QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ACUSAÇÃO
DESPACHO DE PRONÚNCIA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
1 – O Tribunal não está limitado à qualificação jurídica formulada na peça acusatória.
2 - A qualificação jurídica pelo Tribunal é totalmente livre, independentemente da agravação dos limites máximos das sanções, posto que essa agravação não decorra da inclusão de qualquer facto novo.
2 – Apenas uma alteração dos factos que sirva de fundamento a uma diferente qualificação jurídica implica a qualificação daquela alteração como substancial.

Texto Integral

Em conferência, acordam os Juízes na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. Vem o presente recurso interposto pelo arguido AA do despacho judicial de 03.11.2023, proferido pelo Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 1, que julgou improcedente a arguição de nulidade do despacho de pronúncia por alteração substancial dos factos.
2. Para tanto, formulou o arguido as seguintes conclusões:
1. O presente recurso é admissível, tempestivo, e deverá ter efeito suspensivo com subida imediata, porquanto versa sobre arguição de nulidade do disposto no n° 3 do artigo 310° do CPP, e em conformidade com o disposto nos artigos 309°, n° 2, 399°, 401°, n° 1, al. b), 407°, n° 2, al. 1), 408°, n° 2, al. b), 410°, 411° e 412°, todos do Código de Processo Penal.
2. O despacho de 03.11.2023 encontra-se ferido de nulidade nos termos do disposto no artigo 615°, n° 1, al c) do CPC, porquanto contém ambiguidades e obscuridades (premissas erróneas) que tornam ininteligível a decisão.
3. O arguido alegou tempestivamente a alteração substancial dos factos, e a inerente nulidade do despacho de pronúncia.
4. Sendo que o referido despacho de pronúncia é efetivamente nulo, porquanto pronuncia o arguido por mais dois crimes, o que comporta uma alteração substancial dos factos, nos termos do disposto no n° 1 do artigo 309° do CPP, e artigo 50° do CPP (assim como o despacho do Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 285°, n° 4 do CPP).
5. E, a acusação particular, nos termos em como se encontra formulada, contendo nulidades insupríveis pelo Estado, é ela também nula, porquanto não cumpridora dos requisitos 284°, n° 2 e 283°, n° 3, ambos do CPP.
Termos em que deverá ser dado provimento ao presente recurso, fazendo-se assim a costumada JUSTIÇA!!
3. O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela respetiva improcedência, e formulando as seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida, numa apreciação inquestionavelmente sintética, mas completa e elucidativa da questão de fundo suscitada pelo ora recorrente (saber se o Juiz de Instrução, em sede de pronúncia, podia ou não imputar ao arguido os três crimes de difamação, ou se estava limitado à qualificação jurídica formulada na acusação particular (de apenas um desses crimes), não contém qualquer obscuridade ou ambiguidade, pelo que não enferma de qualquer nulidade.
2. Não se verifica qualquer nulidade da acusação particular caso a qualificação jurídico-penal efetuada, a final não seja consoante com os factos elencados na mesma.
3. A acusação particular deduzida nestes autos contém todos os elementos enunciados no artigo 283.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, pelo que não enferma de qualquer nulidade.
4. À luz dos artigos 1.º, n.ºs 1, al.s a) e f) e 303.º, n.º 3, a alteração substancial de factos por agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pressupõe que essa agravação decorra da adição ou modificação dos factos enunciados na acusação.
5. A mera alteração da qualificação jurídica nunca constitui alteração substancial dos factos, pois que não avulta de qualquer alteração aos factos.
6. A acusação pública e o despacho de pronúncia, proferidos nestes autos dão integralmente por reproduzida a factualidade que havia sido elencada na acusação particular, apenas divergindo da mesma no que se refere à qualificação jurídico penal.
7. Não houve, assim, nem na acusação pública, nem no despacho de pronúncia, qualquer alteração dos factos descritos na acusação particular, a que possa aplicar-se, o regime do artigo 303.º, n.º 3 ou 309.º do Código de Processo Penal, simplesmente porque os factos se mantiveram imutáveis em todos aqueles momentos.
8. O que houve foi uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação particular, sendo que quanto a ela o arguido teve oportunidade de exercer todos os direitos de defesa que a lei lhe confere.
9. O despacho de pronúncia não enferma, assim, de qualquer nulidade, nomeadamente com fundamento na alteração substancial de factos, pelo que não merece qualquer censura o despacho recorrido de 03-11-2023 que indeferiu a aludida nulidade, que deverá, assim, manter-se.
Deste modo, entendemos que deverá ser negado provimento ao recurso apresentado pelo arguido, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
4. Responderam ainda ao recurso os assistentes BB, CC, e DD, apresentando as suas contra-alegações e formulando as seguintes conclusões:
a. A decisão recorrida não merece qualquer censura, porquanto efetuou uma correta ponderação da prova reunida nos autos, como bem se explana na mesma, não se verificando quaisquer das apontadas nulidades por parte do recorrente.
b. Tratando-se de um crime particular, tendo sido deduzida acusação pelos assistentes, acompanhada nos seus precisos termos pelo Ministério Público, e seguindo-se uma decisão instrutória de pronúncia, por esses factos e crime, tal decisão é irrecorrível, conforme consigna o n.º 1, do art.º 310.º do CPP.
c. O facto de se ter registado que o recorrente praticou três crimes na pessoa de cada assistente e não apenas um, constitui, apenas e tão só, uma diferente qualificação pelos mesmo factos constantes da acusação particular pelo que não integra a alteração substancial dos factos a que se refere o art.º 309.º, do CPP.
d. Como sustentado no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.09.2009, proferido no proc. n.º 169/07.3GCBNV.S1, para “(...) ocorrer uma alteração de factos é necessário que aos factos constantes da acusação ou da pronúncia outros se acrescentem ou substituam, ou, pelo contrário, se excluam alguns deles. Não ocorre uma alteração dos factos quando o tribunal qualifica de maneira diversa, sem os modificar, os factos descritos na acusação (...)”.
e. Estamos, assim, perante uma legal alteração da qualificação jurídica pelos mesmos factos constantes da acusação particular.
f. Mais, a diferente qualificação jurídica dos factos não conduz, contrariamente ao que sustenta o recorrente, à admissibilidade do recurso.
g. Existe, pois, a necessária dupla conforme em relação aos factos, a qual não é abalada pela sua diversa qualificação jurídica, e a verificação dessa dupla conformidade exclui, salvo outro entendimento, a recorribilidade da decisão instrutória.
h. O normativo legal vertido no n.º 1, do art.º 310.º, do CPP, é bem cristalino quando se refere aos mesmos factos.
i. Em suma, é incontroverso, in casu, que, estamos perante a pronúncia do recorrente por factos idênticos aos da acusação particular sustentados pelo Ministério Público, inexistindo qualquer alteração destes, mas apenas da sua qualificação jurídica.
j. Pelo que, nos termos conjugados dos arts. 303.º, 309.º e 310.º, todos do CPP, a decisão recorrida é irrecorrível.
k. Por outro lado, a acusação deduzida pelos assistentes não é nula, porquanto cumpriu com todos os requisitos dispostos no art.º 283.º do CPP.
l. O despacho de 03.11.2023 não é assim nulo, porquanto não contém qualquer ambiguidade e ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
m. O facto de na acusação particular evidenciar um crime de difamação contra o recorrente, e o Ministério Público registar “(...) que o arguido praticou três crimes, na pessoa de cada assistente e não apenas um (...)”, não poderá falar-se em imputação de crime diverso, nem em agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pois que os três crimes imputados têm a mesma moldura dos que já vinham imputados na acusação, reconduzindo-se a situação a uma mera questão de “afinação” da qualificação jurídica dos factos acusados.
n. De todo o modo, esta alteração não encaixa no crime mais grave, nem é crime diverso, logo não é alteração substancial.
o. A decisão recorrida e o despacho de 03.11.2023, não merecem assim qualquer censura, devendo manter-se na íntegra.
Pelo que,
Nestes termos e nos demais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Ex.ªs., a douta decisão instrutória e o despacho de 03.11.2023 não violaram qualquer disposição legal, não merecendo assim qualquer reparo ou censura, devendo ser mantidos na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso.
Assim se fazendo a tão acostumada,
JUSTIÇA!
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto acompanhou a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público em 1.ª instância, pugnando pela improcedência do recurso, mantendo-se nos seus precisos termos o despacho recorrido.
6. Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal (doravante designado CPP), não foi apresentada resposta.
7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Objeto do recurso
De acordo com o estatuído no art.º 412.º do CPP e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, que delimitam as questões que o Tribunal ad quem deve apreciar, sem prejuízo das que sejam conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no art.º 410.º n.º 2 CPP.
Por conseguinte, conforme as conclusões da respetiva motivação, a questão a decidir é a de saber se o Juiz a quo errou ao julgar improcedente a arguição de nulidade do despacho de pronúncia por alteração substancial dos factos.
2. Decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão sob recurso:
“Arguição de nulidade por alteração substancial dos factos:
A questão da alteração da qualificação jurídica foi discutida em sede de debate instrutório.
A defesa manifestou-se contra tal alteração, mas nada requereu.
Conforme resulta do disposto no art.º 303º, nºs 1 e 5, do CPP, se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário.
Este mesmo procedimento é adoptado caso se trate de mera alteração da qualificação jurídica conforme resulta do nº 5, do mesmo preceito legal.
Conforme ficou expresso, tendo a questão sido discutida em sede de debate instrutório, a defesa nada requereu apesar de se ter manifestado contra a alteração.
Nestes termos, não foi cometida qualquer nulidade pelo que julgo improcedente a arguição.
Notifique.”
***
3. Apreciando
O presente recurso foi interposto do despacho judicial de 03.11.2023, que julgou improcedente a arguição de nulidade do despacho de pronúncia por alteração substancial dos factos.
A decisão foi proferida sob requerimento do arguido, através do qual invocou aquilo que classificou de nulidade insanável, nos termos do disposto no artigo 309.º do CPP, após ter sido notificado da decisão que o pronunciou não por um, mas sim pela prática de três crimes de difamação, com publicidade e calúnia, p. e. p. pelas disposições conjugadas no n.º 1 do artigo 180.º e als. a) e b) do n.º 1 do artigo 183.º do Código Penal.
Sem prejuízo, a decisão deu suporte à acusação pública, que assim também o considerou, após ela própria ter imputado ao arguido não um, mas sim três crimes desse tipo, ao contrário do enunciado na acusação particular que apenas apontava ao arguido a prática de um só crime.
Assim sendo, aquilo que se mostra em crise é a decisão judicial datada de 3 de novembro de 2023, que somente “respondeu” à arguição então invocada pelo arguido, e não a qualquer outra, designadamente, não se debruçou sobre a pretendida nulidade da acusação particular suscitada em recurso, que no rigor não cumpre agora a apreciar.
Porém, e para que dúvidas não se suscitem, sempre se dirá que a acusação particular deduzida nestes autos contém todos os elementos enunciados no artigo 283.º, n.º 3 do CPP, o que decorre da sua simples leitura, pelo que não enferma de qualquer nulidade.
Por conseguinte, a questão a decidir neste âmbito é, apenas, a de saber se o Juiz a quo errou ao pronunciar o arguido não por um, mas sim por três crimes de difamação, com publicidade e calúnia, p. e. p. pelas disposições conjugadas no n.º 1 do artigo 180.º e als. a) e b) do n.º 1 do artigo 183.º do Código Penal, por tanto traduzir uma alteração substancial dos factos e não apenas uma alteração da qualificação jurídica dos factos ab initio descritos pela acusação particular, ou seja, se estava limitado à qualificação jurídica formulada na acusação particular por apenas um desses crimes.
À visto disso, é evidente que nenhuma razão assiste ao arguido, porquanto este manifestamente confunde ambas as questões, ou seja, “não é a alteração em si da qualificação jurídica que gera uma alteração dos factos qualificável como substancial, mas sim uma alteração dos factos que, servindo de fundamento a uma diferente qualificação jurídica, implica a qualificação daquela alteração de factos como substancial” (cf. Frederico Isasca, in “Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no Processo Penal Português” – Livraria Almedina, Coimbra, 1992, pág. 109).
Com efeito, olhando à decisão instrutória proferida nos presentes autos, constata- -se que a mesma pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação particular e pública, o que significa que manteve o objeto do processo, isto é, não procedeu à alteração da respetiva base factual.
Porém, essa decisão, à semelhança da acusação pública, não acompanhou o enquadramento jurídico proposto pela acusação particular, sendo claro que a isso não estava obrigada, isto porque considerou que todos os factos que constam quer da acusação particular quer da acusação pública podem ser entendidos como se tratando de um concurso de crimes.
Desta feita, a qualificação jurídica pelo tribunal é totalmente livre, independentemente da agravação dos limites máximos das sanções, posto que essa agravação não decorre da inclusão de qualquer facto novo.
Não houve, assim, nem na acusação pública (ao contrário da alegada violação do disposto no art.º 285.º, n.º 4 do CPP), nem no despacho de pronúncia, qualquer alteração dos factos descritos na acusação particular, a que possa aplicar-se, o regime do artigo 303.º, n.º 3 ou 309.º do CPP, mas antes e tão só uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação particular.
E nem se diga, ao contrário do pretendido pelo recorrente, que quanto a ela não teve o arguido oportunidade de exercer todos os direitos de defesa que a lei lhe confere, porquanto, e conforme precisamente afirmado pelo mesmo no parágrafo 7.º das suas motivações de recurso, “o requerimento de abertura de instrução teve como escopo único a oposição deste à alteração substancial dos factos descritos na acusação dos assistentes, pelo Ministério Público”, logo, não foi surpreendido pela questão que precisamente suscitou.
De facto, e conforme precisamente afirmado no despacho recorrido, “a questão da alteração da qualificação jurídica foi discutida em sede de debate instrutório”, tendo a defesa tido oportunidade de se pronunciar a esse propósito.
Tanto decorre da audição da gravação citius do debate instrutório, de onde resulta ter sido esse o objeto, a saber, “da alteração substancial dos factos versus alteração da qualificação jurídica dos factos”.
Nessa medida, e porque o despacho recorrido não contém qualquer obscuridade ou ambiguidade e muito menos enferma de qualquer nulidade, nada temos a alterar à decisão recorrida, tendo por não verificada qualquer nulidade que comprometa o decidido, concretamente, a decisão instrutória proferida nos autos.
Em suma, improcede o recurso.
*
III – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA, mantendo-se na íntegra a decisão do Tribunal a quo.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC´s.
Notifique.
*
Lisboa, 23 de abril de 2024
(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal)
Ester Pacheco dos Santos
Carla Francisco
Alda Tomé Casimiro