LIBERDADE CONDICIONAL
MEIO DA PENA
DECLARAÇÕES DA CONDENADA
DESCULPABILIZAÇÃO
PERSONALIDADE INFLUENCIÁVEL
TRÁFICO INTERNACIONAL DE ESTUPEFACIENTES
INCOMPATIBILIDADE COM DEFESA DA ORDEM E PAZ SOCIAL
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I. «O juízo sobre se o condenado interiorizou suficientemente o desvalor da sua conduta é um juízo sobre um facto interno que, na sua integralidade, escapa ao conhecimento de qualquer juiz. Este poderá atender apenas a factos objetivos, como o discurso verbal ou o comportamento que possa refletir essa disposição interior de arrependimento, ou, pelo contrário, com ela contrastar; para além desses factos objetivos, qualquer juízo que se funde noutros aspetos entra no domínio do arbitrário.» - acórdão da Relação do Porto de 15/01/2020;
II. A invocação pela condenada do contexto que envolveu a prática dos factos não é sinónimo de autojustificação ou desresponsabilização pela conduta criminosa adotada, sobretudo se a condenada acompanha a sua menção com a ressalva expressa e repetida quanto à consciência de que é responsável pela escolha que fez, pois podia ter dito «não»;
III. A permeabilidade da personalidade da condenada à influência de terceiros apresentando-se, em abstrato como fator de risco de reincidência na conduta criminosa, não pode por si só fundamentar o juízo de impreparação para a vida em liberdade, quando a própria condenada reconhece essa característica de personalidade e tudo tem feito ao seu alcance, considerando a privação da liberdade, para a «trabalhar» e mudar.
IV. Na apreciação da verificação do pressuposto da liberdade condicional previsto sob o art. 61º/2, b) do Código Penal, da compatibilidade da libertação do condenado a meio da pena com a defesa da ordem e da paz social, não pode o Tribunal abstrair da situação concreta que tem em mãos para, de um modo geral, atribuir ao crime de tráfico internacional de estupefacientes uma gravidade tal que imporia sempre e em qualquer caso essa incompatibilidade aos condenados por esse tipo de crime.
V. Terá que ser na situação em concreto, e com os dados do caso, os quais devem ser especificados na fundamentação, que deverá formular-se o juízo de prognose favorável ou desfavorável sobre o reflexo e impacto da libertação do condenado na comunidade.
VI. A gravidade em abstrato do tráfico internacional de estupefacientes, e em concreto, quando estamos a falar de 1,5 kg de cocaína e mais de 5.000 doses individuais, pelo grau de danosidade que representa o seu transporte a partir do Brasil para Portugal, não inviabiliza o juízo de compatibilidade da libertação a meio da pena da condenada por esse crime se as suas condições pessoais e circunstâncias concretas do seu cometimento apontam para, mercê dessa libertação, uma não desvalorização daquela gravidade pela comunidade ou pela própria condenada;
VII. Importa que estejam para tanto reunidas as condições necessárias na envolvente social e familiar para a reintegração e aceitação comunitária da condenada - «defesa da paz social» -, e se possa ajuizar como suficiente o período de reclusão na garantia de exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos protegidos pelas normas violadas, não pondo em causa a confiança da comunidade na validade das mesmas e da ordem jurídica, tão pouco a proteção que conferem a esses bens jurídicos - «defesa da ordem».

Texto Integral

Acordam, em conferência, as Juízas que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. RELATÓRIO
1. Por decisão do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, Juiz 4, não foi concedida liberdade condicional ao meio da pena à condenada AA em cumprimento de uma pena de 4 anos e 10 meses de prisão no Estabelecimento Prisional de … pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido pelo art. 21º/1 do D.L. 15/93, de 22/01, considerando-se verificados todos os requisitos formais, mas por cumprir os requisitos materiais legalmente requeridos.
2. Não se conformando com tal decisão, a condenada interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
1.ª Ora, entendeu o Tribunal a quo que os pressupostos para a concessão da liberdade condicional e que se assentam nas alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal, não se encontravam reunidos nos presentes autos, motivo pelo qual decidiu não conceder a liberdade condicional à aqui condenada recorrente.
2.ª Sucede que, contrariamente àquele entendimento, a condenada está seriamente em crer que reúne todas as condições para beneficiar deste regime, parecendo-nos que, que o Tribunal a quo, por um lado exponenciou, severa e injustificadamente as exigências de prevenção geral, não apresentando qualquer fundamentação concreta e extraordinária para o efeito, bem como, desconsiderou, as declarações da condenada, onde de forma clara e sincera, apresentou um satisfatório resultado do processo de auto-avaliação e correção comportamental.
3.ª Com efeito, desde logo, o Tribunal a quo, em conflito com o entendimento dominante da nossa jurisprudência, limitou-se a apresentar uma fundamentação vaga, abstrata e genérica acerca das inerentes exigências de prevenção geral que se fazem sentir, deixando de indicar e de demonstrar, de forma concreta e extraordinária, um alarme social e perigo para a tranquilidade publica para além do que o próprio crime em causa já acarreta e que a própria punição já ponderou e contemplou em sede de fixação da pena.
4.ª O Tribunal a quo, de forma a justificar a forte presença das necessidades de prevenção geral que obstam à não concessão da liberdade condicional, apresenta, tão-só, fundamentos inerentes a todos os crimes de tráfico de estupefacientes e que, obviamente já foram tidas em conta aquando da determinação e fixação da pena, o deixando por demonstrar quaisquer circunstâncias extraordinárias e agravantes.
5.ª Para além da fundamentação vaga e abstrata que o Tribunal a quo apresenta sobre as necessidades de prevenção geral, aquelas também não resultam, parece-nos, do tipo de crime pelo qual vem a reclusa condenada.
6.ª A reclusa foi condenada na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão, pela prática de um crime de trafico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, o que atendendo àquela concreta pena e moldura penal abstratamente estabelecida, facilmente se constata que o comportamento da condenada — obviamente reprovável — ainda assim, enquadra-se, dentro de um quadro culpa e ilicitude consideravelmente baixo.
7.ª Pelo que, do crime imputado não se retiram particulares exigências de prevenção geral, para além daquelas que suscita qualquer crime de tráfico de estupefacientes.
8.ª Assim, para além disso não resultar, quer da fundamentação da decisão recorrida, tal como do próprio crime, a exponenciação das necessidades de prevenção geral, parecem também não resultar da própria personalidade da condenada.
9.ª Pois, conforme consta dos pontos d, i, j, k, l, m, n, o, p, q, r, t, v, w, x, cc, dd, ee, ff, gg, hh, ii, jj, kk e II da matéria de facto provada, a condenada, primária, apresenta um ótimo suporte familiar, revela uma personalidade prossocial e competência para uma integração social com sucesso, manteve ao longo de todo o processo e ao longo de toda a sua reclusão um comportamento exemplar, adota uma postura de reconstrução do seu modo de vida, encontra-se em RAI e já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, todas com sucesso, bem como reconhece a ilicitude e gravidade da sua conduta.
10.ª Com efeito e na verdade, em parte alguma, o Tribunal recorrido apresenta as concretas razões que ora se verificam, seja do crime em causa ou resultantes da própria personalidade da arguida, que agravam e intensificam as exigências de prevenção geral, valorando-as, apenas, na mesma medida que já foram aquando da fixação da pena, e portanto fazendo uma dupla valoração da mesma realidade, o que não poderá suceder.
11.ª Ora, por tudo isto, estamos seriamente em crer que andou mal o Tribunal a quo quando negou a concessão da liberdade condicional à condenada recorrente, tendo sobrevalorizado erroneamente as necessidades de prevenção geral, parecendo-nos que a mesma reúne e preenche todos os requisitos para lhe ser, neste exato momento, concedida a liberdade condicional nos termos do artigo 61º do Código Penal, devendo ter-se como verificada e preenchida a al. b) do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal, por não emergir, quer do crime praticado, tal como da própria personalidade da condenada quaisquer necessidades especiais de prevenção geral que possam impor e manter a arguida privada da liberdade.
12.ª E mais, entendeu, igualmente, o Tribunal a quo numa fundamentação, parece-nos e com todo o devido respeito, um pouco embrulhada que a condenada apesar do seu processo evolutivo favorável, apresenta, ainda, uma personalidade permeável à influencia de terceiros, que não deixam crer que a mesma, em liberdade, não voltará a delinquir.
13.ª Ora, desde logo, estamos igualmente em crer que, a isolada permeabilidade da condenada a um comportamento tóxico, que a mesma reconhece e se arrepende, aliado a todo o demais processo evolutivo positivo, não poderá configurar ou reconfigurar a personalidade da condenada, isto é, atribui-lhe esse permanente rotulo, colocando-a no papel de uma pessoa que irá sempre absorver a prejudicialidade que possa existir, e desta forma, marcando-lhe negativamente a personalidade, impeça de ser realizado um juízo de prognose favorável da sua reorientação.
14.ª A verdade é que, a condenada, apresentou um satisfatório resultado do processo de auto-avaliação e correção comportamental, evidenciado quer pela real interiorização do desvalor da sua conduta, quer pela apreensão das razões que a conduziram ao desvio comportamental, quer, ainda, pelo, então, necessariamente, consequente arrependimento.
15.ª E tudo isto, retira-se, não só de uma observação do percurso a condenada tem vindo louvável e favoravelmente a traçar, mas igualmente daquilo que foram as suas declarações em sede de audição de condenada, no dia 15/12/2023, a qual, a minutos
1.02 a 1.12, 1.15 a 1.26, 6.20 a 6.31, 7.56 a 7.58, 9.58 a 10.26, 11.03 a 11.07 e 13:12 a 13.30, demonstrou-se perentória quando, perante as perguntas realizadas pelo Tribunal a quo demonstrou reconhecer o integral desvalor da sua conduta, arrependendo-se da sua decisão.
16.ª Contudo, e por motivos que não alcançamos, o Tribunal a quo desconsiderou por completo as suas declarações e autorresponsabilização, concluindo que a mesma ainda não se encontrara preparada para iniciar o seu processo de reintegração sobre o teto da Justiça, o qual, focando-se apenas e só nos factos que moveram a sua condenação e desacreditando, parece-nos, o caráter punitivo que o processo penal abarca, negou a possível e evidente, reinserção e reorientação da condenada.
17.ª Com efeito, contrariamente àquilo que o Tribunal a quo quer fazer crer e desconsidera por completo: (i) a condenada encontra-se consciente das razões que a conduziram ao desvio comportamental; (ii) reconhece a ilicitude da sua conduta e suas consequências; (iii) arrepende-se veemente por tal decisão; (iv) apresenta um forte suporte familiar; (v) apresenta perspetivas de futuro credíveis; (vi) desenvolveu ao longo de todo o processo um crescimento positivo, respeitando as normas e regras institucionais; (vi) encontra-se em RAI, o qual tem decorrido sem quaisquer incidentes; (vii) já beneficiou de medidas de flexibilização da liberdade sempre com grande sucesso; (viii) encontra-se a trabalhar dentro do estabelecimento prisional; e (ix) teve ajuda psicológica.
18.ª Para além de tudo isto, o Conselho Técnico foi unanime a elaborar parecer favorável à concessão da liberdade condicional à condenada, o que manifesta, efetivamente, a recuperação da condenada e a sua interiorização do desvalor da sua conduta, tal como a possibilidade da mesma poder iniciar a sua ressocialização junto da sociedade. E tal parecer resultou, conforme consta da decisão recorrida da evolução da personalidade da reclusa durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido, das perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional da reclusa e das condições a que deve estar sujeita a concessão da liberdade condicional.
19.ª Por tudo isto, parece-nos, salvo douto entendimento de Vossas Excelências, que a condenada reúne integralmente todos os pressupostos que fazem depender o alcance de um juízo de prognose favorável, sendo, fracamente de esperar que uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
20.ª Assim, apesar do Tribunal a quo, salvo todo o devido respeito, ter desconsiderado, inexplicavelmente, elementos relevantes da evolução e reorientação da condenada, adotando, parece-nos, uma postura direcionada apenas e só para a não concessão da liberdade condicional, a verdade é que a condenada apresenta todas as condições para beneficiar do regime da liberdade condicional, verificando-se, igualmente, o preenchimento da al. a) do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal.
21.ª Por tudo isto, vimos perante Vossas Excelências, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, acreditando, sempre, na superior sapiência intelectual e jurídica e na inigualável realização da Justiça que por Vós é mantida e plenamente assegurada, pugnar pela revogação da decisão recorrida, concedendo, assim, a liberdade condicional à condenada recorrente, nos termos do n.º 2 do artigo 61º do Código Penal.
(…)».
3. O Ministério Público, em resposta ao recurso, pugnou pela manutenção da decisão recorrida, formulando, por sua vez, as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
a) A decisão recorrida, apreciando a liberdade condicional com referência ao marco do meio do cumprimento das penas, concluiu no sentido de um ajuizamento de prognose desfavorável sobre o comportamento futuro da ora recorrente (prevenção especial positiva ou de ressocialização) tendo, para o efeito, a Mm.ª Juiz que a prolatou ponderado, de forma concreta, as circunstâncias fácticas que se lhe depararam.
b) O Tribunal a quo baseou-se em elementos fácticos/probatórios para decidir pela não concessão da liberdade condicional, sendo que a sua convicção se mostra motivada, alicerçando-se em razões objetivas, impregnadas de lógica e racionalidade e destituídas de quaisquer presunções.
c) O processo de formação da sua convicção está nitidamente apontado na sentença, baseando-se, fundamentalmente, quanto à inexistência de um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro da reclusa, na incerteza de que esta vai, em liberdade, comportar-se fiel ao direito, já que subsistem a nível pessoal necessidades de reinserção social relacionadas com apreciações mais egocêntricas acerca da causalidade e consequência dos seus comportamentos criminais, que potenciam a legitimação dos mesmos, remetendo, caso não se alterem, para a probabilidade de reincidência criminal. Donde considerar que não se mostra concluído o trabalho a efetuar em ambiente prisional havendo que assegurar que a reclusa melhore a sua capacidade crítica sobre a gravidade das suas ações e o dano e impacto para as vítimas prováveis e para a sociedade em geral.
d) A recorrente pretende fazer valer a sua própria apreciação da prova, desprezando, nitidamente, o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
e) Não se descortina qualquer violação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alíneas a) do Código Penal, já que não se verificam ainda as necessárias condições excecionais suscetíveis de revelar patentemente a compatibilidade da medida com a aptidão da reclusa a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
f) Nem tão pouco se vislumbra qualquer violação do disposto no artigo 61.º, n.º 2, alínea b) do Código Penal, ou de qualquer outro preceito legal, uma vez que o fenómeno criminoso em que parte da conduta delituosa da condenada se insere atinge a comunidade portuguesa de forma muito intensa, sendo as necessidades de prevenção geral acentuadas atenta a frequência da prática do tipo de crime em causa e as suas repercussões ao nível da comunidade em geral, pela sua danosidade social, pelo que é fundamental dissuadir este tipo de condutas e a reposição da confiança dos cidadãos no efeito tutelar das normas violadas. O cidadão comum não compreenderia o benefício tão cedo da libertação, ainda que condicionada.
g) Assim, a sentença que denegou a liberdade condicional é de manter, nos seus precisos termos, negando-se provimento ao presente recurso.».
4. O recurso foi admitido a subir, em separado, de imediato e efeito meramente devolutivo.
5. Subidos os autos a esta Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que, perfilhando integralmente a posição do Ministério Público na primeira instância, pugna por que se negue provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
6. Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/2 do Código de Processo Penal, não tendo havido resposta.
7. O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º/3, b) do Código de Processo Penal.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Dispõe o art. 412º/1 do Código de Processo Penal que «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.».
As conclusões definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido.
No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo Digno recorrente, há apenas uma questão a decidir: a verificação dos pressupostos da concessão da liberdade condicional à condenada ora recorrente, concretamente os previstos sob as alíneas a) e b) do art. 61º/2 do Código Penal.
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. DECISÃO RECORRIDA
É do seguinte teor, na parte relevante para análise da questão a decidir, a decisão de não concessão de liberdade condicional sob recurso [transcrição]:
«(…)
2. Fundamentação:
2.1. Factos provados:
a. A reclusa foi condenada, no processo comum n.º 223/21.9JELSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Criminal de Lisboa, J6, pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à tabela I-B anexa, na pena de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão efetiva.
b. A pena foi liquidada nos seguintes termos: - 1/2 da pena – 19 de dezembro de 2023
- 2/3 da pena – 09 de outubro de 2024 termo em 19 de maio de 2026.
c. No acórdão condenatório consignou-se o seguinte:
«O grau de ilicitude e o modo de execução do facto que, nos limites do concretamente apurados, aponta linearmente para o facto de estarmos perante um estádio moderado de tal índice gradativo consubstanciado em acção coautoral integrada em compasso de prossecução de tráfico intercontinental de estupefacientes visando lucro ilícito, ilustrando estarmos perante a figura personificada e comumente conhecida como “correio de droga” na cadeia de traficância internacional de estupefacientes».
Quanto à gravidade das consequências da conduta que o tribunal teve por elevada tendo justamente em conta a ação empreendida, ou seja o transporte, «visando um impacto manifesto no bem jurídico protegido – v.g. a saúde pública (face à quantidade e qualidade categórica do produto estupefaciente em causa – cocaína (cloridrato), com considerável grau de pureza e dosagem (….; arguida AA – quatro embalagens com o peso líquido de 1502g, produto este que apresentava um grau de pureza de 69,9%, sendo o equivalente a 5249 doses de consumo) neste tipo de crimes as razões de prevenção geral - reforço da consciência jurídica comunitária, no que respeita ao sentimento de segurança face à violação das normas penais – só excepcionalmente se satisfazem com uma pena de substituição.
O facto da arguida não ter antecedentes criminais registados e apoio familiar, nada tem de excepcional em relação às circunstâncias de actuação da generalidade dos “correios” de droga”, por os mentores do tráfico terem plena consciência de que estas terão melhores hipótese de escapar aos mecanismos de segurança estabelecidos para prevenção do tráfico, e embora sejam «“elos” relativamente enfraquecidos da normal “cadeia” desde a produção à distribuição e venda de estupefacientes, os atos que praticam tornam-se essenciais e não podem, por isso, ser descurados, sob pena de preterição desde logo, dos interesses da defesa social».
A que acrescem, «as vulnerabilidades comportamentais da arguida, às quais os pais cedo procuraram dar resposta através do recurso a especialistas e ao internamento em comunidade terapêutica, os défices de competências sociais e interpessoais que aparentam ter-se começado a resolver com a vida laboral, sendo cristalino que a presente reclusão, através da restrição de movimentos e da estruturação do quotidiano, às quais tem reagido com adequação é vendo sendo factor inestimável, temperando o seu estilo de vida instável, funcionando como um espaço e um período de reflexão acerca dos antecedentes e consequentes das opções tomadas no passado e de aprendizagem/consolidação de competências para gerir o risco de envolvimento em situações e relações interpessoais.
Por outro lado, pese embora a inexistência de antecedentes criminais, volvendo a aferir a postura de cada uma das arguidas perante o esclarecimento dos factos, em incursões e intensidades distintas ao longo do processado, as quais, a par da categórica prova reunida no mesmo, assim, foram valoradas, não observa reconhecimento espontâneo, linear e cabal dos factos cometidos, ademais surgindo desacompanhado de arrependimento sincero e, enquanto tal, susceptível de ser valorado positivamente, razões bastantes pelas quais se elevam sérias reservas sobre a interiorização competente da censurabilidade da conduta e, por via disso, frustra a concepção de um juízo de prognose favorável.
Perante tal quadro, sem desprimor para a disponibilidade de apoio familiar e de amigos manifestado nos autos, cujo êxito sempre se evidenciará dependente da séria vontade de contrição e correção de cada uma das arguidas à normatividade social, está este Tribunal convicto que, se de imediato em liberdade, as arguidas não reúnem condições cabais para adquirir a devida censura que a presente condenação procura almejar (…) » à inconsistência latente apurada a cada uma das arguidas perante a normatividade imposta, ao risco de redobrada incursão em atividade ilícita de traficância, entende o Tribunal que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, mormente por via da suspensão da execução das respectivas sanções, em tudo se afigurando seguro que a efectividade do cumprimento das penas de prisão aplicadas observará tais objectivos».
d. A reclusa autonomizou-se dos pais em 2012, com 21 anos, quando começou efetivamente a trabalhar, contudo estes sempre foram o seu suporte e enquadramento, a quem recorria sempre que precisava.
e. Os pais terão expulsado a condenada da sua casa em ..., em 2020, quando se aperceberam de que a relação da condenada com ex-companheiro, BB havia se restabelecido e tal a prejudicava a nível pessoal e social.
f. Assim, à data da prática dos crimes, residia com BB, numa parte de casa arrendada, em ....
g. Descreve a relação como instável e agressiva, dado que ele perpetrava comportamentos violentos e ameaças contra ela e familiares.
h. Neste mesmo contexto, refere que apresentou queixa, durante a reclusão, destes comportamentos do ex-companheiro.
i. Em caso de concessão de Liberdade Condicional, a condenada irá residir com os pais, onde se sente mais protegida do que a residir na ..., um apartamento que os pais adquiriram para a condenada e a irmã mais nova, com a profissão de …, poderem estudar e trabalhar na região de Lisboa.
j. A dinâmica familiar surge pacificada e os pais mostram-se investidos em ajudar a reclusa com a condição dela se manter afastada de BB.
k. A habitação é uma moradia, propriedade dos progenitores com condições de habitabilidade.
l. Concluiu o 12º ano de escolaridade em 2011.
m. Posteriormente, entre 2011 e 2012 fez um curso profissional de .... Contrariando a vontade parental, decidiu não prosseguir os estudos e iniciou vida laboral.
n. Começou a trabalhar num... na região de Lisboa, em 2012, mas essa experiência foi negativa.
o. Trabalhou depois no mesmo ramo em .... Mais tarde em ..., trabalhou como … e na área da ….
p. Em 2015 veio para Lisboa, onde laborou em vários locais e teve diversas atividades (…, …, …).
q. Com o apoio dos progenitores, AA chegou a trabalhar por conta própria no ramo onde tinha experiência como....
r. Inscreveu-se na referida plataforma e constitui-se como empresária, registando-se como sócia única nas finanças. Inscreveu-se em 2019, mas cessaria a atividade e vendeu a empresa posteriormente.
s. Inscreve a falência da empresa na relação instável e dominadora que encetou com o ex-companheiro, BB.
t. Teve outros empregos e trabalhos mais esporádicos, concretamente como …, …e como …, mas o ordenado era incerto.
u. Quando foi presa encontrava-se sem atividade estável.
v. De acordo com o avaliado, o agregado de inserção dispõe de uma situação socioeconómica estável que pode propiciar algum equilíbrio à reclusa.
w. A mãe trabalha como … no ... da área de residência e o pai está …, desempenhando agora a profissão de ….
x. Junto da progenitora pudemos confirmar este apoio e enquadramento.
y. Sinalizou problemas de depressão, ansiedade e de pânico, que se iniciaram no início da adolescência, assim como vários tratamentos a que, com o suporte dos pais, recorreu.
z. Esteve 3 meses internada numa comunidade terapêutica para resolver a adição emocional ao ex-companheiro, BB.
aa. AA assume que apenas se concretizou essa separação quando agora foi presa.
bb. AA enquadra a sua responsabilidade criminal nas condições de vida precárias e dependentes do ex-companheiro, que a pressionava para angariar quantias monetárias.
cc. Apesar deste enquadramento desculpabilizante, a condenada é capaz de reconhecer a ilicitude e a gravidade da conduta, assim como a sua fragilidade frente à pressão do ex-companheiro.
dd. De modo geral, demonstra capacidade de reflexão acerca dos fatores precipitantes do crime, bem como de motivação para se afastar de meios delinquenciais.
Percurso prisional:
ee. Em meio prisional revela competências adquiridas em meio livre, com capacidade para enfrentar e resolver as exigências diárias sem dificuldade.
ff. Apresenta uma personalidade prosocial e demonstra competências para uma integração social com sucesso.
gg. Tem um comportamento adequado e cooperante, sendo educada e afável.
hh. Está em RAI e trabalha na … com desempenho positivo.
ii. Tem consciência que a prisão foi necessária para terminar com o seu comportamento disruptivo.
jj. Mantem uma postura de reconstrução da sua vida.
kk. Já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, todas com êxito.
ll. Não tem antecedentes criminais.
*
2.2. Factos não provados:
Inexistem quaisquer factos não provados com relevância para a decisão.
*
2.3. Motivação da matéria de facto:
A convicção do tribunal no que respeita à resposta à matéria de facto provada resultou do teor da(s) certidão(ões) da(s) decisão(ões) condenatória(s) e do(s) cômputo(s) de pena(s), com homologação (artigo 477.º e 479.º, ambos do Código de Processo Penal), do certificado de registo criminal da reclusa, do teor da ficha biográfica, do teor dos relatórios da equipa técnica de tratamento prisional e reinserção social da Direcção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais junto aos autos, em que se confiou pela metodologia evidenciada e fontes consultadas, contendo avaliação da evolução da personalidade da reclusa durante a execução da pena, das competências adquiridas nesse período, do seu comportamento prisional e da sua relação com o crime cometido, das perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional da reclusa e das condições a que deve estar sujeita a concessão de liberdade condicional, conjugado com os esclarecimentos prestados em Conselho técnico e com as declarações da reclusa prestadas em sede de audição e documento junto relativamente à perspetiva de integração laboral.
*
3. Da análise dos factos e da aplicação do Direito:
Segundo dispõe o art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação de penas “visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”. E “a execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes” – art. 42º, nº 1, do CP.
Portanto, a ressocialização é perspetivada pela lei portuguesa como escopo essencial do ius puniendi.
Também a ressocialização dos criminosos se apresenta, em face dos pressupostos jurídico-constitucionais próprios do Estado de Direito material e das considerações humanitárias, como um imperativo de carácter ético, vale dizer, como “concretização de um dever geral de solidariedade e de auxílio às pessoas que deles se encontrem carecidas” (A. Almeida Costa, “Passado, presente e futuro da liberdade condicional no direito português”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1989, págs. 449-50).
O objetivo da liberdade condicional é, segundo o nº 9 do Preâmbulo do Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de setembro, “criar um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão”. Este tem, pois, uma “finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pág. 528).
Como refere Figueiredo Dias (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, págs. 529-30, 553-4), a “finalidade da execução da pena é simultaneamente mais modesta, mais nobre e mais difícil. Do que se trata, verdadeiramente, é de oferecer ao delinquente o máximo de condições favoráveis ao prosseguimento de uma vida sem praticar crimes, ao seu ingresso numa vida fiel ou conformada com o dever-ser jurídico-penal visando a prevenção da reincidência através da colaboração voluntária e ativa daquele”.
Nos termos do disposto no artigo 61º do Código Penal, são pressupostos formais (adotamos a terminologia de Sandra Oliveira e Silva, A Liberdade Condicional no Direito Português: Breves Notas, tese de mestrado, Datajuris pág. 14) de concessão da liberdade:
a) Que o recluso tenha cumprido metade da pena e no mínimo seis meses (condiciona-se a libertação condicional ao cumprimento de uma parte substancial da sanção decretada na sentença condenatória de modo a salvaguardar as exigências irrenunciáveis de prevenção geral, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico, a que o tribunal atende na determinação da medida concreta das reações criminais);
b) Que aceite ser libertado condicionalmente.
São, por outro lado, pressupostos materiais ou requisitos substanciais indispensáveis:
c) Que, fundadamente, seja de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável e sem cometer crimes;
d) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social (excetuado o disposto no nº 3 do preceito em causa).
No que respeita aos pressupostos materiais da liberdade condicional, o da alínea c) assegura uma finalidade de prevenção especial, enquanto o da alínea d) prossegue um escopo de prevenção geral (António Latas, Intervenção Jurisdicional na Execução das Reações Criminais Privativas da Liberdade Aspetos Práticos, Direito e Justiça, vol. especial, 2004, págs. 223 e 224, nota 32).
Reunidos os pressupostos formais, a concessão da liberdade condicional está dependente em primeiro lugar de um pressuposto subjetivo essencial, caracterizante da fácies político-criminal do instituto: o juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do delinquente no meio social. A expectativa de que o condenado, uma vez em liberdade, “conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes” configura-se como pressuposto inultrapassável, por expressa previsão legal: se não existir, a liberdade condicional não poderá ser concedida. Ao formular o juízo de prognose, o tribunal aceita um “risco prudencial” (sendo certo que é por todos os autores penitenciaristas reconhecida a dificuldade e incerteza na formulação destes juízos) que radica na expectativa de que o perigo de perturbação da paz jurídica, resultante da libertação, possa ser comunitariamente suportado, por a execução da pena ter concorrido, em alguma medida, para a socialização do delinquente (Sandra Oliveira e Silva, ob. cit., pág. 21; Hans-Heinrich Jescheck e Thomas Weigend, Tratado de Derecho Penal, Parte General, quinta edição, Comares, pág. 915). O juízo de prognose depende do conhecimento tanto quanto possível perfeito das grandezas que condicionam o comportamento criminoso: a individualidade humana com todas as suas incógnitas e o mundo social com todos os seus imprevistos. A previsão da conduta futura do indivíduo delinquente (prognose criminal individual) deve assentar na análise dos seguintes elementos:
a) As concretas circunstâncias do caso;
a) A vida anterior do agente;
b) A sua personalidade;
c) A evolução desta durante a execução da pena de prisão.
Mostram-se verificados os pressupostos formais para a reapreciação da liberdade condicional, uma vez que a reclusa declarou aceitar a sua libertação condicional e cumpriu dois terços da pena.
*
Dos pressupostos materiais:
A reclusa cumpriu metade da pena e declarou aceitar a liberdade condicional.
A reclusa adota comportamentos consentâneos com as exigências institucionais e com aquisição de maior maturidade, investiu na sua valorização pessoal, exercendo em simultâneo atividade laboral.
Pese embora se denote um percurso prisional ajustado e evolutivo, uma personalidade prosocial com competências para uma integração social com sucesso, AA ainda enquadra a sua responsabilidade criminal nas condições de vida precárias e dependentes do ex-companheiro, que a pressionava para angariar quantias monetárias, relação essa que só cessou com a sua reclusão.
A reclusa necessita de evoluir neste parâmetro, pois cada ser humano é responsável pelas decisões que toma e deve assumir, sem embargos emocionais, as respetivas consequências, remetendo-se a este propósito para o que ficou dito no acórdão condenatório, supra referido e confirmado pelo Tribunal Superior e acrescentando-se a ponderação do Sr Procurador “nesta fase, não é possível afirmar, com a necessária certeza, que a condenada, cuja personalidade é permeável à influência de terceiros, não voltará a reincidir, caso seja colocada perante as mesmas adversidades, nomeadamente, a mencionada permeabilidade à influência de fatores externos, não bastando que esteja afastada do alegado companheiro.
Acresce
Finalmente, não se pode ignorar que o crime cometido pela reclusa reveste elevada gravidade e que a sua libertação poria em risco a defesa da ordem e da paz social.
A forma negativa como a sociedade vê este tipo de crime, a grande frequência com que o mesmo é cometido, a danosidade que provoca no tecido social, desde logo, pelas consequências na criminalidade patrimonial que lhe está associada, para além de constituir uma das formas de criminalidade mais censurada pela sociedade atentos os reflexos perniciosos que tem na vida familiar, na saúde pública e na segurança das populações, faz concluir que a concessão da liberdade condicional neste momento poria em causa as exigências de prevenção geral e que foram tidas em conta na condenação, ou seja, tal concessão neste momento colocaria em causa as expectativas comunitárias na validade da norma e, por conseguinte, seria incompatível com a defesa e a ordem da paz social, para além de incrementar futuros comportamentos desviantes.
Este propósito, apelamos a um estudo de Ana Catarina Martins Oliveira Autoria E Comparticipação – Tráfico De Estupefaciente Trabalhos Do 2º Ciclo Do 32º Curso CEJ que escreve:
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, surgiu, assim, no âmbito de uma preocupação e de um movimento mundial contra o tráfico de estupefacientes e na sequência da assinatura e ratificação, por Portugal, da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991). De lá para cá, o tráfico de estupefacientes foi assumido pela justiça portuguesa como uma prioridade, tendo sido criadas Secções Especializadas para o tráfico de estupefacientes, nos Departamentos de Investigação e Acção Penal, unidades de combate ao tráfico de estupefacientes nas forças policiais, sendo sincronizados esforços entre as várias autoridades portuguesas (Polícia Judiciária, Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Autoridade Tributária e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e novas formas de investigação surgiram… Porém, o tráfico de estupefacientes continua a existir em larga medida e a sua irradicação da sociedade será difícil, se não mesmo impossível, não só porque existirá sempre quem consuma, como também por ser uma actividade que proporciona expressivas vantagens económicas a todos os que nela intervêm, quer seja o produtor, vendedor, intermediário ou o correio de droga. Acresce que a localização de Portugal como o país mais ocidental da Europa leva a que seja a porta de entrada, quer por via marítima, quer por via aérea, de muito do estupefaciente (sobretudo cocaína) provindo da América do Sul e que se destina à distribuição por vários países do velho continente. A democratização dos voos comerciais e a inexistência de fronteiras terrestes entre os países da União Europeia, facilita a entrada, saída e distribuição do estupefaciente pelos vários países que a compõem e onde Portugal se inclui. O tráfico internacional de estupefacientes faz parte da criminalidade objectivamente grave, com consequências de elevada danosidade que corroem os próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas.
Libertando-se neste momento a reclusa, face à gravidade dos atos praticados, ficariam frustradas as expectativas da comunidade. A libertação antecipada não deixaria de ter reflexos negativos na comunidade, designadamente quanto à confiança na validade das normas da ordem jurídica que pela reclusa foram violadas, além de deixar a proteção dos bens jurídicos a um nível que não é comunitariamente suportável.
Daí que não lhe possa ser concedida, ainda, a liberdade condicional.
***
4. Decisão:
Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, não concedo a liberdade condicional à reclusa
(…)».
2. DO RECURSO
Vem a condenada AA pelo presente recurso pôr em causa a decisão de não concessão de liberdade condicional ao meio da pena, sumariamente, por, contrariamente ao decidido, entender encontrarem-se verificados todos os pressupostos legalmente requeridos para a sua libertação ao meio da pena, já que resultam desse modo salvaguardadas as finalidades de prevenção geral e especial positiva.
Impõe-se, pois, na perspetiva da decisão a proferir, uma breve análise do instituto da liberdade condicional.
Vejamos.
2.2.1 DO DIREITO
Na sua génese, a figura da liberdade condicional constituiu uma resposta de natureza política criminal delineada como forma de reagir ao aumento de reincidência que se verificava sobretudo aquando do cumprimento de penas longas ou de média duração. [1]
Trata-se de uma fase de transição da reclusão para a liberdade definitiva, servindo uma finalidade específica de prevenção especial positiva ou de socialização, com vista a uma gradual preparação para o reingresso na vida livre em sociedade, minorando as dificuldades de adaptação inevitavelmente associadas ao tempo de reclusão; é criado, assim, «(…) um período de transição entre a prisão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social fatalmente enfraquecido por efeito da reclusão.».[2]
Nesta medida, sem perder de vista as finalidades da pena previstas no art. 40º/1 do Código Penal, de proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, a concessão da liberdade condicional enquanto última fase da sua execução, tem por base a presunção de recuperação do condenado uma vez cumprida parte substancial da pena aplicada.
É no balanço destes valores que o legislador assinala à execução da pena finalidades específicas de prevenção especial e de prevenção geral, consagrando no art. 42º/1 do Código Penal que:
«A execução da pena de prisão, servindo a defesa da sociedade e prevenindo a prática de crimes, deve orientar-se no sentido da reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.».
Será, pois, em qualquer caso condição da libertação antecipada típica do instituto da liberdade condicional um juízo de prognose favorável em relação ao modo como é expectável que o recluso conduza a sua vida uma vez em liberdade, de novo inserido na comunidade.
Tal libertação antecipada, como a designação “liberdade condicional” indica, está sujeita a restrições e condições destinadas a controlar os riscos que naturalmente comporta de resultarem frustradas as finalidades assinaladas à pena em execução, mormente a de proteção da sociedade, sancionando-se, por isso, a má conduta e reincidência com a revogação da liberdade condicional, em regime paralelo ao da suspensão da execução da pena de prisão – art. 64º do Código Penal.
É neste quadro valorativo que a concessão da liberdade condicional se subordina à verificação de pressupostos de natureza formal e material, com previsão no art. 61º do Código Penal, sob a epígrafe «pressupostos e duração», e nos termos do qual:
«1- A aplicação da liberdade condicional depende sempre do consentimento do condenado.
2- O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrar cumprida metade da pena e no mínimo seis meses se:
a) For fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes; e
b) A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social.
3- O tribunal coloca o condenado a prisão em liberdade condicional quando se encontrarem cumpridos dois terços da pena e no mínimo seis meses, desde que se revele preenchido o requisito constante da alínea a) do número anterior.
4 - Sem prejuízo do disposto nos números anteriores, o condenado a pena de prisão superior a seis anos é colocado em liberdade condicional logo que houver cumprido cinco sextos da pena.
5 - Em qualquer das modalidades a liberdade condicional tem uma duração igual ao tempo de prisão que falte cumprir, até ao máximo de cinco anos, considerando-se então extinto o excedente da pena.».
Daqui resulta que são os seguintes os pressupostos de natureza formal da liberdade condicional:
a) O consentimento do condenado – art. 61º/1 do Código Penal;
b) O cumprimento de, pelo menos, seis meses da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas – arts. 61º/2 e 63º/2, do Código Penal;
c) O cumprimento de metade, 2/3 ou 5/6 (em penas superiores a 6 anos) da pena de prisão ou da soma das penas de prisão que se encontram a ser executadas – arts. 61º/2, 3 e 4 e 63º/2, do Código Penal.
Decorre ainda desta previsão legal que a liberdade condicional quando reportada a metade ou a 2/3 da pena, a chamada liberdade condicional facultativa, consiste num poder-dever do tribunal vinculado à verificação de todos os pressupostos formais e materiais estipulados na lei, os quais são mais exigentes no caso aplicação a meio da pena, coerentemente com a necessidade de acautelar as finalidades das penas previstas no art. 40º/1 do Código Penal.
Assim, são pressupostos de natureza material da concessão da liberdade condicional a meio da pena:
a) Um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do condenado quando colocado em liberdade, assente, no essencial, numa apreciação sobre a evolução da sua personalidade durante o tempo de execução da prisão, que se reconduz às finalidades acometidas à pena, de prevenção especial positiva ou de ressocialização – art. 61º/2, a) do Código Penal;
b) Um juízo de prognose favorável sobre o reflexo da libertação do condenado na sociedade, ou seja, sobre o seu impacto na comunidade sob o prisma da ordem e paz social, acautelando exigências de tutela dos bens jurídicos protegidos pelas normas violadas, e portanto, de prevenção geral positiva.
Em suma: a concessão da liberdade condicional quando está cumprida apenas metade da pena de prisão, verificados os requisitos formais, depende de um juízo de prognose favorável quanto à satisfação das finalidades de prevenção especial positiva, de socialização e de prevenção geral positiva, concluindo-se a final que o condenado está preparado para se reintegrar na sociedade, sem cometer crimes.
Temos assim que para poder beneficiar da liberdade condicional, para além de verificados os requisitos formais, tem o condenado que reunir subjetivamente um conjunto de condições que apontem, com razoável segurança, para que, uma vez em liberdade, não retornará à prática criminosa.
Como se escreveu na Exposição de Motivos do Projeto de Lei 98/X:
«Por seu turno, a liberdade condicional poderá ser concedida, em todos os casos, quando o condenado tiver cumprido metade da pena. Mas será indispensável comprovar, nos termos gerais, que não há risco de ele persistir na actividade criminosa ou de a sua libertação perturbar a ordem e a paz social.».
Cabe, pois, ao juiz de execução de penas realizando um juízo de prognose assente nos elementos disponíveis, aferir se no caso de o condenado ser colocado em liberdade, adotará ou não um comportamento socialmente adequado e construtivo, afastando-se dos comportamentos que anteriormente adotou e que motivaram a sua reclusão.
2.2.2 Da verificação em concreto dos pressupostos materiais da liberdade condicional
Tendo como assente a verificação dos pressupostos formais da liberdade condicional, importa então aferir à luz dos factos provados, que não vêm impugnados, se, como decidido, não se verificam ainda os pressupostos materiais, ou se, conforme pugna a condenada recorrente oferece a mesma garantias de manter uma conduta conforme ao Direito uma vez em liberdade, e a sua libertação nesta fase não é de molde a pôr em causa a defesa da ordem e da paz social.
Vejamos o que critica a recorrente na decisão recorrida.
No que especificamente concerne ao pressuposto previsto sob o art. 61º/2, a) do Código Penal, para além de invocar o parecer favorável do Conselho Técnico e serviços prisionais, argumenta que o Tribunal a quo não se desprende dos factos que sustentaram a condenação, ignorando qualquer desenvolvimento positivo, tal qual se verifica; alude nesse sentido ao seu comportamento em meio prisional e à evolução da personalidade que tem vindo a revelar, reconhecendo as razões que levaram ao seu desvio, a ilicitude e gravidade da conduta praticada e inversão desse modo de vida e pensamento, com reflexo na atitude adotada ao longo de todo o processo e execução da pena.
Pois bem.
Atentando na fundamentação da decisão recorrida na parte concernente, temos desde logo a salientar que, contrariamente ao que vem alegado no recurso, o Tribunal a quo não só considerou o declarado pela condenada para fundamentar a sua decisão, como o deixou bem expresso nos factos dados como assentes de aa. a dd., ii. jj., os quais bebem das suas declarações e dos relatórios favoráveis juntos aos autos pelos Serviços Prisionais e pela DGRSP de 14/11/2023 e de 13/11/2023, solicitados nos termos e para os efeitos previstos no art. 173º/1, a) e b), do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade aprovado pela L. 115/2009, de 12/10 (doravante CEPMPL).
Ouvidas essas declarações de viva voz, e fazendo o confronto com a decisão recorrida, percebe-se que, ao contrário do pugnado no recurso, o Tribunal recorrido levou em consideração que:
(i) a condenada encontra-se consciente das razões que a conduziram ao desvio comportamental – bb.;
(ii) reconhece a ilicitude da sua conduta e suas consequências – cc.;
(iii) arrepende-se por tal decisão – dd.;
(iv) apresenta um forte suporte familiar – i. a k. e v. a x.;
(v) apresenta perspetivas de futuro credíveis – jj., i. a r. e v. a x.;
(vi) desenvolveu ao longo de todo o processo um crescimento positivo, respeitando as normas e regras institucionais – ee. a hh.;
(vi) encontra-se em RAI, o qual tem decorrido sem quaisquer incidentes – kk.;
(vii) já beneficiou de medidas de flexibilização da liberdade sempre com sucesso – kk.;
(viii) encontra-se a trabalhar dentro do estabelecimento prisional – hh.; e
Por isso, se escreve a dado passo que:
«A reclusa adota comportamentos consentâneos com as exigências institucionais e com aquisição de maior maturidade, investiu na sua valorização pessoal, exercendo em simultâneo atividade laboral.».
Para depois, notar que:
«Pese embora se denote um percurso prisional ajustado e evolutivo, uma personalidade prosocial com competências para uma integração social com sucesso, AA ainda enquadra a sua responsabilidade criminal nas condições de vida precárias e dependentes do ex-companheiro, que a pressionava para angariar quantias monetárias, relação essa que só cessou com a sua reclusão.
A reclusa necessita de evoluir neste parâmetro, pois cada ser humano é responsável pelas decisões que toma e deve assumir, sem embargos emocionais, as respetivas consequências, remetendo-se a este propósito para o que ficou dito no acórdão condenatório, supra referido e confirmado pelo Tribunal Superior e acrescentando-se a ponderação do Sr Procurador “nesta fase, não é possível afirmar, com a necessária certeza, que a condenada, cuja personalidade é permeável à influência de terceiros, não voltará a reincidir, caso seja colocada perante as mesmas adversidades, nomeadamente, a mencionada permeabilidade à influência de fatores externos, não bastando que já esteja afastada do alegado companheiro.».
Ou seja: reconhecendo embora os factos positivos que resultam do declarado pela condenada, em consonância com o que consta dos referidos relatórios, o Tribunal a quo, efetuando a sua interpretação daquelas declarações considera não ser ainda bastante a evolução registada para poder formular o juízo de prognose favorável à sua libertação desde já.
Resuma, assim, da transcrita fundamentação que o Tribunal a quo, por um lado, viu na invocação pela condenada do contexto que envolveu a prática dos factos uma autojustificação que a desresponsabilizaria pela conduta criminosa adotada (embora não o afirme de forma expressa), e por outro lado, na sua personalidade permeável à influência de fatores externos um risco de reincidência na conduta criminosa.
Todavia, cremos que nem a invocação desse contexto permite sem mais extrair essa conclusão, sobretudo se a condenada acompanha a sua menção com a ressalva expressa e repetida quanto à consciência de que é responsável pela escolha que fez pois podia ter dito «não», nem pode a sua personalidade permeável e influenciável por terceiros, também por si só, fundamentar o juízo de impreparação para a vida em liberdade, quando a própria condenada reconhece essa característica de personalidade e tudo tem feito ao seu alcance, considerando a privação da liberdade, para a «trabalhar» e mudar.
Na verdade, foi a condenada quem, nas declarações prestadas perante a Senhora Juíza de Execução de Penas, se auto definiu com «eu sempre fui muito influenciável», depois de descrever brevemente as tentativas feitas pelos pais para a amparar nas suas más escolhas.
Mas disse também estar a receber acompanhamento psicológico no estabelecimento prisional com efeito positivo na perceção de que tem de saber dizer «não»; também reiterou que não estava a meter as culpas para cima dele, referindo-se ao companheiro que lhe teria proposto o transporte de estupefacientes, e que era livre para fazer uma escolha.
Não pode descurar-se que, atentando no acórdão condenatório, esta sempre foi a versão da condenada ao longo do processo, havendo inclusivamente diligências, reveladas infrutíferas, para chamar a juízo o referido ex-companheiro, BB; de resto, os factos dados como provados nesse acórdão sob os pontos 49. a 57., dão conta deste relacionamento e da instabilidade pelo mesmo gerada na condenada que chegaria a apresentar queixa contra ele e a pedir ajuda aos pais para se libertar da dependência emocional que a impedia de pôr termo à relação.
A condenada, de forma que nos pareceu sincera, admitiu que errou e que, apesar dos avisos familiares, não se conseguiu libertar daquele indivíduo.
É claro que o percurso de vida da condenada é revelador desta e de outras fragilidades, com o abandono dos estudos para trabalhar, mas sem dar seguimento a uma das várias atividades exercidas, sempre na sombra dos pais e da ajuda destes (que terão adquirido um apartamento para que ela e a irmã estudassem em Lisboa) – 41. a 47. dos factos provados no acórdão condenatório; pais estes que lhe terão proporcionado o internamento visando a cura da tal dependência emocional em relação àquele companheiro, o qual fracassaria ao fim de 3 meses - 49. a 52. dos factos provados do acórdão condenatório; tal como assente nestes autos e reiterado pela própria na audição, só a sua prisão fez concretizar a separação, dizendo mesmo a condenada que lhe «salvou a vida», não sabendo o que lhe teria acontecido – d. a aa. e declarações prestadas na sessão de 15/12/2023.
Todavia, esta foi a sua primeira condenação e, a julgar pelas suas palavras, mas também pelo conteúdo dos relatórios elaborados e vertidos para os factos dados como assentes, teve o condão de a afastar definitivamente do referido BB e da relação tóxica que a unia a ele, servindo-lhe de motivação para procurar alterar o seu modo de estar na relação com os outros, no tocante à assumida personalidade influenciável.
Como nos diz o acórdão da Relação do Porto de 15/01/2020, relatado por Pedro Vaz Pato no processo 400/15.1TXPRT-K.P1 «O juízo sobre se o condenado interiorizou suficientemente o desvalor da sua conduta é um juízo sobre um facto interno que, na sua integralidade, escapa ao conhecimento de qualquer juiz. Este poderá atender apenas a factos objetivos, como o discurso verbal ou o comportamento que possa refletir essa disposição interior de arrependimento, ou, pelo contrário, com ela contrastar; para além desses factos objetivos, qualquer juízo que se funde noutros aspetos entra no domínio do arbitrário.».
Ora, todos os factos objetivos apurados e o que resulta da audição da condenada convergem no sentido da interiorização da gravidade do acontecido e dos esforços genuínos e empenhamento pessoal em mudar o que estruturalmente terá estado na base do desvio que levou ao crime, essencial a gerar confiança na capacidade de se manter, em liberdade, afastada do cometimento de crimes.
De resto, o Tribunal recorrido não deixa de sinalizar, com base nos factos assentes, o bom prognóstico de que goza a condenada quanto à forma como conduzirá a sua vida em liberdade, parecendo apenas considerar que a sua personalidade permeável a terceiros e a alusão feita nas suas declarações ao contexto da sua conduta criminosa, apontarão para risco de reincidência.
Ora, com todo o respeito, em face do que fica dito, nem essa personalidade, que a condenada assume e procura contrariar pelos meios que tem à disposição, nem a alusão feita ao contexto em que praticou os factos e que se assemelha verosímil atenta a ressonância nos factos provados no acórdão condenatório, impedem o juízo de prognose de que a condenada uma vez em liberdade conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Como se deu como assente na decisão recorrida:
«(…)
cc. (…) a condenada é capaz de reconhecer a ilicitude e a gravidade da conduta, assim como a sua fragilidade frente à pressão do ex-companheiro.
dd. De modo geral, demonstra capacidade de reflexão acerca dos fatores precipitantes do crime, bem como de motivação para se afastar de meios delinquenciais.
Percurso prisional:
ee. Em meio prisional revela competências adquiridas em meio livre, com capacidade para enfrentar e resolver as exigências diárias sem dificuldade.
ff. Apresenta uma personalidade prosocial e demonstra competências para uma integração social com sucesso.
gg. Tem um comportamento adequado e cooperante, sendo educada e afável.
hh. Está em RAI e trabalha na … com desempenho positivo.
ii. Tem consciência que a prisão foi necessária para terminar com o seu comportamento disruptivo.
jj. Mantem uma postura de reconstrução da sua vida.
kk. Já beneficiou de medidas de flexibilização da pena, todas com êxito.
ll. Não tem antecedentes criminais.
(…) (negrito nosso)».
Estes factos levaram a que:
• o Conselho Técnico haja emitido, por unanimidade, parecer favorável à concessão de liberdade condicional, na reunião de 15/12/2023, ao abrigo do art. 175º/4 do CEPMPL (ata com a referência 10581778);
• os Serviços Prisionais, avaliando muito positivamente a evolução da personalidade da reclusa, as competências adquiridas em reclusão, o comportamento prisional e a relação com o crime cometido, se tenham manifestado favoravelmente à concessão da liberdade condicional no relatório de 14/11/2023 (referência 1884366);
• a Direção Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais no relatório de 13/11/2023 (referência 1884296) relativo às necessidades subsistentes de reinserção social, e avaliação das perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional da reclusa, tenha igualmente sido favorável à libertação da condenada a meio da pena.
Acresce que, como verbalizou na sua audição, a condenada tem já um projeto de vida traçado junto dos progenitores, em ..., com residência geograficamente afastada da que terá o referido BB, na ... [3], mostrando-se aqueles, por sua vez, disponíveis para mais uma vez a apoiar nesta fase da sua vida.
Temos assim que a evolução da personalidade da condenada durante a execução da pena, as competências por si adquiridas no período de reclusão, o comportamento prisional, o seu relacionamento com o crime cometido, e as perspetivas de enquadramento familiar, social e profissional, permitem concluir que, pese embora estar apenas cumprida metade da pena de 4 anos e 10 meses de prisão, reúne já condições que, razoavelmente, fundam a expectativa de que, uma vez colocada em liberdade, assumirá uma conduta conforme ao Direito.
Entendemos, nesta conformidade, que, contrariamente ao que foi entendido na decisão recorrida, está verificado o pressuposto material da concessão da liberdade condicional a meio da pena previsto sob o art. 62º/2, a), do Código Penal.
*
Mas cremos também verificado o pressuposto ligado às exigências de prevenção geral positiva, previsto sob o art. 62º/2, b) do Código Penal, parecendo-nos, de resto, assistir razão à recorrente nas fragilidades apontadas à decisão recorrida neste particular.
Com efeito, o facto de estar em causa um crime de tráfico de estupefacientes internacional a convocar, em geral e abstrato, elevadas exigências de prevenção geral, não pode por si só, desligado das circunstâncias concretas do caso, fundar a decisão de não concessão da liberdade condicional por se revelar a libertação a meio da pena incompatível com essas exigências, tal como foi decidido.
Assim, depois de abordar a questão da personalidade da recorrente e da sua permeabilidade à influência de terceiros, o Tribunal recorrido lança mão da seguinte argumentação relativa à incompatibilidade da libertação com a defesa da ordem e da paz social:
«(…)
Finalmente, não se pode ignorar que o crime cometido pela reclusa reveste elevada gravidade e que a sua libertação poria em risco a defesa da ordem e da paz social.
A forma negativa como a sociedade vê este tipo de crime, a grande frequência com que o mesmo é cometido, a danosidade que provoca no tecido social, desde logo, pelas consequências na criminalidade patrimonial que lhe está associada, para além de constituir uma das formas de criminalidade mais censurada pela sociedade atentos os reflexos perniciosos que tem na vida familiar, na saúde pública e na segurança das populações, faz concluir que a concessão da liberdade condicional neste momento poria em causa as exigências de prevenção geral e que foram tidas em conta na condenação, ou seja, tal concessão neste momento colocaria em causa as expectativas comunitárias na validade da norma e, por conseguinte, seria incompatível com a defesa e a ordem da paz social, para além de incrementar futuros comportamentos desviantes.
Este propósito, apelamos a um estudo de Ana Catarina Martins Oliveira Autoria E Comparticipação – Tráfico De Estupefaciente Trabalhos Do 2º Ciclo Do 32º Curso CEJ que escreve:
O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, surgiu, assim, no âmbito de uma preocupação e de um movimento mundial contra o tráfico de estupefacientes e na sequência da assinatura e ratificação, por Portugal, da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988 (Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e Decreto do Presidente da República n.º 45/91, publicados no Diário da República, de 6 de Setembro de 1991). De lá para cá, o tráfico de estupefacientes foi assumido pela justiça portuguesa como uma prioridade, tendo sido criadas Secções Especializadas para o tráfico de estupefacientes, nos Departamentos de Investigação e Acção Penal, unidades de combate ao tráfico de estupefacientes nas forças policiais, sendo sincronizados esforços entre as várias autoridades portuguesas (Polícia Judiciária, Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Autoridade Tributária e Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) e novas formas de investigação surgiram… Porém, o tráfico de estupefacientes continua a existir em larga medida e a sua irradicação da sociedade será difícil, se não mesmo impossível, não só porque existirá sempre quem consuma, como também por ser uma actividade que proporciona expressivas vantagens económicas a todos os que nela intervêm, quer seja o produtor, vendedor, intermediário ou o correio de droga. Acresce que a localização de Portugal como o país mais ocidental da Europa leva a que seja a porta de entrada, quer por via marítima, quer por via aérea, de muito do estupefaciente (sobretudo cocaína) provindo da América do Sul e que se destina à distribuição por vários países do velho continente. A democratização dos voos comerciais e a inexistência de fronteiras terrestes entre os países da União Europeia, facilita a entrada, saída e distribuição do estupefaciente pelos vários países que a compõem e onde Portugal se inclui. O tráfico internacional de estupefacientes faz parte da criminalidade objectivamente grave, com consequências de elevada danosidade que corroem os próprios fundamentos das sociedades democráticas e abertas.
Libertando-se neste momento a reclusa, face à gravidade dos atos praticados, ficariam frustradas as expectativas da comunidade. A libertação antecipada não deixaria de ter reflexos negativos na comunidade, designadamente quanto à confiança na validade das normas da ordem jurídica que pela reclusa foram violadas, além de deixar a proteção dos bens jurídicos a um nível que não é comunitariamente suportável.
Daí que não lhe possa ser concedida, ainda, a liberdade condicional.
(…)».
Entende a recorrente que a fundamentação da decisão nesta parte é vaga, abstrata e genérica, não resultando da mesma qualquer circunstância concreta do caso que aponte para a exponenciação das exigências de prevenção geral para alem das normais implícitas ao próprio crime, sendo que aquela fundamentação apela a fatores e argumentos que, sendo comuns a todos os crimes de tráfico de estupefacientes, foram já os considerados quando da condenação e fixação da pena, efetuando nessa medida uma sua dupla valoração.
Mais defende que o caso não suscita particulares exigências de prevenção geral em relação a qualquer crime de tráfico de estupefacientes, situando-se num patamar de ilicitude e culpa consideravelmente atenuado, como decorre da fixação da pena em 4 anos e 10 meses de prisão, junto do limite mínimo da moldura penal, de 4 a 12 anos de prisão.
Conclui que não é possível extrair qualquer consequência negativa para efeitos das exigências de prevenção geral que inviabilize a concessão da liberdade condicional a meio da pena.
E cremos que lhe assistirá razão.
De facto, o Tribunal recorrido abstrai da situação concreta que tem em mãos para, de um modo geral, atribuir ao crime de tráfico internacional de estupefacientes uma gravidade tal que, levando a sua argumentação às últimas consequências, imporia sempre e em qualquer caso a incompatibilidade com a defesa da ordem e da paz social da libertação a meio da pena dos condenados por esse tipo de crime.
O que, com todo o respeito, extravasa do texto legal e do espírito do legislador, posto que inexiste norma legal que o preveja ou torne mais exigente a libertação condicional dos condenados para este tipo de crime de tráfico de estupefacientes. [4]
Terá que ser, pois, na situação em concreto, e com os dados do caso, os quais devem ser especificados na fundamentação, que deverá formular-se o juízo de prognose favorável ou desfavorável sobre o reflexo da libertação da condenada na comunidade, requerido pelo pressuposto material da liberdade condicional inscrito na alínea b) do nº 2 do art. 69º do Código Penal.
É certo que as exigências de prevenção geral que aqui se convocam não sendo exatamente as mesmas que se consideraram quando da condenação, como aduz a defesa, também vão para além do impacto da prática do crime e da eventual libertação do condenado no meio social envolvente [5]
Isto porque está em causa não apenas a «paz social», mas também a «defesa da ordem» jurídica.
Há, pois, um grau mínimo a observar na proteção dos bens jurídicos lesados pela conduta, que passa, fundamentalmente, pela garantia de que o modo de execução da pena não porá em causa a confiança comunitária na validade da ordem jurídica e na proteção que esta assegura aos bens que estruturam a vida social; só assim se torna comunitariamente suportável o reingresso do condenado, assumindo-se o risco da sua libertação.
Isto porque, como se escreve no acórdão da Relação do Porto de 27/11/2019, relatado por Pedro Vaz Pato,[6] «Diante da violação da ordem jurídica e da agressão a esses valores, a consciência jurídica comunitária poderá ficar abalada se o sistema jurídico-penal não reagir, fechar os olhos a tal violação, ficando comprometida a referida confiança. A pena exerce, assim, uma função pedagógica de interpelação social que veicula uma mensagem cultural de chamada de atenção para a relevância de valores e bens jurídicos e, nessa medida, traduz-se numa forma de proteção desses bens jurídicos e da ordem jurídica em geral.
Ora, a liberdade condicional numa fase ainda algo distante do termo do cumprimento da pena pode ser interpretada pela consciência comunitária como uma forma de desvalorização de bens jurídicos a que dá particular importância e como um sinal de alguma indiferença perante o valor desses bens, uma mensagem contraditória com um propósito de tutela dos mesmos.» (negrito nosso).
Em suma: ainda que se possa formular um juízo de prognose favorável à conduta futura do condenado uma vez em liberdade, de acordo com o previsto sob o art. 62º/2,a) do Código Penal, a defesa da sociedade e o limiar mínimo de proteção dos bens jurídicos objeto das normas violadas não podem ser postos em causa por uma sua libertação a meio da pena que, em última análise, desvalorize e desacredite aos olhos do próprio condenado e da sociedade, essa violação, afetando a confiança comunitária na validade e efetividade dessas normas e da ordem jurídica em geral.
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No caso em apreço, muito embora em geral e abstrato se confirme a gravidade do tráfico internacional de estupefacientes, e em concreto, quando estamos a falar de 1,5 kg de cocaína e mais de 5.000 doses individuais, pelo grau de danosidade que representa o seu transporte a partir do Brasil para Portugal, nesta sede, importa aferir em especial se, mercê desta especificidade do cometimento do crime, a libertação da condenada a meio da pena pode gerar na comunidade a ideia de que, afinal, este tipo de conduta não terá assim tanta gravidade, dando sinal contrário ao devido quanto à validade das normas violadas e pondo, do mesmo passo, em cheque a tutela dos bens jurídicos que protegem.
E nesse conspecto, ponderando as circunstâncias pessoais da condenada, o contexto do cometimento do crime e o percurso feito até aqui, não cremos que a sua libertação a meio da pena possa fazer perigar a paz social ou a defesa da ordem jurídica.
Releva neste particular o facto de estarmos diante uma condenada primária, tudo apontando para que este tenha sido um ato episódico na sua vida, praticado quando tinha 29 anos de idade e no contexto de uma relação que seria abusiva.
Revelou consciência da gravidade dos factos cometidos e da sua responsabilidade individual nesse acontecimento, não nos parecendo que a sua libertação a meio da pena a faça desvalorizar essa gravidade e responsabilidade, ou que a comunidade o possa encarar desse modo.
A condenada prevê o regresso à comunidade e ao núcleo familiar de origem, em ..., a mais de 100 kms de distância da zona onde anteriormente residia e mantinha a dita relação, mantendo o apoio familiar dos pais que, a julgar pelos factos assentes, se tem revelado constante e responsável, pois que o perdeu quando optou por abandonar antes de terminar o internamento suportado pelos pais para pôr termo à dependência emocional que a ligava a BB, voltando a este relacionamento.
Tem ainda em perspetiva regressar ao trabalho que anteriormente desempenhava, para o qual se perceciona estar motivada, de condutora ..., e que nada tem que ver com a atividade criminosa que a levou ao cárcere.
Neste contexto, não cremos que o regresso antecipado à comunidade, em ordem a dar já início ao processo de reintegração social em meio livre (para o que, diga-se, se encontra preparada) cumprida metade da pena, possa pôr em causa a paz social ou a defesa da ordem, parecendo-nos antes que estão reunidas as condições pessoais e de envolvente social e familiar para a sua aceitação comunitária; por outro lado, os 2 anos e 9 meses de prisão que terá cumprido de pena sendo agora libertada, atento todo o circunstancialismo do caso, mostram-se já suficientes para considerar acauteladas exigências mínimas de tutela dos bens jurídicos protegidos pelas normas violadas, não pondo em causa a confiança da comunidade na validade das mesmas e da ordem jurídica, tão pouco a proteção que conferem a esses bens jurídicos.
Somos assim a concluir que, para além de a condenada ter realizado em meio prisional um caminho de reabilitação pessoal e interior consistente e positivo, sem que se lhe assinale qualquer fator negativo, sendo de esperar que venha a conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes – art. 61º/2,a) do Código Penal -, se encontram também reunidas as condições de facto para considerar a libertação antecipada da condenada ao meio da pena, compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social, com previsão no art. 62º/1,b) do Código Penal, resultando nessa medida acauteladas as finalidades preventivas visadas com a aplicação e execução das penas, nos termos previstos no art. 42º/1 do Código Penal.
Conforme referido na decisão recorrida, que não vem nessa parte posta em causa, estão ainda verificados os requisitos formais da concessão da liberdade condicional, com o consentimento prestado pela condenada e o cumprimento de metade da pena e mais de 6 meses de prisão.
Essa liberdade condicional perdurará até ao termo da pena, fixado em 19/05/2026 - art. 61º/5 do Código Penal.
Atento o disposto no art. 52º ex vi do art. 64º/1, ambos do Código Penal, e 177º/2, c) do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade aprovado pela L. 115/2009, de 12/10 (CEPMPL), considerando as necessidades de promoção da reintegração social visada com a medida e de fiscalização da sua execução, levando em conta o relatório elaborado pelos Serviços da DGRSP em 13/11/2023, a libertação condicional da condenada fica sujeita às seguintes condições:
1.ª Fixar e manter residência no concelho de …;
2.ª Não acompanhar, alojar ou receber o ex-companheiro BB;
3.ª Angariar e manter uma atividade profissional, inscrevendo-se se necessário no Centro de Emprego da área de residência, de forma a garantir a sua subsistência sem dependência dos progenitores;
4.ª Adotar um comportamento socialmente adequado, evitando situações de risco que precipitem ou favoreçam a reincidência criminal;
5.ª Comparecer às entrevistas e cumprir as orientações emanadas pelo técnico responsável pelo acompanhamento da medida, comunicando qualquer alteração da sua atual residência ou outra que ponha em causa a medida aplicada.
Nesta consonância, não pode deixar de se julgar procedente o recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-a por outra que concederá à recorrente a requerida liberdade condicional até ao termo da pena, sob as condições indicadas.
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III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as juízas do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e, consequentemente, decidindo conceder à condenada recorrente AA a liberdade condicional até ao termo da pena fixado em 19/05/2026, subordinada às seguintes condições:
1.ª Fixar e manter residência no concelho de Santarém;
2.ª Não acompanhar, alojar ou receber o ex-companheiro BB;
3.ª Angariar e manter uma atividade profissional, inscrevendo-se se necessário no Centro de Emprego da área de residência, de forma a garantir a sua subsistência sem dependência dos progenitores;
4.ª Adotar um comportamento socialmente adequado, evitando situações de risco que precipitem ou favoreçam a reincidência criminal;
5.ª Comparecer às entrevistas e cumprir as orientações emanadas pelo técnico responsável pelo acompanhamento da medida, comunicando qualquer alteração da sua atual residência ou outra que ponha em causa a medida aplicada.
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Sem custas – art. 513º/1 do Código de Processo Penal a contrario, ex vi do art. 154º do CEPMPL, sem prejuízo do disposto nº nº 4 do art. 153º deste último diploma.
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Notifique nos termos do art. 177º/3, 1ª parte do CEPMPL, e, de imediato, emita mandados de libertação a remeter ao estabelecimento prisional onde se encontra a condenada, com conhecimento à primeira instância.
Após trânsito, baixando os autos à primeira instância, será dado cumprimento ao disposto no nº 3, 2ª parte do citado art. 177º do CEPMPL.
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Lisboa,
23 de abril de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Luísa Alvoeiro
Maria José Machado
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1. cfr. Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, AEQUITAS Editorial Notícias, 1993, págs. 527 e sg..
2. Vide ponto 9- do Preâmbulo do Código Penal aprovado pela L. 400/82, de 23/09.
3. Distanciadas por cerca de 110kms rodoviários, conforme consulta feita na aplicação goglemaps: https://www.google.com/maps/dir/Venda+Nova/Vila+de+Rei;https://www.google.com/maps/dir/Falagueira,+2700-063/Vila+de+Rei
4. Rejeitando este raciocínio generalista e abstrato para os crimes graves, veja-se por todos o acórdão da Relação do Porto de 27/11/2019, relatado por Pedro Vaz Pato no processo 924/16.3TXPRT-G.P1, acessível em www.dgsi.pt.
5. Neste sentido o acórdão da Relação de Évora de 05/02/2019, relatado por António João Latas no processo 669/16.4TXTEVR-HE, acessível em www.dgsi.pt.
6. Proferido no processo 924/16.3TXPRT-G.P1, acessível em www.dgsi.pt e já citado na nota [4].