MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
ERRO DE JULGAMENTO
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CRIME DE EXECUÇÃO PERMANENTE
A INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Sumário

(da responsabilidade da relatora):
I – Em recurso interlocutório que versa sobre despacho que comunicou uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica, nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 e 3 do Código de Processo Penal, não pode ser apreciada a nulidade prevista no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, pois tratando-se de nulidade de sentença, só após a sua prolação esta poderá ser conhecida.
II – Nesse recurso não pode igualmente ser apreciado eventual erro de julgamento relativo aos factos comunicados.
III – A invocação de tais fundamentos determina a rejeição do referido recurso por manifesta improcedência, nos termos do art.º 420º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal:
IV – Não ocorre alteração substancial de factos nos termos do art.º 359º do Código de Processo Penal, mas mera alteração da qualificação jurídica nos termos do art.º 358º, nº 3 do Código de Processo Penal, quando o tribunal se limita a considerar que os factos já descritos na acusação, ao invés de integrarem um crime de violência doméstica em concurso aparente com um crime de violação, integram estes dois crimes em concurso efetivo.
V – Sendo o crime de violência doméstica um crime de execução permanente prolonga-se enquanto durar a manutenção da situação antijurídica voluntária do agente, pelo que o prazo de prescrição inicia-se, apenas, a partir da prática do último facto que integra a reiteração dos atos criminosos, não sendo relevante os hiatos temporais verificados entre determinados atos, desde que que a prática desses sucessivos atos radique numa única resolução criminosa.
VI - O objeto da prova abrange também os factos relevantes para a decisão sobre questões prévias, interlocutórias ou incidentais verificadas na pendência do processo, e resultantes da discussão da causa, incluindo a determinação dos factos relevantes para a verificação dos pressupostos legais (positivos da punição, como a queixa e o seu exercício tempestivo), sobretudo quando controvertidos se tornam pertinentes em face das diferentes e possíveis soluções jurídicas.
VII - Havendo divergência doutrinal e jurisprudencial quanto à natureza publica ou semipública do ilícito, mas tendo a queixa sido apresentada em momento compatível com essa coabitação, torna-se indispensável o apuramento concreto da data, ou período mais restrito em que tais factos ocorreram, a fim de se poder aquilatar se a queixa foi ou não tempestivamente apresentada (artigo 115º, nº 1, do Código Penal) ou para apuramento da verificação ou não da prescrição do procedimento criminal.
VIII – O Tribunal a quo limitou-se a dar como provado que o arguido praticou os factos que subsumiu ao crime de violação agravada, previsto e punível pelos arts. 164º, nº 2 al. a) e 177º, nº 1 al. b) do Código Penal no período em que arguido e vítima viveram juntos, quedando-se por uma investigação superficial, e deixando de indagar factos essenciais à decisão de direito resultantes da discussão da causa, que impedem de bem decidir no plano do direito, ocorrendo assim o vício previsto no art.º 410º, nº 2 al. a) do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Acordaram, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
I.1 No âmbito do processo comum coletivo nº 815/22.9PALSB, que corre termos no Juízo Central Criminal de Lisboa – Juiz 16, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, em 6 de dezembro de 2023, foi proferido acórdão, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:
III – Dispositivo
Tudo visto e ponderado, acordam os membros deste tribunal coletivo em julgar a acusação procedente e, em consequência:
A) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
B) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violação agravado, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão.
C) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n. 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão.
D) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas nas alíneas A), B) e C), condenar o arguido AA na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
E) Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de uso e porte de armas e de contactar com a ofendida e de se aproximar da sua residência ou do seu local de trabalho, pelo período de 3 (três) anos, a cumprir após o cumprimento da pena de prisão.
F) Condenar o arguido AA no pagamento à ofendida BB, da quantia de €7.500 (sete mil e quinhentos euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por ela sofridos.
G) Declarar perdidas a favor do Estado as armas, munições e objeto decorativo com configuração de arma de fogo apreendidas nos autos.
H) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidades de Conta (cf. artigos 513.º e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III anexa a este último diploma legal).
*
Na sessão da audiência de julgamento de 22.11.2023 foi proferido os seguintes despachos [transcrição]:
“DESPACHO
Ao arguido é imputada a prática, além de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, punido com pena de 3 a 10 anos de prisão, por ser a pena mais gravosa, correspondente à pena do crime de violação.
Porém, não é este o entendimento deste tribunal.
Em nosso entender, face à factualidade imputada ao arguido no libelo acusatório e que poderá resultar provada em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento, o crime de violação é autonomizável em relação ao crime de violência doméstica, estando assim tais crimes em relação de concurso efetivo e não aparente, conforme plasmado na acusação.
Por outro lado, a factualidade imputada ao arguido na acusação no que tange ao crime de violação e que poderá resultar provada em face da prova produzida em sede de julgamento (mormente que, “enquanto viviam juntos, em casa de ambos o arguido, pretendendo manter relações sexuais com a ofendida, e quando esta lhe disse que parasse, pelo menos por uma ocasião, aquele agarrou os braços da ofendida de forma a impedi-la de defesa e introduziu o pénis na sua vagina, forçando-a relações sexuais”) é suscetível de fazer o arguido incorrer na prática do crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.
Assim, em relação aos imputados crimes de violência doméstica e de violação, entendemos que o arguido poderá incorrer na prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e de um crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.
O que acaba de se expor consubstancia uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, o que agora se comunica ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal.
Também no que concerne ao crime de violência doméstica, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente, das declarações da ofendida e do depoimento da testemunha CC, poderão resultar provados os seguintes factos que não constam descritos na acusação:
- em data que, em concreto não foi possível apurar, mas situada entre os meses de outubro de 2002 e setembro de 2003, o arguido pegou numa pequena mesa de centro, em vidro, e arremessou-a na direção da cabeça da ofendida, atingindo-a na cabeça e deixando-a a sangrar;
- em data que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada entre os meses de março e setembro de 2004, o arguido desferiu uma pancada com a mão fechada na cara da ofendida, com o que logrou partir-lhe os dentes;
- em algumas ocasiões, e de forma a ultrapassar a oposição da ofendida em manter relações sexuais consigo, o arguido dizia à ofendida que ela era uma puta e uma vaca;
- em consequência do comportamento perpetrado pelo arguido contra a ofendida, esta não consegue dormir e está sob acompanhamento, por psicólogo, desde há cerca de um ano, com periodicidade mensal ou de dois em dois meses.
O que acaba de se expor consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, no que concerne ao imputado crime de violência doméstica, o que agora também se comunica ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.”
*
Após ter sido concedida a palavra à Ilustre Defensora do arguido, a qual requereu prazo o prazo de 10 dias para pronúncia acerca das comunicações agora efetuadas, foi proferido o seguinte despacho:
“Ao abrigo do disposto no art.º 358º do Código de Processo Penal, concede-se ao arguido o prazo de 10 dias para se pronunciar relativamente à comunicação efetuada na presente audiência de julgamento.
Em face disso, interrompe-se a presente audiência, designando-se a sua continuação com possível leitura de acórdão para o próximo dia 6 de Dezembro, pelas 13:30 horas.”
*
I.2 Recurso do despacho exarado a 22.11.2023
Inconformado com tal despacho dele interpôs recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“V. Das Conclusões
1.ª No âmbito dos presentes autos, o Tribunal “a quo” proferiu despacho designando para leitura de acórdão o dia 22 de Novembro de 2023, pelas 13:30.
Por conseguinte,
2.ª No dia 22 de Novembro de 2023, pelas 13:30 foi realizada audiência de julgamento, no qual o Tribunal “a quo” proferiu despacho e procedeu à alteração da qualificação jurídica e alteração não substancial dos factos, aditando novos factos ao despacho de acusação proferido pelo Ministério Público;
Salienta-se que,
3.ª O presente recurso tem por objetivo por em causa o Despacho proferido pelo Tribunal “a quo” no que concerne às seguintes questões:
a) Alteração substancial dos factos e agravamento da pena aplicável ao Arguido;
b) Erro de Julgamento por falta de prova testemunhal que permitisse tal entendimento;
c) Prazo prescrição dos factos aditados no despacho;
4.ª Atendendo a estrutura processual penal, o Ministério Público, nos termos do Art.º 283.º CPP proferiu Despacho de Acusação contra o ora Recorrente acusando-o da prática em autoria material e concurso efetivo de um crime de violência doméstica agravado, na forma consumada, previsto e punido pela alínea b) e c) do n.º1 e alínea a) do n.º22, do Art.º 152.º CP e um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pela alínea c) e d) do n.º1 do Art.º 86.ºda Lei nº 5/2006 de 23 de Fevereiro, por referência aos artigos 2º, al. p) i e 3º, nº 2, al. p), ab) da mesma Lei, cumprindo o principio da vinculação temática no caso sub Judicio.
Id,est
5.ª Os factos descritos na acusação proferida delimitam os poderes de cognição do tribunal e os limites da decisão final, demarcando o thema decidendum e obrigando o juiz de julgamento a ter em consideração os limites impostos pelos factos acusatórios, cingindo-se apenas e só a esses.
Porém,
6.ª Na sessão de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal “a quo” decidiu imputar ao Recorrente a prática em concurso real, um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a) do Código Penal, e um crime de violação agravado, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.
E, consequentemente,
7.ª Procedeu a uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, nos termos do n.º 1 do Art.º 359-ºCPP, porquanto ter aditado à acusação, factos novos que agravam os limites máximos das sanções aplicáveis ao Recorrente.
Note-se que,
8.ª Considerando os tipos ilícitos e as molduras penais aplicáveis, o Recorrente foi surpreendido com uma moldura penal elevada ao dobro do que a prevista nos factos para os quais preparou a sua defesa.
Pelo que,
9-ª O Recorrente viu-se numa situação de desfavor perante um enquadramento fáctico e jurídico que, em momento oportuno, já havia conhecido.
Note-se que,
10.ª A infração das regras respeitantes à alteração substancial dos factos acusados conduz à nulidade do acórdão, nos termos da alínea b) do n.º 1 Art.º 379.º CPP,
E, bem assim,
11.ª O modus operandi do Tribunal “a quo” consubstancia-se numa violação gravosa dos direitos de defesa do arguido constitucionalmente consagrados nos termos do Art.ºs 18.º e 32.º CRP.
Id est,
12.ª O processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao Arguido e, sendo este caracterizado por uma estrutura acusatória, a Lei determina que a audiência de julgamento está subordinados ao princípio do contraditório.
Logo,
13.ª Não pode o Tribunal “a quo” substituir-se ao Ministério Público, e “criar” uma nova acusação, aproveitando a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento para imputar ao Recorrente um tipo ilícito criminal mais gravoso do que o imputado em sede de acusação.
Sem prescindir,
14.ª Os factos referido pelo Tribunal “a quo” reportam-se a situações descritas pela Testemunha DD, filha da Ofendida, no hiato temporal compreendido entre 2002 a 2004;
Ora,
15.ª Estatuí a alínea b) do n.º 1 do Art.º 118.º CP : “o procedimento criminal extingue-se, por efeito da prescrição, logo que sobre a prática do crime tiverem decorrido os seguintes prazos: dez anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos, mas que não exceda dez anos”.
16.ª Considerando-se data da execução do último facto praticado o inicio da contagem do prazo prescricional;
Pelo que,
17.ª O prazo de prescrição em questão inicia-se a partir da data da prática do último facto – data não concretamente apurada mas situada entre os meses de março a setembro de 2004- o que, se afirma que aquele se mostra verificado.
Ademais,
18.ª No que concerne aos factos aditados pelo Tribunal “a quo” descritos no despacho recorrido, o Recorrente não aceita e como tal, impugna a conclusão vertida porquanto, atendendo a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento , designadamente pela Ofendida ao minuto 11:15, 11:23, 11:27:, 11:34, 11:35, 16:01, 16:03, 16:04, 16:08, 16:10, 16:11, 16:12, 16:36 e 16:41 a própria afirma nunca ter sido violada pelo Recorrente e refere que somente mantinha relações sexuais com o primeiro para que este não a importunasse;
Pelo que,
19.ª Andou mal o Tribunal “a quo” em adicionar um facto novo ao Despacho de Acusação proferido pelo Ministério Público, sendo este desprovido de qualquer elemento de prova que sustente a thesis vertida na alteração da qualificação jurídica proferida.
Por último,
20.ª No que concerne a alteração substancial dos factos relativamente ao crime de violência doméstica, o Recorrente não aceita e como tal, impugna a conclusão vertida porquando, atendendo a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, designadamente pela Testemunha DD, a mesma referiu que dado à sua tenra idade à data da alegada prática dos factos lembra-se muito vagamente de episódios – retius discussões – que ocorriam entre o
Recorrente e a Ofendida.
E, bem assim,
21.ª Não conseguiu concretizar o tempo, modo e lugar dos alegados episódios ocorridos designadamente a “pancada com a mão fechada na cara da ofendida, com o que logrou partir-lhe os dentes “e “o arguido pegou numa pequena mesa de centro, em vidro, e arremessou-a na direção da cabeça da ofendida, atingindo-a na cabeça e deixando-a a sangrar” para além de que, mais nenhuma testemunha inquirida em sede de audiência de discussão e julgamento referiu ter conhecimento dos episódios descrito
pelo Tribunal “a quo”.
Nesse sentido,
22.ª Salvo melhor entendimento por opinião contrária, tal facto constitui uma violação aos direitos de defesa do Arguido, nos termos do Art.º 18.º e 32.º CRP;
Destarte,
23.ª Em face do supra exposto, não obstante o devido respeito e mérito pelo Tribunal “a quo”, somos de crer que atenta a thesis aqui fundamentada e esgrimida a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” padece de plúmeras vicissitudes, como tal, deverá este ser revogado;
Assim, o Despacho ora recorrida violou, entre outras, as seguintes estatuições legais:
Do Código do Processo Penal
- Art.º 61.º n.º 1 alínea c), 118.º, 358.º, 379.º CPP
Da Constituição da República
- Art.º 18.º, 20.º, 32.º n. º 1 e 202.º CRP;
Do Código Civil
- Art.º 9.º CC;
Assim, nestes termos e nos melhores em Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Ex.as, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto Despacho ora recorrido, com as legais consequências
Fazendo-se desse modo a já acostumada e sã Justiça!
*
Foi admitido o recurso, nos termos do despacho proferido a 19.12.2023.
I.2.1 Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido recorrente, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“CONCLUSÕES
1. Compete ao Ministério Público, quando deduz acusação, proceder à qualificação jurídica desses factos, fixando o objeto do processo.
2. Objeto esse que, muito embora delimitado, não é de todo imutável.
3. No exercício de tal poder/dever que o Tribunal tem de também contribuir para o apuramento da verdade material, compete-lhe olhar criticamente para toda a prova produzida, o que implica uma apreciação da qualificação jurídica que lhe foi apresentada, quer tenha sido efetuada pelo Ministério Público, quer tenha sido pelo Juiz de Instrução Criminal.
4. Frise-se que a produção de prova é dinâmica, pelo que no decurso da audiência de discussão e julgamento podem ser carreados outros factos, que não fazendo parte da acusação, não acarretem um insuportável afetação para a defesa.
5. O Tribunal, após produção de prova, entendeu que a qualificação jurídica não seria a constante da acusação, em concurso aparente, mas sim, numa relação de concurso efetivo entre os crimes de violência doméstica agravada e violação agravada.
6. O que não colide de forma alguma com o exercício do contraditório.
7. Desde logo, porque o Tribunal tem obrigatoriamente de comunicar previamente a sua intenção de alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação deduzida e ao fazê-lo, como o fez, faculta ao arguido tempo para organizar/planear a sua defesa, se assim o entender, garantindo-lhe direito ao exercício do princípio do contraditório.
8. Entendemos que estamos perante uma alteração da qualificação jurídica por parte do Tribunal, perfeitamente legitima, aliás, o Ministério Público, em sede de alegações pugnou por essa alteração, por entender que os crimes em apreço defendem bens jurídicos distintos e que a conduta do arguido preencheu os elementos objetivos e subjetivos de ambos os crimes, conduta essa, como muito bem refere o Tribunal, autonomizável, pela conduta do arguido é integradora do cometimento de tais crimes em concurso real.
9. Diga-se, ainda, relativamente aos factos aditados que os mesmos decorrerem da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, mormente da inquirição da testemunha DD e da ofendida BB.
10. O crime de violência doméstica é um crime único, ainda que possa ser de execução reiterada, todavia, cada ato concreto, realiza parcialmente o crime e a soma de todos os atos, de toda a conduta do arguido, preenche um crime único.
11. Tendo a prática do último ato de execução ocorrido em Setembro de 2022, não se verifica qualquer prescrição do procedimento criminal.
12. O arguido não viu preteridos os seus direitos de defesa, não se encontrando o despacho ferido de qualquer nulidade ou vício de que cumpra conhecer.
Assi, a decisão recorrida caso não merecesse reparo.
Pelo que deverá ser negado provimento ao presente recurso interposto pelo arguido.
Porém, VOSSAS EXCELÊNCIAS, decidindo, farão como sempre a costumada JUSTIÇA!”
*
I.3 – Recurso do acórdão condenatório:
Inconformado com a decisão final condenatória proferida dela interpôs igualmente recurso o arguido AA para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:
“V. Conclusões
1.ª O Recorrente, sem prejuízo do total respeito pelo Tribunal “a quo”, não subscreve a decisão e fundamentos ínsitos no Acórdão proferido e ora sindicada, porquanto este enferma de plúrimas vicissitudes quer de facto e quer de Direito, designadamente, acerca das seguintes questões:
a) Nulidade do Acórdão nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art.º 379.º CPP;
b) Nulidade do Acórdão nos termos da alínea c) do n.º 1 do Art.º 379.º CPP;
c) da nulidade, rectius dados por não escrito os factos 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15, 16, 18 por violação do princípio da defesa e da acusação,
d) Impugnação da Matéria de Facto Provada e Não Provada em 7, 8, 10, 11, 12, 16 e 21 e prescrição,
e) Alteração substancial dos factos e agravamento da pena aplicável ao Arguido e f) Medida da Pena concretamente aplicada ao Arguido;
Senão vejamos,
2.ª Não obstante o recurso interposto de forma tempestiva e em sede própria, cumpre reforçar, ab initio, que in casu se verifica a nulidade do Acórdão, nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art.º 379.º e n.º 1 do Art.º 358.º CPP;
Porquanto,
3.ª Na passada audiência de discussão de julgamento realizada a 22 de Novembro de 2023, o Tribunal “a quo” concedeu o prazo de (10) dias para o Arguido, ora Recorrente se pronunciar relativamente ao Despacho de alteração da qualificação jurídica e bem assim a uma alteração não substancial dos factos;
Todavia,
4.ª O Recorrente foi notificado do despacho supra aludido no dia 22 de Novembro de 2023;
Pelo que,
5.ª Salvo e por melhor douta opinião contrária, tal prazo apenas terminava às 23:59 do dia 06 de Dezembro de 2023, atento os três dias de multa consignados nos termos da Lei;
No entanto,
6.ª O Tribunal “a quo” proferiu Acórdão às 13:30 do dia 06 de Dezembro e 2023, sem ter deixado decorrer o prazo de resposta, precludindo desta feita, o Direito ao exercício do contraditório do Arguido, ora Recorrente, o que salvo melhor e douta opinião contrária constitui uma nulidade nos termos do disposto da alínea b) do n.º 1 e 2 do Art.º 379.º, por transgressão do n.º 1 do Art.º 358.º CPP e bem assim uma clara e inequívoca violação das garantias de defesa constitucionalmente estatuídas no Art.º 32.º CRP;
Por sua vez,
7.ª Nos termos da alínea c) do n.º 1 do Art.º 379.º CPP o seguinte: “é nula a sentença: c) quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”;
Ora,
8.ª O Tribunal “a quo” considerou que da prova produzida em sede de audiência de julgamento foi possível extrair factos novos que não constavam da acusação que se reportam a alegados episódios de violência doméstica ocorridos entre outubro de 2002 a setembro de 2004.
Note-se que,
9.ª Nos termos do n.º 1 do Art.º 119.º CP, para efeito de consumação do facto, considera-se a data da execução do último facto praticado;
Não obstante,
10.ª O crime de violência doméstica ser definido, de forma unânime e pacífica como um crime habitual;
Salienta-se que,
11.ª Importa verificar-se a existência de uma conexão temporal que se assume fundamental para aferição do critério de definição da unidade ou pluralidade de infrações, assente no conceito de “padrão de comportamento”;
12.ª No caso em concreto, verifica-se um hiato temporal entre os alegados factos ocorridos entre outubro de 2002 a setembro de 2004 (referência temporal dos factos aditados no despacho proferido pelo Tribunal “a quo”) e março a setembro de 2022 (factos descritos na acusação e objeto do presente litígio);
Pelo que,
13.ª É nosso entendimento que não poderia o Tribunal “a quo” ter valorado tais factos para efeitos de condenação do ora Recorrente uma vez que as alegadas ações praticadas pelo Recorrente se agrupam em dois períodos temporais bem separados e distintos, entremeados por um hiato de dezanove anos, que se encontram prescritos;
Por outro lado,
14.ª Observamos, prima facie, que os factos provados em 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15, 16, 18 são nulos, rectius devem ser dados por não escritos por violação do princípio da defesa e da acusação, porquanto, estes são vagos, genéricos, sem indicação do temporal e modus operandi, por violação do princípio da defesa e da acusação, vide Ac. do TRP, de 13 de Novembro de 2019, Proc. n.º 109/19.7GAARC.P1 Relator José Carreto e Ac. do TRE de 22 de Novembro de 2018 Proc. n.º 526/16.4GFSTB.E1 Relatora Maria Filomena Soares, entre outros;
Por conseguinte,
15.º Atenta a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, observamos que Este andou mal na livre apreciação e valoração da prova, designadamente no que concerne a matéria de Facto Provada em 7, 8, 10, 11, 12, 16 e 21, pelo que se impugna a mesma;
Id est,
16.ª No que concerne ao ponto 7 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida, designadamente pela Testemunha DD ao minuto 12:05, 12:06, 12:09, 12:17, 12;21, 12;29 e 12:37, verifica-se que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
Ab initio,
17.ª Importa referir que os factos descritos na acusação delimitam os poderes de cognição do Tribunal, cumprindo-se desta feita, o princípio da vinculação temática;
Porém,
18.ª O Tribunal “a quo” aditou novos factos à acusação tendo como fundamento lugar o depoimento prestado pela Testemunha DD, o que constitui uma nulidade nos termos do Art.º 118.º, 120.º e alínea b) do n.º 1 do Art.º 379.º CPP;
Ademais,
19.ª Resulta do depoimento por parte da Testemunha uma falta de concretização quanto ao tempo, modo e lugar dos factos que descreveu, afirmando ainda que, atendendo à tenra idade que tinha, designadamente cinco anos apenas, recorda-se muito vagamente das discussões do Recorrente e da sua mãe, não se recorda também, em que partes do corpo é que o Recorrente alegadamente batia na Recorrida e em caso afirmativo, onde e quantas vezes o fazia;
Pelo que,
20.ª Deveria o Tribunal “a quo” assente numa critico reflexivamente análise da prova e metonomologicamente e hermenêuticamente ponderação desta, dado como não escrito o ponto 7 dos Factos Provados;
Continuando,
21.ª No que concerne ao ponto 8 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto de igual modo se consubstanciar na violação do princípio da vinculação temática, uma vez que o facto foi aditado à Acusação proferida pelo Ministério Público arguindo novamente a nulidades estatuída no Art.º 118.º, 120.º e alínea b) do n.º 1 Art.º 379.º CPP;
Ademais,
22.ª Salvo melhor e douta opinião contrária, os factos aditados reportam-se a um hiato temporal que, atendendo ao prazo de prescrição do crime de violência doméstica nos termos da alínea b) do n.º 1 do Art.º 118.º CP se conclui que já se encontravam prescritos aquando do início dos presentes autos;
Pelo que,
23.ª Deveria o Tribunal “a quo” assente numa reflexivamente análise critica da prova e metonomologicamente e hermenêuticamente ponderação desta dar como não escrito o ponto 8 dos Factos Provados;
Por sua vez,
24.ª No que concerne ao ponto 10 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida, designadamente pelas Testemunhas EE ao minuto 05:03, 05:20; pela Testemunha CC ao minuto 02:57, 03:05, 06:31, 06:45 e pela Testemunha DD ao minuto 07:25 e 07:56, verifica-se que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
25.ª Assim, considerando as transcrições dos depoimentos das Testemunhas acima referidas, observamos de forma clara e reiterado que ninguém ouviu o Recorrente a proferir tais expressões que ofendam a honra e a dignidade da Recorrida;
26.ª Andou mal o Tribunal “a quo” uma vez que deveria e se impõe a esse propósito a seguinte conclusão: “j) Noutras ocasiões, de forma a ultrapassar a sua oposição, o arguido dizia-lhe que ela era uma puta, uma vaca, que tinha outra pessoa e por isso é que ela não queria nada com ele, levando-a a ceder”;
27.ª No ponto 11 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida, designadamente pela Ofendida em declarações para memória futura ao minuto 14:20, 14:37, 14:39, 14:40, 14:41, 14:45, 14:48, 14:55 verifica-se que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
Note-se que,
28.ª Analisando o depoimento prestado pela mesma, observa-se uma desvalorização completa pela alegada expressão proferida pelo Recorrente;
Pelo que,
29.ª Considerando o limites da apreciação da prova nos termos da alínea c) do Art.º 10.º CPP, com o devido respeito pelo Tribunal “a quo” o Recorrente não se pode conformar e aceitar tal facto como provado uma vez que o Tribunal “a quo” incorreu em claro erro de apreciação da prova;
30.ª No ponto 12 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida, designadamente pela Testemunha EE ao minuto 02:26, 02:37, 02:49, 02:52; pela Testemunha CC ao minuto 06:31, 06:45, 06:47 verifica-se que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
31.ª Confrontando a génese dos dois depoimentos prestados, procedendo à análise critica da prova e metonomologicamente e hermenêuticamente ponderação, observa-se uma contradição de depoimentos quanto aos factos pelo que, considerando as normas e princípios do processo penal, deveria o Tribunal “a quo” dar como não escrito o ponto 12 Dos Factos Provados aplicando o princípio do dubio pro reu;
Continuando,
32.ª No ponto 16 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida não foi possível extrair com clareza e exatidão que a Ofendida apresentava marcas de alegadas agressões que sofria pelo que se verifica que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
Em face do supra exposto,
33.ª Tendo em consideração os limites endógenos e exógenos do princípio da livre apreciação da prova impunha-se a aplicação do princípio da presunção de inocência e por conseguinte, deveria o ponto 16 ser dado como não escrito;
34.ª No ponto 21 dos Factos Provados, o Recorrente não aceita e, como tal impugna a conclusão vertida no Acórdão, porquanto atenta a prova produzida, designadamente pela Testemunha EE ao minuto 07:21, 07:31, verifica-se que não sortiu razão ao Tribunal “a quo”;
35.ª Assim atento ao depoimento prestado pela Testemunha EE é possível extrair de forma clara que o Recorrente em momento algum, na chamada que teve com o irmão da Recorrida lhe disse que a ia matar, que sabia os passos que esta dava todos os dias e que tinha um plano traçado;
Pelo que,
36.ª Deveria o Tribunal “a quo” assente numa crítica reflexivamente análise da prova e metonomologicamente e hermenêuticamente ponderação ter dado como não escrito no ponto 21 Dos Factos Provados;
Por conseguinte,
37.ª No que concerne ao ponto d) do presente recurso, considera o Recorrente que o despacho proferido pelo Tribunal “a quo” previamente a decisão proferida se consubstancia num agravamento da pena aplicada a este porquanto terem sido aditados factos nomes e bem assim um novo tipo ilícito, designadamente crime de violação previsto e punidos nos termos do Art.º 164.º CPP;
Ora,
38.ª Novamente se salienta que a adição de factos novos viola o princípio da vinculação temática do objeto do processo e, mais grave ainda, prejudica os direitos e estratégia de defesa do Arguido, sendo este surpreendido, no caso em concreto, com uma moldura penal elevada ao dobro do que a prevista na acusação;
Nesse sentido,
39.ª Para imputar novos factos ao Arguido que consubstanciam uma moldura penal distinta da que o mesmo vem acusado, caberia ao titular do inquérito, id est, ao Ministério Público, determinar a abertura de inquérito quanto aos novos factos, sendo o Recorrente julgado em processo distinto ao dos presentes autos;
Id est,
40.ª Conforme nos ensina o Ilustre Professor Paulo Pinto de Albuquerque: “o tribunal deve prosseguir o julgamento sem poder valorar os factos novos intimamente relacionados com os da acusação e da pronúncia, sendo esta omissão de conhecimento imputável ao acusador que não diligenciou por uma instrução cabal dos factos imputados.”, in Comentário do Código Processual Penal, 4.ª edição, Universidade Católica Editora, pág. 932;
Todavia,
41.ª Da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente os depoimentos das testemunhas DD e CC, em momento algum foi possível concretizar as circunstâncias de tempo, modo e lugar em que os factos aditados alegadamente ocorreram;
Desse modo,
42.ª Salvo melhor e douta opinião contrária, não se assume possível autonomizar a relevância jurídico-social dos dois crimes imputados ao Recorrente dada a falta de elementos de prova existente nos autos;
Pelo que,
43.ª Se conclui que a interpretação e fundamentação empregue pelo Tribunal “a quo” assenta numa clara e grosseira violação do princípio da legalidade, da tipicidade e da prova, característicos do processo penal;
Note-se que,
44.ª Não existe um depoimento por parte de ninguém que diga que ouviu chamar nomes no passado à Ofendida, a contrario diziam sim que era mutuo, que viu marcas ou que esta se tenha queixado aos familiares, pelo que fundar condenação e assumir como provados factos que supostamente em 20 (vinte anos) não têm qualquer corroboração por parte das Testemunhas e familiares;
Por último,
45.ª Atento às nulidades arguidas e à alteração da matéria de facto que supra se indicou, impõe-se uma reavaliação da escolha da medida da pena aplicada ao ora Recorrente;
Ora vejamos,
46.ª Relativamente às necessidades de prevenção geral e especial estatuídas no Art.º 40.º CP e o critério de escolha da pena nos termos do Art.º 70.º CP, fundamenta o Tribunal “a quo” que o Recorrente: ““não só não revela juízo autocrítico como não revelou arrependimento”.”;
Porém,
47.ª Resulta da prova produzida em sede de audiência de julgamento, uma vez que todas as Testemunhas referiram que o problema de alcoolismo do Recorrente foi o facto determinante que despoletou as discussões e a rutura da relação com a Recorrida e os restantes familiares;
Nomeadamente,
48.ª O depoimento prestado pela Ofendida em declarações para memória futura ao minuto 12:05, 12:11, 29:54, 29:58, 30:00, 30:02, 30:19, 30:24, 30:25 e em audiência de julgamento ao minuto 08:20, 08:21, 11:34, 11:35, 11:41, 11:44 e pela Testemunhas EE ao minuto 02:26, 02:37; pela Testemunha CC ao minuto 06:50, 07:00, 07:09, 07:17 e pela Testemunha DD ao minuto 14:59, 15:10, 15:14, 15:28, 15:39, 15:57, 16:16;
Bem como,
49.ª Duvidas não restaram por efeito da prova e como tal, também ao Tribunal “a quo” que o Recorrente agiu e agia sobre o efeito e álcool, quer dependente e como tal, os seus comportamentos e origem destes deveriam ter sido ponderados de modo a mitigar a pena concretamente a aplicar, para efeitos de imputabilidade diminuída, vide, Ac. do STJ, de 03 de Jugo de 2014, Proc. n.º 354/12.6GASXL.L1.S1, Relator Maia Costa;
E, bem assim,
50.ª Verificamos que o relatório social do Recorrente permite e promoveu que este possa cumprir a pena em liberdade.
Sendo que,
51.ª Sempre se diria à cautela e por residualidade que, somos de crer que mesmo em abstrato e por mera hipótese académica dever de patrocínio considerados os factos dados por provados por parte do Tribunal “a quo”, em face do supra exposto, a medida da pena é desproporcional e excessiva aos factos e a danosidade efetiva tout court entendida e, maxime, ao bem jurídico protegido atenta a postura e sentimento real da Ofendida.
Destarte,
52.ª Em face do supra exposto, não obstante o devido respeito e mérito reconhecido ao Tribunal “a quo”, considerando os fundamentos supra elencados e recorrendo a uma análise reflexivamente crítica e assente em racionalidade ou hermenêutica ou/e metodonomológica, seria de aplicar ao Recorrente uma pena mais próxima dos limites mínimos legais aplicáveis o que implicaria uma redução da pena aplicada em cúmulo jurídico, sendo sempre de aplicar a suspensão da medida privativa de liberdade, nos termos do fixado nos artigos 40.°, 50., 71.° e 72.° do Código Penal;
Assim, o Acórdão ora recorrido violou, entre outras, as seguintes estatuições legais:
Do Código Penal
Art.º 40, 70.º, 71.º, 118.º, 119.º CP
Do Código do Processo Penal
- Art.º 61.º n. º1 alínea c), 118.º, 127.º, 128.º, 263.º, 358.º, 379.º CPP
Da Constituição da República
- Art.º 18.º, 20.º, 32.º n. º 1 e 202.º CRP;
Do Código Civil
- Art.º 9.º CC;
Assim nestes termos e nos melhores de Direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas
Exas., deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora recorrida, nos termos ora sufragados, com as legais consequências
Fazendo-se desse modo a já acostumada e sã Justiça!”
O recurso foi admitido pelo despacho de 11.01.2024.
I.3.1 – Resposta ao recurso
Efetuada a legal notificação, a Digna Magistrada do Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido recorrente, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
“V – CONCLUSÕES:
1. O arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão; um crime de violação agravado, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c), da Lei n. 5/2006, de 23 de fevereiro na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;
Em cúmulo jurídico das penas parcelares, condenar o arguido na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
2. No caso dos autos, não se verifica a invocada nulidade, desde logo porque, após a produção de prova em sede de audiência de julgamento, este tribunal comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e bem assim a alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nos termos previstos no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal, como o próprio arguido reconhece;
3. O tribunal concedeu ainda ao arguido o prazo de 10 (dez) dias para preparar a sua defesa, pelo que foi escrupulosamente cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, não existindo, por consequência, a nulidade prevista no citado artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal;
4. Tal situação acarreta uma mera irregularidade, a qual teria que ser arguida pelo arguido no próprio ato da leitura do acórdão, uma vez que a ele assistiu (cf. artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o que o arguido, de facto, não fez, quando, podia e devia tê-lo feito, como se impunha nos termos do citado preceito legal. Não o tendo feito, está sanada a referida irregularidade, não se verificando a invocada nulidade do acórdão proferido;
5. Compete ao Ministério Público, quando deduz acusação, proceder à qualificação jurídica desses factos, fixando o objeto do processo. Objeto esse que, muito embora delimitado, não é de todo imutável;
6. No exercício de tal poder/dever que o Tribunal tem de também contribuir para o apuramento da verdade material, compete-lhe olhar criticamente para toda a prova produzida, o que implica uma apreciação da qualificação jurídica que lhe foi apresentada, quer tenha sido efetuada pelo Ministério Público, quer tenha sido pelo Juiz de Instrução Criminal;
7. O Tribunal, após produção de prova, entendeu que a qualificação jurídica não seria a constante da acusação, em concurso aparente, mas sim, numa relação de concurso efetivo entre os crimes de violência doméstica agravada e violação agravada;
8. O Tribunal tem obrigatoriamente de comunicar previamente a sua intenção de alterar a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação deduzida e ao fazê-lo, como o fez, faculta ao arguido tempo para organizar/planear a sua defesa, se assim o entender, garantindo-lhe direito ao exercício do princípio do contraditório;
9. Entendemos que estamos perante uma alteração da qualificação jurídica por parte do Tribunal, perfeitamente legitima, aliás, o Ministério Público, em sede de alegações pugnou por essa alteração, por entender que os crimes em apreço defendem bens jurídicos distintos e que a conduta do arguido preencheu os elementos objetivos e subjetivos de ambos os crimes, conduta essa, como muito bem refere o Tribunal, autonomizável, pela conduta do arguido é integradora do cometimento de tais crimes em concurso real;
10. O crime de violência doméstica é um crime único, ainda que possa ser de execução reiterada, todavia, cada ato concreto, realiza parcialmente o crime e a soma de todos os catos, de toda a conduta do arguido, preenche um crime único. Assim, tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime violência doméstica ocorre com a prática do último cato de execução;
11. A prática do último ato de execução pelo qual o arguido vem acusado, reporta-se a Setembro de 2022, pelo que não se verifica qualquer prescrição do procedimento criminal;
12. Entendemos adequada e fundamentada a medida concreta da pena em que o arguido AA foi condenado, pugnando pela manutenção da mesma, ou seja, 6 anos de prisão efetiva;
13. Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento, devendo manter-se integralmente o douto despacho recorrido.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão JUSTIÇA!
*
I.4 Parecer do Ministério Público
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer (transcrição)
“1. Os Recursos
O arguido interpôs dois recursos, sendo um deles do despacho de 22/11/2023 e 2023, e o outro do acórdão de 06/11/2023, proferidos pelo Juiz 16 do Juízo Central Criminal de Lisboa.
Através do assinalado despacho, o Tribunal a quo comunicou ao arguido/recorrente a alteração da qualificação jurídica dos factos pelos quais aquele estava acusado, de um crime de violação, p. e p. pelo art.º 164.º, n.º 2, al. a), do CP em concurso aparente com um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al.s. b) e c) e 2, al. a), do CP, para um crime de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do CP, em concurso real e efetivo com um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al.s. b) e c) e 2, al. a), do CP; e, quanto ao crime de violência doméstica, comunicou que, em função da prova produzida em sede de audiência de julgamento, designadamente, das declarações da ofendida e do depoimento da testemunha CC, poderiam resultar provados os quatro factos que elencou [vieram a ser dados como provados sob os números 7, 8, 10 e 34].
O arguido/recorrente fundamenta o recurso do despacho na sua nulidade por o Tribunal a quo ter procedido à alteração da qualificação jurídica e à alteração não substancial de factos, pelos quais estava acusado, fora das condições permitidas pelo art.º 358.º, n.º 1, do CPP, conforme disposto no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, por entender que a alteração é substancial e determina um agravamento da pena aplicável, existe erro de julgamento por falta de prova testemunhal e os factos a aditar, relativos aos anos de 2002 a 2004, estão prescritos, de tudo resultando a violação do direito de defesa consagrado nos arts. 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, ambos da CRP, e do princípio da vinculação temática consagrado no art.º 263.º, do CPP.
O Tribunal a quo veio a condenar o arguido/recorrente, no acórdão recorrido, em autoria material e na forma consumada, por um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.; um crime de violação agravado, p. e p. pelos arts. 164.º, n.º 2, al. a), e 177.º, n.º 1, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão; um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, na pena de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão; e, em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
O recorrente fundamenta o recurso do acórdão na sua nulidade nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 379.º, do CPP, por entender que o Tribunal a quo não observou o prazo de 10 dias concedido para o exercício do direito de defesa, pois que proferiu o acórdão no último dia desse prazo acrescido do prazo com multa; na nulidade nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 379.º, do CPP, por entender que existe um hiato temporal entre os factos novos aditados, compreendidos entre 2002 e 2004, relativos ao crime de violência doméstica, e aqueles que constam da acusação, de março a setembro de 2022, o que não permite a sua consideração, para além de que estão prescritos; na nulidade dos factos provados 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15, 16, 18 por entender que foram violados os princípios da defesa e da acusação, por se tratarem de factos vagos e imprecisos em termos de tempo e lugar; na impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada em 7, 8, por os factos estarem prescritos e não se ter feito prova de que ocorreram, 10, por as testemunhas EE, CC e DD não o terem referido, 11, por não resultarem das declarações da ofendida, 12, por as testemunhas EE e CC não terem dele conhecimento direto, no caso do primeiro, ou preciso, no caso da segunda, e ser de operar o princípio in dubio pro reo, 16, por ser de operar o princípio in dubio pro reo, e 21, por não encontrarem correspondência nas declarações das testemunhas EE, CC e DD; e na impugnação da matéria de direito quanto à medida da pena, por se encontrarem prescritos os factos 7 e 8, o recorrente padecer de alcoolismo, o que é determinante de uma imputabilidade diminuída e o relatório social permitir e promover que possa cumprir a pena em liberdade, defendendo a redução das penas parcelares e a aplicação de uma pena única inferior a 5 anos de prisão e a suspensão da sua execução.
2. Resposta do Ministério Público na 1.ª instância
O Ministério Público respondeu aos recursos rebatendo, com rigor e crítica, os seus fundamentos, pugnando pelo seu não provimento.
3. Posição do Ministério Público no TRL
Analisadas as decisões sob recurso e os fundamentos dos recursos, aderimos ao teor das respostas aos recursos apresentadas pelas nossas Colegas na 1.ª instância, com os seguintes aditamentos:
Quanto ao recurso do despacho:
Os fundamentos do recurso, s.m.o., são próprios das sentenças e não dos despachos.
Assim, a nulidade a que se refere a al. b) do n.º 1, do art.º 379.º, n.º 1, do CPP, apenas se verifica nas sentenças, quando o Tribunal profere decisão em violação do disposto nos art.º 358.º e 359.º, do CPP, ou seja, quando não cumpriu o formalismo definido nestes preceitos legais, o que não é o caso.
Se o recorrente queria reagir contra este despacho deveria tê-lo feito por recurso ao regime das nulidades dependentes de arguição ou das irregularidades, ao abrigo do disposto nos arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, 120.º, n.ºs 2, al. d), segunda parte, e 3, al. a), e 123.º, n.º 1, todos do CPP.
Não o fez o recorrente, pelo que a existir alguma nulidade ou irregularidade, o que não é o caso, a mesma sanou-se.
O erro de julgamento por falta de prova testemunhal e por os factos a aditar, relativos aos anos de 2002 a 2004, estarem prescritos, é também ele exclusivo das sentenças, nem faria sentido que fosse de outra maneira.
Com efeito, é diferente comunicar a alteração dos factos e da qualificação jurídica dos factos, que se destina tão só a dar a conhecer ao arguido a intenção do Tribunal e permitir que este exerça o contraditório e a defesa quanto a essas alterações, com possível produção de prova para contraditar as alterações comunicadas, de uma decisão final, essa sim, passível de impugnação, por que resultante de toda a prova produzida em julgamento, materializada em factos nela fundamentados, apreciada segundo a livre apreciação do julgador, à luz das regras da experiência comum.
Nesta decorrência, não faz sentido falar de violação do direito de defesa consagrado nos arts. 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, ambos da CRP, e do princípio da vinculação temática consagrado no art.º 263.º, do CPP, tanto mais que o Tribunal comunicou as alterações, cumprindo o disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, o que o recorrente, neste recurso, não coloca em causa.
Posto isto, afigura-se-nos que o recurso é manifestamente improcedente e, como tal, será de rejeitar, nos termos dos arts. 417.º, n.º 6, al. b), e 420.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP.
A não se entender assim, acompanhamos integralmente a resposta ao recurso apresentada pela nossa Colega na 1.ª instância.
Quanto ao recurso do acórdão:
O fundamento na nulidade do acórdão nos termos da al. b) do n.º 1 do art.º 379.º, do CPP, s.m.o., não tem qualquer razão de ser, pois o Tribunal a quo deu cumprimento ao disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, aplicando-se aquele dispositivo às situações em que tal não teve lugar.
Questão distinta é a circunstância de o Tribunal a quo não ter cumprido integralmente o prazo de 10 dias acrescido dos três dias de multa, esta suscetível de gerar uma irregularidade, mas que o arguido/recorrente, presente na audiência em que foi lido o acórdão, dia em que se perfez o prazo concedido acrescido de três dias, não suscitou nesse ato, tendo-se sanado, como a nossa Colega na 1.ª instância bem observou.
O fundamento na nulidade nos termos da al. c) do n.º 1 do art.º 379.º, do CPP, pela própria natureza do crime de violência doméstica, não se verifica, não só pelo argumentado pela nossa Colega na 1.ª instância, como também porque em causa está o período temporal que durou a relação emocional entre o arguido e a vítima, e esta iniciou-se em 2002 e, não obstante a vítima ter saído de casa em março de 2022, apenas terminou em setembro de 2022, período durante o qual o arguido controlou, maltratou, enxovalhou e subjugou a vítima à sua vontade.
Os factos provados 6, 7, 8, 9, 10, 11, 15, 16 e 18 relatam as ações do arguido, o seu modo de atuar sobre a vítima, que por força da sua dilatação no tempo se esvaem na memória de quem os relatou, em especial a vítima, tornando impossível a sua concretização prática em termos temporais e de lugar.
E assim é, porque para a vítima essa foi uma realidade que viveu durante o período de cerca de 19 anos, que só terminou em 22/09/2022 com a apreensão ao arguido/recorrente das armas que este tinha em seu poder, na residência [factos provados 23. a 29.], onde se inclui a arma de fogo utilizada no facto provado 6 [facto provado 25.], que detinha há mais de 20 anos, e guardava em lugares facilmente acessíveis [arma de fogo sob a forma de caneta no bolso do casaco; a caçadeira e a catana atrás dos casacos no interior do roupeiro], o que credibiliza o relatado pela vítima.
Assim o dizem as regras da experiência e da normalidade e também dizem que o crime de violência doméstica é um crime silencioso, que ocorre na intimidade, sem testemunhas, ou com testemunhas vulneráveis, como são os filhos, no caso um filho e uma enteada, o que dificulta a obtenção de prova pessoal.
Ademais, nestas situações, as vítimas, por medo do agressor ou vergonha em expor o que estão a passar, raramente partilham a sua vivência ou pedem ajuda, fechando-se em si mesmas e isolando-se, do que os agressores se aproveitam para as manter subjugadas.
Razão pela qual, a prova resulta as mais das vezes da credibilidade das declarações prestadas pela vítima e pelo agressor e, no caso, as declarações da vítima mostraram-se credíveis, o que não sucedeu com aquelas que o arguido/recorrente prestou, o que o Tribunal a quo bem fundamentou e se dá por reproduzido.
Quanto à impugnação dos factos provados 7, 8, 10, 11, 12, 16 e 18 por erro de julgamento, reproduzimos o que acima debatemos quanto aos factos 7, 8, 10, 11 e 16, igualmente válido quanto aos factos provados 12 e 21.
De todo o modo, afigura-se-nos que aquilo que o arguido/recorrente pretende é impor ao Tribunal do recurso a sua versão dos factos, olvidando a imediação, a livre apreciação da prova e as regras da experiência comum, da lógica e da normalidade, pois que o que sobressai da impugnação da decisão sobre a matéria de facto é a sua discordância quanto à valoração que o Tribunal a quo fez da prova que indicou.
Por último, quanto à impugnação da matéria de direito, no decurso dos autos o arguido/recorrente nunca suscitou a sua possível imputabilidade diminuída resultante da sua adição ao álcool, nem esta questão se suscitou ao Ministério Público no inquérito nem ao julgador durante o julgamento, pelo que não foi efetuada a necessária perícia, sendo que apenas essa permitiria aferir da pretensa imputabilidade diminuída.
O arguido/recorrente passou a ser acompanhado nas consultas e tratamento da ... no cumprimento de obrigações impostas no âmbito do processo n.º 108/19.9S9LSB, do Juízo local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, no qual foi condenado pelo crime de condução de veículo em estado de embriaguez, [factos provados 45 e 54].
Não suscitou o arguido/recorrente neste processo, nem nos outros quatro processos em que foi condenado pelo mesmo tipo de crime [factos provados 50, 51, 52 e 53], a sua imputabilidade diminuída decorrente da dependência do álcool.
Mais, o arguido/recorrente apenas se submeteu a tratamento porque a isso foi obrigado por decisão judicial e evitar o cumprimento de uma pena de prisão.
O alcoolismo, infelizmente, é um problema de saúde pública e social que não pode servir de desculpa para tudo o que se faz, nem pode justificar ou atenuar condutas criminosas, como é o cometimento do crime de violência doméstica.
Entendemos, por isso, que a questão suscitada não tem o mérito pretendido no recurso.
Em tudo o mais, remetemos para a resposta da nossa Colega na 1.ª instância.
Pelo exposto,
Somos de parecer que o recurso do despacho deve ser rejeitado e, não sendo o caso, que não merece provimento e que o recurso do acórdão não merece provimento.
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I.5. Resposta
Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta ao sobredito parecer, rebatendo o recorrente os fundamentos invocados no parecer, concluindo no sentido de serem tidos em conta os argumentos que veio aduzir e, bem assim os alegados e cotejados nas motivações de recurso e respetivas conclusões para os quais repristinou in totum.
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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.
Cumpre, agora, apreciar e decidir:
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II - FUNDAMENTAÇÃO
II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:
Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante [designadamente, do STJ1], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal2.
Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente das motivações dos recursos interpostos nestes autos, as questões que estariam para apreciar e decidir consistem no seguinte:
Recurso intercalar:
• Saber se o despacho proferido nos autos é nulo nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) por apesar de ter sido efetuada uma comunicação da alteração da qualificação jurídica e não substancial de factos efetuada pelo Tribunal afinal ela consistiu numa alteração substancial de factos.
• Saber se os factos comunicados pelo Tribunal já se encontram prescritos.
• Erro de julgamento por falta de prova testemunhal que levasse à prova dos factos que foram comunicados.
Recurso do acórdão condenatório
• Da insuficiência para a decisão da matéria de facto – art.º 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.
• Nulidade do acórdão nos termos do art.º 379º, nº 1 al. b) por violação dos arts. 358º/359º do Código de Processo Penal.
• Da violação do prazo concedido para o arguido se pronunciar sobre a alteração não substancial e factos e da qualificação jurídica comunicadas.
• Nulidade do acórdão nos termos do art.º 379º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, por ter considerado provados factos ocorridos entre outubro de 2002 e setembro de 2004 que já se encontravam prescritos.
• Saber se os factos descritos sob os pontos 6 a 11, 15, 16 e 18 devem ser dados por não escritos por serem vagos genéricos e sem indicação temporal e modus operandi.
• Erro de julgamento dos factos descritos nos pontos 7, 8, 10, 12, 16 e 21 dos factos provados.
• Da insuficiência ada matéria de facto para a decisão.
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II.2 – Do recurso intercalar
Por uma questão de precedência lógica começaremos por analisar o recurso intercalar interposto.
Neste recurso invoca o recorrente a nulidade do despacho proferido pelo Tribunal a quo nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, por no seu entendimento ter sido operada uma alteração substancial de factos e o agravamento da pena aplicável ao arguido.
Alega que o Tribunal aditou novos factos à acusação que agravam os limites máximos das sanções aplicáveis.
Mais entende que essa comunicação constituiu uma violação gravosa dos direitos de defesa do arguido art.º 18º e 32º da Constituição da República Portuguesa.
Invoca o recorrente o disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, que prevê a nulidade da sentença quando esta condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º.
Mais invoca a prescrição dos factos comunicados e bem assim o erro de julgamento ao considerar tais factos como provados.
Como bem se salienta no Acórdão do TRL de 07.09.2010 [processo nº 1511/04.4PBSXL.L1-5, disponível in www.dgsi.pt]: “(…) II - Em matéria de alteração de factos, o que constitui nulidade é a condenação por factos diversos dos descritos na acusação, fora dos casos e condições dos arts. 358.º e 359.º, nos termos do art.º 379.º, n.º 1, al. b), do mesmo Código. Trata-se, porém, de nulidade de sentença e só depois desta ser proferida é que se sabe se ela se verifica ou não.
III – Por isso, o ataque feito pelo arguido ao despacho em que lhe é comunicada a possibilidade de alteração não substancial dos factos com arguição da sua nulidade é manifestamente prematuro porquanto a alteração tem carácter provisório havendo de ser, depois, sujeita a contraditório, à produção de prova e à deliberação, então com carácter definitivo.
IV - Antes da decisão final, ao arguido apenas assiste o direito - que exerceu no presente caso - de se defender dos novos factos, nomeadamente apresentando novas provas, demonstrando que eles não ocorreram ou que não lhe podem ser imputados.
V - Apesar dessa defesa, se vier a ser condenado por tais novos factos, então é que poderá atacar a decisão respetiva, nomeadamente por a mesma padecer da apontada nulidade, por não terem sido respeitados os pressupostos dos arts. 358.º ou 359.º do Código de Processo Penal (…)”.
Deste modo, entendemos, como aliás propugnou a Digna Procuradora Geral Adjunta no seu parecer - que as questões suscitadas neste recurso intercalar apenas poderão ser conhecidas em sede de recurso da decisão final (no caso do acórdão proferido) - sendo certo que o recorrente acabou ali por invocar a questão da nulidade do acórdão por violação do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, não só por alegada violação do prazo de 10 dias para se pronunciar, mas também por entender que foi violado o principio da vinculação temática com o aditamento de novos factos e uma diferente qualificação jurídica (cf. conclusões 18, 21, 37 e 39).
Relativamente à eventual prescrição dos factos comunicados, esta só poderá ser apreciada no âmbito do recurso do acórdão final, porquanto como decorre do despacho ora posto em causa, estes factos integram-se num conjunto de outros factos - que no entendimento do tribunal a quo - se subsumem ao crime de violência doméstica. E assim, apenas perante a factualidade que vier a ser provada e atento o disposto no art.º 119º, nº 2 al. a) do Código Penal e no confronto de todos os factos dados como provados será possível apreciar tal matéria.
No que tange ao erro de julgamento é para nós ainda mais evidente que este apenas pode ser apreciado no âmbito de recurso que venha a ser interposto do acórdão final e mediante a ponderação que aí seja feita da prova produzida.
Não pode o tribunal de recurso sindicar qualquer erro de julgamento apenas perante um despacho que comunica uma alteração não substancial de factos, porquanto, nesse momento, o tribunal ainda não tomou qualquer posição quanto a essa factualidade e designadamente quanto aos meios de prova que os sustentam.
Como refere a Digna Procuradora Geral Adjunta no seu parecer “é diferente comunicar a alteração dos factos e da qualificação jurídica dos factos, que se destina tão só a dar a conhecer ao arguido a intenção do Tribunal e permitir que este exerça o contraditório e a defesa quanto a essas alterações, com possível produção de prova para contraditar as alterações comunicadas, de uma decisão final, essa sim, passível de impugnação, por que resultante de toda a prova produzida em julgamento, materializada em factos nela fundamentados, apreciada segundo a livre apreciação do julgador, à luz das regras da experiência comum.
Nesta decorrência, não faz sentido falar de violação do direito de defesa consagrado nos arts. 32.º, n.º 1 e 18.º, n.º 1, ambos da CRP, e do princípio da vinculação temática consagrado no art.º 263.º, do CPP, tanto mais que o Tribunal comunicou as alterações, cumprindo o disposto no art.º 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP, o que o recorrente, neste recurso, não coloca em causa”.
A lei não define o conceito de manifesta improcedência mas os tribunais superiores têm vindo a pronunciar-se sobre a questão, com destaque para o Supremo Tribunal de Justiça que considera que um recurso deve ser rejeitado quando em exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar se puder concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudência sobre as questões suscitadas, que está votado ao insucesso [Cf. o Acórdão de 18.04.2002, relator Simas Santos, disponível in www.dgsi.pt/jstj].
No mesmo sentido, escreve-se no acórdão do mesmo tribunal, de 03.11.2011 [ relatora Isabel Pais Martins, disponível in www.dgsi.pt/jstj]: «A manifesta improcedência do recurso significa que este, pelos termos em que se encontra motivado ou pelo objeto que o recorrente lhe define, se apresenta imediatamente insubsistente, sendo claro, patente e de primeira leitura que é manifestamente destituído de fundamento (cf. v.g. Ac. do STJ de 26-01-2005, Proc. n.º 3998/04 - 3.ª).»
Ora, no caso presente, atento o concreto despacho proferido nos autos e o teor das conclusões formuladas pelo recorrente no recurso interposto, que fazem apelo à nulidade do acórdão, à prescrição dos factos e ao erro de julgamento, que são matérias relativas ao acórdão final e não ao despacho que comunicou a alteração não substancial de factos e da qualificação jurídica, a sua inviabilidade é inequívoca.
Deste modo, entendemos ser de rejeitar o recurso intercalar interposto pelo arguido (art.º 420º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal).
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II.3 Do recurso do acórdão condenatório
II.4 - Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:
“II – Fundamentação
1. Fundamentação de facto
1.1. Matéria de facto provada
Da audiência de julgamento, e com interesse para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. O arguido AA e BB viveram como se de cônjuges se tratassem durante cerca de 19 anos até março de 2022, partilhando cama, mesa e habitação, residindo na ..., ….
2. Dessa relação nasceu FF, em ... de ... de 2002.
3. Ao longo do relacionamento ocorreram diversas separações do casal, uma delas com a duração de 8 meses no ano de 2018.
4. Nessa ocasião, a ofendida deslocou-se para a ... para trabalhar, contudo regressou a Portugal e retornou a residir na casa de morada de família com o arguido e o filho pois que não tinha posses financeiras que lhe permitisse suportar as despesas com uma casa.
5. Ao longo do relacionamento, o arguido sempre consumiu bebidas alcoólicas em excesso, iniciando diversas discussões com a ofendida, com frequência praticamente diária, ao chegar a casa alcoolizado.
6. Em algumas dessas ocasiões, o arguido portava uma arma de fogo, disfarçada de caneta, que exibia a quem se encontrasse em casa.
7. Em data que, em concreto não foi possível apurar, mas situada entre os meses de outubro de 2002 e setembro de 2003, o arguido pegou numa pequena mesa de centro, em vidro, e arremessou-a na direção da cabeça da ofendida, atingindo-a na cabeça e deixando-a a sangrar.
8. Em data que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada entre os meses de março e setembro de 2004, o arguido desferiu uma pancada com a mão fechada na cara da ofendida, com o que logrou partir-lhe os dentes.
9. Enquanto viviam juntos, com uma frequência que, em concreto, não foi possível apurar, em casa de ambos o arguido, pretendendo manter relações sexuais com a ofendida, por diversas vezes tocava no corpo da ofendida e quando esta lhe dizia que parasse, pelo menos por uma ocasião, aquele agarrou os braços da ofendida de forma a impedi-la de defesa e introduziu o pénis na sua vagina, forçando-a relações sexuais.
10. Noutras ocasiões, de forma a ultrapassar a sua oposição, o arguido dizia-lhe que ela era uma puta, uma vaca, que tinha outra pessoa e por isso é que ela não queria nada com ele, levando-a a ceder.
11. Em data não concretamente apurada do ano de 2010, em casa, o arguido disse à ofendida “se não fores minha não serás de mais ninguém”.
12. Durante todo o relacionamento, quando se encontravam em casa, por diversas e repetidas vezes, o arguido dizia à ofendida “não prestas para nada”.
13. E, por diversas vezes, na casa de ambos, após os almoços ou jantares com familiares da ofendida, o arguido dizia-lhe “só tens família interesseira.”
14. Também por diversas vezes, o arguido, de modo a impedir a ofendida de manter contacto com os seus amigos, dizia a BB “não precisas de te arranjar não quero que chames a atenção dos outros; não podes sair, és uma mulher casada; não podes andar na rua com ninguém”, fazendo com que aquela, por via da persistência das palavras do arguido e face à sua dependência económica em relação ao mesmo, se afastasse de familiares e amigos.
15. Noutras ocasiões, de forma a exercer controlo sobre a sua companheira, o arguido enviava-lhe, por diversas vezes, mensagens a questionar em que local e com quem se encontrava.
16. Em diversas ocasiões, quando se encontravam em casa, em datas e com frequência não apuradas, ao longo da relação o arguido também desferiu pancadas com as mãos, abertas e fechadas, na cara e corpo da sua, então, companheira, causando-lhe, pelo menos, dores.
17. Em março de 2022, perante o agravamento da conduta do arguido, a ofendida saiu de casa.
18. Contudo, o arguido, como não aceitou o termo da relação passou a deslocar-se, com frequência que, em concreto, não foi possível apurar, para junto da residência da avó da ofendida onde esta passou a residir sita na ..., permanecendo por longos períodos em frente à residência, quer dentro quer no exterior do seu carro.
19. Noutras ocasiões, pela manhã, o arguido posicionava-se, de forma a que a ofendida o visse, em frente à paragem do autocarro onde a ofendida toma o autocarro para se deslocar para o trabalho e seguia no seu encalço quando a mesma inicia viagem.
20. No dia 19 de setembro de 2022, o arguido foi no encalço da ofendida quando esta se deslocou a uma esplanada em ... com um amigo, ficando a vigia-la.
21. Pelas 21h00, o arguido telefonou para o irmão da ofendida e disse-lhe “vou buscar a pistola que tenho em casa; tenho tudo planeado; eu sei os passos todos da tua irmã; eu passo as noites a ver quando a tua irmã, quando liga e desliga a televisão; estou a magicar um plano.”
22. O irmão da ofendida deu-lhe conhecimento do telefonema e quando BB viu o arguido no local onde se encontrava, abandonou o local.
23. Pela 01h30 do dia 22 de setembro de 2022, no quarto da sua residência supra identificada, o arguido tinha sua posse um objeto decorativo com configuração de arma de fogo (caçadeira) e uma catana com cabo em madeira e uma lâmina de metal, de um só gume medindo 30,7 cm de comprimento.
24. Na residência o arguido tinha, ainda, de sua propriedade, uma arma de fogo transformada de calibre .22, tiro a tiro, sem depósito ou carregador, de um cano, carregada mediante a introdução manual de munição na câmara situada à entrada do cano, com percussão lateral.
25. Tal arma era originalmente uma caneta de sinalização, destinada ao disparo de munições pirotecnia, contudo posteriormente foi transformada, mediante uma intervenção mecânica modificadora de forma a funcionar como arma de fogo, através da introdução de um cano de alma lisa de forma a permitir o disparo de munições de calibre .22.
26. Na mencionada residência e nessa data o arguido guardava ainda, de sua propriedade, 33 (trinta e três) munições de arma de fogo, de marca GFL, calibre 6,35mm Browning com projétil encamisado, de percussão central e destinada a serem usadas em pistolas semiautomáticas com o calibre mencionado.
27. O arguido conhecia as características e natureza da arma de calibre .22, das munições e da catana mencionada.
28. O arguido não tem licença de uso e porte de arma que o habilitasse a deter armas de fogo e munições e que bem sabia ser indispensável para a aquisição e detenção de tais objetos, não obstante, quis e agiu da forma descrita.
29. O arguido bem sabia que não podia adquirir e deter a pistola de calibre .22, uma vez que a sua natureza estava escondida sob a forma de outro objeto, constituindo-se como arma proibida e, não obstante, quis e agiu da forma descrita.
30. O arguido bem sabia que não podia, naquelas circunstâncias de tempo, modo, lugar, deter a catana, uma vez que bem sabia se tratar de objeto destinado ao uso agrícola ou e florestal, que o mesmo se encontrava fora do seu lugar habitual de uso e para cuja posse o arguido não tinha justificação e, não obstante, quis e agiu do modo descrito.
31. O arguido quis e agiu do modo descrito, sabendo que, de modo reiterado, no domicilio comum, molestava física e psiquicamente a sua companheira e mãe do seu filho, que lhe infligia maus-tratos físicos e verbais, a humilhava e ofendia na sua honra e consideração pessoais, causava receio pela sua vida e integridade e violava a sua liberdade e autodeterminação sexual, compelindo-a a atos sexuais indesejados.
32. Bem sabia que ao agir da forma descrita condicionava gravemente a vida e bem-estar psicossocial de BB, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana e pondo em perigo a sua saúde física e psíquica.
33. Agiu, em tudo, livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que
34. Em consequência do comportamento perpetrado pelo arguido contra a ofendida, esta não consegue dormir e está sob acompanhamento, por psicólogo, desde há cerca de um ano, com periodicidade mensal ou de dois em dois meses.
Da situação pessoal e económica do arguido
35. O arguido, natural de …, é o primeiro filho mais velho de uma fratria de três, tendo crescido junto dos progenitores. O pai trabalhava no ramo da … e a mãe como …, que lhe proporcionaram uma educação tradicional, com vínculos emocionais estreitos.
36. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade normativa, tendo concluído o 4.º ano de escolaridade. A desistência escolar decorreu do desinteresse.
37. Iniciou precocemente no mercado de trabalho, acompanhando o progenitor na …. Anos mais tarde emigrou para a ... onde permaneceu cerca de 11 anos a trabalhar também na área da … tendo, na sequência da falta de trabalho, regressado a Portugal.
38. Após algumas dificuldades pessoais e profissionais, celebrou contrato de trabalho com uma …, onde exerceu funções com contrato de trabalho.
39. Atualmente tem uma …onde trabalha por conta própria como ..., auferindo o salário mínimo nacional.
40. Na vertente relacional, o arguido teve um primeiro relacionamento que durou cerca de dois anos e de quem tem uma filha com 23 anos, com quem mantém boa relação. Após, manteve o relacionamento com a aqui ofendida.
41. O arguido apresenta uma trajetória pessoal fortemente condicionada por fragilidades emocionais e consumos abusivos de bebidas alcoólicas que estiveram na origem de problemas com a justiça.
42. O arguido mantém a morada constante nos autos, onde reside sozinho, tratando-se de uma habitação de gestão camarária, pela qual paga uma renda de €5,41 euros.
43. O filho do arguido reside com a progenitora, e vai mantendo contacto com o mesmo.
44. O arguido apresenta um histórico de consumo abusivo de bebidas alcoólicas, situação que reconhece.
45. Por cumprimento de obrigações impostas no âmbito do processo n.º 108/19.9S9LSB, o arguido passou a ser acompanhado nas consultas e tratamento da ..., o que o arguido reconhece, que constitui um fator protetor.
46. O arguido considera como principal impacto da presente situação judicial as limitações presentes na relação com o filho, aparentando estar resignado quanto à separação.
Dos antecedentes criminais do arguido
47. Por sentença proferida em 06/03/2002, no processo n.º 65/01, da 1.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado em 08/03/2002, foi condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 50 dias de multa, à razão diária de 400$00. Tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.
48. Por sentença proferida em 28/10/2005, no processo n.º1204/02.7PHLRS, da 2.º Juízo do Criminal de Loures, transitada em julgado em 14/11/2002, foi condenado pela prática, em 27/06/2002, de um crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de 7 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano. Tal pena foi declarada extinta nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal.
49. Por sentença proferida em 02/01/2006, no processo n.º 2/06.3S5LSB, da 2.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado em 18/01/2006, foi condenado pela prática, em 01/01/2006, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de €2,50. Tal pena foi declarada extinta pelo cumprimento.
50. Por sentença proferida em 15/12/2006, no processo n.º 245/06.0S9LSB, da 3.ª Secção do 1.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado em 12/01/2007, foi condenado pela prática, em 13/12/2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 2,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses. Tais penas foram declaradas extinta pelo cumprimento.
51. Por sentença proferida em 25/10/2010, no processo n.º 1210/10.8SILSB, da 3.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado em 25/10/2010, foi condenado pela prática, em 10/09/2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 100 dias de multa, à razão diária de € 7,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 5 meses. Tais penas foram declaradas extinta pelo cumprimento.
52. Por sentença proferida em 16/05/2014, no processo n.º 239/14.1PLLSB, da 3.ª Secção do 2.º Juízo do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, transitada em julgado em 02/07/2014, foi condenado pela prática, em 16/05/2014, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 15 meses. Tais penas foram declaradas extinta pelo cumprimento.
53. Por sentença proferida em 17/07/2018, no processo n.º 620/18.7POLSB, do Juízo local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, transitada em julgado em 01/01/2018, foi condenado pela prática, em 30/06/2018, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 10 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 16 meses. Tais penas foram declaradas extintas, a primeira nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal, e a segunda pelo cumprimento.
54. Por sentença proferida em 04/02/2020, no processo n.º 108/19.9S9LSB, do Juízo local de Pequena Criminalidade de Lisboa – Juiz 1, transitada em julgado em 05/03/2020, foi condenado pela prática, em 13/04/2019, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 12 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, com regime de prova, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 20 meses. Tais penas foram declaradas extintas, a primeira nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do Código Penal, e a segunda pelo cumprimento.
1.2. Matéria de facto não provada
Dos factos que se mostram relevantes para a decisão, não se provou que:
a) Nas circunstâncias referidas em 6) dos factos provados, o arguido dissesse que “matava toda a gente, que agredia toda a gente” e noutras ocasiões dissesse que “ia buscar a pistola à oficina”.
b) Nas diversas discussões que mantinham, por vezes o arguido dizia à sua companheira que se ia matar.
c) Aquando do referido em 11) dos factos provados, o arguido tivesse apontado um revolver à ofendida e lhe tivesse dito “Eu vou-te matar”.
d) Durante todo o relacionamento, quando se encontravam em casa, por diversas e repetidas vezes, o arguido dizia à ofendida “vai para o caralho” e que a família dela só queria afastá-la dele.
e) Com as expressões referidas em 14) dos factos provados, o arguido quisesse impedir a ofendida de manter contacto com os seus familiares e fez com que esta, por via da persistência das palavras do arguido e face à sua dependência económica em relação ao mesmo, se afastasse de familiares.
f) O referido em 18) dos factos provados ocorresse com uma frequência praticamente diária.
g) No dia 21 de setembro de 2022, pelas 20h30, o arguido tivesse exibido ao filho comum, na residência, um objeto com aparência de caçadeira perguntando "gostas do meu novo brinquedo".
h) Nesse mesmo dia, após o jantar, o arguido tivesse subido e descido por diversas vezes as escadas entre o andar onde vive e o andar de cima e no qual se situa a casa da sua mãe, empunhando o mencionado objeto e uma catana dizendo "a tua tia não me ameaça mais, tenho aqui uma catana para lhe cortar o pescoço", referindo-a a uma irmã da ofendida, após o que se deslocou para o seu quarto.
i) Face à atuação do arguido referida nas alíneas g) e h), com receio da sua conduta, o filho do arguido chamou a PSP.
1.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção a partir da análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal).
“A livre apreciação da prova a que alude o artigo 127.º do Código de Processo Penal, não é reconduzível a um íntimo convencimento, a um convencimento meramente subjetivo, sem possibilidade de justificação objetiva, mas a uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que, por isso, também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da atividade probatória.” - cf. Acórdão do STJ de 3/03/1999, in BMJ 485, pág. 248.
Começando pelas declarações prestadas pelo arguido, temos que este começou por afirmar serem verdadeiros alguns dos factos descritos na acusação e outros não. Disse ainda não ter consciência dos seus atos porque consumia muto álcool, lamentar o sucedido e querer pedir desculpa.
Quando confrontado, em concreto, com a factualidade vertida no libelo acusatório, o arguido, de forma que se revelou isenta e credível, admitiu como verdadeira a factualidade descrita nos pontos 1 a 5 da acusação, tendo também admitido ter a arma de fogo disfarçada de caneta, a qual exibia a quem se encontrasse em sua casa, nega, no entanto, ter proferido as expressões constantes do ponto 6 da acusação, ou seja, negou que tivesse dito que matava toda a gente, que agredia toda a gente ou que ia buscar a pistola à oficina.
No mais, o arguido negou os factos descritos na acusação, constantes dos pontos 8 e 9 (afirmando que as relações sexuais com a ofendida eram sempre consentidas), 10, 12, 14 (disse nunca ter batido na ofendida), 17 (referindo que encontrava a ofendida apenas no ..., o que aconteceu duas ou três vezes, e que esta dizia-lhe que não tinha nada para falar consigo e ia-se embora, sendo que ele respeitava a vontade da ofendida) e 18.
Relativamente à factualidade inserta nos pontos 11, 19, 21, e 22 do libelo acusatório, disse o arguido que não se recorda de tais factos.
No que se refere à separação, o arguido disse que a ofendida saiu de casa em 17/06/2022 porque esta, segundo o que a ofendida lhe disse, deixou de gostar de si. Admitiu ter reagido mal à separação, uma vez que gostava da ofendida, ter ficado triste e chateado por a ter perdido, tendo continuado a consumir álcool. Disse o arguido que a ofendida foi viver para casa da avó dela, cuja morada desconhece. Diz saber onde se situa a casa da avó da ofendida, mas que nunca foi até lá.
Relativamente às armas, o arguido admitiu que as tinha e há mais ou menos vinte anos, porque gostava de as ter a título de colação; que as comprou na “...”; que não tem licença de uso e porte de arma apesar de saber ser necessário ter tal licença pare deter tais armas e que, por isso, a posse de tais armas constituía crime; e precisou o local onde as tinha guardadas, muito embora não tenha explicado o motivo pelo qual as guardava dessa forma (arma de fogo sob a forma de caneta no bolso do casaco; a caçadeira e a catana atrás dos casacos no interior do roupeiro). Quanto às munições, disse que não eram para nada e tê-las comprado por gosto.
Em face de tais declarações, foi o arguido questionado do motivo pelo qual iniciou as suas declarações afirmando que lamenta o sucedido e querer pedir desculpa quando, das suas declarações, não resulta que o mesmo tivesse feito algum mal à ofendida, ao que o arguido disse não querer responder.
Por fim, disse o arguido que à data consumia álcool em excesso, o que a ofendida encarava mal, queixando-se do seu mau hálito; que o filho estava praticamente todos os dias em casa, com exceção de quando ia trabalhar (trabalhava a tempo parcial numa pastelaria) ou sair com os amigos, e que regra geral jantava em casa. Disse ainda que socialmente se dá bem com os seus amigos e que frequenta consultas no ....
Ora, tendo presente tais declarações, resulta com cristalina clareza ter o arguido assumido o que era inegável (a detenção das armas que lhe foram apreendidas por agentes da autoridade) e o que era inócuo para a sua situação, negando ou dizendo não se recordar das condutas de que está acusado de exercer sobre a ofendida, sendo assim incompreensível e contraditório que o arguido diga lamentar o sucedido e querer pedir desculpa de condutas que diz não ter levado a cabo ou não se recordar de as ter praticado.
Diferente foi o depoimento da testemunha EE, irmão da ofendida, que falou de uma forma clara, seguro e isenta e, por isso credível.
Em suma, disse esta testemunha que frequentava a cada da ofendida e do arguido.
O problema do arguido sempre foi a bebida. Existiam discussões entre o arguido e a ofendida porque o arguido bebia e o álcool mudava a postura do arguido.
Nessas discussões, existiam agressões verbais mútuas, sendo que a ofendida chamava o arguido de “bêbado”, e este também chamava nomes à ofendida, os quais não logrou concretizar, referindo que o arguido dizia à ofendida que ela “não prestava para nada”.
Disse que o arguido sempre ameaçou a ofendida, mas nunca assistiu a agressões físicas do arguido à ofendida nem que aquele chamasse esta de “puta”, “vaca”, “interesseira”.
Referiu que, por uma vez, em data que não logrou precisar, o arguido telefonou-lhe a dizer que a ofendida estava com um homem, que a estava a ver, que ia buscar a caçadeira a casa e que ia matá-la.
Nessa sequência, ligou para a sua irmã para que saísse do local porque o arguido estava a vê-la.
Disse ainda ter visto o arguido com uma arma em forma de “canivete” (foi próprio arguido quem lha mostrou), tendo ainda visto o arguido com a mesma arma, fora de casa, por três ou quatro vezes.
Por fim, referiu também que, desde a apresentação de queixa pelas armas, o arguido não voltou a procurara a sua irmã, a qual tinha medo que o arguido, não aceitando o fim da relação, lhe pudesse fazer algum mal.
Já no que se refere à testemunha FF, filho do arguido e da ofendida, recusou-se legalmente a prestar o seu depoimento.
A testemunha CC, irmã da ofendida, prestou um depoimento igualmente isento, seguro e credível.
Em síntese, disse esta testemunha que frequentava a casa do arguido e da ofendida. Que quando o arguido bebia, o que acontecia quase sempre, o ambiente “descambava”, esclarecendo que o comportamento do arguido se alterava, que gritava imenso (nomes não chamava, mas exaltava-se) e que tinha “a mania de ir buscar pistolas”.
Relatou que, numa ocasião, quando a ofendida ia fazer uma tatuagem de família, o arguido não queria que ela a fizesse e foi buscar uma arma.
Disse que já tinha visto armas em casa do arguido, que já tinha visto a “caneta” na mão do arguido e era com a “caneta” que este ameaçava a sua irmã. Uma vez assistiu o arguido a dizer à ofendida que a matava, tendo uma arma na mão, mas sem que a estivesse a apontar.
Desde há cerca de dois anos que, todos os fins de semana, ia a casa do arguido e da ofendida, ou estes a sua casa. Nunca o arguido a proibiu de ir a casa deles nem sentiu que o arguido não queria que ela lá fosse a casa para que a sua irmã não tivesse contactos com a família.
Por fim, disse que a ofendida lhe telefonou várias vezes dizendo que estava a ser perseguida pelo arguido, uma das vezes, a ofendida estava no metro.
Relativamente à testemunha DD, filha da ofendida, que prestou um depoimento igualmente claro, seguro e isento, pela mesma foi dito, em suma, que o arguido e a ofendida se desentendiam e discutiam constantemente, querendo com isto dizer que existia o levantar de voz e gritos por parte de ambos, mas nunca ouviu as expressões “vaca” e “puta”.
O arguido não gostava que a sua mãe se arranjasse ou maquilhasse para sair de casa, e dizia que as mulheres não se vestem assim, que quem anda assim vestida são as putas. Que esta situação não era frequente, mas aconteceu algumas vezes.
Viu o arguido com uma arma tipo caneta, mas não presenciou este a apontá-la na direção da sua mãe, mais dizendo que quando o arguido vinha alcoolizado disparava a caneta para a rua.
Na morada constante da acusação, assistiu o arguido a bater na sua mãe, tendo uma das vezes lhe partido os dentes. Nesta situação o seu irmão era bebé de colo e entre ambos existe uma diferença de quatro anos de idade. Viu o arguido bater mais vezes na mãe, sendo que, de outra vez “abriu-lhe a cabeça”.
A testemunha GG, chefe da PSP, teve intervenção na apreensão das armas ao arguido, esclarecendo quais as armas que encontraram e apreenderam e onde.
Por fim, temos as declarações para memória futura da ofendida, as quais se encontram transcritas a fls. 281 e seguintes.
Já no que tange aos esclarecimentos prestados pela ofendida em sede de audiência de julgamento, urge referir que a mesma os prestou de uma forma bastante sofrida, fazendo um relato claro, seguro e bastante isento dos factos e, por isso mesmo, credíveis.
Referiu a ofendida que viveu maritalmente com o arguido durante dezanove a vinte anos e até ao mês de março ou junho de 2022.
Quanto às relações sexuais com o arguido, disse a ofendida que as mesmas não eram consentidas, tendo descrito que o arguido a agarrava pelos braços (exemplificando os dois braços esticados acima da cabeça), e que a penetrava “à força” mesmo dizendo ela que não queria. Quando ao número de vezes que tal sucedeu, disse não conseguir quantificar, mas mais do que uma vez.
Outras vezes, mesmo não querendo, acabava por ceder à vontade do arguido em manter relações sexuais, para não ter que o ouvir mais porque a chateava. Em jeito de desabafo, disse que o arguido a vencia pelo cansaço.
Referiu também que o arguido a agredia, tendo descrito a situação em que o arguido a agrediu, partindo-lhe os dentes.
Relativamente ao seu estado, disse estar a ser acompanhada por psicólogo desde há cerca de um ano, com a frequência de uma vez por mês ou uma vez de dois em dois meses. Não toma medicação, mas não consegue dormir.
Por último, disse que desde que apresentou queixa, o arguido deixou de a procurar.
Concretizando, o tribunal estribou a sua convicção no que tange à factualidade inserta nos pontos 1 a 5, nas declarações prestadas pelo arguido, que a confirmou, sendo certo que, nessa parte, as suas declarações se pautaram pela isenção e credibilidade. Tal factualidade foi ainda confirmada pelas declarações para memória futura prestadas pela ofendida BB, cuja transcrição consta de fls. 281/323 assim como pela certidão de nascimento de fls. 33, referente a FF, da qual se extrai ser este filho do arguido e da ofendida e ter nascido em ... de ... de 2002.
Do mesmo modo, o facto do arguido portar uma arma de fogo disfarçada de caneta que exibia a quem se encontrasse em casa (cf. ponto 6 dos factos provados) resultou assente em face das declarações do arguido, que o admitiu, das declarações para memória futura prestadas pela ofendida bem como dos depoimentos das testemunhas EE e CC (irmãos da ofendida) e DD (filha da ofendida) que, de forma clara, precisa e coerente entre si, o confirmaram.
Quanto às agressões descritas nos pontos 7 e 8 dos factos provados, a convicção do tribunal vincou-se nas declarações da ofendida e no depoimento da testemunha DD, sendo que a delimitação temporal teve por base a referência feita à idade do filho da ofendida (e, simultaneamente, irmão da testemunha DD), tendo por referência a data de nascimento deste.
Já no que se refere à factualidade inserta nos pontos 9 e 10 dos factos provados (referentes à forma como o arguido e a ofendida se relacionavam na esfera íntima do casal), o arguido negou-a, afirmando que ele e a ofendida sempre tiveram relações sexuais de forma consensual.
Porém, das declarações e esclarecimentos prestados pela ofendida, que se revelaram claras, seguras e bastante sofridas, não deixaram qualquer margem de dúvida quanto à sua verificação. E a esta conclusão não obsta o facto de a ofendida, quando confrontada com o termo violação, dito que “violação não”. De facto, a ofendia foi muito clara ao afirmar ter dito ao arguido que não queria manter relações sexuais com ele, que este agarrou os seus braços impedindo-a de se defender e penetrou-a com força, pelo que, dúvidas não se suscitam, como se disse, à verificação da factualidade inserta no ponto 9.
Para a verificação da factualidade constante nos pontos 11 a 16, o tribunal valorou as declarações da ofendida e os depoimentos das testemunhas EE (quanto ao vertido em 12) e DD (quanto ao vertido em 14).
Relativamente à saída de casa pela ofendida, tal foi admitido pelo arguido e confirmado pela ofendida e demais testemunhas inquiridas em sede de julgamento, sendo que a factualidade inserta nos pontos 18 a 22 resultou assente em face das declarações prestadas pela ofendida e do depoimento da testemunha EE.
Relativamente à posse das armas e munições por parte do arguido e da falta da respetiva licença, para além das declarações por este prestadas que, nessa parte, se revelaram isentas e credíveis, e do depoimento da testemunha GG, valorou o tribunal a prova documental e pericial carreada para os autos, a saber:
» o auto de notícia por detenção de fls. 43/44, o aditamento de fls. 46 e o auto de apreensão de fls. 47, dos quais se extrai a data e local em que tais armas e munições foram apreendidas ao arguido; os autos de exame e avaliação de fls. 48 e 49, a reportagem fotográfica de fls. 53 e 54, o fotograma de fls. 78 e os relatórios de exame pericial, constantes de fls. 220/221, 222, 223 e 224 (este referente ao objeto com configuração de arma de fogo, do qual se extrai que tal objeto reveste natureza decorativa), no que tange natureza e características das referidas armas e munições.
Quanto à factualidade subjetiva, a mesma decorre da atuação empreendia pelo próprio arguido. Nesta sede, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 04/05/1994, disponível no sítio www.dgsi.pt, segundo o qual, “o dolo não é suscetível de apreensão direta por pertencer ao foro íntimo de cada um, pelo que só poderá ser captado através de presunções legais, em conexão com o princípio da normalidade e as regras da experiência que permitam inferi-lo a partir de factos materiais comuns, entre os quais avulta o preenchimento da materialidade da infração”.
Relativamente à situação pessoal e económica do arguido, atendeu o tribunal às declarações por este prestadas nesta sede, ao teor do relatório social elaborado pela DGRSP a pedido do tribunal (cujo teor o arguido confirmou), constante de fls. 377/379, onde se descrevem os dados relevantes do seu processo de socialização, as suas condições pessoais e sociais, bem como o impacto da presente situação jurídico-penal na sua pessoa.
Foi ainda considerado o certificado de registo criminal do arguido, inserto a fls. 380/388, quanto aos seus antecedentes criminais.
Já no que se refere aos factos não provados, o tribunal assim decidiu em face da ausência de prova cabal e segura que permitisse concluir pela sua verificação.
Mostram-se, ainda, relevantes para a decisão da causa os seguintes aspetos:
Foi deduzida acusação imputando ao arguido a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:
- um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal; e,
- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, por referência aos artigos 2.º, alínea p), e 3.º, n.º 2, alíneas p), ab) da mesma Lei.
Foi também pedida a condenação do arguido nas seguintes penas acessórias:
- a pena acessória de proibição do exercício de funções ou atividades, públicas ou privadas, ainda que não remuneradas, cujo exercício envolva contacto regular com menores, por um período fixado entre dois a 20 anos, nos termos do artigo 69.º- B, do Código Penal;
- a pena acessória de proibição de confiança de menores e inibição de responsabilidades parentais ou do exercício de funções por crimes contra a autodeterminação sexual e a liberdade, por um período de dois a vinte anos, nos termos do artigo 69.º- C, do Código Penal; e,
- a pena acessória de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica, previstas nos números 4 e 5 do artigo 152.º, do Código Penal.
Na ata da audiência de julgamento de 22.11.2023 (referência citius 430390911) foi proferido o despacho já transcrito a fls. 2 deste acórdão.
Foi concedida a palavra à Ilustre Defensora do arguido, a qual requereu prazo o prazo de 10 dias para pronúncia acerca das comunicações efetuadas.
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Após, pela Mm.ª Juiz Presidente foi proferido o seguinte:
DESPACHO
“Ao abrigo do disposto no art.º 358º do Código de Processo Penal, concede-se ao arguido o prazo de 10 dias para se pronunciar relativamente à comunicação efetuada na presente audiência de julgamento.
Em face disso, interrompe-se a presente audiência, designando-se a sua continuação com possível leitura de acórdão para o próximo dia 6 de Dezembro, pelas 13:30 horas.”
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II.4- Apreciação do recurso
II.5 – Da nulidade do acórdão, nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) por violação do principio da vinculação temática
Suscita o arguido a nulidade do acórdão nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal, por entender que ocorreu violação do principio da vinculação temática, na medida em que entende foram aditados factos novos e bem assim um novo tipo legal de crime, designadamente o crime do art.º 164º do Código de Processo Penal. Mais acrescenta que para imputar esses novos factos ao arguido que consubstanciam uma moldura penal distinta caberia ao Ministério Público determinar a abertura de inquérito sendo o recorrente julgado em processo distinto do dos presentes autos.
Vejamos então:
Prevê o invocado artigo 379.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “nulidade da sentença”, e no que ao caso interessa, que:
1 - É nula a sentença:
(…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º;
(…)”.
Tendo em conta as questões suscitadas, torna-se necessário, para a sua análise, considerar o teor dos normativos da lei processual penal, no que concerne à alteração dos factos e qualificação jurídica (que para o caso relevam).
A tal respeito, estabelece o artigo 358.º do Código de Processo Penal o seguinte:
“1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa.
2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa.
3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”
Por sua vez, dispõe o artigo 359.º do mesmo Código:
“1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância.
2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objeto do processo.
3 - Ressalva-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal.
4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário.”
Como se constata, incluindo pelas suas epígrafes, o primeiro preceito refere-se à alteração não substancial e da qualificação jurídica e o segundo à alteração substancial dos factos da acusação ou da pronúncia, sendo os seus regimes manifestamente diferentes.
Contudo, em nenhum desses normativos se define o que é uma “alteração não substancial” ou uma “alteração substancial”.
Porém, o artigo 1.º do mesmo Código, com a epígrafe “Definições legais”, dá resposta a tal questão, pois que, na alínea f), estabelece que “Para efeitos do disposto no presente Código considera-se (…) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”
Neste particular, parece-nos que duas conclusões se podem extrair:
Por um lado, alterações substanciais de factos são aquelas e só aquelas que tiverem um desses efeitos (imputação de “crime diverso” ou “agravação dos limites máximos” das sanções). Por outro, todas as restantes alterações são necessariamente não substanciais.
Os factos constantes da acusação ou pronúncia fixam o “objeto do processo”, o qual, por sua vez, delimita os poderes de cognição do Tribunal, que a ele fica, à partida, vinculado tematicamente. A esta visão está subjacente a estrutura basicamente acusatória no nosso processo penal. Todavia, essa estrutura acusatória é integrada por um “princípio de investigação”, na medida em que se admite que, sendo a descrição dos factos na acusação uma narração “sintética” (cfr. art.º 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP), “nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar desde logo dessa peça, podendo surgir durante a discussão factos novos que traduzam alteração dos anteriormente descritos.”
Alteração tem o significado de “modificação” e “mudança”, pelo que a mesma tanto pode traduzir-se no aditamento como na subtração de factos, bem como na reorganização da sua forma expositiva. Mas nem toda a alteração de factos (ou mesmo da sua qualificação jurídica) representa uma alteração do aludido “objeto do processo” que foi fixado pela acusação ou pronúncia.
É neste campo que surge a diferenciação entre as alterações não substanciais e as alterações substanciais. Efetivamente, se em termos quantitativos a lei não estabelece qualquer limitação, já em termos qualitativos, ou seja, quanto à sua natureza, o regime é bem diferente. É que enquanto nas primeiras o juiz tem o poder / dever oficioso de as determinar, nas segundas o prosseguimento do julgamento com as alterações depende do acordo não só do arguido, mas também do assistente e do Ministério Público. (n.ºs 1, 2 e 3, do art.º 359.º, do CPP).
A razão de ser da necessidade desse “acordo”, designadamente do arguido, tem precisamente a ver com o facto de tais alterações determinarem a própria alteração do “objeto do processo” (a sua substância e essência), o que não se verifica nas não substanciais, as quais se enquadram do âmbito do mesmo “facto histórico unitário”.
E quanto à definição legal, o texto da alínea f) do artigo 1.º do CPP, já transcrito, é claríssimo: só existe alteração substancial dos factos se a mesma tiver por efeito “a imputação ao arguido de um crime diverso” ou “a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis.”
Todas as outras alterações factuais que não tenham, pelo menos, um desses efeitos são necessariamente não substanciais, as quais mantêm incólume o “objeto do processo”.
Crimes diversos são naturalmente aqueles cujas normas incriminadoras protegem diferente “bem jurídico”.
Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque, “não há crime diverso se o bem jurídico protegido pelo tipo criminal imputado na acusação abranger o bem jurídico protegido pelo tipo criminal resultante dos factos novos” (Paulo Pinto de Albuquerque Comentário ao Código de Processo Penal 5ªa edição Vol. I, ponto IV da anotação 7).
Importa ainda referir, como nos parece resultar do texto da lei, que se trata do limite máximo da pena aplicável, ou seja, da pena abstrata cominada na norma incriminadora. Pois se se tratar de factos que possam relevar apenas para a determinação da espécie e/ou da concreta medida da pena estamos claramente perante alterações não substanciais. (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in obra citada, págs. 46 e 47)
Aliás, o próprio Tribunal Constitucional já se pronunciou sobre estas questões, sustentando que “se durante a audiência surgirem factos relevantes para a decisão e que não alterem o crime tipificado na acusação, nem levem à agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, respeitados que sejam os direitos de defesa do arguido, pode o tribunal investigar esses factos indiciados, ex novo, e, se se vierem a provar, integrá-los no processo, sem violação do preceituado no artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, da Constituição.” (cfr. Acórdão n.º 130/98, de 07-05, disponível in tribunal constitucional.pt).
Assim, daquelas normas legais, resulta que só haverá alteração substancial se ocorrer uma alteração dos factos (da acusação ou pronúncia), sendo que tal alteração terá de ter por efeito a imputação do arguido de um crime diverso (daquele que lhe era imputado) ou agravação dos limites máximo das sanções aplicáveis (relativamente ao crime que lhe era imputado).
O mesmo é dizer que a simples imputação de um crime diverso ou a simples agravação dos limites máximo das sanções aplicáveis, sem qualquer alteração dos factos da acusação ou pronúncia (por tal peça já conter os factos necessários), não é uma “alteração substancial dos factos”, atenta a definição constante da citada alínea f) do artigo 1.º do CPP.
Ou seja, se a alteração consistir apenas na imputação de novo crime, que não constava da acusação mesmo que diferente ou mais grave, a alteração é não substancial, relativamente à qual (pois que não interfere com os factos) dispõe o n.º 3, remetendo para o n.º 1, do artigo 358.º do CPP.
Na verdade, o nosso ordenamento jurídico-penal dá particular relevância ao facto, relativamente ao qual incide primordialmente a discussão e o arguido se defende. Daí que só faça sentido considerar a alteração como substancial se os novos factos comunicados alterarem o “objeto do processo”, relativamente ao qual aquele se defendeu, dependendo, por isso, o prosseguimento (também) pelos novos factos da aceitação dos sujeitos processuais (Ministério Público, arguido e assistente).
Vejamos então:
O tribunal começou por fazer exarar o seguinte: ““Ao arguido é imputada a prática, além de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, de um crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, em concurso aparente com um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, punido com pena de 3 a 10 anos de prisão, por ser a pena mais gravosa, correspondente à pena do crime de violação.
Porém, não é este o entendimento deste tribunal.
Em nosso entender, face à factualidade imputada ao arguido no libelo acusatório e que poderá resultar provada em face da prova produzida em sede de audiência de julgamento, o crime de violação é autonomizável em relação ao crime de violência doméstica, estando assim tais crimes em relação de concurso efetivo e não aparente, conforme plasmado na acusação.
Por outro lado, a factualidade imputada ao arguido na acusação no que tange ao crime de violação e que poderá resultar provada em face da prova produzida em sede de julgamento (mormente que, “enquanto viviam juntos, em casa de ambos o arguido, pretendendo manter relações sexuais com a ofendida, e quando esta lhe disse que parasse, pelo menos por uma ocasião, aquele agarrou os braços da ofendida de forma a impedi-la de defesa e introduziu o pénis na sua vagina, forçando-a relações sexuais”) é suscetível de fazer o arguido incorrer na prática do crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.
Assim, em relação aos imputados crimes de violência doméstica e de violação, entendemos que o arguido poderá incorrer na prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de crime de violência doméstica agravado, previsto pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e c), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, e de um crime de violação agravada, previsto e punido pelos artigos 164.º, n.º 2, alínea a), e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal.
O que acaba de se expor consubstancia uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, o que agora se comunica ao arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal.”
Neste segmento, como ressalta do despacho exarado, não ocorreu qualquer alteração de factos, mas sim um diverso entendimento quanto à qualificação jurídica dos factos já descritos na acusação.
Ora, como acima salientamos, se a alteração consistir apenas na imputação de novo crime, que não constava da acusação mesmo que diferente ou mais grave, a alteração é não substancial (pois não interfere com os factos), relativamente à qual dispõe o n.º 3, remetendo para o n.º 1, do artigo 358.º do Código de Processo Penal.
Deste modo, inexistiu qualquer alteração de factos, mas apenas da qualificação jurídica, tendo o Tribunal a quo entendido que os factos que já se encontravam descritos na acusação integravam em concurso efetivo com o crime de violência doméstica o crime de violação agravado nos termos do disposto nos arts. 164º, nº 1 al. a) e 177º, nº 1, al. b) do Código Penal.
A conclusão pela existência deste concurso efetivo entre os crimes de violência doméstica e de violação agravada (afastando a existência de um mero concurso aparente) não teve por base ou incluiu a introdução de quaisquer factos novos.
É certo que num segundo segmento do despacho o tribunal a quo introduziu novos factos, mas estes relativos ao crime de violência doméstica – como, aliás, expressamente se consagrou no despacho onde foi efetuada a respetiva comunicação.
Tais factos são os seguintes:
“- em data que, em concreto não foi possível apurar, mas situada entre os meses de outubro de 2002 e setembro de 2003, o arguido pegou numa pequena mesa de centro, em vidro, e arremessou-a na direção da cabeça da ofendida, atingindo-a na cabeça e deixando-a a sangrar;
- em data que, em concreto, não foi possível apurar, mas situada entre os meses de março e setembro de 2004, o arguido desferiu uma pancada com a mão fechada na cara da ofendida, com o que logrou partir-lhe os dentes;
- em algumas ocasiões, e de forma a ultrapassar a oposição da ofendida em manter relações sexuais consigo, o arguido dizia à ofendida que ela era uma puta e uma vaca;
- em consequência do comportamento perpetrado pelo arguido contra a ofendida, esta não consegue dormir e está sob acompanhamento, por psicólogo, desde há cerca de um ano, com periodicidade mensal ou de dois em dois meses.”
Estes factos não determinaram a imputação de qualquer crime diverso ao arguido recorrente, nem o agravamento do limite máximo da sanção aplicável.
O arguido vinha acusado no que concerne ao crime de violência doméstica, pela prática de um crime previsto e punível pelo art.º 152º, nº 1, al. b) e c) e nº 2 al. a) do Código Penal, e estes novos factos não introduziram qualquer alteração a esta qualificação jurídica ou moldura penal.
Concluímos, pois, tal como o Tribunal a quo, que estamos perante uma alteração não substancial de factos, nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 do Código de Processo Penal.
Ora, aqui chegados concluímos que inexistiu qualquer alteração substancial de factos, mas antes e apenas uma alteração não substancial de factos relativamente ao crime de violência doméstica, comunicada ao arguido nos termos do disposto no art.º 358º, nº 1 do Código de Processo Penal e uma alteração da qualificação jurídica (tendo em conta os factos já descritos na acusação pública, entendendo-se que esses factos permitiam a integração da qualificativa prevista no art.º 177º, nº 1 al. b) no que diz respeito ao crime de violação e que este crime se encontra numa relação de concurso efetivo e não aparente com o crime de violência doméstica, o que foi oportunamente comunicada à defesa como consta da ata da audiência de julgamento de 22.11.2023, pelo que não se verifica a invocada nulidade de sentença, nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. b) do CPP.
Alega ainda o recorrente ocorrer a mencionada nulidade prevista no art.º 379º, nº 1 al. b) e nº e do Código de Processo Penal, por violação do art.º 358º, do mesmo diploma legal por o acórdão ter sido proferido antes de decorrido o prazo de 10 dias concedido pelo Tribunal para que sobre ele se pronunciasse.
O recorrente por requerimento datado de 18.12.2023 invocou a nulidade do acórdão proferido nos autos invocando em síntese: “O Arguido foi notificado do despacho no dia 22 de Novembro de 2023, tendo-lhe sido concedido o prazo de 10 (dez) dias para se pronunciar;
Ora,
Tal prazo, salvo e por melhor douta opinião contrária, apenas terminava às 23:59 do dia 06 de Dezembro de 2023, atento os três dias de multa nos termos da Lei;
No entanto,
O Tribunal proferiu Acórdão às 13:30 do dia 06 de Dezembro de 2023, sem ter deixado decorrer o prazo de resposta e sem que este tivesse terminado e, com efeito, precludindo o Direito do Arguido;
Situação essa que,
Expoleta a nulidade da decisão nos termos do disposto da alínea b) do n.ºs 1 e 2 do Art.º 379.º e do n.º 3 do Art.º 358.º CPP, porquanto condenou o arguido com uma prévia alteração da qualificação jurídica dos factos fora do condicionalismo (temporal) previsto no Art.º 358.º CPP, conforme sentido interpretativo fixado pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.º 11/2013, de 19.07.2013
Destarte,
Ao ter sido proferido Acórdão antes do prazo de resposta à alteração não substancial, tal, salvo por melhor douta opinião contrária, é causa de nulidade decisão, fincando esta inquinada na sua formação, génese e a montante, o que se argui tempestivamente”.
O Tribunal a quo apreciando o requerimento apresentado proferiu o seguinte despacho:
“Requerimento com a ref.ª 37923989 (nulidade do acórdão):
Veio o arguido arguir a nulidade do acórdão proferido nestes autos, invocando para tanto o disposto nos artigos 379.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, e 358.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Invoca, para tanto, que tal acórdão “condenou o arguido com uma prévia alteração da qualificação jurídica dos factos fora do condicionalismo (temporal) previsto no Art.º 358.º CPP, conforme sentido interpretativo fixado pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) n.º 11/2013, de 19.07.2013”.
Em suma, refere que em 22/11/2023 foi-lhe concedido o prazo de dez dias para se pronunciar sobre a comunicação de alteração não substancial dos factos descritos na acusação e que em 06/12/2023 foi proferido acórdão, data esta em que ainda não tinha terminado o prazo que lhe foi concedido que somente terminaria às 23h59 do dia 06/12/2023, atento os três dias de multa nos termos previstos na Lei.
€Lavrado termo de vista nos autos, a Digna Magistrado do Ministério Público pugnou pela improcedência da invocada nulidade.
Dispõe o n.º 2 do mesmo artigo 379.º, que as nulidades da sentença devem ser arguidas em recurso, devendo o tribunal supri-las.
O arguido optou, desde logo, por invocar tal nulidade através do requerimento em apreço (pese embora a tenha também alegado em sede de recurso do acórdão).
Apreciando e decidindo.
Dispõe o invocado artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 258.º e 359.º.
Em nosso entender, no caso dos autos, não se verifica a invocada nulidade, desde logo porque, após a produção de prova em sede de audiência de julgamento, este tribunal comunicou a alteração não substancial dos factos descritos na acusação e bem assim a alteração da qualificação jurídica dos mesmos, nos termos previstos no artigo 358.º, n.º 1 e n.º 3, do Código de Processo Penal, como o próprio arguido reconhece.
Mais, o tribunal concedeu ainda ao arguido o prazo de 10 (dez) dias para preparar a sua defesa (conforme o arguido também reconhece), pelo que foi escrupulosamente cumprido o disposto no n.º 1 do artigo 358.º do Código de Processo Penal, não existindo, por consequência, a nulidade prevista no citado artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
Questão diversa é a de saber qual a consequência jurídica a extrair do facto de não ter sido respeitado, na íntegra, o prazo concedido ao arguido para preparação da sua defesa (certo que está, conforme alegado pelo arguido, que o acórdão foi prolatado no terceiro dia útil após o termo do prazo concedido ao arguido para apresentar a sua defesa).
No entender do arguido, tal acarreta a mesma nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal. Ou seja, para o arguido, o facto de o acórdão ter sido proferido algumas horas antes de terminar o terceiro dia útil após o termino do prazo de defesa que lhe foi concedido equivale à não comunicação e à não concessão de qualquer prazo para defesa. Nada mais errado em nosso entender.
De facto, e como bem sustenta a Digna Magistrada do Ministério Público, tal situação acarreta uma mera irregularidade, a qual teria que ser arguida pelo arguido no próprio ato da leitura do acórdão, uma vez que a ele assistiu (cf. artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), o que o arguido, de facto, não fez, quando, podia e devia tê-lo feito, como se impunha nos termos do citado preceito legal.
Não o tendo feito, está sanada a referida irregularidade,
Assim sendo, em nosso entender, não se verificando a invocada nulidade do acórdão proferido, nada se impõe suprir em relação ao mesmo.
Notifique.;
Analisando as atas de audiência de julgamento de 22.11.2023 e de 06.12.2023, constata-se que o prazo de 10 dias concedido terminou no dia 02.12.2023, que sendo um sábado (dia não útil), fez com que transitasse para dia 04.12.2023.
Tratando-se de um prazo perentório terminou nessa data; sendo certo que poderia ainda ser praticado num dos três dias uteis subsequentes, mediante o pagamento da respetiva multa, nos termos do disposto no art.º 107º A do CPP e 139º do CPC.
No caso presente estamos perante a inobservância de disposições das lei de processo penal, nos termos do nº 1 e 2 do art.º 118º do Código de Processo Penal, e não perante uma nulidade de sentença prevista no art.º 379º, nº 1 al. b) do Código de Processo Penal.
Esta última apenas ocorreria caso o Tribunal não tivesse efetuado a comunicação ou não tivesse concedido qualquer prazo para preparação da defesa, o que, como decorre dos autos, não é o caso.
Na verdade, o tribunal a quo concedeu prazo para preparação de defesa- como consta da respetiva ata - assim se dando cumprimento à exigência legal decorrente do art.º 358º, nº 1 do Código de Processo Penal. O que ocorreu é que já após o seu termo, mas no período em que o ato ainda podia ser praticado com multa o tribunal efetuou a leitura de acórdão.
Ora, em matéria de nulidades processuais vigora o princípio da tipicidade, pelo que a violação ou inobservância de qualquer disposição legal só determina a nulidade do ato quando a lei o disser (art.º 118º do CPP ). É também a lei que distingue as nulidades absolutas ou insanáveis das relativas ou dependentes de arguição (art.º 119º e 120º do CPP ), sendo também a lei que diz quando se está perante umas, ou outras. Não se estando perante qualquer uma destas situações, estar-se-á perante uma mera irregularidade (art.º 118, nº 2 e 123º do Código de Processo Penal).
A situação em apreço não se mostra enquadrável em qualquer das nulidades insanáveis ou nas dependentes de arguição, pelo que estamos perante uma mera irregularidade (art.º 123º, nº 1 do Código de Processo Penal, que tendo ocorrido no ato da leitura do acórdão e estando o arguido e o seu ilustre defensor presentes, deveria ter sido invocada até ao termo desse mesmo ato.
Não o tendo sido, terá de considerar-se sanada.
Deste modo tendo sido concedido prazo ao arguido para preparação da sua defesa – 10 dias – que correram integralmente e estando sanada a irregularidade de o acórdão ter sido lido no prazo previsto no art.º 107º A do Código de Processo Penal e 139º do Código de Processo Civil, inexistiu qualquer violação dos direitos do arguido, nomeadamente dos seus direitos liberdades e garantias (art.º 18º da Constituição da República Portuguesa) nem em particular das garantias do processo criminal e muito concretamente do princípio do acusatório estabelecido no art.º 32º, nº 5 do CPP
Improcede, pois, também, este segmento do recurso.
II.6 - Da nulidade do acórdão nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, por omissão de pronúncia quanto à prescrição dos factos aditados.
Alega o recorrente que os factos aditados se reportam a episódios de violência ocorridos entre outubro de 2002 e setembro de 2004.
Mais alega que os factos originariamente descritos na acusação se reportavam ao período de março a setembro de 2022, pelo que existe um hiato temporal que afasta a unidade de ação, passando com que se esteja perante uma pluralidade de infrações.
Entende o recorrente que havendo este hiato de 19 anos entre os factos os mesmo s não poderiam ser considerados por estarem já prescritos.
Acompanhando a progressiva consciencialização ético-social da gravidade individual e social dos comportamentos violentos perpetrados no seio da família ou dos relacionamentos próximos o legislador assumiu o propósito de prevenir e reprimir as mais relevantes formas da chamada violência doméstica através da especial tutela que o direito penal tem por função dispensar.
Aliás, este bem jurídico assim tutelado encontra referência expressa na ordem constitucional dos direitos e deveres fundamentais.
Com efeito, no art.º 26º da Constituição da República Portuguesa a todos os cidadãos é reconhecido o direito à respetiva integridade pessoal, tanto num plano físico como numa dimensão moral. Trata-se da tutela constitucional de um direito ligado à defesa da pessoa individualmente considerada, cuja proclamação faz resultar para cada um a legítima expectativa de, ao conformar-se e dispor de si mesmo nas múltiplas formas de interação social, não vir a ser agredido ou ofendido, no corpo ou no espírito, por meios físicos ou morais (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, pg. 177).
E, assim, serão consideradas as condutas que sirvam para infligir sofrimentos físicos, sexuais ou mentais, direta ou indiretamente, por meio de enganos, ameaças, coação ou qualquer outro meio, a qualquer uma das pessoas que se incluam ou nas al.s. a) a d) do nº 1 do identificadas nas alíneas do nº 1 do art.º 152º do Código Penal.
Tal como se refere no AC RP de 26.05.2010 (disponível in www.dgsi.pt) “ (…) No crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí referenciados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual, sendo nesse sentido que já então se exprimia a nossa jurisprudência [v. g. Acs. R. P. de 1999/Nov. /03, R. C. de 2005/Jul. /06, respetivamente na CJ V/223, IV/41].
Esta é uma das facetas da dignidade humana, a qual tem consagração constitucional [art.º 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e corresponde a um dos direitos fundamentais veiculados em tratados e convenções internacionais [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE].”
Vejamos então:
Cumpre em primeira linha salientar que mesmo sem os factos que foram aditados pelo tribunal no exercício dos poderes de investigação inexistia o hiato temporal referido pelo recorrente.
Da descrição factual da acusação e que resultou provada constava já uma atuação do arguido que se prolongou ao longo dos anos, integradora do conceito de maus tratos psíquicos e não apenas circunscrita ao ano de 2022 (como refere o recorrente).
No ponto 5 dos factos provados consta que ao longo do relacionamento ( que durou 19 anos e terminou em 2022 – ponto 1 dos factos provados) o arguido alcoolizado iniciava discussões com a ofendida com frequência e que em algumas dessas ocasiões portava uma arma de fogo disfarçada de caneta que exibia a quem se encontrasse em casa; que no ano de 2010 disse à ofendida “se não fores minha não serás de mais ninguém, e bem assim os pontos 14, 15 e 16 dos factos provados que se reportam a episódios ocorridos ao longo de todo o relacionamento, descrevendo-se no ponto 17 o agravamento da conduta do arguido, que levou a ofendida a sair de casa em 2022 e os episódios ocorridos após essa saída.
O que é determinante para a caracterização do conceito legal de maus tratos é que os factos, isolados ou reiterados, praticados no âmbito de uma relação conjugal ou de vida em comum, possuam uma gravidade e importância tais que coloquem a pessoa ofendida numa situação inconciliável com a dignidade e a liberdade necessárias a qualquer membro do casal, isto é a dignidade da pessoa em relação livremente contraída.
Não se questiona, pois, que, neste tipo de crime se está perante a proteção de um bem jurídico complexo, integrando a saúde física, psíquica e emocional, a liberdade de determinação pessoal e sexual da vítima de atos violentos e a sua dignidade quando inserida numa relação conjugal ou análoga ou por causa dela.
A conexão temporal entre os vários atos que vão integrar os elementos típicos do crime, em nada releva para efeitos da configuração dessa conduta como uma continuação criminosa, pois que a prática desses sucessivos atos radica numa única resolução criminosa, consubstanciando-se num crime único com uma execução prolongada no tempo
Os factos aditados e ora constantes dos pontos 7 e 8 dos factos provados inserem-se no período temporal em que durou o relacionamento e não assumem autonomia em face dos restantes, sendo apenas a concretização da forma como a violência – no caso maus tratos físicos – foram exercidos contra aquela que era a sua companheira e tal como os restantes descritos violadores da sua dignidade pessoal.
Ora, sendo o crime de violência doméstica um crime de execução permanente prolonga-se enquanto durar a manutenção da situação antijurídica voluntária do agente.
No que concerne à contagem do prazo de prescrição do procedimento criminal, esta especificidade deste tipo de crime é particularmente relevante na medida em que o prazo de prescrição, nos termos do disposto no artigo 119º nº 2 al.) do C. Penal, inicia-se, apenas, a partir da prática do último facto que integra a reiteração dos atos criminosos em questão no caso em setembro de 2022. [neste sentido pode ver-se o Acórdão do TRL de 29.09.2021, processo nº 96/19.1GFVX.L1, e o acórdão do TRE de 19.122023, ambos disponíveis in www.dgsi.pt].
Deste modo, não ocorre na situação presente a prescrição dos factos aditados pelo tribunal e consequentemente não se verifica a nulidade invocada, pelo que improcede igualmente neste segmento o recurso interposto.
II. 7 - Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – art.º 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal, no que concerne ao crime de violação agravada
Entendeu o Tribunal a quo que os factos apurados nos autos levavam à consideração da existência de um crime de violação agravado, previsto e punível pelo art.º 164º, nº 2 al. a) e 177º, nº 1 al. b) que deveria ser punido de forma autónoma em face do crime de violência doméstica.
Porém, analisando os factos provados relativos a este crime de violação (pontos 1, 9, 31 e 33) vemos que apenas se encontra provado que estes factos decorreram enquanto o arguido e a vítima viviam juntos, sendo que, de acordo com o ponto 1 dos factos provados estes viveram juntos durante 19 anos e até março de 2022 (tendo havido algumas separações, uma delas de cerca de 8 meses em 2018).
Ora, esta indefinição temporal coloca-nos perante não só a questão da eventual prescrição dos factos que integram este crime de violação, cujo prazo é de 15 anos (art.º 118º do Código de Processo Penal), mas também perante a questão da tempestividade/intempestividade do exercício do direito de queixa, que ocorreu a 21.09.2022.
Ora, como acima referimos os vícios formais são de conhecimento oficioso.
Estes vícios encontram-se previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido precito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento3. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.
Dispõe o artigo 410.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe, “Fundamentos do recurso”, de onde decorre que:
“1 - Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 - Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3 - O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”
Da análise de tal preceito legal decorre, portanto, que a decisão sobre a matéria de facto é suscetível de ser posta em causa por via da invocação dos apontados vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, vícios decisórios esses que, conforme se referiu supra, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Penal, ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício reporta-se à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não com a falta de prova para a decisão da matéria de facto provada4.
Trata-se de uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, de um “vício de confeção da matéria de facto”, (…) impeditivo de bem se decidir , tanto no plano objetivo como subjetivo, o julgador quedou –se por uma investigação lacunar, deixou de indagar factos essenciais à decisão de direito, figurando na acusação, defesa ou resultantes da discussão da causa, impedindo de bem decidir no plano do direito, comprometendo a conclusão final do silogismo judiciário”5 (sublinhado nosso).
Ou como referem Simas Santos e Leal Henriques6Existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito ou seja, quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito adoptada designadamente, porque o tribunal, desrespeitando o princípio da investigação ou da descoberta da verdade material, não investigou toda a matéria contida no objecto do processo, relevante para a decisão, e cujo apuramento conduziria à solução legal”.
Está em causa a imputação de um crime de violação agravado que o Tribunal reporta a uma ocasião em que “o arguido pretendendo manter relações sexuais com a ofendida e quando esta lhe dizia que parasse, pelo menos por uma ocasião, aquele agarrou os braços da ofendida de forma a impedi-la de defesa e introduziu o pénis na sua vagina, forçando-a a ter relações sexuais”, mas que está apenas balizado por referência ao período em que ambos viviam juntos - o que abrange o período de 2003 a 2022, com interregnos (o maior de 8 meses em 2018).
Ora, parece-nos que estes factos são exíguos para fundamentar a solução de direito encontrada, e que, da factualidade vertida na decisão, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou absolvição (cf. neste sentido o Acórdão do STJ de 05.12.207, processo 07p3406, disponível in www.dgsi.pt).
Está em causa a prática de um crime de violação agravado, nos termos do disposto nos arts. 164º nº 2 al. a) e 177º, nº 1 al. b) do Código Penal.
Como se refere no acórdão do STJ de 13.09.2023 (processo nº 2826/20.0T9AVR.P1.S1, disponível in www.dgsi.pt) “No que respeita ao crime de violação, é conhecida a leitura da doutrina sobre a sua natureza como crime semipúblico. E assim resulta evidente em relação ao tipo base (do art.º 164.º do CP), onde a violação se mantém como crime de natureza semipública (sem prejuízo do regime híbrido, que se abordará adiante), pois assim o determina o art.º 178.º, n.º 1, do CPP.
Sucede que o arguido se encontra condenado por crime(s) de violação agravada, dos arts. 164.º e 177.º do CP, e aqui a letra da lei já não oferece resposta inequívoca no que respeita à natureza da violação agravada.
Com efeito, nos termos do art.º 178.º, nº 1, do CP, a regra é a de que “o procedimento criminal pelos crimes previstos nos artigos 163.º a 165.º, 167.º, 168.º e 170.º depende de queixa (…)”, mas ali nada se diz quanto ao crime de violação agravada. Ou seja, o art.º 177.º do CP é deixado fora do elenco (necessariamente taxativo) dos tipos de crimes ali previstos como semipúblicos.
E assim, independentemente da que possa ter sido a intenção do legislador - como seja a de manter a natureza semipública nos casos de crimes sexuais com vítimas maiores, por contraposição à (atual) natureza pública dos crimes com vítimas menores -, o certo é que na letra do art.º 178.º (Queixa) não se incluíram os tipos agravados, nele referidos apenas nas suas formas simples, ou seja, como tipos base.
E também da circunstância de ali se encontrar ressalvada a natureza pública dos casos em que resulta suicídio ou morte da vítima (art.º 178.º, n.ºs 1 e 3 in fine) - o que se revelaria desnecessário dado que tais circunstâncias agravariam já o crime nos termos do art.º 177.º tornando-o logo crime público -, resulta apenas tratar-se de uma incongruência menor, traduzida na repetição desnecessária, sempre mais aceitável do que a incongruência maior de se considerar como semipúblico os tipos agravados nos termos do art.º 177.º, norma que, repete-se, não integra o elenco (necessariamente taxativo) do art.º 178.º, n.º 1.”
Acrescentando-se “De tudo resulta que todos/as os/as autores/as convergem no sentido da consagração legal do crime de violação como crime de natureza semipública, embora sempre e só por referência ao tipo base do art.º 164.º do CP, nunca por referência ao art.º 177.º do CP, sobre o qual nada se diz.
E se é certo que “a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, e que “não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”, “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” (art.º 9.º do CC - Interpretação da lei).
Ora, uma coisa é o que o legislador poderá ter querido dizer, outra aquilo que efetivamente disse no texto da lei. E o elemento literal de interpretação, e também o sistemático, aponta(m) aqui para a natureza pública do crime de violação agravada. O primeiro, porque a literalidade da norma não possibilita ao intérprete incluir o art.º 177.º no art.º 178.º, n.º 1, acrescentando-o, pois este preceito legal não é ali mencionado; o segundo, porque a sistemática do Código Penal é abundante em exemplos de distinção entre tipos base e tipos agravados no que à diferente natureza do crime se refere, tratando aqueles como semipúblicos e estes como públicos. Assim sucede, por exemplo, com a ofensa à integridade simples e a qualificada, com o furto simples e o qualificado, com a burla simples e a qualificada, entre muitos outros, numa coerência de padrão, em que a necessidade de queixa se circunscreve ao crime na sua forma simples. Surgiria assim a violação, na coerência da sistemática do Código Penal, como mais um desses exemplos.”
Em suma, não é pacífica, designadamente na doutrina e jurisprudência do STJ a consagração do crime de violação agravada como crime semipúblico ou como crime público.
Entendendo-se que se trata de um crime de natureza semipública aquele que o recorrente se mostra incurso – cfr. artigo 164º, n.º 2 e 178º do Código Penal – importa apurar, com a precisão possível, quando ocorreram tais factos que o tribunal entende serem subsumíveis a este crime de violação agravado, a fim de permitir concluir se a queixa foi ou não exercida tempestivamente.
Como se refere no Acórdão do TRE de 07.04.2015 Processo nº 127/12.6GCPTG.E1 e disponível in www.dgsi.pt): “O objeto da prova abrange também os factos relevantes para a decisão sobre questões prévias, interlocutórias ou incidentais verificadas na pendência do processo, incluindo a determinação dos factos relevantes para a verificação dos pressupostos legais (positivos da punição, como a queixa e o seu exercício tempestivo, em crime de natureza semipública, sobremaneira quando e se controvertidos se tornam em razão da própria discussão da causa e das diferentes e pertinentes soluções jurídicas que a mesma suscitará à apreciação do julgador), para além (e com eles não se confundido) dos elementos típicos (objetivo e subjetivo) do tipo legal de crime por que o agente é perseguido.
II - Tendo o tribunal a quo dado como provado que o arguido se apoderou de uma certa quantidade de eucaliptos e pinheiros “em data não concretamente apurada do ano de 2012”, e tendo a queixa sido apresentada em 28 de novembro de 2012, torna-se indispensável o apuramento concreto da data em que o arguido se terá apropriado das árvores, ou, pelo menos, da data em que o ofendido teve conhecimento do furto, a fim de se poder aquilatar se a queixa foi ou não tempestivamente apresentada (artigo 115º, nº 1, do Código Penal).”
Porém, não se apurou em que período mais concreto, ocorreram tais factos - e esse apuramento parece-nos possível em face de elementos já apurados nos autos, como seja a saída de casa da vítima e por referência a essa data, perceber quantos, dias, semanas, meses ou anos antes tal ocorreu. Assim, não tendo acontecido é forçoso concluir que a decisão recorrida padece do vício prevenido na alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, isto é, padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Entendendo-se que o crime de violação agravada assume natureza pública impõe-se igualmente apurar com maior precisão a data do cometimento dos factos, tendo em conta o prazo de prescrição de 15 anos e a data do início da coabitação – reportada a 2003 – porquanto, só com essa concretização se poderá concluir se a prescrição já ocorreu ou se ainda é possível o conhecimento dos factos imputados com a qualificação jurídica determinada pelo tribunal a quo.
Assim, também perante a consideração da natureza pública do ilícito, se conclui ocorrer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos do disposto no art.º 410º, nº 2, al. a) do Código de Processo Penal
Na verdade, neste conspecto, a decisão recorrida nada informa, nem em sede de decisão sobre a matéria de facto, nem em sede de motivação de tal decisão.
Assim como se refere no supra mencionado Acórdão do TRE: “o objeto da prova entendido, como já se deixou afirmado, como o facto juridicamente relevante, também abrange os factos relevantes para a decisão sobre questões prévias, interlocutórias ou incidentais verificadas na pendência do processo, incluindo a determinação dos factos relevantes para a verificação dos pressupostos legais (positivos da punição, como a queixa e o seu exercício tempestivo, em crime de natureza semipública, sobremaneira quando e se controvertidos se tornam em razão da própria discussão da causa e das diferentes e pertinentes soluções jurídicas que a mesma suscitará à apreciação do julgador), para além (e com eles não se confundido) dos elementos típicos (objetivo e subjetivo) do tipo legal de crime por que o agente é perseguido.” (sublinhado e negrito nosso).
E assim, em razão de tudo o que se deixa exposto, o indicado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto, a que alude a alínea a), do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, que resultou da discussão da causa, de que padece a decisão recorrida, não é ultrapassável por este Tribunal ad quem com recurso ao disposto nos artigos 426º, nº 1 e 431º, alínea a), do Código de Processo Penal, posto que a indicada invalidade pressupõe a realização de diligências tendentes ao seu apuramento, designadamente a audição para esclarecimentos da vítima ou outra prova tida por relevante, importando, por isso, o reenvio do processo para novo julgamento restrito à questão indicada, isto é, uma maior concretização temporal dos factos que havia subsumido ao crime de violação agravada a fim de se poder concluir se o direito de queixa foi exercido de forma tempestiva, ou entendendo-se tratar-se de um crime de natureza pública se ocorreu ou não a prescrição do procedimento criminal, reformulando-se, de seguida se for o caso, a decisão de direito e a escolha e medida da pena e cúmulo jurídico efetuados, assim se garantindo, além do mais o duplo grau de jurisdição nesta concreta matéria.
A concretização, ou não, de tal facto (ponto 9 dos factos provados) poderá determinar diferente qualificação jurídica e, consequentemente, diferente análise das penas a aplicar e respetiva pena única, pelo que se mostra prejudicado o conhecimento das restantes questões colocadas no recurso da decisão final, que partiam todas do pressuposto da possibilidade do conhecimento de tal factualidade e da sua integração no crime de violação agravado, previsto e punível pelos arts. 164º, nº 2 e 177º, nº 1 al. b) do Código Penal - o que importa apurar precisamente através do reenvio, nos termos do disposto no art.º 426º do Código de Processo Penal:
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III - DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- Rejeitar o recurso intercalar interposto pelo arguido por manifesta improcedência (art.º 420º, nº 1 al. a) do Código de Processo Penal.
- Julgar não verificadas as nulidades de acórdão, nos termos do disposto no art.º 379º, nº 1 al.s b) e c) do Código de Processo Penal, invocadas no recurso da decisão final.
- Julgar verificado o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo n.º 410º do Código de Processo Penal, quanto à concreta questão do apuramento da data ou período mais restrito da ocorrência do facto descrito no ponto 9 da matéria de facto, agravada e consequentemente determinar o reenvio parcial do processo para novo julgamento, quanto a esta concreta questão, daí se extraindo as inerentes consequências ao nível do exercício tempestivo do direito de queixa ou da eventual prescrição do procedimento criminal, relativamente ao crime de violação agravada e as pertinentes consequências em termos de qualificação jurídica e determinação medida da pena e cúmulo jurídico a efetuar.
Pela rejeição do recuso intercalar fixa-se a quantia de 3 UC, ao abrigo do estatuído no n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.
Sem custas no que concerne ao recurso da decisão final.
Notifique.
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Lisboa, 23 de abril de 2024
[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]
Sandra Ferreira
Carla Francisco
Maria José Machado (voto de vencida)

Voto de vencida
Votei vencida quanto à parte da decisão que considerou existir no acórdão recorrido o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão, previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, pelas seguintes razões.
Este tribunal, através do presente acórdão, determina o reenvio do processo para novo julgamento, restringindo esse reenvio à matéria de facto que diz respeito à localização temporal dos factos que integram a prática de um crime qualificado de violação praticado, de acordo com a matéria de facto provada, durante o período de 19 anos em que o arguido e a vítima viveram juntos, período esse que terminou em Março de 2022. De acordo com o acórdão, tal localização temporal é imprescindível para que se possa saber se o procedimento criminal instaurado por tal crime se encontra extinto por prescrição e se a queixa, apresentada em 21 de setembro de 2022, é tempestiva.
Não posso, de forma alguma, concordar com essa decisão.
A meu ver, a decisão de reenvio parcial por existir insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, apenas se justifica quando o tribunal tenha descurado o apuramento da matéria de facto em falta e não quando, tendo-se preocupado com essa matéria, não tenha conseguido apurar os concretos factos que seriam pertinentes. Ora, quando o tribunal considerou que esses factos tinham sido praticados em data não determinada, fê-lo porque não os conseguiu localizar no tempo e não porque não tenha cuidado da sua localização temporal.
Se, no decurso do primeiro julgamento, tal data não foi obtida, nada leva a crer que, mais tarde o venha a ser.
O reenvio traduz apenas um diferimento injustificado da decisão a proferir.
Não tendo sido apurado o facto quanto à data em que terá ocorrido a violação, daí resulta a dúvida sobre um facto relevante quer quanto ao exercício do direito de queixa, quer quanto à prescrição.
Ora, em caso de dúvida sobre uma causa extintiva da responsabilidade criminal e/ou quanto à legitimidade do Ministério Público para o exercício da acção penal, não pode essa dúvida deixar de funcionar em benefício do arguido e por isso considerar-se ilegítima a acusação por um crime autónomo de violação qualificada, que a nosso ver tem natureza semi-pública, por a necessária queixa não ter sido apresentada tempestivamente ou, caso assim se não entendesse, à decisão de arquivamento do processo quanto a tal crime por o procedimento criminal se encontrar extinto por prescrição.
Maria José Machado
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1. Cfr. Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pág. 279; Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss..
2. A propósito deste vício veja-se, entre outros, o Ac. do TRP de 15.11.2018 e de 09.01.2020, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
3. Acórdão do STJ de 08-01-2014, Processo n.º 7/10.0TELSB.L1.S1, in www.dgsi.pt.
4. Recursos em processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 69.