CONTRATO DE TRANSPORTE
TRANSPORTE RODOVIÁRIO
CIRCULAÇÃO DE MERCADORIAS
EMPRESA COMERCIAL
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
UNIDADE ECONÓMICA
COISAS CORPÓREAS
COISAS INCORPÓREAS
SOCIEDADE IRREGULAR
FALTA DE LICENCIAMENTO
FALTA DE REGISTO
PRESCRIÇÃO DE CRÉDITOS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CONTRAORDENAÇÃO
PESSOA SINGULAR
Sumário


I - A empresa, no plano jurídico também designada como estabelecimento comercial, é um complexo organizacional de bens (móveis e/ou imóveis) ou serviços, um complexo produtivo que pretende gerar valor económico acrescentado, uma estrutura concreta integrada no mercado jurídico comercial, coordenada e combinada de meios e factores corpóreos e incorpóreos, um todo apto a gerar lucros na relação com o seu público e clientela, que não se confunde nem se identifica apenas com tais meios e factores, constituindo esse todo uma universalidade, com a sua dinâmica, a sua mobilidade e movimento próprios, uma unidade económica dinâmica, organizada de modo estável, com a sua própria identidade e autonomia, com vista à prossecução de uma actividade económica, da qual resultem proventos económicos.
II -  Sendo o Réu uma empresa de transportes regularmente constituída para os efeitos do Decreto Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, isto porque, para além de cumprir a declaração da sua atividade à administração fiscal no ano de 2017, exerceu efectivamente tal actividade de transporte de mercadorias por conta de terceiros naquele ano, emitindo os correspondentes recibos e declarando tais recebimentos à autoridade tributária, e finalmente porque em meados de agosto de 2017, a autora contratou o serviço de mudanças do réu para proceder à mudança/transporte do recheio que se encontrava na habitação sita na Av. ...., 1.º frente, em ..., para ... no dia 23 de agosto de 2017, transporte este que veio a realizar, assim evidenciando a organização, a estrutura empresarial, mesmo que minimalista (viatura usada para o transporte, motorista, gestão da viagem e do transporte, facturação, recebimento e declaração fiscal do exercício), o dinamismo e a efectiva mobilidade da organização empresarial do Réu, sendo-nos, pois, permitido concluir que o Réu cumpriu o desígnio vertidoí nos art.  2º nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, ou seja, que logrou demonstrar ter constituída regularmente a sua empresa de transportes e ter celebrado com a Autora o contrato de transporte nacional a que os autos se reporta.
III - Sendo, pois, aplicável o art. 24º nº 1 e 2 daquele diploma, segundo o qual “o direito à indemnização por danos decorrentes de responsabilidade do transportador prescreve no prazo de um ano, sendo que tal prazo se conta a partir da data da entrega da mercadoria ao destinatário ou da sua devolução ao expedidor ou, em caso de perda total, do 30.º dia posterior à aceitação da mercadoria pelo transportador”.
IV - Não pode confundir-se a constituição da empresa como entidade transportadora para os efeitos do Decreto Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, com o seu  licenciamento e registo para os efeitos do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, uma vez que a constituição  da empresa antecede o seu licenciamento, constituindo a constituição da empresa um momento (mais ou menos formal) anterior a este, sendo o licenciamento e registo da actividade formalidades que, a não existirem, não coloca em causa aquela constituição, ou seja, é possível que uma empresa de transportes esteja regularmente constituída como tal - nos termos supra expostos, para os efeitos do Decreto Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro - , mas que não esteja devidamente acreditada e registada perante as autoridades oficiais conexas como impõe Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, para que possa operar.
V - A falta de licenciamento tem consequências a nível contra-ordenacional, como resulta dos art. 22º e 23º daquele diploma, sendo à luz destes normativos que a inobservância e violação das normas constantes daquele diploma (em particular a falta de licenciamento e de registo da actividade no IMTT) são legalmente penalizados.

Texto Integral

AA veio intentar a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, peticionando a condenação deste a pagar-lhe a quantia de € 52 643,20 (cinquenta e dois mil, seiscentos e quarenta e três euros e vinte cêntimos), relativa a danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos e decorrentes do transporte de mercadorias ocorrido em agosto de 2017.

O réu contestou, defendendo-se por exceção, considerando verificar-se a prescrição do direito que a autora pretende exercer através da presente ação, ao abrigo do artigo 24.º, do DL n.º 239/2003, de 4 de outubro.

A autora respondeu à exceção, pugnando pela não aplicabilidade do referido regime jurídico.

Foi proferida sentença que julgou procedente a aludida exceção.

Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação, vindo a Relação a determinar o regresso dos autos à 1.ª instância, por entender que o tribunal recorrido deveria ter convidado o réu ao suprimento das insuficiências ou imprecisões da matéria de facto alegada, no que respeita a ser ou não uma “empresa regularmente constituída para o transporte por conta de outrem de mercadorias”, por forma a poder decidir-se da aplicação (ou não) do regime previsto no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4/10.

Foi dado cumprimento ao determinado pelo Tribunal da Relação de Évora, tendo o réu respondido ao convite formulado pelo tribunal.

Na sequência do convite dirigido à autora, também esta veio aperfeiçoar a sua petição inicial. Todavia, no que concerne aos alegados danos não patrimoniais, foi proferido despacho (transitado em julgado) a julgar procedente a exceção dilatória de ineptidão (parcial) da petição inicial, absolvendo-se o réu da correspondente instância.

Realizada a audiência de discussão e julgamento foi proferida sentença que julgou procedente a exceção peremptória de prescrição e, por conseguinte, absolveu o réu do pedido que, contra si, foi formulado através da presente ação.

Inconformada, veio a Autora interpor novo recurso de apelação, concluindo as suas alegações nos seguintes termos:

1. Em sede de despacho saneador, o tribunal a quo considerou provados (por acordo) os seguintes factos:

“A) Em data que já não sabe precisar, mas que se situa em meados de agosto de 2017, a autora contratou o serviço de mudanças ao Réu, para proceder à mudança/transporte do recheio de sua casa, sita em ..., para ... (facto que se considera aceite, por acordo das partes).

B) Em 23 de Agosto de 2017, realizou-se a mudança acordada (facto que se considera aceite, por acordo das partes).

C) A presente ação foi interposta em 8 de abril de 2021 (cfr. Data aposta menção no aviso de receção a que corresponde a ref.ª .....91, de 21/4/2021)

D) O réu foi citado para a ação em 13 de abril de 2021 (cfr. menção no aviso de receção a que corresponde a ref.ª .....91, de 21/4/2021).”

2. Naquele despacho, o tribunal a quo aplicou ao contrato de prestação de serviços em causa o regime previsto no Decreto - Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, que estabelece o regime jurídico do contrato de transporte de rodoviário nacional de mercadorias, considerando prescrito o direito da Autora, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º do referido diploma, e absolvendo o Réu do pedido.

3. A Autora interpôs recurso do referido despacho saneador, alegando, em suma, que dos factos considerados provados pelo tribunal não constava que o Réu fosse uma “empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”.

4. Esta Veneranda Relação julgou procedente o recurso da Autora, revogando a decisão recorrida, e substituindo-a por outra a ordenar a prossecução dos ulteriores termos processuais, para que fossem supridas as insuficiências ou imprecisões da matéria de facto alegada, no que respeita ao Réu ser, ou não, uma empresa regularmente constituída para o transporte por conta de outrem de mercadorias.

5. Realizada audiência final, o tribunal a quo, no que a esta questão diz respeito (da prescrição), acrescentou à matéria de facto os seguintes pontos:

1. No ano de 2017 o réu tinha a sua actividade declarada à administração fiscal.

2. Exercendo a actividade de transporte de mercadorias por conta de terceiros.

3. Emitindo os competentes recibos, declarados junto da administração tributária.

6. Salvo o devido respeito, mais uma vez andou mal o tribunal de primeira instância ao aplicar o regime do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro.

7. Da redacção do n.º 1 do artigo 2.º do referido Decreto-Lei depreende-se que não bastará que a empresa tenha actividade aberta, mas que se encontre regularmente constituída para desempenhar a actividade específica de transporte de mercadorias por conta de outrem, ou seja, que se encontre devidamente licenciada para este tipo de actividade.

8. Os requisitos de acesso à actividade de transporte de mercadorias por conta de outrem encontram-se previstos no Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 136/2009, de 5 de Junho.

9. O n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, refere que “a actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, por meio de veículos de peso bruto igual ou superior a 2500 kg só pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT).” (sublinhado nosso)

10. Conforme resulta da análise dos factos considerados provados, ficou demonstrado que o Réu não é uma sociedade comercial ou cooperativa (mas sim trabalhador independente), pelo que nunca poderia possuir licença para transporte rodoviário de mercadorias.

11. Ainda que os transportes de mercadorias prestados pelo Réu fossem realizados unicamente por meio de veículos ligeiros, também nesta circunstância o Réu necessitaria de um alvará específico para o efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor) – sendo certo que, mais uma vez, o Réu não demonstrou possuir qualquer alvará para o efeito.

12. Além disso, o Réu não alegou nem provou que se encontre registado no IMTT como empresa que realiza transporte de mercadorias por conta de outrem, como impõe o n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor).

13. De igual modo, o Réu não alegou nem provou que o veículo usado para prestação do serviço em causa se encontra licenciado pelo IMTT para transporte rodoviário de mercadorias, como exigido pelo n.º 1 do artigo 14.º do mesmo Decreto-Lei.

14. Perante o exposto, ficou demonstrado que o Réu não é “uma empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”, nos termos conjugados do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro e do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor).

15. Deste modo, o regime aplicável in casu seria o regime geral do contrato de prestação de serviços, previsto nos artigos 1154.º e seguintes do Código Civil, e sujeito ao prazo de prescrição ordinário de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil – pelo que o direito da Autora não se encontra prescrito.

16. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 1.º, e os números 1 e 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, os n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor), bem como o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

17. Tal como consta do ponto III da sentença, intitulado “Fundamentação”, o tribunal a quo apenas se pronunciou sobre a matéria de facto com relevância para apreciação da excepção de prescrição, uma vez que a procedência desta excepção impedia o conhecimento das restantes questões (os defeitos verificados nos bens transportados; e a fixação de indemnização).

18. Julgado procedente o presente recurso, deverá o processo ser remetido ao tribunal de primeira instância para que profira nova sentença onde aprecie as questões dos defeitos verificados nos bens transportados e da fixação de indemnização, analisando a prova produzida a esse propósito.

O R. apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.

Foi proferido Acórdão que julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida.

REVISTA

Novamente inconformada, veio a Autora interpor recurso excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. artigo 671 º alínea a) do CPC, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1. A questão em apreciação no presente recurso consiste em saber se, para efeitos de aplicação do regime jurídico do DL 239/2003, é necessário que o transportador seja uma sociedade comercial devidamente licenciada para este tipo de actividade, ou se basta que o transportador seja uma pessoa singular ou colectiva que se proponha desempenhar aquela actividade profissionalmente.

2. A apreciação da referida questão é necessária para uma melhor aplicação do direito, a fim de afastar as dúvidas evidentes que resultam da redacção pouco rigorosa e ambígua dada ao n.º 2 do artigo 2.º do DL 239/2003, contribuindo, assim, para o cumprimento do princípio constitucional da segurança jurídica.

3. Além disso, o contrato de transporte de mercadorias por conta de outrem é, hoje em dia, um dos contratos mais celebrados diariamente entre empresas e cidadãos, sendo, por essa razão, fonte potencial de um elevado número de conflitos que podem terminar nos tribunais judiciais.

4. Muitos desses conflitos serão evitados logo à partida se as partes estiverem plenamente conscientes dos direitos e deveres que lhes cabem no âmbito do contrato que celebraram, pelo que, também por este motivo, é essencial que a questão jurídica em causa seja devidamente esclarecida.

5. Em face do exposto, e ao abrigo das alíneas a) e b) do artigo 672.º do Código de Processo Civil, deve o presente recurso ser admitido.

6. Os factos provados pelo tribunal de primeira instância, com relevância para a presente questão, são os seguintes:

A) Em data que já não sabe precisar, mas que se situa em meados de agosto de 2017, a autora contratou o serviço de mudanças ao Réu, para proceder à mudança/transporte do recheio de sua casa, sita em ..., para ... (facto que se considera aceite, por

B) Em 23 de Agosto de 2017, realizou-se a mudança acordada (facto que se considera aceite, por acordo das partes).

C) A presente ação foi interposta em 8 de abril de 2021 (cfr. data aposta menção no aviso de receção a que corresponde a ref.ª .....91, de 21/4/2021) D) O réu foi citado para a ação em 13 de abril de 2021 (cfr. menção no aviso de receção a que corresponde a ref.ª .....91, de 21/4/2021).”

E) No ano de 2017 o réu tinha a sua actividade declarada à administração fiscal.

F) Exercendo a actividade de transporte de mercadorias por conta de terceiros.

G) Emitindo os competentes recibos, declarados junto da administração tributária.

7. Com base nestes factos, o douto Tribunal da Relação confirmou a decisão da primeira instância e entendeu ter ficado demonstrado que o Réu era uma “empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”, subjugando a relação jurídica em causa ao regime do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, considerando prescrito o direito da Autora, nos termos do n.º 1 do artigo 24.º daquele diploma.

8. Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal da Relação ao aplicar o regime do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro.

9. Ao abrigo do n.º 2 do artigo 2.º do referido Decreto-Lei, para que uma das partes possa ser considerada como “transportador”, para efeitos de aplicação do referido regime, é necessário que se trate de uma “empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”.

10. Depreende-se da expressão utilizada que não bastará que a empresa tenha actividade aberta (o que de resto seria um requisito genérico para qualquer empresa), mas que se encontre regularmente constituída para desempenhar a actividade específica de transporte de mercadorias por conta de outrem, ou seja, que se encontre devidamente licenciada para este tipo de actividade.

11. Os requisitos de acesso à actividade de transporte de mercadorias por conta de outrem encontram-se previstos no Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 136/2009, de 5 de Junho.

12. No n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, é referido que “a actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, por meio de veículos de peso bruto igual ou superior a 2500 kg pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT). (sublinhado nosso)

13. O n.º 2 do referido artigo dispõe que “a licença a que se refere o número anterior consubstancia-se num alvará ou licença comunitária, a qual é intransmissível, sendo emitida por um prazo não superior a cinco anos, renovável por igual período, mediante comprovação de que se mantêm os requisitos de acesso e de exercício de actividade”. (sublinhado nosso)

14. O Réu não é uma sociedade comercial ou cooperativa, pelo que nunca poderia estar licenciado pelo IMTT para efeitos de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, por meio de veículo de peso bruto igual ou superior a 2500 kg.

15. Ainda que os transportes de mercadorias prestados pelo Réu fossem realizados unicamente por meio de veículos ligeiros, também nesta circunstância o Réu necessitaria de um alvará específico para o efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor) – alvará que não possui.

16. Além disso, dispõe o n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor) que “o IMTT procede ao registo, nos termos da lei em vigor, de todas as empresas que realizem transportes de mercadorias por conta de outrem” – não tendo ficado provado que o Réu conste desse registo.

17. Dispõe ainda o n.º 1 do artigo 14.º do mesmo Decreto-Lei que “os veículos automóveis afectos ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem estão sujeitos a licença a emitir pelo IMTT, quer sejam da propriedade do transportador, objecto de contrato de locação financeira ou contrato de aluguer sem condutor” – não tendo ficado provado que o veículo usado pelo Réu para prestação do serviço em causa se encontre devidamente licenciado.

18. Perante o exposto, o Réu não pode ser considerado “uma empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”, nos termos conjugados do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro e do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor).

19. Deste modo, o regime aplicável in casu seria o regime geral do contrato de prestação de serviços, previsto nos artigo 1154.º e seguintes do Código Civil.

20. O prazo de prescrição seria assim o prazo ordinário da responsabilidade contratual, de 20 anos, nos termos do artigo 309.º do Código Civil – pelo que o direito da Autora evidentemente não se encontra prescrito.

21. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou o artigo 1.º, e os números 1 e 2 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, os n.ºs 1, 3 e 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor), bem como o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil.

22. Assim, julgado procedente o presente recurso, e uma vez que o tribunal de primeira instância não se pronunciou sobre as restantes questões levantadas, deverá o processo ser remetido ao tribunal de primeira instância para que profira nova sentença onde aprecie as questões dos defeitos verificados nos bens transportados e da fixação de indemnização, analisando a prova produzida a esse propósito.

Termos em que, requer a V. Exas., face a tudo o que ficou supra alegado, que seja concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgue improcedente a invocada excepção da prescrição, e ordene que seja proferida nova sentença onde se apreciem as questões dos defeitos verificados nos bens transportados e da fixação de indemnização, analisando a prova produzida a esse propósito em audiência final.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Tendo sido proferido despacho pelo ora relator, determinando a remessa dos autos à Formação, nos termos e para os efeitos do art. 672º nº 3 do CPC, veio a ser proferido Acórdão que decidiu admitir a presente revista, considerando o seguinte:

No caso dos autos, discute-se, no essencial, a questão de saber se o direito da Autora se encontra prescrito, o que passa por saber qual o regime de prescrição aplicável ao caso – o previsto no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro ou o regime geral do contrato de prestação de serviços.

Ora, analisada a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, constata-se que a matéria atinente ao âmbito subjetivo do diploma supra mencionado não foi, ainda, objeto de ponderação, do que resulta a conclusão de que o tema em causa encerra alguma novidade.

Assim, muito embora não se nos afigure uma matéria complexa ou de difícil resolução, a verdade é que o ineditismo a que se fez referência supra, associado à circunstância de os contratos, como o dos autos, proliferarem na nossa ordem jurídica, impõe a conclusão de que a apreciação a empreender por este STJ é suscetível de generalização e aplicação a litígios futuros.

Resulta, assim, que a matéria em discussão nos autos pode, com probabilidade, ter repercussão em litígios futuros, o que torna necessária a intervenção liderante e clarificadora deste Supremo Tribunal de Justiça, a título excecional.”

Cumpre, pois, decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

Objecto do recurso:

O que importa apreciar e decidir é se ao caso dos autos é aplicável o prazo de prescrição previsto no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro ou o regime geral do contrato de prestação de serviços.

Antes do mais e novamente, os factos que as instâncias julgaram provados:

1. No ano de 2017 o réu tinha a sua atividade declarada à administração fiscal.

2. Exercendo a atividade de transporte de mercadorias por conta de terceiros.

3. Emitindo os competentes recibos, declarados junto da administração tributária.

4. Em data que já não sabe precisar, mas que se situa em meados de agosto de 2017, a autora contratou o serviço de mudanças ao réu para proceder à mudança/transporte do recheio que se encontrava na habitação sita na Av. ..., 1.º frente, em ..., para ... (facto aceite por acordo das partes).

5. O acordado aquando da contratação telefónica foi de € 475,00 (quatrocentos e setenta e cinco euros), acrescidos de 0,65 (sessenta e cinco cêntimos) por quilómetro (facto aceite por acordo das partes);

6. Em 23 de Agosto de 2017, realizou-se a mudança acordada (facto aceite por acordo das partes).

7. A autora entregou o valor de € 1 200,00 (mil e duzentos euros) em numerário, em ... (facto aceite por acordo das partes).

8. Nesse mesmo dia, à noite, em ..., o cunhado da autora, de nome CC, pagou os restantes € 300,00 (trezentos euros) que faltavam (facto aceite por acordo das partes).

9. A presente ação foi interposta em 8 de abril de 2021.

10. O réu foi citado para a ação em 13 de abril de 2021.

Vejamos:

O contrato de transporte rodoviário nacional encontra-se definido no art. 2º nº 1 do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, como o “celebrado entre transportador e expedidor nos termos do qual o primeiro se obriga a deslocar mercadorias, por meio de veículos rodoviários, entre locais situados no território nacional e a entregá-las ao destinatário”.

Prescrevendo o nº 2 que “Para efeitos do número anterior, transportador é a empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias e expedidor é o proprietário, possuidor ou mero detentor das mercadorias.”

Estabelecendo aquele diploma, no art. 17° nº 1 e 2, normas de responsabilização do transportador “pela perda total ou parcial das mercadorias ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento e o da entrega, assim como pela demora na entrega", bem como a sua responsabilidade por actos cometidos por seu comissário, quando determina que "o transportador responde, como se fossem cometidos por ele próprio, pelos actos e omissões dos seus empregados, agentes, representantes ou outras pessoas a quem recorra para a execução do contraio”, vem a definir, também no seu art. 24º nº 1 e 2, que “o direito à indemnização por danos decorrentes de responsabilidade do transportador prescreve no prazo de um ano, sendo que tal prazo se conta a partir da data da entrega da mercadoria ao destinatário ou da sua devolução ao expedidor ou, em caso de perda total, do 30.º dia posterior à aceitação da mercadoria pelo transportador”.

Ora, constitui primeiro motivo de discussão saber se o Réu é, ou não, uma empresa “que se encontre regularmente constituída” para os efeitos de aplicação daquele normativo determinante do prazo prescricional de 1 ano, ou se deverá o Réu ser considerado um transportador ou trabalhador independente, como pretende a Autora, como tal tendo aplicação o prazo prescricional ordinário de 20 anos, ínsito no art. 309.º do Código Civil.

Sustenta o Réu que deve ser aplicado aquele prazo especial de prescrição constante do art. 24º nº 1 supra transcrito, por se tratar o demandado de uma “empresa regularmente constituída para o transporte público ou por conta de outrem de mercadorias”.

E assim entenderam as instâncias, que, em face da factualidade assente nos postos 1 e 3 supra consignados, julgaram em inteira conformidade.

Já a Autora, recorrendo por via excepcional daquela dupla conforme, continua a sustentar que deverá ser aplicado o prazo prescricional ordinário de 20 anos a que se reporta o art. 309º do CC, uma vez que a lei exige, para que se possa considerar que está em causa uma empresa regularmente constituída de transportes nacionais, que a mesma se encontre devidamente licenciada para este tipo de actividade, cumprindo os requisitos de acesso à actividade de transporte de mercadorias por conta de outrem previstos no Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 136/2009, de 5 de Junho, mormente o nº 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, segundo o qual “a actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, por meio de veículos de peso bruto igual ou superior a 2500 kg só pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT)”.

Mais afirmando que, para que os transportes de mercadorias prestados pelo Réu fossem realizados unicamente por meio de veículos ligeiros, também necessitaria o Réu (ou a sua empresa) de ser titular de um alvará específico para o efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor), titularidade que não logrou demonstrar.

Aduzindo ainda que artigo 3º nº 4 do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor) determina que “o IMTT procede ao registo, nos termos da lei em vigor, de todas as empresas que realizem transportes de mercadorias por conta de outrem”, registo este que o Réu também não tornou evidente, como lhe competia.

Constituindo esta questão o segundo momento da discussão.

Apreciando:

I - Embora a lei fale em “empresa”, o certo é que não existe definição legal para a mesma.

Sendo que, na busca do sentido do conceito de empresa ou sua definição, também não nos ajudará o art. 230º nº 7 do Código Comercial, que considera “como comerciais as empresas, singulares ou colectivas, que se propuserem transportar regular e permanentemente, por água ou por terra, quaisquer pessoas, animais, alfaias ou mercadorias de outrem”.

Acerca do conceito de “empresa”, ORLANDO DE CARVALHO proferiu o estudo “Empresa e Lógica Empresarial” (in “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Ferrer Correia”) - páginas 4 a 31, onde postula o seguinte:

Da nossa experiência da vida - linguística, mas não apenas - decorre que a empresa é, antes de tudo, um processo produtivo (concebida a produção em sentido amplo, de modo a abranger a produção, não só de bens ou de serviços, mas de qualquer valor acrescentado em termos de circuito económico) destinado à troca sistemática e vantajosa: ou seja, à formação de um excedente financeiro que garanta quer a auto-reprodução do processo, quer o estímulo a essa auto-reprodução (sabido que sem auto-reprodução, incluindo a necessária reprodução ampliada, não há sistematicidade, e sem estímulo à auto-reprodução, esta, como dispêndio de energias, não se efectua).

Sendo isso, porém, a empresa é necessariamente uma estrutura, isto é, um complexo organizado de meios ou de factores com o mínimo de racionalidade e estabilidade que lhe garanta o mínimo de autonomia funcional (ou técnico-produtiva) e financeira (ou económico-reditícia) que lhe permita emergir na intercomunicação das produções (ou no mercado, lato sensu. O mercado é o lugar ideal da intercomunicação produtiva) como um centro emissor e receptor a se stante...”.

E sobre a natureza do estabelecimento comercial ensinou (in “Critério e Estrutura do Estabelecimento”, pág. 14) que “a estrutura do estabelecimento, reflectindo o moderno condicionalismo é ... alguma coisa de insólito; e não apenas de insólito, mas também de imprevisível pela fluidez de uma atmosfera em permanente mobilidade, e por essa mobilidade e pela complexidade de factores que, em cada minuto, lhe dão forma, alguma coisa de adverso à redução a um conceito necessariamente simplificante e estabilizante como é, no fim de contas, todo o conceito normativo”.

Também sobre tal conceito, PAULO TARSO DOMINGUES, in “Revista de Direito e Economia”, Anos XVI a XIX- 1990 a 1993, pág. 547, escreve, depois de sufragar a definição do conceito do citado Mestre, que “… Se é verdade que a empresa é uma organização (enquanto reunião, combinação e coordenação de factores produtivos que permite e visa, nos termos atrás referidos, a conclusão de um determinado processo produtivo), ela não se configura como uma organização abstracta.

Ela é uma organização concreta, realizada, de factores produtivos - que não têm necessariamente de ser bens corpóreos, muito embora ela suponha normalmente um conjunto, mais ou menos amplo, de elementos (mobiliário, máquinas, etc.) que a corporizam e sensibilizam - sendo, por isso, incorrecto concebê-la “num puro plano organizatório” como um bem incorpóreo puro.

A segunda nota é que se empresa/organização supõe normalmente - como se disse - um determinado lastro corpóreo, (maior ou menor), i.é, um certo número de bens que a corporizam (que têm ou podem ter autonomia económica e jurídica, podendo por isso, isoladamente serem negociados), ela, contudo, não se confunde nem se identifica com tais bens, nem sequer, com a soma dos mesmos.

A empresa tem outros elementos (despidos de autonomia jurídico-económica, como sejam o crédito, o bom nome, etc.), que são valores novos, “sui generis”, próprios da empresa (que resultam da complementaridade e da combinação dos diversos factores que a constituem) que se impõem, no mercado, como valores de acreditamento diferencial (valor de acreditamento enquanto valor de confiança pública, de confiança do público naquela empresa; diferencial, porque marca a diferença e diferencia aquela empresa relativamente a outras) e que, nesta medida, afirmam a empresa como um valor de posição no mercado.(...)”.

Os tratadistas divergem quanto a considerar o estabelecimento como universalidade de facto, de direito ou mista, nomeadamente Antunes Varela que afirma (in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115 pág.252, nota 1) que o termo “estabelecimento tem um duplo significado: Na linguagem corrente ou popular, significa a loja, o imóvel, as instalações materiais em que as mercadorias são colocadas para venda ao público: Quando usada no seu sentido técnico-jurídico, aquela palavra designa a unidade ideal, complexa e abstracta, inserida em qualquer sector da actividade industrial ou comercial que abrange, além da sede, muitos outros elementos, corpóreos e incorpóreos, as mercadorias, os utensílios e equipamentos que, em cada momento se encontrem nas instalações próprias ou arrendadas”.

PINTO COELHO (in “O Trespasse do Estabelecimento e a Transmissão das Letras”, Coimbra, 1946, pp. 11-12, 19-23), BARBOSA DE MAGALHÃES E FERRER CORREIA (in “Reivindicação do estabelecimento Comercial como Unidade Jurídica”, Coimbra Editora, 1957, pags 206, ss., consideram o estabelecimento como “unidade jurídica”.

Este último Mestre ensina (In Lições de Direito Comercial, Vol. I, Universidade de Coimbra, 1973, p201-203, e estudo intitulado Reivindicação do estabelecimento comercial como unidade jurídica, in Estudos de Direito Civil Comercial e Criminal, Almedina, Coimbra, 1985, pp. 255 e segs. (255-256)) que “[…] na sua acepção mais lata e em sentido objectivo, estabelecimento comercial vem significar o mesmo que o complexo da organização comercial do comerciante, o seu negócio em movimento ou apto para entrar em movimento.

Tal organização versa, antes de mais nada, sobre um conjunto de bens de variada natureza: coisas corpóreas, móveis ou imóveis – dinheiro, títulos de crédito, mercadorias, máquinas, mobiliário, prédios – e incorpóreas ou imateriais: patentes de invenção, modelos e desenhos industriais, marcas, o nome ou insígnia do estabelecimento, a própria firma, os próprios direitos ou relações jurídicas como instrumentos do exercício do comércio. De resto, esses bens podem não pertencer em propriedade ao titular do mesmo estabelecimento: o que importa é que ele os possa utilizar (e tenha nessa medida a sua disponibilidade) para os fins da empresa.

Em segundo lugar, o estabelecimento é, normalmente, uma organização de serviços ou de pessoas. (…) Sem esse elemento pessoal, a empresa não poderia funcionar.

Por último, como elementos necessários à vitalidade da empresa, há que aludir ainda, de um lado, “às relações com os fornecedores e os bancos, donde afluem as matérias primas e os capitais, do outro, às relações com a clientela que lhes absorve os produtos” (…). São essas relações de facto com valor económico (…) uma das manifestações mais relevantes da empresa organizada e um dos índices mais salientes da sua capacidade lucrativa, do seu aviamento».

Também FERNANDO OLAVO (in “Direito Comercial”, Vol. I, 2.ª Edição, 1974, p. 262) considera como estabelecimento comercial “um conjunto de coisas corpóreas e incorpóreas, de bens e serviços, organizados pelo comerciante com vista ao exercício da sua actividade mercantil, se sorte que, em última análise, o que o compõe são os elementos aptos para o desempenho da actividade do comerciante e que este agregou e organizou para a realização de tal empresa.”

COUTINHO DE ABREU (in “Da Empresarialidade”, págs. 69 a 74), faz um excurso sobre se o estabelecimento é universalidade de facto ou de direito, parecendo discordar das teses dominantes, para depois abordar o conceito relacionando-o com o de “coisa” para indagar se pode ser objecto do direito de propriedade ou de doutros direitos reais.

Depois de referir “que o estabelecimento é unidade jurídica objectiva” afirma que, em função das definições dos arts. 202º nº1 e 205 nº 1 do Código Civil, o estabelecimento é uma coisa móvel, acrescentando que, no entanto, nos termos 1302° do Código Civil, “só as coisas corpóreas, móveis ou imóveis, podem ser objecto do direito de propriedade regulado neste código”. Para quem considere o estabelecimento coisa corpórea, o problema fica resolvido. Parece, todavia, mais correcto considerá-lo coisa imaterial não pura [...]”. “[...] Por conseguinte não constituirá maquinação especialmente engenhosa conceber – juridicamente – esse distinto ente como coisa corpórea (complexa) ...”.

Como é dito no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29/11/2011 (processo 1072/07.2TBSSB.L1.S1), depois da exposição profusa da “doutrina“, “o estabelecimento comercial constiui-se como o complexo de elementos formadores da sua unidade socioecnómica, de que fazem parte bens corpóreos (bens móveis e imóveis) e bens incorpóreos (elementos subjetivos de valor patrimonial), organizados para o exercício de uma atividade dirigida a obter lucro. Desde logo um estabelecimento comercial possuirá um titular, pessoa singular ou colectiva, está organizado e estruturado como um património afecto a uma dada finalidade e sustenta uma actividade que se quer lucrativa. Os elementos corpóreos são respeitantes aos direitos relativos aos imóveis, direitos relativos aos móveis, ás mercadorias, matérias-primas, a livros. Está tudo abrangido o que diz respeito ao comércio, que seja do comerciante e que estejam afectas a esse exercício. A pertinência dos bens corpóreos ao estabelecimento é determinada pela afectação e não pela sua natureza. o que revela a sua susceptibilidade de uso desses bens pelo comerciante, e não o título jurídico que lha atribui: os bens corpóreos podem ser próprios, doados, usufruídos, etc., e em todos os casos integram o estabelecimento.

Os elementos incorpóreos são respeitantes ao direito à firma, aos contratos de trabalho, contratos com fornecedores, contratos de prestação de serviços e outros aspectos que, embora à partida não patrimoniais, permitam contudo uma comercialidade limitada. Também são elementos incorpóreos do estabelecimento as obrigações do comerciante a ele relativas, quer o seu passivo, ou seja, as dividas resultantes da sua actividade comercial, quer as demais obrigações que formam o correspectivo ou a face oposta aos direitos. Há muitos estabelecimentos comerciais que o seu valor coincide essencialmente pelo valor das marcas ou patentes que acarretam.

Poder-se-á, em traço grosso, caracterizar o estabelecimento comercial como sendo uma unidade económica, organizada, estruturada com elementos e factores de produção que, numa vocação socioeconómica sustentada tem como objectivo a prática do comércio. Na sua organização orgânica ou estruturação compósita, o estabelecimento comercial agrega um somatório de elementos de que soe destacar: os elementos corpóreos, ou seja o conjunto de bens ou mercadorias constituídos por bens móveis destinados a ser vendidos, compreendendo, aqui, as matérias-primas, os produtos semi-acabados e os produtos acabados; os elementos incorpóreos, ou seja os direitos, resultantes de contrato ou outras fontes, que dizem respeito à vida do estabelecimento: o direito ao arrendamento; direitos reais de gozo, etc; o aviamento, ou seja, a capacidade lucrativa da empresa, a aptidão para gerar lucros resultantes do conjunto de factores nela reunidos. Exprime pois, uma capacidade lucrativa e esta confere ao estabelecimento uma mais-valia em relação aos elementos patrimoniais que o integram, a qual é tida em conta na determinação do montante do respectivo valor global: e a clientela, ou seja aquele leque de pessoas, singulares ou colectivas, que estabelecem relações comerciais (contratuais) habituais, com carácter de regularidade e feição estabilidade com o estabelecimento comercial e que se constituem como um potencial e seguro lastro de negócios que se agrega ao estabelecimento, podendo partir dessa relação prospectivar a renovação, não só da suas próprias encomendas, mas potenciando a possibilidade de novos clientes.

Ao organizar o estabelecimento, o empresário agrega aos bens reunidos um sobrevalor. Isto é, enquanto esses bens permanecem articulados em função da empresa, o conjunto alcança, no mercado, um valor superior à simples soma de cada um deles em separado. O imóvel no qual funciona a empresa, por si só não pode ser efectivamente considerado o estabelecimento empresarial, embora seja fundamental, constitui-se apenas em um dos elementos que o compõe o estabelecimento.”

Mais dizendo, citando o acórdão deste Supremo Tribunal de 15-12-1998, que “[de] entre os elementos nucleares do "estabelecimento" um grupo deles a que a doutrina chama de "lastro ostensivo" do estabelecimento comercial, compõe o "âmbito mínimo ou necessário" e situa-se no âmago da empresa como organização de factores produtivos e sem o qual aquele nem existe.” E prossegue o mesmo aresto que “[outros] elementos do estabelecimento comercial são os que se inscrevem no seu "âmbito natural. De entre os elementos nucleares do estabelecimento, o chamado "lastro ostensivo", outros há que igualmente integram o estabelecimento e transitam pelo trespasse entre esferas jurídicas contratantes, mas agora por imposição da lei. Constituem o chamado "âmbito imperativo" do estabelecimento comercial, onde se incluem os contratos de trabalho. Fora destes limites ao referido princípio da livre composição ou formação do estabelecimento comercial, e que integram o "âmbito mínimo ou necessário" de trânsito pelo trespasse, situam-se os elementos que a doutrina vem designando por "âmbito máximo" e que só transitam entre esferas jurídicas negociantes do trespasse, se as vontades nesse sentido se manifestarem (v.g., os direitos reais sobre imóveis, a firma e os débitos puros)”.

E também o Acórdão de 24-05-2005, que “a definição de estabelecimento comercial envolve a determinação dum certo fim económico e um conjunto organizado de meios destinados atingir esse fim. Mas isto não quer dizer que o referido conjunto signifique uma organização perfeita e acabada, pronta a entrar em funcionamento. Basta, como se disse no acórdão citado, a aptidão funcional dos meios em causa.
Ou seja, existe
estabelecimento comercial sempre que se possa afirmar que um determinado conjunto de bens e direitos "serve", essencialmente, para desenvolver uma certa actividade económica, sem prejuízo de ser ainda necessário juntar-lhe outros meios acessórios.

Aqui chegados, haveremos de concluir em leitura transversal do anunciado pela doutrina e pela jurisprudência citadas, que a empresa, no plano jurídico também designada como estabelecimento comercial, é um complexo organizacional de bens (móveis e/ou imóveis) ou serviços, um complexo produtivo que pretende gerar valor económico acrescentado, uma estrutura concreta integrada no mercado jurídico comercial, coordenada e combinada de meios e factores produtivos, corpóreos e incorpóreos, um todo apto a gerar lucros na relação com o seu público e clientela, que não se confunde nem se identifica apenas com tais meios e factores, constituindo esse todo uma universalidade, com a sua dinâmica, a sua mobilidade e movimento próprios, uma unidade económica dinâmica, organizada de modo estável, com a sua própria identidade e autonomia, com vista à prossecução de uma actividade económica, da qual resultem proventos económicos.

Versando o caso que nos ocupa e o objecto do recurso, diremos que é neste sentido estrutural, organizacional, funcional, dinâmico, de mobilidade própria, que o Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, concebe a figura do transportador, como “empresa regularmente constituída para o transporte público”.

Não está em causa tanto a regularidade formal, no sentido da constituição da sociedade detentora da empresa ou do estabelecimento comercial, em obediência aos critérios estabelecidos no Código das Sociedades Comerciais, mediante contrato de sociedade e seu registo comercial, com todos os elementos contratuais legalmente previstos (art. 7º e seguintes), assim como a adopção de um dos tipos de sociedades de empresas comerciais ali previstos, singulares (empresário em Nome Individual, Estabelecimento Individual de Responsabilidade Limitada, ou sociedade Unipessoal por Quotas), ou colectivas (sociedade em Nome Coletivo, sociedade por quotas, ou sociedade Anónima), mas sim a existência de um conjunto orgânico funcional, com potencial para desenvolver a sua própria atividade comercial, de forma dinâmica, no mercado em que se insere.

Aliás, se exigida fosse a observação de tais requisitos legais para que nos confrontássemos com uma empresa regularmente constituída para o transporte público, nos termos daquele Decreto-Lei n.º 239/2003, estaria irradicada desta previsão a mais comum das sociedades neste tipo de transportes, a “sociedade irregular”, prevista nos art. 36º e 37º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) , que são de três tipos, conforme o iter de constituição da sociedade (1 - ou existe o simples uso de uma firma comum ou de qualquer meio criador de uma falsa aparência de sociedade – artº 36º nº1; 2 - ou existe uma actividade com base num acordo constitutivo de sociedade comercial que ainda não foi celebrado por escritura pública – artº 36º nº 2; 3 - ou nos encontramos naquele período compreendido entre a celebração da escritura e o registo definitivo – artº 37º nº 1 CSC), estabelecendo o nº 2 daquele normativo que às relações estabelecidas entre os sócios e com terceiros são aplicáveis as disposições legais sobre sociedades civis.

Aqui chegados, importará apreciar se a factualidade apurada, vertida nos pontos 1 a 4 supratranscritos, permite concluir que nos confrontamos com uma empresa de transportes revestida daquela veste organizacional e funcional, para que possamos concluir pela aplicação dos normativos acima referidos do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, e, nessa ordem, no sentido da aplicação do art. 24º determinante do prazo de prescrição de 1 ano.

Ora, procedendo a tal ponderação, a outra conclusão não podemos chegar senão a de que o Réu é realmente uma empresa de transportes regularmente constituída para os efeitos daquele diploma, isto porque, para além de cumprir a declaração da sua atividade à administração fiscal no ano de 2017, exerceu efectivamente tal actividade de transporte de mercadorias por conta de terceiros naquele ano, emitindo os correspondentes recibos e declarando tais recebimentos à autoridade tributária, e finalmente porque em meados de agosto de 2017, a autora contratou o serviço de mudanças do réu para proceder à mudança/transporte do recheio que se encontrava na habitação sita na Av. ..., 1.º frente, em ..., para ..., transporte este que veio a realizar.

Ora, pese embora sem a descrição pormenorizada de todos os elementos produtivos, em face de tal factualidade ficou em evidência a organização, a estrutura empresarial, mesmo que minimalista (viatura usada para o transporte, motorista, gestão da viagem e do transporte, facturação, recebimento e declaração fiscal do exercício), o dinamismo e a efectiva mobilidade da organização empresarial do Réu, sendo-nos, pois, permitido concluir que o Réu cumpriu o desígnio vertidoí nos art. 2º nº 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de outubro, ou seja, que logrou demonstrar ter constituída regularmente a sua empresa de transportes e ter celebrado com a Autora o contrato de transporte nacional a que os autos se reporta, levando a cabo o transporte de ...para ... no dia 23 de agosto de 2017.

Sendo, pois, aplicável o art. 24º nº 1 e 2 daquele diploma, segundo o qual “o direito à indemnização por danos decorrentes de responsabilidade do transportador prescreve no prazo de um ano, sendo que tal prazo se conta a partir da data da entrega da mercadoria ao destinatário ou da sua devolução ao expedidor ou, em caso de perda total, do 30.º dia posterior à aceitação da mercadoria pelo transportador”.

De facto, tendo o transporte do recheio da casa da autora, sita em ..., para ... no dia 23 de Agosto de 2017, e tendo a presente acção sido interposta em 8 de abril de 2021, tendo o Réu sido citado para a mesma em 13 de abril de 2021, resulta por demais evidente que aquele prazo prescricional foi largamente ultrapassado.

Não procedendo, assim, as conclusões 1ª a 9ª da presente revista.

II – Num segundo momento da sua pretensão recursiva, pugna a autora, ainda, pela não constituição regular da empresa do Réu, uma vez que esta não tem a sua actividade licenciada nos termos do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 136/2009, de 5 de Junho, cujo artigo 3º nº 1 refere que “a actividade de transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem, nacional ou internacional, por meio de veículos de peso bruto igual ou superior a 2500 kg pode ser exercida por sociedades comerciais ou cooperativas, licenciadas pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, I. P. (IMTT)”, mais dispondo o n.º 2 do referido artigo que “a licença a que se refere o número anterior consubstancia-se num alvará ou licença comunitária, a qual é intransmissível, sendo emitida por um prazo não superior a cinco anos, renovável por igual período, mediante comprovação de que se mantêm os requisitos de acesso e de exercício de actividade”.

Dispondo o n.º 1 do artigo 14.º do mesmo Decreto-Lei que “os veículos automóveis afectos ao transporte rodoviário de mercadorias por conta de outrem estão sujeitos a licença a emitir pelo IMTT, quer sejam da propriedade do transportador, objecto de contrato de locação financeira ou contrato de aluguer sem condutor”.

Sendo que, sustenta a recorrente, mesmo “que os transportes de mercadorias prestados pelo Réu fossem realizados unicamente por meio de veículos ligeiros, também nesta circunstância o Réu necessitaria de um alvará específico para o efeito, nos termos do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho (na redacção em vigor) – alvará que não possui”.

Acrescendo que o Réu também não demonstrou, como se lhe impunha, ter procedido ao registo da sua empresa como transportadora de mercadorias, nos termos do n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho

Ponderando a questão, afigura-se-nos que também quanto a este segundo segmento de análise, assiste razão ao Réu, porquanto não pode confundir-se a constituição da empresa como entidade transportadora para os efeitos do Decreto Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, com o seu licenciamento e registo para os efeitos do Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, uma vez que a constituição da empresa antecede o seu licenciamento, constituindo um momento (mais ou menos formal) anterior a este, constituindo o licenciamento e registo da actividade formalidades que, a não existirem, não coloca tal inexistência em causa aquela constituição, ou seja, é possível que uma empresa de transportes esteja regularmente constituída como tal - nos termos supra expostos, para os efeitos do Decreto Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro - , mas que não esteja devidamente acreditada e registada perante as autoridades oficiais conexas como impõe Decreto-Lei n.º 257/2007, de 16 de Julho, para que possa operar.

Ou seja, do licenciamento depende o legal exercício da actividade, não a constituição da empresa, que se mantém incólume nas condições concretamente realizadas.

A falta de licenciamento tem consequências a nível contra-ordenacional, como resulta dos art. 22º e 23º daquele diploma, sendo à luz destes normativos que a inobservância e violação das normas constantes daquele diploma (em particular a falta de licenciamento e de registo da actividade no IMTT) são legalmente penalizados.

Improcede, assim, in totum, a presente revista, merecendo confirmação o Acórdão recorrido.

DECISÃO

Pelo exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em jugar a revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1ª Juíza Adjunta: Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza

2º Juiz Adjunto. Senhor Conselheiro Ferreira Lopes