) nº 1215/2012, de 12/12; artº 14º do Reg. (CE) nº 2015/848 e artº 63º, als. a) e c) do C.P.C. que atribuem competência exclusiva aos tribunais portugueses para dirimir tal questão;

10.ª Assim, não sendo possível a apensação destes autos ao processo de insolvência que corre os seus termos pelo Luxemburgo, não resta outra solução senão a de mandar prosseguir os autos para a apreciação do pedido formulado na al. a), face ao que se dispõe no artº 85º do CIRE, disposição esta que a decisão recorrida também violou;

11.ª Acresce ainda que, tendo em conta a competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses para apreciar o pedido formulado na al. a), a sentença recorrida, ao declarar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide com base na declaração de insolvência da Ré, remetendo a dedução de todos os pedidos formulados pela Apelante nesta acção para uma eventual reclamação de créditos naquele processo de insolvência, acabou por deixar a Apelante numa situação em que tal pedido fica sem tutela jurisdicional efectiva, em manifesta violação do disposto no artº 20º da Constituição da Republica Portuguesa ou no artº 2º, nº 2 do C.P.C.;

12.ª Quanto à eventual ilegitimidade ad causam superveniente da ré com a sua declaração de insolvência, suscitada na decisão recorrida, sempre se dirá ainda que tal ilegitimidade ficou sanada através da intervenção principal espontânea nestes autos da R. em insolvência, devidamente representada pelos seus dois administradores BB e CC, facto este que a decisão recorrida não reconheceu, com manifesta violação do disposto no artº 81º, nº 1 e artº 85º, nº 3, ambos do CIRE, e artº 26º do C.P.C.


*

Terminou, pedindo a revogação da decisão recorrida, com a consequente substituição por outra que mande prosseguir a tramitação para apreciação do pedido formulado sob a respetiva alínea a).

5.

Contra-alegou a Ré, pugnando pela improcedência do recurso, formulando para tanto as seguintes conclusões:

A. O recurso sob resposta tem por objeto a Sentença proferida pelo Tribunal a quo em 31.10.2023, nos termos da qual se concluiu que a ação intentada “(…) perdeu toda e qualquer utilidade com a declaração de insolvência da Ré (…)”, tendo, consequentemente, sido determinada a “(…) extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, nos termos do artigo 277º/e) do Código de Processo Civil.”

B. Entende a Recorrente que a fundamentação da Sentença Recorrida “(…) se aplica apenas aos pedidos formulados nas als b) a d) (…)” e que o pedido formulado na alínea a) do petitório “(…) não obstante versar sobre direitos patrimoniais, não se limita ao pedido de resolução do contrato, implicando também, caso venha a ser julgado procedente, o consequente cancelamento dos registos de hipoteca (…) que constitui manifestamente matéria de direitos reais sobre imóveis e matéria de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal”.

C. Defende ainda que, ao decidir nos termos descritos, a Sentença Recorrida lhe veda o acesso ao Direito e aos Tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e o direito de garantia de acesso aos tribunais previstos, respetivamente, no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”) e no n.º 2 do artigo 2.º do CPC.

D. A Recorrente intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra a Recorrida, em 15.03.2023, com vista à resolução da Contrato de Mútuo com Hipoteca celebrado entre a Recorrente e Recorrida em 9.03.2022 e consequente (i) cancelamento da hipoteca constituída sobre os imóveis melhor identificados no artigo 17.º da p. i., (ii) condenação da Recorrida no pagamento de indemnizações destinadas a ressarcir os danos, alegadamente, sofridos pela Recorrente em virtude de incumprimento contratual, e (iii) compensação entre o valor das peticionadas indemnizações e o valor que a Recorrente teria de restituir à Recorrida por efeito da resolução contratual.

E. À data da propositura da ação a Recorrida já havia sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado, encontrando-se o respetivo processo de insolvência a correr termos no Tribunal da Comarca do Luxemburgo, não existindo dúvidas da aplicabilidade da Lei Luxemburguesa ao referido processo de insolvência (o que não foi questionado pela Recorrente!), conforme resulta do nº. 1 e das alíneas g) e h) do n.º 2 do artigo 7.º do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015.

F. Da articulação das normas do “Regulamento 2015/848” e da Lei Luxemburguesa resulta que a competência para admitir ou rejeitar o reconhecimento de créditos sobre a massa insolvente pertence, em exclusivo, ao Tribunal da Comarca do Luxemburgo, onde corre o processo de insolvência da Recorrida, pelo que os pedidos deduzidos pela Recorrente nas alíneas b) a d) do petitório perante o Tribunal a quo infringem as regras de competência internacional, o que também não foi questionado pela Recorrente.

G. O recurso sob resposta não foi dirigido à parte da sentença que determinou a absolvição da Recorrida da instância quanto aos pedidos nas alíneas pela Recorrente nas alíneas b) a d), que, assim, transitou em julgado.

H. Estando o pedido formulado na alínea a) do petitório dependente dos demais, desde logo do reconhecimento de um hipotético direito de crédito da Recorrente sobre a Recorrida, não podendo o Tribunal a quo apreciar os demais pedidos, também o pedido formulado na alínea a) não pode ser conhecido.

I. O pedido formulado na alínea a), por si só, teria consequência relevantes para a massa insolvente da Recorrida, pelo que a sua apreciação e eventual reconhecimento não poderia ocorrer fora do processo de insolvência da Recorrida (no Luxemburgo).

J. Não tendo a Recorrente demonstrado nem sequer alegado ter deduzido tais pedidos no processo de insolvência da Recorrida, e sendo inequívoca a competência do Tribunal do Luxemburgo para apreciar pedidos de reconhecimento de créditos sobre a massa insolvente da Recorrida (e/ou que tenham impacto patrimonial na massa insolvente), a cumulação de pedidos efetuada na p.i. é inadmissível por ofender regras de competência internacional.

K. Pelo que o pedido efetuado na alínea a) do petitório apenas poderia ser apreciado conjuntamente com os demais pelo Tribunal do Luxemburgo; isolado dos demais, o mesmo revela-se inepto/manifestamente improcedente porquanto a resolução de contrato de mútuo com garantia hipotecária, pelo devedor, com fundamento em incumprimento do mutuante por alegadamente ter emprestado parte do valor máximo que supostamente deveria mutuar ao mutuário, nunca poderia ter como efeito o cancelamento da hipoteca que garante o reembolso daquela quantia.

L. Sem prescindir quanto ao exposto, cumpre salientar que quer o Tribunal a quo quer a Recorrente consideram a lei portuguesa aplicável ao caso dos autos: o Tribunal a quo por via da aplicação do artigo 18.º do Regulamento 2015/858, a Recorrida por considerar aplicável o artigo 14.º do mesmo diploma.

M. Contrariamente ao que entende a Recorrente, o peticionado (e eventual) cancelamento da hipoteca nada tem que ver com a validade de inscrições em registos públicos nem com matéria de direitos reais stricto sensu, uma vez que, tal como a própria alega, o cancelamento do registo das hipotecas sempre estaria dependente da prévia resolução do contrato de mútuo por alegado incumprimento da Recorrida, pelo que tal pedido se situa no puro domínio da responsabilidade contratual.

N. Além do mais, e conforme resulta do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência citado na Sentença Recorrida, tendo efeitos de conteúdo patrimonial que se repercutiriam diretamente sobre a massa insolvente, o pedido de resolução do contrato de mútuo e de cancelamento das hipotecas não poderia deixar de ser exercidos no processo de insolvência da Recorrida.

O. Tratando-se este – como bem se reconhece na Sentença Recorrida – de um pedido de reconhecimento de direitos patrimoniais sobre a massa insolvente, a sua apreciação seria da competência exclusiva do Tribunal do Luxemburgo, por ser este o Tribunal onde corre o processo de insolvência da Recorrida, sob pena de, a assim não se considerar, estar aberta a porta para que a Recorrente pudesse ver reconhecido um direito com natureza patrimonial sobre a massa insolvente da Recorrida, sem que o mesmo tivesse sido reclamado – perante o Tribunal competente para o efeito – no respetivo processo de insolvência, em prejuízo dos demais credores e em violação do princípio par conditio creditorum e, por esse motivo, em manifesta fraude à lei.

P. Acresce que, mesmo de acordo com as normas internas do direito português relativas aos efeitos do processo de insolvência, e tal como preconizado na Sentença Recorrida, a extinção/reconhecimento do crédito que a Recorrente pretende fazer operar perante a massa insolvente sempre estaria sujeita à apreciação do Tribunal Luxemburguês, onde corre o processo de insolvência da Recorrida, pelo que a Sentença Recorrida que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente se mostra correta.

Q. Conforme destacado pelo Tribunal a quo, e tal como resulta do entendimento jurisprudencial citado Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014 e, entre outros, do citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018 (e do Acórdão da Relação de Lisboa por ele confirmado), transitada a sentença que declara a insolvência da Recorrida – e independentemente desta ser decretada por tribunal português ou de outro Estado-Membro – as ações declarativas pendentes destinadas a obter o reconhecimento de um crédito sobre a insolvente ficam impossibilitadas de alcançar o seu efeito útil, devendo, por isso, ser decretada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.

R. Visando a resolução do contrato de mútuo peticionado e cancelamento das hipotecas a extinção, ainda que parcial, de um crédito detido pela massa insolvente da Recorrida sobre a Recorrente e das garantias patrimoniais subjacente a esse crédito, tal pretensão não poderia ser atendida fora do processo de insolvência desta.

S. Pelo que, ainda que quanto aos efeitos da insolvência sobre as ações declarativas pendentes fosse aplicável a lei portuguesa, o meio processualmente adequado para tutela dos interesses da Recorrente sempre seria a reclamação de créditos no Tribunal da Comarca do Luxemburgo onde corre o processo de insolvência da Recorrida.

T. Contrariamente ao alegado pela Recorrente, ao não conhecer o pedido deduzido na alínea a) do seu petitório, o Tribunal a quo não lhe negou o acesso à justiça nem à tutela jurisdicional efetiva porquanto prevendo o regime da insolvência do Luxemburgo a possibilidade da Recorrente ali ver apreciadas as suas pretensões contra a massa insolvente da Recorrida com garantia de contraditório e urgência, é patente que a Sentença Recorrida não determinou qualquer negação de acesso ao direito.

U. A mesma questão já foi apreciada pelo citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.07.2018 e pelo Acórdão da Relação de Lisboa por ele confirmado (integralmente aplicáveis ao caso dos autos), tendo-se concluído pela inexistência de qualquer violação do acesso ao direito por parte da Recorrente uma vez que não resultou demonstrado que o regime jurídico luxemburguês carecia de garantias quanto à possibilidade de reclamação e quanto a tutela do direito da Recorrente (conforme citado no ponto 50 do presente articulado).

V. Não enfermando a Sentença Recorrida de qualquer vício, não poderá colher a nulidade por violação do direito fundamental do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva invocada pela Recorrente.

W. A não sujeição das pretensões da Recorrente ao crivo do Tribunal do Luxemburgo é demonstradora da finalidade da presente ação, que configura um mero expediente com vista a que a Recorrida não recupere o seu crédito (através de execução já em curso), mediante obtenção do reconhecimento de um alegado crédito não reclamado perante o tribunal exclusivamente competente para o efeito, em inobservância das regras ali aplicáveis aos demais credores da Recorrida, pelo que a Sentença Recorrida se mostra acertada não merecendo qualquer censura.


II.

OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do CPCivil).

Assim, partindo das conclusões das alegações apresentadas pela Apelante, o que importa apreciar e decidir nesta instância recursiva é se a solução adotada pela decisão recorrida, no sentido da inutilidade da lide em consequência de declaração da insolvência da Ré por tribunal do Luxemburgo, embora aceite no que concerne aos pedidos deduzidos sob as respetivas alíneas b) a d), é desprovida de fundamento legal no respeitante ao pedido da alínea a).


III.

FUNDAMENTAÇÃO

1.

OS FACTOS

Com relevância para a decisão, a factualidade assente reconduz-se à vertida na decisão recorrida, assim como à tramitação processual de que demos sumariamente conta no Relatório supra.

2.

OS FACTOS E O DIREITO

2.1.

Antes de mais, importa dizer que o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE) “não regula de forma sistematizada os efeitos da declaração de insolvência sobre as ações declarativas intentadas contra o insolvente, o que se compreende, porque estas ações não colocam em crise, pelo menos de forma imediata, o princípio par conditio creditorum, ao contrário do que pode suceder com as ações executivas”[1].

Tal não significa, porém, que a declaração de insolvência não possa afetar as ditas ações declarativas, o que sempre carecerá de avaliação casuística dos concretos interesses pretendidos fazer valer.

As considerações teóricas explanadas pela decisão recorrida em torno da temática sob discussão, desde logo quanto à aplicação do direito nacional em face de uma situação de insolvência declarada por tribunal de Estado-Membro da União Europeia, e partindo da norma do art. 128.º, n.º 5, do CIRE – “(…) mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento” –, refletem o posicionamento dominante da doutrina e da jurisprudência no nosso ordenamento jurídico e, como tal, é sem esforço que as subscrevemos.

Da leitura das alegações/conclusões do recurso resulta que a própria Apelante partilha do dito posicionamento teórico, o que a leva a aceitar como boa a decisão no respeitante aos pedidos deduzidos sob as respetivas alíneas b) a d).

Na base do entendimento que é pacífico está a ideia de que “os processos de natureza falimentar têm uma vocação universalista, no sentido de induzirem a intervenção de todos os interessados [entre os quais ocupam um lugar cimeiro os credores], quer para se discutir e aprovar uma qualquer medida de recuperação de empresa, quer para se apreciarem os fundamentos de que depende a declaração da falência e o consequente apuramento do passivo e liquidação do ativo”. A dita vocação universalista “constitui a principal característica distintiva relativamente aos processos comuns declarativos ou executivos em que, ao invés, predomina a legitimidade ativa singular, em que cada interessado busca a tutela dos respetivos interesses sem que aí se cuide das consequências que podem emergir da condenação do devedor ou da execução do respetivo património e em que o processo tem como objetivo fundamental a tutela desse interesse exclusivo[2].

Daí que bem se compreenda que sendo apenas pagos os créditos verificados no processo de insolvência, de nada servirá o prosseguimento de ações para pagamento de créditos, mesmo dos não reclamados no processo de insolvência.

Porém, a Autora/Apelante vem defender que o concreto pedido deduzido sob respetiva alínea a), traduzido em que seja “declarado como resolvido o contrato de mútuo com hipoteca celebrado entre A. e R. em 9.03.2022, com o consequente cancelamento dos registos de hipoteca que se encontram referidos no artº 23º supra desta p. i., mediante a correspondente restituição do valor mutuado no montante de € 6.893.000,00”, não representa propriamente pretensão no sentido de obter o pagamento de um crédito pecuniário fora do processo de insolvência, visando antes obter declaração judicial de resolução de contrato de mútuo celebrado entre as partes, por causa imputável à sociedade Ré, agora insolvente, com a consequente obrigação de a própria Autora restituir à Ré o montante pecuniário que esta lhe entregou por via do contrato, e com a consequente extinção das garantias prestadas pela Autora, nomeadamente por via de hipoteca constituída sobre imóveis.

Pese embora não possamos aceitar o entendimento manifestado pela Apelante a dado passo, no sentido de que estamos perante pretensão em que se discuta a título principal matéria de direitos sobre imóveis e de validade de inscrições em registos públicos conservados em Portugal, para as quais “são exclusivamente competentes os tribunais portugueses, ex vi do disposto no artº 24º, nº 1 e 4 do Reg. (CE) nº 1215/2012, de 12/12, artº 14º do Reg. (CE) nº 2015/848 e artº 63º, als. a) e c) do C.P.C.”, porquanto do que se trata é principalmente de uma questão contratual, somos levados a concordar que a declaração de insolvência da Ré não tornou inútil o prosseguimento dos autos para apreciar a pretensão em questão.

Com efeito, não podemos acompanhar a decisão recorrida quando afirma que a utilidade que, para a Autora, podia advir da presente ação, era apenas a de vir a ser paga dos montantes referentes a créditos que possua.

O interesse da Autora, manifestado por via do pedido formulado sob a alínea a), vai muito para além do exercício do direito de se ver paga de montantes pecuniários pela Ré.

Obter a declaração de extinção de um contrato de mútuo celebrado com a Ré, com base em resolução por causa imputável à Ré, com a consequente devolução pela Autora do montante que a Ré lhe entregou a título de capital mutuado, e consequente extinção dos direitos reais de garantia associados ao contrato de mútuo, para além de legítimo, de modo algum ficou prejudicado ou precludido pela declaração de insolvência da Ré, sendo que a legitimidade ad causam resulta agora assegurada com a intervenção espontânea dos administradores da Ré Insolvente, BB e CC.

Com tal conteúdo e alcance jamais a pretensão da Autora poderia, a nosso ver, resultar satisfeita por via da reclamação de créditos no processo de insolvência.

Por último, ao invés do que parece defender a Apelada em sede de contra-alegações, o pedido deduzido sob a alínea a) de modo algum se encontra na dependência dos demais deduzidos pela Autora. O que se verifica é exatamente o oposto: o pedido formulado sob a alínea a) assume-se claramente como principal em face dos formulados sob as alíneas b) a d), porquanto estes integram pretensões indemnizatórias fundadas na resolução contratual que se pretende declarada. E daí que o conhecimento do primeiro dos ditos pedidos em nada possa resultar prejudicado pelo não conhecimento dos demais.

Concluímos, pois, pela procedência do recurso, o que justifica a revogação da decisão recorrida, devendo consequentemente a tramitação prosseguir em 1.ª instância, limitada agora ao pedido deduzido pela Autora sob a respetiva alínea a).

2.2.

Por ter ficado vencida, a Apelada constitui-se na obrigação de suportar as custas do recurso (cf. arts. 527.º, nºs 1 e 2 do CPCivil, e 1.º do RCProcesuais).


IV.

DECISÃO

Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso procedente e, consequentemente, decidimos:
a) Revogar a decisão recorrida;
b) Determinar o prosseguimento da tramitação em 1.ª instância limitada ao pedido deduzido pela Autora sob a respetiva alínea a); e
c) Condenar a Apelada no pagamento das custas deste recurso.


***
Porto, 19 de março de 2024
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
João Proença
Rodrigues Pires
________________
[1] Cf. ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA, Os efeitos externos da insolvência: as acções pendentes contra o insolvente”, Julgar n.º 9, acessível em https://julgar.pt/os-efeitos-externos-da-insolvencia-as-accoes-pendentes-contra-o-insolvente/.
[2] Cf. ANTÓNIO SANTOS ABRANTES GERALDES, Efeitos Externos dos Processo de Recuperação de Empresa e de Falência, estudo inédito, 1998, fornecido aos auditores de justiça do Centro de Estudos Judiciários, apud ARTUR DIONÍSIO OLIVEIRA, ob. cit.