ESCRITURA PÚBLICA
DOAÇÃO
DOCUMENTO AUTÊNTICO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
DECLARAÇÃO
NOTÁRIO
CONFISSÃO
FACTOS PROVADOS
OUTORGANTE
OBJETO DO PROCESSO
RENOVAÇÃO DA PROVA
NOVOS MEIOS DE PROVA
PODERES DA RELAÇÃO
MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO
RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA TABELADA
Sumário


I. Constituindo a escritura pública um documento autêntico com força obrigatória plena quanto às declarações que nela constam como tendo sido emitidas pelos outorgantes perante o notário no momento da outorga do mesmo, nem por isso fica o Tribunal obrigado a considerar tais factos como provados, se os mesmos não se revelarem de interesse para a discussão e julgamento da causa.

II. No caso, nada sendo dito na dita escritura de doação quanto ao pagamento da dívida bancária pelos autores, não tem qualquer interesse a consignação como provados dos factos que aquela escritura encerra, sendo que, ante o teor da mesma, não se pode presumir que os donatários pagaram previamente a dívida bancária da doadora, nem da mesma resulta qualquer declaração confessória para qualquer dos outorgantes.

III. A possibilidade de a Relação ordenar a produção de novos meios de prova deve opera apenas nos casos de fundada ou séria dúvida sobre a prova realizada, quando o tribunal se encontra num estado de incerteza quanto à efectiva realização de diligências probatórias por parte das instâncias, que sejam susceptíveis de ser realizadas, segundo padrões de praticabilidade, de forma a ver-se afastado e ultrapassado aquele estado de dúvida.

Texto Integral

AA e BB, residentes na Rua de ..., ... ..., propuseram a apresente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC, DD, EE, interdito, representado pela sua tutora FF.

Por óbito de GG, correm termos autos de inventário com o n.º 979/13.2..., no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível ..., Juiz 9.

AA. e RR. são os únicos interessados no aludido inventário: o A. marido e os 2.º, 3.º e 4.ºs RR. porque filhos do inventariado GG e a 1.ª R., enquanto viúva do mesmo, tendo este casado em segundas núpcias com ela e sendo mãe do A. marido.

No processo de inventário, foi apresentada relação de bens pela cabeça de casal, ora 1.ª R., da qual consta uma dívida do inventariado ao “BCP Millennium”, no valor de € 52 872, 58.

Na conferência de interessados, a verba não foi aprovada por todos, tendo-se o juiz abstido de proferir decisão e relegado os interessados para os meios comuns.

Os AA. propuseram a presente ação, pedindo:

a) que seja reconhecida a existência de passivo no valor de € 52 872, 58 na herança aberta por óbito de GG, por se tratar de uma dívida contraída pelo inventariado;

b) que seja reconhecida a responsabilidade de cada um dos herdeiros na aludida herança pelo respetivo pagamento, na proporção do quinhão que cada um tem na mesma;

c) que seja reconhecido o direito de crédito dos AA. sobre os demais interessados por terem procedido ao pagamento daquele passivo.

Os RR. DD e EE contestaram, impugnando a factualidade carreada para os autos.

Pugnaram pela improcedência da ação.

Foi proferido despacho saneador em que se julgaram verificados os pressupostos processuais, foi fixado o objeto do processo e elaborados temas da prova.

Na pendência dos autos faleceu HH, tendo sido habilitados DD, EE, FF e AA para com eles prosseguirem os termos da demanda.

Após realização de audiência de julgamento foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e se entendeu que nenhuma das partes litigava de má fé.

APELAÇÃO

Inconformados, os AA. interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, finalizando as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª- Vem o presente recurso impugnar a douta decisão de fls., na qual a Mmª Juíza a quo julgou a presente acção improcedente por não provada e absolveu os Réus do pedido, porquanto se fez incorrecta fixação e apreciação dos factos dados como provados e errada interpretação e aplicação da lei a esses mesmos factos;

2ª- As questões a decidir, definidas na sentença ora em crise, foram as seguintes:

c) Existência da dívida do falecido

d) Pagamento da mesma pelos Autores

3ª- Na decisão ora em crise, ficou amplamente provado que a dívida foi contraída pelo Inventariado, GG, e que existia à data do óbito;

4ª- Entendeu-se, contudo, relativamente ao pagamento da dívida, que não foi “…possível valorar pela positiva a alegação dos AA. sobre a origem, forma, quem e em que condições foi realizada o pagamento do valor em apreço.”;

5ª- E, consequentemente, julgou-se improcedente a acção, pelo simples facto do julgador ter ficado com uma convicção errada, no sentido de ter entendido que não resultou da prova que foram os Recorrentes que pagaram a aludida dívida;

6ª- Contudo, a prova produzida na audiência de julgamento, juntamente com os demais meios probatórios existentes nos autos, não apoiam, nem fundamentam esta decisão, pelo que não podemos concordar a mesma;

7ª- Desde logo, a douta sentença recorrida fez incorreta fixação da matéria de facto, porquanto houve omissão de um facto doação da 1ª Ré ao Autor do quinhão hereditário);

8ª- Pelo que deve ser incluído nos Factos Dados Como Provados que a 1ª Ré, CC, fez doação ao seu filho, ora Recorrente, por conta da sua quota disponível, do quinhão hereditário que detinha na herança aberta por óbito do inventariado GG, seu marido, por escritura pública outorgada em 22/02/2019;

9ª- Tal informação consta de requerimento, datado de 12/02/2020, cuja referência é ......80, apresentado pelos Recorrentes, em que se anexou a competente escritura pública de doação;

10ª- A douta sentença recorrida fez, ainda, incorreta apreciação dos factos dados como não provados, constantes das alíenas B) a H) dos Factos não provados e, que deveriam ter sido dado como provados;

11ª- Assim, deve ser dado como provado que:

- Foi-lhes, então, proposto por aquele gerente de conta, contraírem um empréstimo do valor necessário ao pagamento integral da livrança, e ficarem a pagar em prestações mensais.

12ª- Deve ser dado como provado que:

- Que era da conta referida em, através da qual eram pagas as prestações mensais do referido empréstimo.

13ª- Deve ser dado como provado que:

- De forma a liquidar na totalidade aquela livrança, em 02/02/2001, os Autores depositaram na conta do falecido GG, através de cheque, a quantia sua pertença de 2.206.808$00.

14ª- Deve ser dado como provado que:

- E, em 28/02/2001, transferiram para essa mesma conta, a quantia d 8.500.000$00 – montante que lhes foi financiado para a liquidação da livrança – proveniente da conta recém-criada .......92, onde foi depositado o financiamento contraído.

15ª- Deve ser dado como provado que:

- Os Autores ficaram a pagar mensalmente as prestações respeitantes ao financiamento de 8.500.000$00, através da conta .......92 do BCP, e em 26/11/2001 procederam ao pagamento da parte ainda em dívida, no montante de 7.805.000$00 (a que corresponde hoje € 38.931,18), pondo, assim termo àquele financiamento.

16ª- Deve ser dado como provado que:

- Para proceder a este pagamento, o Autor subscreveu o cheque nº ........16, no valor de 7.805.000$00 sobre a sua conta no Banco Caixa Central de Crédito Agrícola e depositou-o na conta criada para pagar o financiamento contraído, para pagar a livrança.

17ª- Deve, ainda, ser dado como provado que:

- Não obstante a referida conta .......92 ter como titular a 1ª Ré, a verdade é que todo o dinheiro que lá foi depositado, era exclusivamente dos Autores.

Sem prescindir:

18ª- Entendeu-se na douta sentença ora em crise que, não obstante os elementos presentes nos autos provarem a subscrição da livrança pelo falecido GG, a prova produzida não permitia ir mais longe nessa matéria;

19ª- Já que, era essencial que tivessem sido juntos aos presentes autos, e que não foram, os extractos bancários da nova conta .......92, criada no BCP, bem como os documentos relativos ao empréstimo efectuado;

20ª- Daí que se tenha dado como não provado a origem, forma, quem e em que condições foi realizado o pagamento da dívida em causa;

21ª- Resulta, no entanto, da conjugação de toda a prova carreada para os autos, mais do que evidenciado e plenamente demonstrado que foram os Recorrentes que pagaram a dívida resultante da livrança;

22ª- Desde logo, decorre dos documentos juntos aos autos, nomeadamente os documentos nº 3 a 9 juntos com a P.I., que em 31/01/2001, a conta nº ......05 em que era titular o falecido GG, apresentava uma livrança no valor de 10.600.000$00 que se encontrava a cobrança (cfr doc nº3); 23ª- Que em 15/02/2001, o extracto da conta nº ......05 em que era titular o falecido GG, mostra um depósito que aí tinha sido efectuado em 02/02/2001, no montante de 2.206.808$00, resultando, ainda, que se encontrava à cobrança o valor de 10.600.000$00 relativo à livrança (cfr doc nº4);

24ª- Que em 28/02/2001, o extracto da aludida conta nº .....95, mostra a transferência que veio da conta criada nº .......92, no valor de 8.500.000$00 e que juntamente com o depósito efectuado em 02/02/2001, no valor de 2.206.808$00, pagou o valor da livrança de 10.600.000$00 (cfr doc nº5);

25ª- Que resulta, ainda, do aludido extracto que o saldo final da conta nº .....95, em 28/02/2001, ficou a zero (cfr doc nº5);

26ª- Que em 30/03/2001, o extracto relativo à referida conta nº .....95, mostra que a conta tem saldo zero e não tem qualquer dívida (cfr doc nº6;);

27ª- Que o recorrente marido depositou na conta nº .......92, do Millennium BCP, em 26/11/2001, em que identifica o titular da conta como sendo a 1ª Ré CC, a quantia de 7.805.000$00, proveniente da Caixa de Crédito Agrícola e de uma conta da qual é titular (cfr docs nºs 7, 8 e 9);

28ª- Do depoimento prestado pela testemunha II – que serviu para dar como provada a matéria do ponto 6 e foi essencial para a matéria do ponto 7 dos Factos Provados, como se extrai da fundamentação da sentença em crise – resulta que foram os recorrentes e a viúva (1ª Ré) que pagaram a livrança em causa nos presentes autos, que para esse efeito, contraíram um financiamento que, entretanto, pagaram;

29ª- Tal depoimento é ainda confirmado pelo depoimento de parte da 1ª Ré e pelas declarações de parte do Autor que, como se refere muito bem na douta sentença em crise, deverão ser tidas em conta ”(…)apenas e na medida em que encontram suporte noutros meios probatórios dos autos (…)”;

30ª- As dúvidas que podem ser suscitadas, prendem-se, apenas, com a participação da 1ª Ré CC no tocante a essa liquidação que os recorrentes dizem ter pago;

31ª- Já que não resulta da prova, nem foi sequer alegado, que pudessem ter sido outras pessoas a liquidar a dívida, além dos Recorrentes e da 1ª Ré CC;

32ª- No entanto, temos o depoimento de parte da 1ª Ré que afirma ter sido o Autor a pagar a totalidade da dívida e ela não ser credora nesse pagamento;

33ª- Temos, ainda, as declarações de parte do Autor que confirmam o depoimento da 1ª Ré e esclarecem ainda que, num primeiro momento, a quantia de dois mil e duzentos contos que entraram na conta do falecido GG em Fevereiro de 2001, saíram da conta pessoal da 1ª Ré, da Caixa Geral de Depósitos e que posteriormente pagou essa quantia à sua Mãe;

34ª- A verdade é que resultou provada, como se pretendia, a existência dessa dívida como constituindo o passivo, no processo de inventário a que se procede por óbito de GG;

35ª- O reconhecimento da existência dessa dívida como passivo, nos autos de inventário, leva à responsabilidade pelo seu pagamento, por cada um dos herdeiros na aludida herança, na proporção do quinhão que cada um tem na mesma!;

36ª- Responsabilidade essa que os 2º, 3º e 4º Réus/Recorridos, quiseram afastar, ao não aceitar o passivo, constituído pela dívida dos autos, alegando que essa dívida não era do falecido;

37ª- Daí que, as aludidas dúvidas que possam subsistir sobre a participação da 1ª Ré no pagamento da dívida, são uma falsa questão, atendendo, ainda, à doação do seu quinhão hereditário que efectuou ao Recorrente;

38ª- Porquanto o Recorrente assumiu todos os direitos inerentes ao quinhão hereditário que pertencia à sua Mãe, ora 1ª Ré, que esta detinha na Herança por óbito de seu Pai, GG;

39ª- Resultando, assim, da prova carreada para os presentes autos que os Recorrentes pagaram a dívida do falecido, pelo que deverá ser-lhes reconhecido o direito de crédito sobre os demais interessados na Herança aberta por óbito de GG;

40ª- Foram, pois, violadas pela douta sentença recorrida, entre outras, as normas jurídicas constantes dos artigos 607º nº3 e 4, do CPC e ainda o disposto no art.2068º do Código Civil.

Nestes termos e nos mais que V. Exªs. superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido, revogando-se a douta sentença de fls, ora em crise, devendo, consequentemente, reconhecer-se a existência do passivo, no valor de € 52.872,58, resultante da livrança, na herança aberta por óbito de GG; ser reconhecida a responsabilidade de cada um dos herdeiros na aludida herança, pelo respectivo pagamento, na proporção do quinhão que cada um tem na mesma.

O R. DD contra-alegou, terminando da seguinte forma:

A- Não existem nem qualquer livrança, nem qualquer contrato de mútuo, nem cheque comprovativo do pagamento nos presentes autos imprescindíveis para se provar o alegado pelos AA.

B- Os depoimentos de parte da 1ª R. CC e da testemunha II são contraditórios ente si.

C- Tendo a R. CC invocado no inventário que foi ela quem pagou a dívida e os AA. Concordado com isso na conferência de interessados, ao peticionarem agora a pretensa dívida através desta ação os AA. Litigam claramente, de má fé, vindo contra facto próprio, pelo que, além de improceder o recurso eles deverão ser condenados como litigantes de má fé.

Pelo Tribunal da Relação do Porto, foi proferido Acórdão que julgou improcedente o recurso incidente sobre a decisão da matéria de facto e, em face de tal inalteração, manteve a decisão de direito, assim julgando a apelação improcedente e confirmando a decisão recorrida.

REVISTA

Deste Acórdão, inconformado, vieram novamente os Autores interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal da Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

1ª- Salvo o devido e merecido respeito, que maior não pode ser, afigura-se aos Recorrentes que o douto Acórdão recorrido não pode manter-se, na medida em que existe erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa e incumprimento dos deveres respeitantes à reapreciação da decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no nº1 al. b) e nº 3 do art. 674º do CPC;

- Sabemos que este Colendo Supremo Tribunal de Justiça, apenas conhece, em princípio e como regra, da matéria de direito, sendo da competência exclusiva das instâncias a apreciação e fixação da matéria de facto;

- No entanto, no Acórdão recorrido existe manifesta violação do direito probatório formal e material, ao não ter sido atribuído relevo a um meio probatório com força vinculada – a escritura pública de doação que a Recorrida CC fez ao seu filho, ora Recorrente, do seu quinhão hereditário que detinha na herança aberta por óbito do inventariado GG, seu marido;

- Foi, assim, desconsiderado um facto necessário para constituir a base suficiente para a decisão de direito, nos termos do art. 682º nº3 do CPC, resultante de um documento autêntico, junto aos autos, com força probatória plena;

5ª- Houve, ainda, errada aplicação da lei de processo, por ter sido ignorada a declaração confessória da Recorrida CC;

6ª- Por outro lado, o Acórdão recorrido podia e devia ter usado, como se impunha - ao entender ser matéria crucial para a boa decisão da causa - do expediente facultado pelo nº 2 do art. 662º do CPC, e nesta medida, ter ordenado a produção de novos meios de prova, como seja, através da notificação ao Millennium BCP, para que esclarecesse quem eram os titulares da nova conta criada nº .......92, e solicitar os respectivos extractos bancários respeitantes ao ano 2001 (ano da criação da conta e do encerramento da mesma), bem como o contrato de mútuo que esteve na origem da criação da nova conta criada;

7ª- O facto de existir uma convergência decisória das instâncias, que levaria à aplicação do nº 3 do art. 671º do CPC, não é óbice à admissão da presente revista, porquanto é entendimento jurisprudencial praticamente uniforme do STJ, que nas situações em que seja apontado à Relação erro de aplicação ou de interpretação da lei processual, como no caso em apreço, não estamos perante uma efectiva situação de dupla conforme;

- De todo o modo, há, desde logo, manifesta contradição entre os Factos dados como Provados e a decisão de julgar totalmente improcedente a acção!;

9ª- Porquanto foi dada como provada a existência da dívida da herança em causa e consequentemente, foi reconhecida a responsabilidade de cada um dos herdeiros pelo respectivo pagamento;

10ª- Há, assim, manifesta nulidade daquela decisão, ao julgar-se a acção totalmente improcedente, nos termos do disposto no art. 615º nº1 al. c) do CPC, ex vi art. 666º do CPC;

11ª- Por outro lado, deveria ter sido dado como provado que a 1ª Ré/Recorrida CC, fez doação ao seu filho, ora Recorrente, por conta da sua quota disponível, do quinhão hereditário que detinha na herança aberta por óbito do inventariado GG, seu marido, por escritura pública outorgada em 22/02/2019;

12ª- Essa informação foi trazida aos presentes autos pelos Recorrentes, por requerimento datado de 12/02/2020, cuja referência é 34849180, em que se anexou a competente escritura pública de doação;

13ª- Contudo, não foi admitido o aditamento aos Factos Provados, por se ter entendido no Acórdão em crise que se trata de “(…) facto que não consta dos articulados primitivos, nem de articulado superveniente. Embora conste dos autos formulário com a referência ......80, o documento que vem referido não consta do processado.

Por outra parte, ao menos nesta fase processual, trata-se de questão despicienda.”;

14ª- Não concordamos com esta posição de excessivo rigor e excessivo Formalismo processual, relativamente a um facto que consta de um documento junto aos autos, dotado de força probatória plena, que foi submetido ao princípio do contraditório e com uma especial relevância para a boa decisãoda causa;

15ª- Já que, decorre daquela doação, que a 1ª Ré, ora Recorrida CC, deixou de ser parte interessada no processo de Inventário Judicial em causa, aliás, deixou de ser herdeira e de ter qualquer interesse no mesmo, por ter doado ao seu filho, ora Recorrente, o quinhão hereditário que detinha na herança aberta por óbito de seu marido GG, com todos os inerentes direitos;

16ª- Preceitua o artigo 5º nº1 do CPC: Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas.”;

17ª- E, no seu nº2, al. b): “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: (…) b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;”;

18ª- Resulta da fundamentação do Acórdão recorrido – e já decorria da sentença de 1ª instância - que a dúvida que subsiste sobre quem pagou a dívida, está entre os Recorrentes e a Recorrida CC;

19ª- Daí que, a doação do quinhão hereditário pela Recorrida CC ao Recorrente, com todos os respectivos direitos inerentes, seja relevante porque mostra que com aquela doação, a aludida Recorrida CC deixou de ser herdeira do “de cujus”, deixou de ser parte interessada no inventário judicial, deixou de ter interesse no mesmo, sendo-lhe totalmente indiferente o desfecho daquele inventário;

20ª- E, nesta medida, só releva saber quem pagou a dívida, para os herdeiros no referido inventário judicial!! Já não para a Recorrida CC!;

21ª- Inexiste qualquer reclamação de créditos de terceiros e a posição da Recorrida CC naquele inventário, foi assumida pelos Recorrentes!;

22ª- In casu, resulta que, para se fazer cumprir com os princípios gerais da proporcionalidade, adequação e razoabilidade, dever-se-á privilegiar o primado da substância sobre o primado da forma, pois de contrário, não se conseguirá obter uma decisão justa e equilibrada;

23ª- Pelo que deverá ser aditado aos Factos Provados, aquele facto respeitante à doação em causa, por se mostrar relevante para a boa decisão da causa!;

24ª- Verifica-se, ainda, da fundamentação expressa no Acórdão recorrido, que não houve conjugação dos vários tipos de prova, nomeadamente, do depoimento testemunhal do Sr. II, gerente de conta do “de cujus”, que atestou que a dívida foi paga pelos Recorrentes e pela Recorrida CC, com as declarações de parte do Recorrente e depoimento de parte da Recorrida que declararam que quem, efectivamente, pagou a dívida foram os Recorrentes;

25ª- É a própria Recorrida CC que afirma, no seu depoimento de parte, que foi o seu filho Recorrente que pagou a dívida do “de cujus”!;

26ª- Trata-se, aliás, de uma declaração confessória que não foi tida em consideração nas decisões das instâncias, quando o deveria ter sido, havendo manifesta violação da lei de processo (art.674º nº3 do CPC);

27ª- Dispõe o artigo 662º nº1 do CPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa;

28ª- E, no seu nº2, preceitua, ainda, que a Relação deve, mesmo oficiosamente, entre outros poderes, ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;

29ª- No caso em apreço, entendeu-se no Acórdão recorrido que: “(…) Está em causa matéria cerne da acção, cuja prova requeria especiais cuidados, já que eminentemente dependente de documentação bancária e por o alegado ser contraditório com a informação carreada para os autos no processo que originou este.(…);

30ª- Constata-se da fundamentação da decisão recorrida que para a Relação existe uma dúvida objectiva e fundada sobre a prova que foi realizada, relativamente ao pagamento, da dívida em causa, ter sido efectuada pelos Recorrentes;

31ª- Não foram utilizados, como se impunha, os poderes-deveres funcionais e qualificados que a Relação dispõe para esse efeito, nos termos do nº2 do aludido artigo 662º do CPC;

32º- E, nesse sentido, impunha-se, assim, que a Relação tivesse ordenado a realização de diligências complementares e extraordinárias, desde que entendidas como fundamentais para o apuramento da verdade material;

33ª - Assim, deveria ter sido ordenado pela Relação, a notificação do Banco BCP Millennium para juntar aos autos os extractos bancários daquela nova conta criada, bem como, para informarem sobre quem eram os titulares da conta, quando foi aberta e quando foi encerrada e da existência do contrato de mútuo relativo a essa conta;

34ª - Trata-se de uma possibilidade a que a Relação pode aceder quando, da reapreciação da prova sujeita à livre apreciação, não resulte uma convicção segura e fundamentada sobre os factos, como no caso em apreço;

35ª - E, entendendo-se na Relação, que faltava prova documental de cariz bancária, para poder se afirmar que aquela nova conta criada .......92, do BCP Millennium, tinha como titulares os Recorrentes e a Recorrida CC, que eram pagas as prestações do mútuo nessa conta e que os pagamentos eram efectuados pelos Recorrentes, impunha-se que fosse oficiosamente requerido o acesso a essa documentação bancária;

36º- Trata-se de uma imposição do artigo 411º do CPC, que obriga a que seja exercido oficiosamente esse poder-dever funcional, sempre que as diligências probatórias a fazer, se mostrem decisivas e cruciais para uma correta decisão do mérito da

causa;

37ª- Este Colendo Supremo Tribunal, pode verificar, ao abrigo do fundamento da revista previsto no art. 674º nº1 al. b) do CPC, se a Relação omitiu o exercício de tais poderes, ou seja, a verificação-censura ao não uso dos poderes, como aconteceu no caso em apreço;

38ª- Foram, pois, violadas pelo Acórdão recorrido, entre outras, as normas jurídicas constantes dos artigos 3º, nºs 2, 3 e 5; 5º nºs 1 e 2; 283º; 284º; 411º; 607º nº4, 2ª parte; 662º nºs 1 e 2; 663º nº2; 671º nº3; 679º; 682º nº2, todos do CPC e ainda o disposto no art.2068º do Código Civil.

Nestes termos e nos mais que V. Ex.as superiormente suprirão, deve o presente recurso ser julgado provido, revogando-se o douto Acórdão recorrido, devendo, consequentemente, ser aditado aos Factos Provados o teor da escritura de doação e, ser reconhecida a declaração confessória da recorrida CC para os devidos efeitos e, serem, assim, reconhecido os pedidos peticionados pelos Recorrentes, nomeadamente o respectivo crédito sobre os demais interessados na referida herança, por terem procedido ao pagamento do aludido passivo; ou se assim não se entender,

SUBSIDIARIAMENTE:

Conceder-se a revista, e aditar-se aos Factos Provados o teor da escritura de doação, remetendo-se os autos ao Tribunal da Relação do Porto para proceder às diligências complementares requeridas junto do Banco Millennium BCP, e para nova apreciação da impugnação de facto proferida, anulando-se consequentemente o Acórdão recorrido.

Vieram os recorridos oferecer contra-alegações, culminando no sentido de que:

A) Deve este Venerando Tribunal não admitir o presente recurso, uma vez que se verifica a existência de dupla conforme, nos termos do artigo 671º, nº3 do CPC.

B) Em qualquer caso, deveria confirmar-se a decisão recorrida, julgando-se, improcedente o pedido de reapreciação da impugnação de facto proferida pelos recorrentes, bem como a invocação de diligências não ordenadas pelo Tribunal da Relação e que, pretensamente, este deveria ter ordenado oficiosamente.

Sobre o requerimento de interposição de recurso de revista foi proferido despacho de sua não admissibilidade, após o que os recorrentes reclamaram para este Supremo Tribunal, nos termos do art. 643º do CPC, vindo a reclamação a ser julgada procedente, e dando-se cumprimento ao art. 643º nº 6 do CPC.

Corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

OBJECTO DA REVISTA

Como resulta das conclusões recursivas, a presente revista incide sobre a decisão da matéria de facto, sustentando o recorrente que o Tribunal recorrido cometeu erro na apreciação dos meios de prova que teve ao seu dispor e que houve violação de normas processuais (art. 674º nº 3 do CPC), mormente por desatendimento de prova vinculada, e também por incorrecta valoração do meios de prova, e finalmente se se impunha ao tribunal da Relação a realização de outras diligências probatórias para o melhor apuramento dos factos, em especial o efectivo pagamento pelos autores da dívida bancária aqui em causa

Vejamos:

Antes do mais, pese embora o tenhamos já feito aquando da decisão da reclamação deduzida nos termos do art. 643º do CPC, justifica-se, até pela autonomia da presente decisão, um breve enquadramento acerca dos poderes do STJ no que concerne à sindicância do julgamento levado a cabo pelo tribunal da Relação a respeito da matéria de facto.

Ora, dispõe o nº 1 do art. 662º do CPC que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa,” estatuindo o nº 4 da mesma disposição que de tal decisão não cabe recurso para o STJ.

Como afirma ABRANTES GERALDES (Recursos no Novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), p. 331 e 332) que “a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência ” e que “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia” .

Se é verdade que os poderes de cognição do STJ se dirigem, essencialmente, à reapreciação de questões de direito (arts. 674.º e 682 nº1 do CPC), menos verdade não é que o controlo efetuado em terceiro grau pode igualmente ter repercussões em sede de fixação da matéria de facto.

Como sintetizam Abrantes Geraldes, Luís Filipe Pires de Sousa e Paulo Pimenta (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2021, p. 827), para além de poder exercer “poderes cassatórios sobre o acórdão da Relação quando se mostrem desconsiderados factos necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito, nos termos do art. 682.º/3”, é ainda legítimo ao mais alto Tribunal “intervir no sentido da reparação da decisão sobre factos provados ou não provados que tenha desrespeitado disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova (maxime, documento legalmente necessário para a prova de certo facto) ou tenha desconsiderado disposição igualmente expressa que defina a força de determinado meio de prova (art. 674.º/3), como ocorre com a confissão ou com o acordo das partes estabelecido no processo e que seja relevante.”

Por fim, como sublinham os mesmos autores, “é pacífico o entendimento de que, não podendo o Supremo censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo art. 662.º nº 1 e 2 já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer.” (também neste sentido Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 362-364).

Neste sentido se tem pronunciado, de modo convergente, a jurisprudência do STJ, o que bem fica ilustrado na impressiva síntese do acórdão do STJ de 26-05-2021 (Processo n.º 3277/12.5TBLLE-F.E2.S1):I - A regra essencial de que a competência do STJ restringe-se exclusivamente ao conhecimento da matéria de direito comporta em si excepções, competindo à última instância, em sede de recurso de revista: o conhecimento da insuficiência ou deficiência dos factos apurados nas instâncias inferiores para a cabal e adequada decisão de direito (vide art. 682.º, n.º 3, do CPC); a sindicância da incorrecta relevância atribuída a certos meios de prova, que impliquem a violação da lei quanto à respectiva força probatória ou constituam infracção às regras relacionadas com a sua inadmissibilidade em determinado tipo de acções, consubstanciando ofensas ao denominado direito probatório material - cfr. arts. 341.º a 396.º do CC); o controlo da inobservância da lei processual que regula o regime de reapreciação da prova e o escrupuloso uso dos poderes que são conferidos ao tribunal da Relação nos termos do art. 662.º do CPC, permitindo garantir, substantivamente e em termos efectivos, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.”

Na mesma linha se pronunciaram, entre outros, os acórdãos de 19-09-2017 (Processo nº 3805/04.0TBSXL.L1.S1), de 30-05-2019 (Processo 156/16.0T8BCL.G1.S1), de 15-01-2019 (Processo 298/13.4TBTMC.G2.S1), de 16-12-2020 (Processo 877/15.5T8CSC.L1.S2), de 13-04-2021(Processo2395/11.1TBFAF.G2.S1),de19-10-2021(Processo 5835/18.5T8BRG.G1.S1) e de 18-01-2022 (Processo 1932/10.3TBBNV.E1.S1, este relatado pelo ora relator).

A Relação atua como um tribunal de substituição em matéria de facto, aplicando a plenitude das regras gerais de prova: "a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem de ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância pois só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição", enunciam os Acs. STJ 2-12 2013/34/11.0TBPNI.L1.S1 e de 29-11-2016, proc. 2170/05.2TVLSB-A.L1.S1).

Neste contexto, constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, como feito notar pelo acórdão de 08-06-2017, Revista n.º 271/07.1TBALJ.G2.S1), que “a reapreciação da decisão de facto pela Relação, nos termos do art. 662º nº 1 do CPC não se deve limitar à verificação da existência de erro notório por parte do tribunal a quo, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, por parte do tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, para só, em face dessa convicção, decidir sobre a verificação ou não do erro invocado, mantendo ou alterando os juízos probatórios em causa.”

E nessa senda decisória se pronunciou o Ac. STJ 07 de Setembro de 2017, processo 959/09.2TVLSB.L1.S1, confirmando que “o nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure”.

Assim como o Ac. STJ de 19-09-2017, revista 3805/04.0TBSXL.L1.S1, que postula que “à Relação comete-se o dever de modificar a decisão sobre a matéria de facto, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo art. 662.º do CPC.

Em caso de recurso com impugnação da decisão relativa à matéria de facto, a Relação pode e deve formar a sua própria convicção mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas (arts. 640º e 662º nº 1 do CPC), exactamente nas mesmas condições em que o fez o Tribunal recorrido, nada obstando a que o faça de forma díspar ou divergente deste, mesmo quando não se verificou erro notório de julgamento de facto recorrido.

Contudo, o STJ pode censurar o mau uso que o Tribunal da Relação tenha eventualmente feito dos seus poderes sobre a modificação da matéria de facto, bem como pode verificar se foi violada ou feita aplicação errada da lei de processo (art. 674º nº 1 al. b) do CPC).”

Tendo sido neste âmbito que o recorrente interpôs a presente revista.

Com efeito, o protesto no recurso de revista referente ao julgamento da matéria de facto pode dirigir-se, numa dimensão substantiva, à obtenção de uma alteração da decisão fáctica determinada por norma legal que reclame imperativamente determinada espécie de prova para a demonstração de um facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova.

Estamos qualquer dos casos perante questões relativas à matéria de facto sobre as quais pode o STJ pronunciar-se, razão para que, quando suscitadas, o deva fazer antes do conhecimento de qualquer outra matéria, sendo jurisprudência consolidada neste Supremo Tribunal de Justiça que deve fazer-se uma interpretação restritiva do art.º 671º n.º 3 do Código de Processo Civil, de forma a admitir-se o recurso de revista normal, em termos gerais, com fundamento em violação da lei de processo imputável ao Tribunal da Relação (neste sentido, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de novembro de 2018 (Processo n.º 48/15.0T8VNC.G1.S1), de 30 de maio de 2019 (Processo n.º 156/16.0T8BCL.G1.S1), de 17 de outubro de 2019 (Processo n.º 617/14.6YIPRT.L1.S1), e de 2 de junho de 2021 (Processo n.º 786/15.8T8FAF.G1.S1).

I - Aqui chegados, analisemos numa primeira fase à sustentação pelos recorrentes de violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada, maxime no tocante à desconsideração pelo Tribunal recorrido do teor de escritura de doação do seu quinhão hereditário feita pela primeira Ré CC a seu filho, o Autor nos presentes autos, que constitui, no entender dos recorrentes, prova com força legalmente vinculativa que o Tribunal recorrido desprezou.

O que os autores recorrentes pretendem, ao fim de contas, é que sejam dados como provados os factos constantes da escritura de doação do quinão hereditário pela Ré CC ao seu filho Autor, para daí se poder concluir que foram eles autores que pagaram ao Banco a dívida aqui em causa.

Ora, com todo o respeito, a prova decorrente daquele documento, escritura de doação, que é autêntico, não permite aquela conclusão.

Como é sabido, do documento autêntico resulta valor tabelado, que pode permitir a este Supremo Tribunal de Justiça alterar a factualidade dada como provada e não provada após a reapreciação do julgamento da matéria de facto realizada pelo Tribunal da Relação.

Como resulta do disposto no art. 364.º do CC, quando a lei exigir como forma da declaração negocial documento autêntico, autenticado ou particular, não pode este ser substituído por qualquer outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

Ora, no caso vertente, estando em causa a demonstração de que os Autores assumiram perante o Banco a dívida do “de cujus”, tendo, por isso o direito de agora serem pagos pelas forças da herança, não se vislumbra que tenha sido ofendida qualquer disposição expressa da lei que fixe a força de determinado meio de prova, como sucede, por exemplo, no art. 371.º do mesmo CC.

Isto, porque, confinando-se os poderes deste Tribunal ao domínio da prova vinculada, ou seja, aquela que a lei unicamente admite para a prova de determinado facto e ao da força probatória legalmente atribuída a determinada meio de prova, não se nos revela que aquele facto (o pagamento da dívida pelos autores) possa resultar provado ante o teor da dita escritura de doação, pela simples razão de que este pagamento não resulta minimamente referido, afirmado, ou aludido sequer indirectamente naquela escritura.

Efectivamente, os documentos autênticos fazem prova, por si mesmo, da sua proveniência ou paternidade, e prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles estão atestados, de acordo com o disposto pelo artigo 371º, nº 1, do Código Civil (CC).

Resulta do artigo 371º nº 1 do CC que “os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora;”.

Isto é, o documentador garante, pela fé pública de que está revestido, que os factos que documenta, se passaram; mas não garante, nem pode garantir, que os factos relatados e que resultam das suas percepções correspondem à verdade. Ou seja, designadamente no que se refere ao que foi afirmado perante ele, o documentador não garante a veracidade das declarações, a sua sinceridade, eficácia ou validade que os outorgantes fazem ao documentador; só garante que eles as fizeram (VAZ SERRA, RLJ, 111.º, p. 302.)

Consequentemente, o simples facto de se ter atestado que as partes declararam determinado preço e que o mesmo já tinha sido recebido, não resulta plenamente provado da escritura.

Porém, se o dador que afirma, perante o notário, que faz doação de um seu bem (no caso a quota hereditária) e o donatário afirma aceitar a doação, estas declarações implica o reconhecimento desses mesmos factos e de nenhuns outros, designadamente de factos que se pretendam demonstrar mediante presunção.

É doutrina e jurisprudência pacíficas que o valor probatório de um documento autêntico não respeita a tudo quanto nele se diz ou se contém, mas somente aos factos que se referem praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, quanto aos factos referidos como percepções da entidade documentadora.

Como ensina Antunes Varela, em anotação ao artigo 371 do Código Civil, “se no documento, por exemplo, o notário afirma que perante ele, o outorgante disse isto ou aquilo, fica plenamente provado que o declarante o disse, mas não fica provado que seja verdadeira a afirmação do outorgante, ou que esta não tenha sido viciada por erro, dolo ou coacção, ou que o acto não seja simulado.”

O oficial público apenas registou, lavrando em acto solene, que as partes tinham declarado o que ali ficou exarado, atestando formalmente estas declarações, que nada têm a ver com a factualidade essência probanda, o pagamento pelos Autores ao banco da dívida assumida pelo de cujus e sua mulher perante aquela entidade bancária.

Ou seja, apesar de demonstrada a autoria de um documento, daí não resulta, necessariamente, que os factos compreendidos nas declarações dele constantes se hajam de considerar provados, o mesmo é dizer que daí não advém que os documentos provem plenamente os factos neles referidos.

É que a força ou eficácia probatória plena atribuída pelo nº 1 do artigo 376º do Código Civil às declarações documentadas limita-se à materialidade, isto é, à existência dessas declarações, não abrangendo a exactidão das mesmas.

Na verdade, mesmo que um documento particular goze de força probatória plena, tal valor reporta-se tão só às declarações documentadas, ficando por demonstrar que tais declarações correspondam à realidade dos respectivos factos materiais (Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra, 1985, página 523, nota 3).

Do exposto ficando esclarecida a insubsistência do conjunto de asserções e conclusões suscitadas pelos recorrentes neste âmbito.

Acrescendo referir que a doação pela Ré ao autor, plasmada na dita escritura pública, não constitui no caso vertente um facto que àquela seja desfavorável e que, nessa medida, possa beneficiar os Autores, pelo que não se reveste o mesmo de qualquer força probatória para além da sua mera declaração, não valendo como confissão, nos termos do artigo 352.º do CC, não se tratando, como pretendem os recorrentes, assim, de uma confissão extrajudicial em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goze de força probatória plena contra o confitente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, nº 1 e 4, e 358º nº 2 do CC.

Ora, do exposto resulta que a valoração da força probatória do documento autêntico que a escritura de doação representa, não tem qualquer sentido no caso vertente, porquanto, provando apenas aquele documento o que fora dito pelos outorgantes perante o notário no momento da outorga do mesmo, e não resultando do mesmo qualquer alusão ao pagamento da dívida bancária pelos autores, não tem qualquer interesse, como não teve para a instâncias, a consignação como provados dos factos que aquele escritura encerra, uma vez que o cerne fáctico probatório não encontra qualquer enquadramento no teor daquela escritura.

Tanto basta para que a Relação tenha considerado, quando apreciou a reclamação formulada pelos recorrentes quanto à decisão da matéria de facto, pretendendo estes que o tribunal considerasse como provada a doação ora em causa, com base na dita escritura, considerou o seguinte:

A primeira questão suscitada pelos recorrentes quanto à matéria de facto reside na alegada omissão de que a R. CC, fez doação a seu filho, ora apelante, por conta da sua quota disponível, do quinhão hereditário que detinha na herança aberta por óbito do inventariado GG, seu marido, por escritura pública outorgada em 22-2-2019.

Aduz que tal informação consta de requerimento, datado de 12-2-2020, cuja referência é 34849180, apresentado pelos recorrentes, em que se anexou a competente escritura pública de doação.

Trata-se de facto que não consta dos articulados primitivos, nem de articulado superveniente. Embora conste dos autos formulário com a referência 34849180, o documento que aí vem referido não consta do processado. Por outra parte, ao menos nesta fase processual, trata-se de questão despicienda.

Não se admite, por isso, o aditamento.”

Ou seja, para além de considerar que o facto ora em questão não fora carreado para os autos no momento adequado, assim como o fora também tardiamente a escritura de doação, considera a Relação, no balanço que faz quanto à importância de tal factualidade, que a questão fáctica sob análise é despicienda, ou seja, não merece apreciação, é desprezível para a decisão que se perscruta no caso vertente, não tem de ser considerada.

É esta, quanto a nós, a mais adequada interpretação do teor daquela decisão, de acordo com o que dispõe o nº 1 do artigo 236º do Código Civil, ou seja com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição de real declaratário, possa deduzir do seu contexto (constitui jurisprudência pacífica que a interpretação de decisão judicial, como acto jurídico que é, deve obedecer, por força do disposto no artigo 295º do Código Civil, aos critérios de interpretação dos negócios jurídicos, tendo de se aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, princípio este estabelecido para os negócios formais no art. 238.º do Código Civil e que, valendo para a interpretação dos actos normativos (art. 9º nº 2 do CC), tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial” (neste sentido, por todos, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 10/09/2020 - processo 5129/05.6TBVFX.L2.S1, onde é referida vasta jurisprudência).

Improcedem, assim, todas as conclusões neste âmbito aduzidas pelos recorrentes.

II - Num segundo momento, sustentam os recorrentes que a Relação não fez a correcta avaliação dos meios de prova, designadamente no que concerne aos depoimentos testemunhais e declarações de parte (conclusões 24º a 27ª).

Cumpre, assim, apreciar o modo como a decisão recorrida exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto ínsitos no art. 662º nº 1 do CPC, aquilatando se existiu, por parte da mesma, ao alterar a decisão proferida pela primeira instância, uma aplicação errada da lei de processo (art. 674º nº 1 a. b).

Ora, tendo presente o que acima ficou dito sobre os poderes da Relação neste âmbito, que lhe conferem a “última palavra” em termos de decisão da matéria de facto, movendo-se a Relação no pleno âmbito da sua livre apreciação dos meios de prova, encontrando-se vedado a este Tribunal exarar qualquer crítica à decisão alcançada, porquanto os autos não evidenciam, ante a fundamentação da decisão da matéria de facto, que o Tribunal recorrido tenha tido qualquer dúvida séria sobre a credibilidade de um depoimento testemunhal ou sobre o seu sentido ou mesmo que tenha surgido uma situação de incerteza quanto à prova realizada.

Por outro lado, há que sublinhar que a decisão impugnada, para concluir pela reconfiguração da matéria de facto assente, procedeu a uma apreciação da prova testemunhal (auditando os depoimentos das testemunhas relevantes) e documental, examinando, de forma crítica ainda que sintética, tais meios de prova e formando uma convicção própria sem se refugiar em critérios imprecisos de análise, indicando os meios de prova concretos que esteiraram a sua convicção a propósito da materialidade probanda, explicitando as razões que o levaram a adotar um determinado sentido decisório relativamente a cada um dos factos impugnados pelos apelantes, não se detetando qualquer transposição dos limites legalmente estabelecidos à livre apreciação.

O Tribunal da Relação do Porto exteriorizou o seu percurso de convencimento em termos racionais e coerentes, sem deixar de considerar o acervo fáctico na sua globalidade.

Não se descortinando, pois, qualquer violação do art. 662º nº 1 do CPC, ao contrário do que pretendem os recorrentes.

III – Num terceiro segmento da revista (conclusões 28º e seguintes), invocam os recorrentes que a Relação deveria ter ordenado oficiosamente a renovação da prova ou ordenado a produção de novos meios de prova, diligências complementares e extraordinárias, designadamente a notificação do Banco BCP Millennium para juntar aos autos os extractos bancários daquela nova conta criada, bem como, para informarem sobre quem eram os titulares da conta, quando foi aberta e quando foi encerrada e da existência do contrato de mútuo relativo a essa conta, uma vez que se constata, da fundamentação da decisão recorrida, que para a Relação existe uma dúvida objectiva e fundada sobre a prova que foi realizada, relativamente ao pagamento, da dívida em causa, ter sido efectuada pelos Recorrentes.

Antes do mais, diremos novamente que da fundamentação da decisão da matéria de facto, não resulta, em nosso entender, que a Relação tenha exprimido uma dúvida objectiva e fundada sobre a prova que foi realizada, relativamente ao pagamento, da dívida em causa, ter sido efectuada pelos Recorrentes.

Embora a Relação considere que “contrariando os recorrentes, não ficou amplamente demonstrado que tenham sido os próprios a proceder ao pagamento”, considerou também que, movendo-se a prova “em matéria de índole eminentemente formal, não há prova documental da celebração do mútuo, de quem o celebrou e dos pagamentos” e que “Tão pouco existe prova do pagamento das prestações nos termos alegados pelos AA.. E se existe notícia de que o cheque de esc. 2 206 808$00 foi depositado na conta n.º ........05, já não existe documento que permita corroborar que foi emitido pelos AA., pelo que nem há como pressupor que a verba disponibilizada era sua pertença. Em bom rigor, aquilo que os documentos carreados para o processo permitem aferir é que existia uma dívida e que esta foi saldada”.

Mais justificando o seu afastamento das declarações de parte, do A. e 1ª Ré, em termos de estes terem aptidão valorativa para a sua convicção, asseverando que “em face da pretensão dos AA., não é de somenos saber quem foram os contraentes no empréstimo. Perante a concreta causa de pedir, não constitui mero pano de fundo apurar quem acudiu ao pagamento”, ou seja, assinalando a incapacidade probatória dos autores, mas também a sua segurança quanto à demonstração dos factos que a estes, segundo as regras da distribuição do ónus da prova (art. 342º do CC) a este cumpriria.

Mais aduzindo, o que não é despiciendo que “o tribunal de 1.ª instância respigou a prova documental dos autos de inventário cuja decisão de remissão dos interessados para os meios comuns está na génese da propositura desta ação”, sendo que naquele processo “emerge que a cabeça de casal, a ora 1.ª R., se identificou como credora do passivo, de que os AA. se pretendem agora credores, isto é, no âmbito de outro processo, em que intervieram, quer o A., quer a 1.ª R., a aqui 1.ª R., e ali cabeça de casal, assumiu-se como credora do passivo da herança, por ter sido ela a suportar o seu pagamento. O aqui A., ali interessado, nada objetou e não se arrogou essa mesma qualidade. Já neste processo, sem produzir outra prova documental relevante que não a da demonstração da existência de dívida e do seu pagamento, os AA. entendem que o tribunal deveria ter-se convencido de que a quantia de esc. 2 206 808$00 era sua pertença, apesar de ter sido inicialmente suportada pela 1.ª R., de que a posteriori a terão reembolsado, de que lhes foi financiada a quantia de esc. 8 500 000$00, através de contrato de mútuo, a que terá ficado associada a conta .......92, de que teria como titular a 1.ª R. (nem se alcança quem seriam, afinal, os titulares) e de que todo o dinheiro que lá foi depositado era, sem embargo, exclusivamente dos AA”.

Assim revelando que não restam dúvidas sérias quanto ao desiderato probatório alcançado pela Relação, conclusão a que não foi alheia a consideração, também ela significativa, de que “não se entrevê como pudesse II, testemunha funcionário do banco credor, atestar a titularidade das verbas empregues para pagar a dívida, já que não detém quaisquer conhecimentos pessoais nesta área.”

Concluindo que se impunham especiais cuidados probatórios, “já que eminentemente dependente de documentação bancária e por o alegado ser contraditório com a informação carreada para os autos no processo que originou este”.

Ora, do exposto resulta que a Relação, embora diga que a prova se encontrava eminentemente dependente de documentação bancária, não considerou que he tenham restado dúvidas quanto ao resultado fáctico apurado, em evidente consequência do incumprimento do ónus de prova que aos Autores competia, especial mente quando refere que a tese expendida nos presentes autos pelos mesmos se revela contraditória com a que fora vertida pelos mesmos e também pela 1ª Ré nos autos de inventário, como que apontando um ónus de prova acrescido pela “desconfiança” daí resultante.

Não se justificando, de minimis, que se pudesse impor à Relação de mais diligências probatórias que os interessados tiveram tanto e tanto tempo para reunir, não só no processo de inventário (falta de prova que fora determinante da decisão de relegar os interessados +para os meios comuns), como nestes mesmos autos, sabido como é que o banco teria de lhes fornecer, como clientes (pelo menos a 1ª Ré, que sustenta a mesma tese), tais elementos.

Como refere Miguel Teixeira de Sousa (in “Prova, Poderes da Relação e convicção: a lição da epistemologia”, Cadernos de Direito Provado, n.º 44, p. 34), sendo irrefutável que o STJ pode censurar o não uso pela Relação do poder de ordenar a renovação de prova, a verdade é que tal renovação só se justificará quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento (Abrantes Geraldes, ob. cit, p. 341). Do mesmo modo, a possibilidade de a Relação ordenar a produção de novos meios de prova opera em casos de fundada dúvida sobre a prova realizada, sendo que, como se deixou escrito no acórdão do STJ de 16-12-2020, Processo n.º 277/12.9TBALJ-B.G1.S1, “dúvida séria ou fundada é aquela que, por um lado, surge da incerteza quanto ao preenchimento do adequado estalão probatório, e que, por outro lado, se apresenta como susceptível de, segundo padrões de praticabilidade, ser resolvida. Não há dúvida séria/fundada se se tem por adquirido o preenchimento ou não preenchimento do adequado estalão probatório, nem se, apesar da incerteza, não se descortina modo útil e efectivo de a afastar.”

Em conclusão, da leitura da convicção da fundamentação da Relação não se extrai que a tenha tido qualquer dúvida séria sobre a credibilidade e o sentido dos meios de prova de que dispôs e que sopesou crítica e cuidadamente, e que tenha surgido uma situação de incerteza quanto à prova realizada.

De onde haverá que concluir não se verificar na atuação do tribunal recorrido qualquer incumprimento dos poderes-deveres a que se reportam as alíneas a), b) e d) do n.º 2 do art. 662.º do CPC.

Assim improcedendo a revista in totum, merecendo o Acórdão recorrido inteira confirmação.

DECISÃO

Pelo exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em jugar a revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Adjunto: Juiz Conselheiro Sousa Lameira

2º Adjunto: Juiz Conselheiro Lino Oliveira