OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
CORRECÇÃO OFICIOSA DOS VÍCIOS
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
INCUMPRIMENTO DE INJUNÇÕES OU REGRAS DE CONDUTA
Sumário

I - O vício de omissão de pronúncia consubstancia-se, assim, numa ausência, numa lacuna, quer quanto a factos, quer quanto a consequências jurídicas - isto é, verificar-se-á quando se constatar que o tribunal não procedeu ao apuramento de factos, com relevo para a decisão da causa que, de forma evidente, poderia ter apurado e/ou não investigou, na totalidade, a matéria de facto, podendo fazê-lo ou se absteve de ponderar e decidir uma questão que lhe foi suscitada ou cujo conhecimento oficioso a lei determina.
II - Há factos não apurados, referentes ao cumprimento da injunção, que são relevantes para a decisão da causa e que o tribunal podia e devia ter apurado, tomando a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica.
III - A apontada omissão determina como reclama a recorrente, a nulidade da decisão, por referência aos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
IV - E tal omissão traduz, ainda, a existência do vício previsto no artigo 401º, nº 2, alíneas a) do Código de Processo Penal.
V – Perante a verificação destes vícios, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou decide da causa, se estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, dando uma nova versão ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso. No caso dos autos, é possivel corrigir os vícios encontrados na sentença do tribunal a quo –– insuficiência da matéria de facto para a decisão e omissão de pronúncia – aditando novos factos.
VI - O incumprimento das injunções ou regras de conduta pode conduzir à revogação da suspensão provisória do processo, à revisão das injunções ou regras decretadas – optando-se pela imposição de outras – ou à prorrogação do prazo do prazo das anteriores até ao limite que a lei consente. Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia (substantiva) dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previstos nos Art.ºs 55.º e 56.º, ambos do Código Penal.
VII - Só depois de ter sido notificado da acusação é que o arguido veio ao processo comprovar ter pago a injunção, sendo que tal pagamento ocorreu já fora do prazo da suspensão provisória do processo e fora do adicional prazo de dez dias concedido pela notificação de 13/10/2021. O arguido comprovou tardiamente um pagamento tardio e não ofereceu qualquer explicação ao Tribunal e não compareceu na audiência de julgamento, onde poderia, querendo, ter oferecido explicações.
VIII – O incumprimento da suspensão provisória do processo verificou-se e é culposo.

Texto Integral

Acordam na Secção Criminal (5ª) do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório:
Foi proferida sentença pelo Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 3, em processo comum e com intervenção de Tribunal Singular, que decidiu do seguinte modo (transcrição):
“ a) Condenar o arguido AA como autor material de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punível pelos artigos 30.º, n.º 1, por referência ao artigo 6.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 173/99, de 21/09 e ao artigo 4.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/08, na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
b) Condenar o arguido AA como autor material de um crime de violação de meios e processos permitidos, previsto e punível pelo artigo 31.º, n.º 1, por referência ao artigo 24.º, n.º 2 da Lei n.º 173/99 de 21/09 e artigos 78.º, n.º 1, al. c) e 82.º do Decreto-Lei n.º 202/2004 de 18/08, na pena de 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros);
c) Condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, na pena única de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), no montante total de €250,00 (duzentos e cinquenta euros);
d) Declarar perdidos a favor do Estado os objectos melhor descritos no auto de apreensão de fls. 8 e 9, visto que tais objectos foram usados na prática do crime (cf. art.º 109º, n.º 1 do CP).
e) Condenar o arguido nas custas do processo, que se fixam em 2 (duas) UC's de taxa de justiça e nas demais custas do processo (art. 513º, nº1 do CPP; e art. 8º, nº5 do RCP e Tabela III a esta anexa).
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Inconformado, o arguido interpôs recurso, apresentando motivações e concluindo do seguinte modo (transcrição):
“1 a) O Tribunal a quo condenou o Recorrente como autor material de um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punível pelos artigos 30.º, n.º 1, por referência ao artigo 6.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 173/99, de 21/09 e ao artigo 4.º,
n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/08, na pena de 40 (quarenta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros); como autor material de um crime de violação de meios e processos permitidos, previsto e punível pelo artigo 31.º, n.º 1, por referência ao artigo 24.º, n.º 2 da Lei n.º 173/99 de 21/09 e artigos 78.º, n.º 1, al. c) e 82.º do Decreto-Lei n.º 202/2004 de 18/08, na pena de 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de €5,00 (cinco euros); em cúmulo jurídico, na pena única de 50 (cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), no montante total de €250,00 (duzentos e cinquenta euros); declarou perdidos a favor do Estado os objectos melhor descritos no auto de apreensão de fls. 8 e 9, visto que tais objectos foram usados na prática do crime (cf. art.º 109º, n.º 1 do CP); e condenou o Recorrente nas custas do processo, que se fixam em 2 (duas) UC's de taxa de justiça e nas demais custas do processo (art. 513º, nº1 do CPP; e art. 8º, nº5 do RCP e Tabela III a esta anexa)
b) O Recorrente não se conforma com a sentença proferida e, por isso, recorre.
c) Resulta do Despacho de Acusação, que definiu o objecto dos presentes autos, que ao Recorrente foi aplicado o instituto jurídico de suspensão provisória do processo, tendo sido definida como injunção a entrega de um valor de € 250,00 (duzentos e cinquenta Euro) aos ..., proposta esta com que o Recorrente concordou.
d) E, efetivamente o Recorrente não só concordou como cumpriu a injunção, procedendo à entrega do montante à entidade definida, no dia 8.11.2021, conforme documento n.º 1 que se juntou.
e) O que releva para os presentes autos é que o Recorrente cumpriu com entrega do montante de €250,00 (duzentos e cinquenta Euro) aos ..., não tendo apenas cumprido a formalidade da junção do documento comprovativo aos autos.
f) Tal facto foi inclusive alegado pela Defensora Oficiosa, em sede de alegações finais da audiência de julgamento, de forma a atenuar/diminuir a responsabilidade criminal do Recorrente, só que o Tribunal a quo em momento algum alude a tais factos na matéria provada e muito menos na definição da medida da pena.
g) Entende-se, deste modo, que a sentença proferida é nula, ao abrigo do disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto a factos que beneficiariam o Recorrente, em particular a concordância do mesmo ao instituto jurídico da suspensão provisória do processo, bem como o cumprimento da injunção fixada, ainda que sem ter realizado prova cabal desse cumprimento nos autos.
h) E, caso assim não se entenda, tendo sido feita prova, agora nos presentes autos, do cumprimento da entrega do montante de € 250,00 (duzentos e cinquenta Euro) aos ..., deve o Recorrente ser absolvido da pena de multa aplicada.
NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO, DEVE SER CONCEDIDO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO, SENDO DECLARADA NULA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, TUDO COM AS LEGAIS CONSEQUÊNCIAS, OU CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, A ABSOLVIÇÃO DO RECORRENTE, COMO É DE JUSTIÇA!
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
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-» O Ministério Público apresentou resposta pugnando pela manutenção do decidido, não tendo oferecido conclusões.
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-» Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o arguido tardiamente alegou o pagamento da injunção e só o comprovou em sede de recurso, pelo que Tribunal “ad quem” não poderá dele tomar conhecimento. Entende ainda que tendo as penas sido tão próximas dos limites mínimos, não podem ser mais reduzidas.
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Cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP, o arguido nada disse.
Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II- Questões a decidir:
De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência do recurso com a decisão impugnada, as questões a examinar e decidir prendem-se com o seguinte:
- nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto ao invocado cumprimento da injunção fixada ocorrido no dia 8.11.2021;
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III – Factos relevantes para a decisão das questões suscitadas, que resultam dos documentos juntos aos autos e da audição da gravação das alegações proferidas em sede de audiência de julgamento:
Definidas as questões a tratar, importa considerar a factualidade que resulta da análise dos autos com interesse para a respetiva decisão:
1. Em 11/03/2021, o Ministério Público submeteu à apreciação do Mm.º Juiz de Instrução Criminal uma proposta de suspensão provisória do processo pelo período de quatro meses, mediante a sujeição do arguido ao cumprimento da injunção de entregar a quantia de €250,00 a favor dos ... e juntar os recibos comprovativo, originais e com indicação que se destinam ao cumprimento de injunção nestes autos.
Mais se determinou que, obtida a necessária concordância do Mmº Juiz, fosse o arguido notificado para o cumprimento da injunção proposta, bem como para fazer prova do seu cumprimento, no prazo da suspensão, sob pena de, não o fazendo, virem os autos a ser remetidos para julgamento.
2. A referida proposta mereceu a concordância do Mmº. Juiz de Instrução Criminal e a suspensão provisória do processo, nos termos que haviam sido propostos, foi notificada ao arguido por via postal simples com prova de depósito expedida a 23-03-2021, constando concretamente da notificação que: “nos termos e para os efeitos a seguir mencionados: “De que nos termos do disposto no art.º 281º do C. P. Penal, foi determinada a suspensão provisória do processo pelo período de quatro meses, mediante a sujeição ao cumprimento da injunção de entregar a quantia de €250,00 a favor dos ..., e juntar os recibos comprovativo, originais e com indicção que se destinam ao cumprimento de injunção nestes autos sob pena de, não o fazendo, virem os autos a ser remetidos para julgamento.”
3. A 13-10-2021, foi o arguido notificado por via postal simples com prova de depósito para, no prazo de 10 dias, vir aos presentes auto fazer prova do cumprimento da injunção a que se obrigou no âmbito da suspensão provisória do processo aplicada nos presentes autos: entregar a quantia de €250,00 a favor dos ... e juntar o comprovativo de pagamento Advertiu-se ainda o arguido de que, nada dizendo no prazo designado, os autos prosseguirão para julgamento.
4. Tal notificação foi depositada a 19/10/2021.
5. A 9/2/2022 foi proferido o seguinte despacho por parte do M.º Pº :
“Da revogação da suspensão provisória do processo:
Vistos os autos e concatenada toda a prova aqui reunida, verifica-se que o Ministério Público, por considerar encontrar-se suficientemente indiciada a prática, pelo arguido, do crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punível pelos artigos 30.º, n.º 1, por referência ao artigo 6.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 173/99, de 21/09 e ao artigo 4.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/08 e de um crime de violação de meios e processos permitidos, previsto e punível pelo artigo 31.º, n.º 1, por referência ao artigo 24.º, n.º 2 da Lei n.º 173/99 de 21/09 e artigos 78.º, n.º 1, al. c) e 82.º do Decreto-Lei n.º 202/2004 de 18/08, propôs ao mesmo a SPP, por um período de 4 (quatro) meses, mediante o cumprimento da(s) seguinte(s) injunção(ões): i. entrega da quantia de 250,00€ aos ..., proposta esta com que o arguido concordou. Nesse seguimento, os autos foram conclusos à Mma. JIC, que também concordou com a SPP nos moldes propostos, após o que o Ministério Público decretou a SPP por um período de 4 (quatro) meses, mediante o cumprimento, no decurso de tal prazo, da(s) injunção(ões) acima referida(s).
Findo o prazo da SPP, constatou-se que o arguido não juntou o comprovativo da entrega pecuniária aos ....
Notificou-se o arguido para a morada constante do TIR para fazer prova do cumprimento da injunção. Tal notificação não foi devolvida e o arguido nada disse (cfr. fls. 84-85).
Desta feita, verifica-se que o arguido incumpriu o disposto no artigo 282.º, n.º 4, alínea a) do Código de Processo Penal, não havendo nada, em termos de justificação, que releve o seu comportamento.
Do quadro supra exposto, resulta que a conduta do arguido não se mostra compaginável com a manutenção da suspensão provisória do processo, face à ausência de justificação perante o incumprimento da injunção que lhe foi aplicada e relativamente à qual já expressamente tinha dado a sua concordância.
Ora, estatui o artigo 282.º, n.º 4, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal que “O processo prossegue e as prestações feitas não podem se repetidas: a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta. E na alínea “b) Se, durante o prazo da suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”
Destarte, e tal como tem sido considerado pela doutrina e pela jurisprudência, a apreciação sobre o prosseguimento dos autos não se verifica de forma automática, seja pelo decurso do tempo ou do incumprimento das injunções aplicadas.
Assim, e como refere o Tribunal da Relação do Porto, em Acórdão de 09.12.2015, (proferido no proc. n.º 280/12.9TAVNG-A.P1, Relator Nuno Ribeiro Coelho) o prosseguimento dos autos deverá envolver “(…) antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido. (…) Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia (substantiva) dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previsto nos artigos 55.º e 56.º, ambos do Código de Processo Penal.” (itálico nosso, acessível em www.dgsi.pt
Tal como preceitua o artigo 56.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal “A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira e repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social.”
Assim, deverá verificar-se uma conduta que deverá ser imputável pelo menos a título de negligência grosseira ao arguido; ou repetidamente assumida (cfr. Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2.ª edição revista, Almedina, pág. 946).
Em face do que antecede e à postura demonstrada nos autos (por omissão), o arguido actuou, senão dolosamente, pelo menos a título de negligência.
Assim, determina-se a revogação da suspensão provisória do processo, ao abrigo do disposto no artigo 282.º, n.º 4, alínea a) do Código de Processo Penal e determina-se o prosseguimento dos autos para julgamento.
Notifique.
6. No mesmo despacho, datado de 9/2/2022, o MP nomeou defensor ao arguido e deduziu acusação contra o arguido para julgamento sob a forma de processo comum, pela prática como autor material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
- Um crime contra a preservação da fauna e das espécies cinegéticas, previsto e punível pelos artigos 30.º, n.º 1, por referência ao artigo 6.º, n.º 1, al. b) da Lei n.º 173/99, de 21/09 e ao artigo 4.º, n.º 1, al. b), do Decreto-Lei n.º 202/2004, de 18/08.
- Um crime de violação de meios e processos permitidos, previsto e punível pelo artigo 31.º, n.º 1, por referência ao artigo 24.º, n.º 2 da Lei n.º 173/99 de 21/09 e artigos 78.º, n.º 1, al. c) e 82.º do Decreto-Lei n.º 202/2004 de 18/08.
7. A 30/3/2023, o arguido juntou aos autos um documento e requerimento, dizendo “juntar comprovativo do pagamento da injunção só o fazendo agora porque não percebeu que tinha de fazer a entrega”.
O documento junto com tal requerimento constitui a 2ª via de um recibo, datado de 8/11/2021, emitido pelos ..., nele sendo atestando o recebimento da quantia de 250,00 pelo arguido, a título de pagamento de injunção no âmbito do presente processo.
8. A 5/4/2022, o MP proferiu o seguinte despacho:
“Fls 103 e 104- visto.
Após ter sido revogada a suspensão provisória do processo e ter proferido despacho de acusação, já cumprido, vem o arguido demonstrar o cumprimento da injunção que lhe foi proposta.
Sucede que, aquando da notificação para o fazer, em tempo, nada disse.
Neste momento, o Ministério Público já esgotou o seu poder jurisdicional, pelo que não pode dar sem efeito o despacho de acusação.
Notifique.”
9. A 20/5/2022, foi proferido despacho de recebimento de acusação para julgamento em processo comum, tendo sido expresso inexistirem “nulidades, questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento de mérito da causa”.
10. Em sede de audiência de julgamento que teve lugar a 23/10/2023, nas alegações proferidas invocou a Ilustre defensora do arguido ter este procedido ao pagamento da injunção que lhe foi imposta.
11. Foi proferida sentença, a 30/10/2023, da qual se transcrevem as seguintes partes com relevo para a decisão da causa:
Da discussão da causa, e com relevância para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. Em momento anterior às 10h20m do dia 21 de Outubro de 2019, o arguido decidiu capturar aves selvagem para criação e venda no mercado ilegal.
2. Com vista a dar cumprimento a esse seu intento, muniu-se de uma substância glutinosa e pegajosa (visgo), de dois aparelhos emissores de sons de aves (chamarizes), de um serrote de mão, de uma gaiola e de um saco para a transportar.
3. Após, deslocou-se a um terreno rural situado junto às traseiras da fábrica da “...”, no antigo parque de combustíveis da BP, na união de freguesias de ... e ..., concelho de …, área desta comarca.
4. Aí chegado escolheu a árvore que lhe pareceu mais adequada e espalhou o visgo nos seus galhos.
5. Junto a ela, no chão, colocou os dois chamarizes e ligou-os para que emitissem canto idêntico ao das aves que queria capturar, de modo a atraí-las até à árvore com o visgo.
6. Atraídas pelo som produzido pelos chamarizes, as aves pousavam nos galhos com o visgo, e aí ficavam com as patas coladas, facilitando dessa forma a sua captura por parte do arguido, que após as colocava no interior da gaiola que havia transportado para o local, para esse efeito.
7. Neste contexto, quando abordado pelos militares da GNR nas circunstâncias supra, o arguido havia já aprisionado dois pintassilgos (carduelis chloris)e sete tentilhões (fringilla coelebs).
8. O arguido sabia que as aves que pretendia caçar e caçou eram de espécies não cinegética.
9. Sabia ainda que, por esse motivo, não lhe era permitida a captura de pintassilgos ou de tentilhões.
10. Sabia, ainda, que lhe estava vedado o uso de chamarizes com o intuído de atrair as aves e de facilitar a sua captura.
11. Não obstante, não se absteve de apanhar aves de espécie não cinegética, usando para o efeito chamariz fora das condições em que a sua utilização é permitida.
12. Com a conduta descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
Mais se provou que:
13. O arguido não tem antecedentes criminais.
B. DOS FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provaram outros factos com interesse para a decisão da causa.
C. MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
A convicção do tribunal no que respeita aos factos provados, estribou-se na análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º do C.P.P.), como se passa a expor.
No que concerne aos factos dados como provados de 1. a 12., valorou o Tribunal o depoimento das testemunhas BB e CC, militares da GNR que efectuaram a fiscalização que motivou os presentes autos.
Estas testemunhas, de forma objectiva, coerente, mostrando total imparcialidade e alheamento do processo e desinteresse quanto ao seu final, esclareceram de forma coincidente que em 21 de Outubro de 2019, no período da manhã, encontravam-se de patrulha no ... e junto à fábrica do Açúcar, em ... vêm um senhor junto a uns arbustos e quando o abordaram viram que o mesmo estava a apanhar pássaros, utilizando o método do visgo. Explicaram que o arguido tinha também dois aparelhos de som (“dois rádios junto ás árvores para fazer de chamariz” – sic), com os quais estava a atrair os pássaros, sendo que enquanto lá estavam houve um pintassilgo que pousou no galho e ficou lá preso no visgo.
Mais adiantaram que visualizaram os paus/galhos com visgo, sendo que é expressamente proibido caçar pássaros assim.
Referiram que o arguido também tinha consigo uma gaiola, dentro de um saco de transporte (o casaco do arguido estava por cima da gaiola a tapá-la) e já lá estavam pássaros dentro.
Mencionou que apreenderam todos os objectos que constam do auto de apreensão de fls. 8 e 9, com o qual a testemunha DD foi confrontada, tendo corroborado o seu teor. Esta testemunha foi igualmente confrontada com o auto de notícia que elaborou e subscreveu (fls. 2 e 3), tendo confirmado o seu teor, nomeadamente as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos ocorreram.
Mais salientaram as testemunhas que os pássaros que estavam na gaiola acabaram por ser devolvidos à natureza.
Por fim, esclareceram as duas testemunhas que o arguido foi identificado através do seu documento de identificação, do qual constava a fotografia, sendo que não se lhes suscitou quaisquer dúvidas quanto à identificação do arguido.
Perante a objectividade e coerência dos depoimentos prestados pelos militares da GNR, convenceu-se o Tribunal da veracidade dos factos constantes da acusação. Nenhuma razão teriam estas testemunhas para inventar essa factualidade, não conseguindo nós descortinar qualquer motivo válido para tal. Essas testemunhas encontravam-se no exercício da sua actividade profissional, limitando-se ambos a cumprir as suas funções e a relatar os factos observados.
Mais foi valorado o teor do auto de notícia de fls. 2-3 e suporte fotográfico de fls. 4-7, o auto de apreensão de fls. 8-9 e o relatório final de fls. 55-60.
Em face do exposto, e face à objectividade dos factos relatados pelas testemunhas, em conjugação com a prova documental junta aos autos, nada mais restava a este Tribunal senão dar os factos da acusação como provados.
Considerou-se, ainda, o teor do CRC de fls. 105, relativamente à ausência de antecedentes criminais.”
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IV- Apreciando o mérito do recurso:
O arguido invoca a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto no artigo 379.º n.º 1 alínea c) do Código Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto a factos que o beneficiariam, “em particular, a concordância do mesmo ao instituto jurídico da suspensão provisória do processo, bem como o cumprimento da injunção fixada, ainda que sem ter realizado prova cabal desse cumprimento nos autos”.
Nos termos previstos no artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, “É nula a sentença: (…); c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
O vício de omissão de pronúncia consubstancia-se, assim, numa ausência, numa lacuna, quer quanto a factos, quer quanto a consequências jurídicas - isto é, verificar-se-á quando se constatar que o tribunal não procedeu ao apuramento de factos, com relevo para a decisão da causa que, de forma evidente, poderia ter apurado e/ou não investigou, na totalidade, a matéria de facto, podendo fazê-lo ou se absteve de ponderar e decidir uma questão que lhe foi suscitada ou cujo conhecimento oficioso a lei determina.
Como anota OLIVEIRA MENDES, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, “a nulidade resultante de omissão de pronúncia verifica-se quando o tribunal deixe de se pronunciar sobre questão ou questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, questões de conhecimento oficioso e questões cuja apreciação é solicitada pelos sujeitos processuais e sobre as quais o tribunal não está impedido de se pronunciar – artigo 608º, nº 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 4º, do CPP. Evidentemente que há que excepcionar as questões cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outra ou outras, como estabelece o citado nº 2 do artigo 608º do Código de Processo Civil.
A falta de pronúncia que determina a nulidade da sentença incide, pois, sobre as questões e não sobre os motivos ou argumentos invocados pelos sujeitos processuais, ou seja, a omissão resulta da falta de pronúncia sobre as questões que cabe ao tribunal conhecer e não da falta de pronúncia sobre os motivos ou as razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão.
Na óptica do recorrente, o Tribunal deveria ter dado como provados factos que beneficiariam o recorrente, em particular, como vimos, a concordância dada ao instituto jurídico da suspensão provisória do processo e o posterior cumprimento da injunção fixada, ainda que sem ter realizado prova cabal desse cumprimento nos autos
Vejamos.
O tribunal tem o dever de se pronunciar sobre todas as questões – relevantes para a decisão a proferir - suscitadas na acusação e na contestação, bem como sobre todos os factos resultantes da discussão relevantes para a decisão.
Ora, é certo que o pagamento da injunção não foi alegado em sede de contestação (peça processual que o arguido optou por não apresentar).
Contudo, tal pagamento foi efetivamente comunicado ao processo pelo arguido, por requerimento datado de 30/3/2023, acompanhado da junção de um recibo que atesta o pagamento a 8/11/2021 da injunção a que se obrigara.
Esse pagamento foi também invocado em audiência de julgamento, em sede de alegações.
O pagamento da injunção é um facto relevante, desde logo por força da necessidade de verificar, face ao disposto no nº 2, al. e), do art. 368º do CPP, se estão presentes quaisquer outros pressupostos de que a lei faça depender a punibilidade do agente ou a aplicação a este de uma medida de segurança, já que, a partir do momento em que é determinada a suspensão provisória do processo, a possibilidade de ulterior condenação do arguido pelos factos que determinaram a suspensão pressupõe o incumprimento da injunção. Havia assim que verificar, em face deste requerimento e deste documento, e como condição de validade do prosseguimento do processo e da condenação penal, se ocorria um verdadeiro incumprimento da injunção, nos termos previstos no art. 282º, nº 4, do CPP.
Em suma: há factos não apurados, referentes ao cumprimento da injunção, que são relevantes para a decisão da causa e que o tribunal podia e devia ter apurado, tomando a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica.
Ensina, sobre a questão, SÉRGIO POÇAS, “Da sentença penal – fundamentação de facto”, in Revista Julgar, nº 3, Set.-Dez. 2007:
“(…) O tribunal, como resulta nomeadamente do disposto nos artigos 339.º, n.º 4, 368.º, n.º 2, e 374.º, n.º 2, do CPP, deve indagar e pronunciar-se sobre todos os factos que tenham sido alegados pela acusação, pela contestação ou que resultem da discussão da causa e se mostrem relevantes para a decisão. Ou seja, ainda que para a solução de direito que o tribunal tem como adequada para o caso, se afigure irrelevante a prova de determinado facto, o tribunal não pode deixar de se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação - o que pressupõe a sua indagação -, se tal facto se mostrar relevante num outro entendimento jurídico plausível.
É que em impugnação por via de recurso pode vir a ser considerado pelo tribunal ad quem que o facto sobre o qual o tribunal a quo especificadamente não se pronunciou por entender ser irrelevante, é afinal relevante para a decisão, o que determinará a necessidade de novo julgamento, ainda que parcial, com todas as maléficas consequências consabidas.
Sejamos claros: indagam-se os factos que são interessantes de acordo com o direito plausível aplicável ao caso; dão-se como provados ou não provados os factos conforme a prova produzida.
A pronúncia deve ser inequívoca: em caso algum pode ficar a dúvida sobre qual a posição real do tribunal sobre determinado facto.
Na verdade, se sobre determinado facto não há pronúncia expressa (o tribunal nada diz), pergunta-se: o tribunal não se pronunciou, por mero lapso? Não se pronunciou porque não indagou o facto? Não se pronunciou porque considerou o facto irrelevante? Não se pronunciou porque o facto não se provou?
Face ao silêncio do tribunal todas as interrogações são legítimas.
Das duas, uma: ou o facto é inócuo para a decisão e o tribunal, com fundamentação sintética, di-lo expressamente e não tem que se pronunciar sobre a sua verificação/não verificação, ou, segundo um entendimento jurídico plausível, é relevante e nesse caso deve pronunciar-se de acordo com a prova produzida.”
Como decidiu o Acórdão da RC, de datado de 11 de outubro de 2023, Relator: Desembargador Jorge Jacob, disponível em www.dgsi.pt:
«(…) não estamos perante uma pura omissão de cumprimento da injunção, mas perante um cumprimento que apenas parcialmente foi efectuado para além do prazo assinalado. E se é certo que não foi dado conhecimento do cumprimento no momento ajustado, esse cumprimento veio ao conhecimento do processo em momento anterior ao julgamento e foi expressamente invocado pelo arguido, razão pela qual, ainda que os autos prosseguissem para julgamento, em sede de sentença não poderia ter deixado de ser fixada a matéria pertinente alegada na contestação e dela retiradas as consequências tidas como as ajustadas ao caso, posto que o processo penal é muito mais do que um Kafkiano amontoado de papéis ou uma sacramental sucessão de actos tendentes a uma finalidade pré-determinada. É, essencialmente, um meio actuante e dinâmico ao serviço da realização da justiça, postulando a observância de procedimentos que funcionem como garantia de uma efectiva defesa do arguido
Assiste, pois, razão ao recorrente quando refere ter sido omitida decisão sobre o facto invocado, que é relevante para a decisão dos autos, podendo até, em termos teóricos, conduzir à pretendida “absolvição”.
A apontada omissão determina como reclama a recorrente, a nulidade da decisão, por referência aos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, alínea a), ambos do Código de Processo Penal.
E tal omissão traduz, ainda, a existência do vício previsto no artigo 401º, nº 2, alíneas a) do Código de Processo Penal.
(cfr. neste sentido, Ac. desta RL de 06 de fevereiro de 2024, Processo nº 1809/19.7JFLSB.L1, não publicado)
De acordo com o artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova”.
Como decorre expressamente da letra da lei, qualquer um dos elencados vícios tem de dimanar da complexidade global da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso, portanto, a quaisquer elementos que à dita decisão sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo o julgamento.
Trata-se de vícios da decisão, não do julgamento, umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374.º, n.º 2, do CPP, encontrando-se abundantemente estudados na doutrina e na jurisprudência.
A «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada» verifica-se quando os factos dados como assentes na decisão são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição; ou seja, quando os factos provados são insuficientes para poderem sustentar a decisão recorrida ou quando o tribunal recorrido, devendo e podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto com relevo para a decisão da causa, o que determina que a matéria dada como assente não permite, dada a sua insuficiência, a aplicação do direito ao caso.
Note-se, todavia, que só há insuficiência para a decisão da matéria de facto quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto, necessária para a decisão de direito, ou quando há uma lacuna por não se apurar o que é evidente que se podia apurar, ou quando o tribunal não investiga a totalidade da matéria de facto, podendo fazê-lo (cfr SIMAS SANTOS e LEAL-HENRIQUES in Recursos Penais, Rei dos Livros, pág. 74).
Tal vício só se verificará se se concluir que o tribunal de julgamento deixou de dar resposta a um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, se deixou por esgotar o thema probandum.
In casu, e como já afirmado, o Tribunal a quo, ao não se pronunciar sobre os factos que resultaram da discussão da causa e que são juridicamente relevantes, deixou com efeito por esgotar o thema probandum.
Nesta medida, a matéria de facto apurada é claramente insuficiente para a decisão de direito proferida.
Refere o Prof. Germano Marques da Silva, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pág.325/326:
«é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”
Lemos no AC RG de 25-06-2019, Processo: 45/17.0GAPTL.G1, Relator: MÁRIO SILVA, o seguinte:
1. O tribunal tem que apreciar e pronunciar-se sobre todos os factos, relevantes para a decisão, constantes da acusação, da contestação ou que resultem da discussão da causa - art. 368º/2/CPP;
2. (…)
3- Sendo alegado na contestação que o dano foi causado no exercício da ação direta - causa excludente da ilicitude - e inexistindo qualquer apreciação da invocada atuação do arguido, ocorre nulidade da sentença por omissão de pronúncia e por insuficiência para a decisão da matéria de facto"
Em suma: se é certo que não foi dado conhecimento do cumprimento no momento ajustado, esse cumprimento veio ao conhecimento do processo em momento anterior ao julgamento e foi expressamente invocado no julgamento, nas alegações finais, razão pela qual, em sede de sentença não poderia ter deixado de existir pronúncia sobre o mesmo, no sentido de o julgar ou não provado e, sendo-o, de terem sido retiradas de tal facto as consequências tidas como as ajustadas ao caso.
Nas palavras do Ac. R.C. de 11-10-2023, Processo: 403/21.7PBCLD.C Relator: JORGE JACOB “o processo penal é muito mais do que um Kafkiano amontoado de papéis ou uma sacramental sucessão de actos tendentes a uma finalidade pré-determinada. É, essencialmente, um meio actuante e dinâmico ao serviço da realização da justiça, postulando a observância de procedimentos que funcionem como garantia de uma efectiva defesa do arguido”.
Note-se, também, que não constitui injunção a obrigação de comprovar o cumprimento de uma injunção
Entende-se, tal como o fez esta Relação no Acórdao de 09-11-2021, Processo: 27/19.9PFSNT.L1-5, Relator: Paulo Barreto, disponível in www.dgsi.pt, que poderá este dever de comprovação ser entendido como “um dever processual acessório. Mas, como dever processual que é não pode ter consequências a título substantivo. E caso se mostre o cumprimento tardio daquele dever processual, tal circunstância apenas poderá conduzir a consequência processual, a saber, condenação em custas pelo incidente.”
Por outro lado, a certificação do cumprimento efectivo ou não das injunções impostas no âmbito da suspensão provisória do processo não tem que passar obrigatoriamente pela colaboração do arguido para tais efeitos.
Por conseguinte, este vício da sentença é assim, subsumível à alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, da insuficiência para a decisão da matéria de facto, o qual decorre precisamente da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
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As nulidades em referência não podem deixar de ser conhecidas, mesmo oficiosamente, por este Tribunal de recurso, tal como decorre do nº 2 do citado artigo 379º do Código de Processo Penal e do art.º 410 n.º 2 al. a) do CPP (Acórdão n.º 7/95, de 28 de dezembro, Diário da República n.º 298/1995, Série I-A de 1995-12-28, páginas 8211 – 8213).
Perante a verificação destes vícios, o julgador pode fazer uma de duas coisas: ou não tem elementos disponíveis, como será a regra, e reenvia o processo para julgamento, ou decide da causa, se estiver de posse dos elementos necessários e imprescindíveis à nova solução, dando uma nova versão ao conjunto dos factos provados e não provados, se for caso disso.
No caso dos autos, é possivel corrigir os vícios encontrados na sentença do tribunal a quo –– insuficiência da matéria de facto para a decisão e omissão de pronúncia – aditando à matéria de facto os seguintes factos, com fundamento nos documentos juntos aos autos:
14) Os presentes autos foram suspensos provisoriamente pelo período de quatro meses, mediante a sujeição do arguido à injunção de entregar a quantia de € 250,00 a favor dos ... e juntar os recibos comprovativo, originais e com indicação que se destinam ao cumprimento de injunção nestes autos, tendo a decisão de suspensão provisória do processo sido notificada ao arguido por via postal simples com prova de depósito expedida a 23-03-2021
15) A 30/3/2023, o arguido juntou aos autos um documento que constitui a 2ª via de um recibo, datado de 8/11/2021, emitido pelos ..., nele sendo atestando o recebimento da quantia de 250,00 pelo arguido, a título de pagamento de injunção no âmbito do presente processo e um requerimento, dizendo “juntar comprovativo do pagamento da injunção só o fazendo agora porque não percebeu que tinha de fazer a entrega”.
Aqui chegados, que consequências jurídicas se retiram destes factos?
Ora, de acordo com o disposto no n.º 3 e n.º 4 do art. 282.º do CPP:
“3 - Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4 - “O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”
É atualmente unânime o entendimento de que, perante a ocorrência de um qualquer incumprimento, a opção pela dedução de acusação em vez do arquivamento não é automática, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido.
(neste sentido veja-se, a título de exemplo, Ac RE de 21-06-2022 Proces: 276/19.0 GCSSB.E1 e de 11-05-202, Processo: 579/19.3T9EVR.E1, da RG de 11-01-2021, da RP de 09-12-2015 Processo: 280/12.9TAVNG-A.P1 e da RL de 18-05-2010, Processo:107/08.6 GACCH.L1 -5, todos disponíveis in www.dgsi.pt e, na doutrina, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, IIº Vol, Rei dos Livros, 2004, anot. Artº 282; Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17ª ed., Almedina, 2009, anot. Art.º 282º; Maia Costa, CPP Comentado, 2014, Almedina, anot. Art.º 282º, Magistrados do Ministério Publico do Distrito Judicial do Porto, CPP Comentários e notas práticas, Coimbra Editora, art.º 282º).
O incumprimento das injunções ou regras de conduta pode conduzir à revogação da suspensão provisória do processo, à revisão das injunções ou regras decretadas – optando-se pela imposição de outras – ou à prorrogação do prazo do prazo das anteriores até ao limite que a lei consente. Trata-se de aplicar aqui os mesmos princípios de garantia (substantiva) dos direitos de defesa do incidente de incumprimento da suspensão da execução da prisão, previstos nos Art.ºs 55.º e 56.º, ambos do Código Penal.
Nestas duas últimas hipóteses, terá que haver o acordo prévio do arguido, do assistente e do Juiz.
Já a opção pela dedução da acusação cabe exclusivamente ao Ministério Público.
De qualquer forma, e como é entendimento unânime da jurisprudência, e sob pena de nulidade, nos termos dos artºs 120º n.º 2 al. d) e 61ºn.º 1 al. b) do CPP, o arguido tem de ser ouvido em ordem a averiguar se existiu de facto incumprimento e seus respectivos motivos e aferir da existência e medida da culpa e, em face disso, decidir pela revogação, modificação ou prorrogação da suspensão do processo (neste sentido, por todos, Ac. da RC de 12-05-2021 Processo: 48/19.1GBGRD.C1, da RE de 11-05-2021 Processo: 579/19.3 T9EVR.E1)
No caso em análise, foi dado o contraditório ao arguido quando, terminado o prazo da suspensão provisória do processo, se constatou que o pagamento da injunção não estava comprovada nos autos: o arguido foi notificado para em dez dias comprovar tal o pagamento, sob pena de o processo prossseguir, nada tendo dito no prazo que lhe foi concedido.
Ou seja, dada ao arguido a possibilidade de se explicar, este nada disse.
Só depois de ter sido notificado da acusação é que o arguido veio ao processo comprovar ter pago a injunção, sendo que tal pagamento ocorreu já fora do prazo da suspensão provisória do processo e fora do adicional prazo de dez dias concedido pela notificação de 13/10/2021. O arguido comprovou tardiamente um pagamento tardio e não ofereceu qualquer explicação ao Tribunal e não compareceu na audiência de julgamento, onde poderia, querendo, ter oferecido explicações.
Perante tal situação só podia o Tribunal concluir por um incumprimento no mínimo grosseiramente negligente, culposo. Trata-se, de facto de uma situação completamente distinta daquelas em que o arguido, ciente de que incumpriu os seus deveres, oferece explicações ao Tribunal. Aqui, o arguido ignorou as notificações que lhe foram feitas, não reagiu à notificação, não ofereceu até ao presente momento qualquer explicação, pelo que tem o Tribunal de concluir que o arguido aceita que o incumprimento das obrigações que lhe foram impostas no âmbito da suspensão do processo foi culposo, que não tem explicação válida para ter feito tão tardiamente o pagamento da injunção.
Em suma: o incumprimento da suspensão provisória do processo verificou-se e é culposo.
Assim, nenhum reparo há a fazer ao julgamento do arguido pelos factos da acusação e posterior condenação, sendo que nos autos a matéria de facto não foi impugnada pelo arguido.
Defende o arguido que, por força deste pagamento da injunção, deve ser “absolvido da pena de multa”.
Ora, entende-se que a jurisprudência obrigatória constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, nº 4/2017, de 4 de Maio de 2017, sobre o não desconto em futura condenação em inibição de conduzir, do tempo em que o condenado esteve privado de carta de condução na suspensão provisória do processo, deve ser aplicada às demais injunções aplicadas na suspensão provisória do processo. Assim, não deve ser descontado na pena de multa em que o arguido foi condenado a quantia paga a título de injunção.
Ainda com relevância para esta questão, vejamos que o artigo 282º, nº 4 do Código de Processo Penal, estabelece que em caso de incumprimento e de o processo prosseguir, “as prestações feitas não podem ser repetidas”, tal como acontece no artigo 56º, nº 2 do Código Penal, em relação à revogação da suspensão da execução da pena de prisão.
Assim, em obediência à referida jurisprudência, deve a decisão ser confirmada (artigo 445º, nº 3 do Código de Processo Penal).
(neste sentido, Ac. RL de de 2018-06-21, Processo nº 697/16.0PEAMD.L1-9, Relator: ANTERO LUÍS)
Poderia, é certo, valorar-se este pagamento na medida da pena de multa,
Contudo, esta questão não é objeto do recurso pelo que sobre ela não deverá o Tribunal pronunciar-se.
De facto, e como bem se escreveu no Ac RE de 08-09-2009, Processo 928/01.0PBSTR.E1; Relator:ANTÓNIO JOÃO LATAS, “no nosso processo penal os recursos são encarados como remédio jurídico para os erros cometidos pela decisão recorrida e não como oportunidade para proceder de forma ampla a nova reapreciação do decidido, na procura de melhor justiça. Não compete ao tribunal ad quem substituir-se ao recorrente na procura e enunciação de eventuais razões para sustentar entendimento diferente do seguido pelo tribunal a quo, em matéria que não seja de conhecimento oficioso.
Termos em que improcede o recurso interposto pelo arguido
V. Decisão:
Pelo exposto, acordam as Juízas da 5ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
1) - nos termos dos artigos 374º, nº 2, 379º, nº 1 al. c), 410º, nº 2, alínea a), e 428º, nº 1, do CPP, oficiosamente declarar a insuficiência da matéria de facto para a decisão e determinar o suprimento de tal vício, aditando à matéria de facto provada a seguinte factualidade:
14) Os presentes autos foram suspensos provisoriamente pelo período de quatro meses, mediante a sujeição do arguido à injunção de entregar a quantia de € 250,00 a favor dos ... e juntar os recibos comprovativo, originais e com indicação que se destinam ao cumprimento de injunção nestes autos, tendo a decisão de suspensão provisória do processo sido notificada ao arguido por via postal simples com prova de depósito expedida a 23-03-2021
15) A 30/3/2023, o arguido juntou aos autos um documento que constitui a 2ª via de um recibo, datado de 8/11/2021, emitido pelos ..., nele sendo atestando o recebimento da quantia de 250,00 pelo arguido, a título de pagamento de injunção no âmbito do presente processo e um requerimento, dizendo “juntar comprovativo do pagamento da injunção só o fazendo agora porque não percebeu que tinha de fazer a entrega”.
2 – no mais, julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a douta sentença recorrida nos seus precisos termos.
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Condena-se o arguido no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Notifique.
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Lisboa, 23 de abril de 2024
Sara Reis Marques
Ana Cláudia Nogueira
Alda Tomé Casimiro