COMPETÊNCIA MATERIAL
FORO ADMINISTRATIVO
FORO COMUM
EMPRESA CONCESSIONÁRIA DE SERVIÇO PÚBLICO
GESTÃO PRIVADA
GESTÃO PÚBLICA
LICENÇA
SOCIEDADE COMERCIAL
CONTRATO ADMINISTRATIVO
Sumário


I - Para a determinação da competência do tribunal em razão da matéria, que se fixa no momento em que a acção é proposta (art. 38.º, n.º 1, da LOSJ e art. 5.º, n.º 1, do ETAF), importa aferir dos termos em que é formulada a pretensão do autor, maxime os respetivos fundamentos, a causa de pedir e de pedido.
II - O art. 212.º, n.º 3, da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais, sendo residual a competência dos tribunais judiciais, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra jurisdição.
III - Para além dos termos em que a acção vem configurada, para a determinação da competência em razão da matéria, importa ter presente a lei em vigor à data da propositura da acção, mormente à luz do ETAF na redacção do DL n.º 214-G/2015 de 02-10, na redacção conferida a Lei n.º 114/2019 de 12-09, em conjugação com as leis aplicáveis ao contrato cujo cumprimento se discute, pelo que, para efeitos de determinação do foro competente, deve ser equacionado também o regime legal em vigor à data desse mesmo contrato.
IV - A relação jurídica administrativa define-se sempre como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que de forma distinta da regulação das correspondentes relações privadas, porquanto nela sempre participa uma entidade munida de poderes públicos, analisa uma sujeição especial, procurando satisfazer a necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.
V - Tendo em conta o preceituado no art. 1.º do Código dos Contratos Públicos (DL n.º 18/2008 de 29-01, diploma que aprova o Código dos Contratos Públicos (CCP) e que estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo, o contrato celebrado entre a autora (sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença no âmbito do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens) e a ré (sociedade que no âmbito da sua atividade produz e comercializa embalagens de papel e plástico, estando obrigada a gerir os respetivos resíduos das embalagens não reutilizáveis que coloca no mercado, o que pode fazer por si ou através de um sistema integrado) não se reveste de natureza administrativa, porquanto a relação entre as mesmas não tem contornos jurídico-administrativos, tratando-se de contrato sujeito às normas de direito privado e não de direito público, não obstante a sua integração no âmbito da Lei dos Serviços Públicos (LSP) aprovada pelo DL n.º 23/96, de 26-07, que cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente (a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo) de serviços públicos essenciais, designadamente os serviços de fornecimento de água, fornecimento de energia eléctrica, fornecimento de gás, o serviço de telefone, os serviços postais, os serviços de recolha a tratamento de águas residuais, os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e os serviços de passageiros.
VI - Nem a circunstância de a autora, como prestadora de serviços de gestão de resíduos de embalagens, ser titular de uma autorização e licença no âmbito do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens, nos termos previstos no art. 7.º, n.º 1, do DL n.º 152-D/2017, de 11-12 (segundo o qual “Para efeitos do cumprimento das obrigações estabelecidas no presente decreto-lei, os produtores do produto, os embaladores que utilizam embalagens não reutilizáveis e os fornecedores de embalagens de serviço não reutilizáveis ficam obrigados a gerir os respetivos resíduos através de um sistema individual ou de um sistema integrado, sujeito a autorização ou licença, respetivamente, nos termos do presente decreto-lei, ou através do sistema de depósito previsto no artigo 23.º-C”), lhe confere a natureza de entidade pública, como resulta do n.º 4 do art. 1.º da LSP, segundo o qual “Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.”
VII - Acrescendo que a al. a) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF (alterado e republicado pelo DL n.º 214-G/2015, de 02-10, e pela Lei n.º 114/2019 de 12-09), deixa de fora da competência dos tribunais da jurisdição administrativa “a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a contratos celebrados por órgãos da administração pública e submetidos a um regime de direito privado que não hajam de ser celebrados nos ternos da legislação sobre contratação pública.”
VIII - São as sociedades referidas nos pontos IV e V sociedades de direito privado, porquanto nenhuma delas exerce qualquer função de natureza pública, sendo que o pedido formulado pela autora, de condenação da ré no pagamento de uma fatura por serviços (de gestão de resíduos) prestados, não se pode inscrever num segmento de índole jurídico-administrativa.
IX - O conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no art. 1.º, n.º 1, do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, competindo aos tribunais administrativos dirimir todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.
X - As relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público, assentando o critério material da distinção em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público.
XI - Embora titular de licenciamento, conferido por autoridades públicas, para a gestão de resíduos, a autora não se encontra investida de qualquer poder ou autoridade pública.
XII - Embora o licenciamento sempre dependa da verificação de um conjunto de conformidades legais e operacionais para o exercício de determinado serviço essencial, não sendo por isso de acesso livre para quem a tal se proponha, como é o caso da gestão de resíduos urbanos e industriais, constituindo a licença uma formalidade de natureza administrativa, da sua concessão a determinada entidade particular apenas resulta a prerrogativa ou o direito de a mesma poder exercer a actividade económica visada, não lhe concedendo à sua titular a veste de entidade de direito público, entendimento contrário não contendo a disposição legal ínsita na al. e) do n.º 1 do art. 4.º do ETAF, que considera como contratos administrativos os celebrados nos termos da legislação pública, “por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”
XIII - A sociedade prestadora de serviços de gestão de resíduos de embalagens, como titular de uma autorização e licença no âmbito do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens, não pode ser considerada como entidade adjudicante, à luz do Código da Contratação Pública, pois que, como escreve Vieira de Andrade (A Justiça Administrativa cit., pág. 109, nota 198) “entidades adjudicantes”, além das pessoas colectivas públicas, são os “organismos públicos” - entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente e regularmente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (art. 2.º do CCP), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes.

Texto Integral

Novo Verde – Entidade Gestora de Resíduos de Embalagens, S.A. instaurou a presente injunção, posteriormente distribuída como ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, contra a R. Esposack Embalagens, Lda, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 53.015,62 de capital acrescido de juros de mora já vencidos no valor de € 1.092,97 e da taxa de justiça de € 40,00.

Alega, em síntese, que é uma sociedade gestora de resíduos de embalagens a quem foi atribuída uma licença no âmbito do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens.

Refere que os operadores económicos, como a A., são responsáveis pela gestão dos resíduos das embalagens que coloquem no mercado, podendo transferir esta responsabilidade para uma entidade devidamente licenciada para exercer essa atividade.

Em 01.07.2017 a A. e a R. celebraram entre si o Contrato de Adesão ao Sistema Integrado de Gestão de Resíduos de Embalagens através do qual a R. transferiu para a A. a sua responsabilidade pela gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional, mediante o pagamento de uma prestação financeira anual, cujo montante é definido nos termos do DL 152-D/2017, da Licença e do Contrato, a ser paga em quatro prestações trimestrais tal como previsto. A A. ao abrigo do DL 152-D/2017, do contrato e da Licença, procedeu à revisão da prestação anual financeira, tendo comunicado tal facto à R. em 24.11.2020. Em 24.12.2020 a A. emitiu a Fatura FT 1000/..94, com vencimento em 07.02.2021 no montante de € 53.015,62 corresponde à quarta tranche da prestação financeira devida no ano de 2020. Em 11.03.2021 interpelou a R. para proceder ao pagamento de tal fatura, não tendo qualquer resposta, permanecendo aquele valor em dívida, ao que acrescem juros de mora vencidos desde 07.02.2021 à taxa de 8%, que na presente data ascendem a € 1.092,97 e a indemnização pelos custos de cobrança da dívida € 40,00 e o valor devido pela taxa de justiça € 153,00.

Citada a R., a mesma veio apresentar oposição, concluindo que deve ser reduzido o pedido por aplicação dos preços da tabela 2 (prestações financeiras ponderadas) em vigor a partir de 24.11.2020, que se encontra publicada e ser a A. condenada a corrigir a fatura 1000/..94. Mais requer a condenação da A. no pagamento de multa e indemnização como litigante de má fé.

Alega, em suma, que 24.11.2020 a A. lhe comunicou por correio eletrónico, que procedeu a uma revisão do modelo das prestações financeiras, nos termos do n.º 7 do artigo 15.º do DL 152-D/2017 de 11 de Dezembro e do n.º 4 da cláusula quarta do contrato, informando das alterações às prestações financeiras e que os preços aplicados à 4.ª prestação trimestral de 2020 são os constantes da tabela 1 do quadro apresentado na mencionada comunicação, sendo que a revisão da prestação anual financeira não obedeceu aos trâmites legais previstos no DL 152-D/2017, no contrato e na Licença. Refere que a aplicação dos preços contantes da tabela à 4.ª prestação trimestral de 2020 contempla a aplicação retroativa dos mesmos, trimestral e anualmente, quando a comunicação das alterações às prestações financeiras apenas é realizada a 24.11.2020, só devendo a revisão produzir efeitos após a data da sua comunicação, porquanto contratualizou com a A. com base na informação de preços e valores praticados e modelos aprovados em vigor à data da celebração do contrato. Além disso, a A. apresentou duas tabelas e informou que os preços aplicados à 4.ª prestação trimestral de 2020 são os constantes da tabela 1, mas a apenas procedeu à publicação no seu sítio da Internet dos preços constantes da tabela 2, para aplicação às prestações financeiras a partir de novembro de 2020, nunca procedendo à publicação dos preços constantes da tabela 1, violando o disposto no n.º 6 e 7, do artigo 15.º do DL 152-D/2017 que o impõe, sendo condição da legalidade e da legitimidade da A. para a aplicação dos preços constantes na tabela 1, resultante da mencionada revisão e da aprovação de novo modelo de preços, que os mesmos sejam publicados no sítio da Internet da requerente. A A. apenas procedeu à publicação no seu sítio da Internet dos preços constantes da tabela 2 do quadro, para aplicação às prestações financeiras a partir de novembro de 2020, pelo que deveriam ser estes os preços aplicados a partir de 24.11.2020 e nunca os preços constantes da tabela 1. Alega ainda que a A. na comunicação de 24.11.2020, indicou que o resultado do novo modelo aprovado das prestações financeiras encontrava-se publicado no seu “website” e forneceu um “link” de acesso à requerida, “link” que direcionava para o sítio da Internet da A. no qual constam publicados os preços constantes da tabela 2. Conclui que a A. não lhe pode exigir o valor constante da fatura em crise, resultante da aplicação dos preços contantes da tabela 1 do quadro acima apresentado e ainda com retroativos, quer trimestral, quer anualmente, sendo que após a interpelação para pagamento da fatura solicitou vários pedidos de esclarecimentos à A. e de imediato apresentou várias reclamações dos preços e quantias constantes da fatura, solicitando a sua correção, designadamente por carta registada com aviso de receção que até à presente data não foi objeto de qualquer resposta. Mais invoca que tem notas de crédito pendentes de aceitação e confirmação, aguardando a correção da fatura em questão e que face à posição assumida pela A. diligenciou por si e por intermédio de outras entidades, por pedidos de pareceres jurídicos e esclarecimentos junto das competentes entidades, a saber, APA, I.P. (Agência Portuguesa do Ambiente, I.P.) e DGAE (Direção Geral das Atividades Económicas), tendo em resposta, tanto a APA, I.P. como a DGAE esclarecido que a aplicação da mencionada revisão e da aprovação de novo modelo de preços deverá apenas produzir efeitos a partir de novembro de 2020. Impugna a cobrança de juros e outras quantias reclamadas.

As partes foram notificadas para querendo se pronunciarem sobre a eventual incompetência do tribunal em razão da matéria, vindo a A. defender tal competência do tribunal para a causa, enquanto a Ré se pronunciou no sentido da incompetência deste tribunal e pela competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Foi proferida decisão que concluiu nos seguintes termos: “Pelo exposto, tendo em conta a competência residual dos tribunais judiciais e nos termos dos artigos 211º, 1, da C.R.P., 96º, 1, al. a), 97º, 1, e 99º, 1, do Código de Processo Civil, artº 117º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário, artº 212º, 3, da CRP, artº 1°, 1, e artº 4°, 1, al. e), do ETAF, declaro o Juízo Central Cível de Cascais incompetente em razão da matéria para tramitar a presente acção, concluindo ser de atribuir a competência material para conhecer da acção aos «tribunais da jurisdição administrativa» e absolveu os RR. da instância.”

APELAÇÃO

Inconformada com esta decisão, a Autora veio interpor recurso de apelação, apresentando alegações que concluem no sentido de ser decretada a competência do tribunal recorrido em razão da matéria.

A A. veio responder, pugnando pela improcedência da apelação e manutenção a decisão recorrida.

Foi proferido Acórdão que julgou procedente a apelação e revogou a decisão recorrida, “devendo os autos prosseguir os seus termos legais”.

REVISTA

Inconformada, desta feita veio a Ré interpor recurso de revista, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

A. Vem o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal a quo que revogou a decisão do Tribunal deprimeirainstânciaquesejulgoumaterialmenteincompetenteparaconhecerdamatériaem discussão nos presentes autos.

B. Concluiu o Tribunal a quo que “o litígio que se discute na presente ação não se integra no âmbito da jurisdição administrativa, de acordo com o que regula atualmente o artigo 4.º do ETAF que delimita a competência dos tribunais administrativos e fiscais, cabendo aos tribunais comuns a sua apreciação, em face da sua competência residual de que dispõem, nos termos do artigo 64.º do CPC e artigo 40.º da LOSJ”.

C. Salvo o devido respeito, que é muito, o acórdão do Tribunal a quo é ilegal por erro quanto aos pressupostos de facto e por errada aplicação do Direito aos factos.

D. O litígio que se discute na presente ação emerge de uma relação jurídico-administrativa e enquadra-se no âmbito da jurisdição administrativa.

E. E não cabe aos tribunais comuns – neste caso cíveis - a sua apreciação, em face da sua competência residual de que dispõem, nos termos do artigo 64.º do CPC e artigo 40.º da LOSJ, como erroneamente resulta do acórdão agora posto em crise.

F. A aqui Recorrente é uma sociedade comercial que, na sua atividade, produz, embala e comercializa embalagens, encontrando-se obrigada a gerir os respetivos resíduos das embalagens não reutilizáveis através de um sistema individual ou de um sistema integrado, sujeitos a autorização ou licença.

G. A aqui Recorrida é uma sociedade gestora de resíduos, que dispõe de uma licença, concedida pela Administração Pública, para a gestão do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens.

H. A aqui Recorrida e a aqui Recorrente celebraram um Contrato de Adesão ao Sistema Integrado de Gestão de Resíduos – adiante designado por Contrato - por meio do qual a aqui Recorrente transferiu para a aqui Recorrida a responsabilidade pela gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional, mediante o pagamento de uma determinada prestação financeira anual.

I. A aqui Recorrida pretende, através da propositura da presente ação, dar cumprimento ao referido Contrato, exigindo da aqui Recorrente o pagamento da quarta prestação financeira trimestral que alegadamente lhe é devida por referência ao ano de 2020.

J. O Contrato cujo cumprimento/execução se pretende obter nos presentes autos é regulado por normas que se qualificam como “normas de direito público” constitutivas de relações jurídico-administrativas, porquanto se impõem a ambas as entidades (embalador e entidade gestora) a prossecução de um interesse público imposto pelo legislador.

K. A transferência da responsabilidade da aqui Recorrente para a aqui Recorrida, através da celebração do mencionado Contrato, não foi “livre”, como tipicamente sucede nas relações contratuais entre privados, mas sim imposta por lei.

L. A aqui Recorrente não podia, simplesmente, não celebrar o Contrato.

M. O teor do Contrato celebrado é também imposto por lei e pela licença, não havendo liberdade contratual de negociação.

N. As normas ínsitas no regime de gestão de resíduos, que vêm estabelecer as obrigações ou limitações da aqui Recorrente e da aqui Recorrida, têm subjacente razões de interesse público.

O. A licença atribui à aqui Recorrida prerrogativas de autoridade ou a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais que são os traços distintivos que permitem identificar as normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas.

P. O Tribunal que decidir a final a questão em discussão nos presentes autos terá que analisar a legalidade das normas emergentes do Contrato, a legalidade da publicação das tabelas dos preços e se a aqui Recorrida cumpriu os seus deveres legais emergentes da licença de que dispõe.

Q. A decisão nunca poderá ser realizada sem a necessidade de interpretar e aplicar normas que são de “direito público” que impõem deveres na conduta da aqui Recorrida.

R. As normas que se impõem à aqui Recorrida e aqui Recorrente estabelecem obrigações legais recíprocas, por razões de interesse público imposto pelo legislador.

S. E são constitutivas de uma relação jurídico administrativa entre a aqui Recorrida e aqui Recorrente.

T. A aqui Recorrida enquanto entidade gestora não tem autonomia privada nem liberdade contratual, típica das relações jurídicas privadas, para definir as prestações financeiras que cobra aos embaladores, seus aderentes.

U. Há um modelo de determinação dos valores de prestação financeira que tem que ser aprovado pela APA e pela DGAE.

V. No acórdão agora posto em crise, a relação controvertida nos presentes autos é, erradamente, integrada no âmbito da Lei dos Serviços Públicos (LSP), aprovada pela Lei 23/96 de 26 de Julho.

W. Por estar não integrada no âmbito da jurisdição administrativa, nos termos do artigo 4.º do ETAF.

X. O acórdão recorrido incorrepor erro quanto aos pressupostosde facto epor erradaaplicação doDireito aos factos.

Y. A aqui Recorrente tem uma obrigação imposta por lei de contratualizar uma entidade gestora licenciada, não podendo a aqui Recorrente, simplesmente, não celebrar o Contrato.

Z. O Contrato cujo cumprimento se pretende obter nos presentes autos não está inteiramente nas mãos das partes; antes está sujeito a uma regulamentação apertada e específica, determinada e condicionada pelo interesse público subjacente.

AA. O Contrato celebrado entre a aqui Recorrida e a aqui Recorrente deverá ser enquadrado na categoria de contrato administrativo.

BB. A aqui Recorrida, por via da referida licença, detém a atribuição de prerrogativas de autoridade ou a imposição de deveres, sujeições ou limitações especiais, o que revela os traços distintivos das normas de Direito Administrativo, constitutivas de relações jurídico-administrativas.

CC. O Contrato em discussão nos presentes autos, não obstante ser celebrado por duas pessoas coletivas de direito privado, nele a aqui Recorrida apresenta-se investida de poder e autoridade pública, estando a aqui Recorrente limitada à atuação da aqui Recorrida.

DD. Pelo que, entre elas existe e é estabelecida uma relação jurídico-administrativa.

EE. Aalteração legislativa ao artigo 4.ºdo ETAF não altera a conclusão a que chegou o Tribunalde primeira instância – de que os tribunais administrativos (e não os tribunais judiciais) são os competentes para apreciar os litígios emergentes destas relações contratuais vinculadas, em razão da matéria subjacente.

FF. Por aplicação da redação do ETAF vigente à data da propositura da presente ação, os tribunais administrativos continuam a ser os competentes para apreciar o presente litígio.

GG. Nomeadamente ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, na parte em que se refere à “interpretação, validade e execução de contratos administrativos", e, subsidiariamente, ao abrigo da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, por se tratar de um litígio emergente de “relações jurídicas administrativas e fiscais”.

HH. Acresce que, a aqui Recorrida, não obstante ser uma pessoa coletivade direito privado, constitui Entidade adjudicante nos termos do artigo2 º,n.º2,alíneab) doCódigo dosContratosPúblicos(“CCP”).

II. E, por via disso, integra o âmbito da alínea e) do artigo 4.º do ETAF que refere “Validade de atos pré- contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de ireito público ou outras entidades adjudicantes”.

JJ. Desde lodo, a aqui Recorrida tem personalidade jurídica e foi especificamente criada para satisfazer necessidades de interesse geral com carácter não industrial ou comercial relacionadas, essencialmente, com a política pública de resíduos e a promoção da prevenção e da gestão de resíduos.

KK. Toda a atividade da aqui Recorrida, desde a sua constituição, à definição, cobrança e gestão dos montantes remuneratórios subjacentes ao seu financiamento, à própria alocação dos seus lucros, à relação com os seus “clientes”, está enquadrada por normas imperativas e subordinada ao controlo de entidades públicas, em especial, a APA e a DGAE, encontrando-se, nessa medida, preenchida a previsão do artigo 2.º, n.º 2, do CCP.

LL. A aqui Recorrida constitui entidade adjudicante nos termos do artigo 2.º, n.º 2, alínea b) do Código dos contratos Públicos (“CCP”).

MM.E, por isso, as questões relativas ao (in)cumprimento do Contrato em causa nos auto se integram na previsão do artigo 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF, sendo materialmente incompetentes os tribunais judiciais.

NN. Nos arestos proferidos pelo Tribunal de Conflitos, de 18.02.2016, processo n.º043/15 e de24.05.2017, processo n.º 030/16, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, onde se discutia a competência da jurisdição administrativa para conhecer de ações declarativas onde se pede o pagamento, pelos embaladores às entidades gestoras dos resíduos, de faturas relativas a prestações financeiras que eram devidas ao abrigo do contrato de adesão a um sistema integrado de gestão de resíduos de embalagem, foi concluído pelo Tribunal no sentido da atribuição da competência material aos tribunais da jurisdição administrativa.

OO. Assim, in casu, a atribuição de competência à jurisdição administrativa era, antigamente, ao abrigo da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, conforme explicitado nos citados arestos deste Tribunal.

PP. Sendo que, atualmente, ao abrigo da redação do ETAF vigente à data da propositura da presente ação judicial, a norma que atribui tal competência advém da alínea e) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF e, subsidiariamente, da alínea o) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, por se tratar de um litígio emergente de “relações jurídicas administrativas e fiscais”.

QQ. Muito mal andou o Tribunal a quo ao revogar a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância.

RR. E, por isso, deve o acórdão recorrido ser revogado.

SS. O acórdão recorrido deve, pois, ser substituído por outro que confirme que a competência para conhecer da matéria dos presentes autos pertence aos tribunais administrativos.

A recorrida Autora contra-alegou, assim concluindo:

A. Está o presente recurso interposto do acórdão do Tribunal a quo que julgou materialmente competente a jurisdição cível para conhecer da presente ação, votado aoinsucesso,porque adecisãorecorrida nãopadecede qualquer errode julgamento.

B. Ao abrigo do artigo 40.º, n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, que aprova a LeidaOrganizaçãodoSistemaJudiciário,“Ostribunaisjudiciaistêmcompetência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. E, nos termos do artigo 212.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (“CRP”),

“Compete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das ações e recursos contenciosos que tenham por objeto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

C. Sucedequeolitígiosubmetidoàapreciaçãodo Tribunalnospresentesautosnão emerge de uma relação jurídico-administrativa, nem se enquadra em qualquer alínea do artigo 4.º do ETAF, como erroneamente pretende a Recorrente.

D. A Recorrente e a Recorrida são ambas pessoas coletivas de direito privado.

E. É verdade que a Recorrida atua ao abrigo de uma licença, concedida pela AdministraçãoPública,masalicençadequeétitular apenaslhe confereodireito a exercer uma determinada atividade económica que, por princípio, não é livre e, por isso, carecedeautorizaçãoadministrativapara ser exercida,à semelhança de muitasoutrassituaçõesnoordenamentojurídico.Talcircunstâncianãoaltera o seu estatuto jurídico de pessoa coletiva de direito privado nem a converte em entidade adjudicante. Nem lhe atribui prerrogativas de autoridade.

F. Logo, o contrato de onde emerge a dívida que constitui o objeto dos presentes autos não foi celebrado “por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes” e também não é verdade que o contrato celebrado entre a Recorrente e a Recorrida tenha sido celebrado nos termos da legislação

sobre contratação pública, como exige o artigo4.º,n.º 1 alínea e) do ETAF, como pretenda a Recorrente.

G. A Recorrida atua no mercado da gestão de embalagens e de resíduos de embalagens em concorrência com outras entidades licenciadas para o efeito, não beneficiando de qualquer direito exclusivo ou de um monopólio de facto ou de direito.

H. O contrato em causa nasce no contexto do princípio da responsabilidade alargada do produtor, densificado no Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de dezembro, que determina que o operador económico que coloca o produto no mercado é responsável pelos impactes ambientais decorrentes do processo produtivo, da posterior utilização dos respetivos produtos, da produção de resíduos, bem como da sua gestão quando atingem o final de vida (cf. n.º 1 do artigo 5.º do UNILEX).

I. Para dar cumprimento às obrigações que sobre si impendem, os produtores podem optar por aderir a um sistema integrado, gerido por uma sociedade gestora constituída para o efeito (atualmente, a Recorrida, a Sociedade Ponto Verde ou o Electrão, cf. https://apambiente.pt/residuos/entidades-gestoras-do-sigre), ou pôr em funcionamento um sistema individual, isto é, recolher, por si, e encaminhar para o tratamento devido (cf. artigo 7.º, n.º 1 do UNILEX).

J. EfoinestecontextoqueRecorrenteeRecorridaassinaramlivrementeocontrato de adesão, podendo a Recorrente ter decidido aderir ao sistema integrado de outra entidade gestora a operar no mercado da gestão de resíduos de embalagens, pelo que não houve, então, qualquer procedimento pré-contratual que antecedeu acelebração daquelecontratonemesteé reguladopelasnormas da contratação pública.

K. Emsuma,aatividade daRecorridaéintegralmenteprivada,conclusãoque,aliás, a Recorrente não contesta, e foi no contexto de uma relação entre privados que a Recorrente e a Recorrida celebraram o contrato que de onde emerge a dívida, cujo pagamento a Recorrente veio na presente ação reclamar.

L. A Recorrida não exerceu qualquer poder jurídico-público.

M. Assim, por não estar em causa nos presentes autos uma relação jurídico-administrativa, são materialmente competentes para deles conhecer os Tribunais comuns.

N. Registe-se ainda que não tem aqui aplicação o Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 24 de maio de 2017, proferido no proc. n.º 030/16, citado pela Recorrente, na medida emque nessearestofoi aplicada uma versão anterior do artigo4.ºdo ETAF, já alterado pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, havendo, por isso, um enquadramento legal de aferição da competência material dos Tribunais Administrativos diferente do que foi considerado nesse acórdão do Tribunal de Conflitos de 2017.

O. Por outro lado, a situação de facto subjacente a esse acórdão era substancialmentediferentedo que encontramosna presenteação: na altura em que celebrou o contrato com a Recorrida existiam (e existem) várias entidades gestoras a operar no mercado, podendo escolher aquela que melhor resposta dava aos seus interesses e, pelo contrário, o contrato que estava em análise nos autos que levaram à intervenção do Tribunal de Conflitos foi celebrado com a única entidade gestora licenciada à data para a gestão de um sistema integrado de gestão de resíduos – a Sociedade Ponto Verde.

P. Aponta-se ainda uma outra diferença significativa: ao abrigo da legislação anterior sobre gestão de embalagens e resíduos de embalagens – o Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de dezembro, e a Portaria n.º 29-B/98, de 15 de janeiro -, os valores de prestação financeira eram aprovados pelo regulador (a Agência Portuguesa do Ambiente) e atualmente, os valores de prestação financeira são determinados por um modelo que, nos termos do artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 152-D/2017,de 11de dezembro (versão anterioràs alterações introduzidas pelo

DL 102-D/2020), é proposto pela entidade gestora à Agência Portuguesa do Ambiente (“APA”) e à Direção Geral das Atividades Económicas (“DGAE”) para aprovação e que deve obedecer ao princípio de que os preços devem refletir os gastos, ou seja, a prestação financeira deve corresponder à prestação de um serviço. Aprovado o modelo, a entidade gestora fixa os seus preços, tendo liberdade para os fazer variar, para cima ou para baixo, até ao limite de 10%. O mesmo é dizer que cada entidade gestora apresenta ao mercado o seu preço, que será natural e previsivelmente diferente do preço das suas concorrentes.

Q. Portanto, a jurisprudência que resultou daquele Acórdão do Tribunal de Conflitos, que à data faria todo o sentido, não tem aqui aplicação.

R. Há, todavia, um recente Acórdão do Tribunal de Conflitos que a Recorrente poderia ter citado, para chegar a uma conclusão diferente da que aqui nos traz: trata-se do acórdão proferido, em 1 de fevereiro de 2023, no proc. n.º

45750/21.3YIPRT.L1.S1, disponível em

http://www.dgsi.pt/jcon.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/64dbf6394

f455225802589550033cc5a?OpenDocument.

S. Perante a mesma situação de facto (só muda a identidade do Réu), o Tribunal

decidiu o seguinte:

I - Para que se possa entender que é à jurisdição administrativa que compete o julgamento de uma acção na qual uma sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença para a gestão do correspondente sistema integrado de gestão, pede o cumprimento de um contrato celebrado com uma sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins, é necessário que se encontrem preenchidas as condições exigidas

cumulativamente pela al. e) do n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

II - Não resulta da lei que os contratos como aquele que está em causa nos autos tenham de ser “celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública”, como exige a al.e)don.º1 doartigo4.ºdoEstatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para que caiba à jurisdição administrativa a apreciação de questões relativas à sua execução.

III - Assim como não resultaria tal imposição do disposto no Código dos Contratos Públicos, por não se verificarem osrequisitos paraquea autora possa ser qualificada como entidade adjudicante – cfr. artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, maxime o respectivo n.º 2.

IV - Compete aos tribunais judiciais o julgamento da presente acção.

T. Com mais detalhe, acrescenta este Acórdão que:

“Deixando de lado a verificação de que, embora o princípio da liberdade contratual comporte, como regra, no âmbito do direito privado, a liberdade de celebração e a liberdade de determinação do conteúdo dos contratos (cfr. Artigo 405.º do Código Civil), não é de todo invulgar que razões de interesse público ditem o seu afastamento ou a sua limitação;

– Como atrás de referiu já, a propósito do conceito de relação jurídica administrativa, na relação contratual entre as partes desta acção não intervém nenhum sujeito público nem nenhuma entidade particular no exercício de um poder público;

–Nãoseverificamosrequisitosparaquese devaentender,paraoefeitoqueestá m causa – interpretar a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais administrativos e Fiscais, na sua actual redação –, que o contrato dos autos esteja legalmente sujeito a ser celebrado “nos termos da legislação sobre contratação pública”, primeira exigência para que se possa considerar que a apreciação do seu cumprimento seja da competência da jurisdição administrativa; nem está demonstrada a verificação dos pressupostos de que a autora, não sendo uma pessoa colectiva pública, seja uma entidade adjudicante”.

U. Por tudo quanto antecede, a decisão recorrida não padece de qualquer erro quanto aos pressupostos de facto nem por errada aplicação do direito.

Admitindo-se a revista, nos termos do art. 629º nº 2 al. a) do CPC, uma vez que o objecto do recurso se prende com a discussão da competência em razão da matéria, e corridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

OBJECTO DO RECURSO

Já ficou dito, o objecto da presente revista prende-se em saber se o tribunal recorrido é competente em razão da matéria para o julgamento da presente acção, ou se tal competência é dos tribunais administrativos.

Antes do mais, assinalar que para o enquadramento jurídico da questão, haverá que atentar na factualidade vertida no relatório supra, ou seja, os fundamentos da acção e a natureza privatística e/ou publica das partes litigantes, assim como a natureza do contrato entre ambas celebrado.

Apreciando:

Como é sabido, a determinação do tribunal competente em razão de matéria fixa-se no momento em que a acção é proposta (art.º 38.º n.º 1 da LOSJ e também o art. 5º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, doravante ETAF), sendo aferida em função dos termos em que é formulada a pretensão do autor, maxime os respetivos fundamentos.

É, portanto, o pedido formulado na acção que determina a competência do tribunal (neste sentido Alberto dos Reis, em Comentário ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 91, Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 104, e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e a Incompetência dos Tribunais Comuns, 3ª ed., pág. 139).

De entre os citados Autores, expressivamente observava Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra 1979, pág. 91, “a competência do tribunal … afere-se pelo “quid disputatum” (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)"; (…) É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão…" (no mesmo sentido, e entre outros, o Acórdão do STA de 03/05/2005, no proc. 046218).

Como se afirmou no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 31/01/2023 (processo 03205/22.OT8MAI.P1.S1, relatado pela Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza), “Como uniformemente se tem observado, nomeadamente no Tribunal dos Conflitos, a competência determina-se tendo em conta os “termos da acção, tal como definidos pelo autor — objectivos, pedido e da causa de pedir, e subjectivos, respeitantes à identidade das partes (cfr., por todos, os acórdãos de 28 de Setembro de 2010, www.dgsi.pt, proc. nº 023/09 e de 20 de Setembro de 2011, www.dgsi.pt, proc. n.º 03/11” – acórdão de 10 de Julho de 2012, www.dgsi.pt, proc. nº 3/12 ou, mais recentemente, o acórdão de 18 de Fevereiro de 2019, www.dgsi.pt, proc. n.º 12/19, quanto aos elementos objectivos de identificação da acção; ou, ainda, no acórdão do Tribunal dos Conflitos, de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, processo n.º 020/18, “como tem sido sólida e uniformemente entendido pela jurisprudência deste Tribunal de Conflitos, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da configuração da relação jurídica controvertida, isto é, em função dos termos em que é deduzida a pretensão do autor na petição inicial, incluindo os seus fundamentos (…). A competência em razão da matéria é, assim, questão que se resolve em razão do modo como o autor estrutura a causa, e exprime a sua pretensão em juízo, não importando para o efeito averiguar quais deveriam ser os correctos termos dessa pretensão considerando a realidade fáctica efectivamente existente, nem o correcto entendimento sobre o regime jurídico aplicável – ver, por elucidativo sobre esta metodologia jurídica, o AC do Tribunal de Conflitos de 01.10.2015, 08/14, onde se diz, além do mais, que «o tribunal é livre na indagação do direito e na qualificação jurídica dos factos. Mas não pode antecipar esse juízo para o momento de apreciação do pressuposto da competência…»].”.

E como também é dito no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 31-01-2023 (com a mesma data do anteriormente citado e da mesma relatora, mas no processo 045750/21.3YIPRT-L1-S1, em que também, se pondera a natureza do contrato celebrado com uma sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins, portanto plenamente convergente com o nosso caso, aresto este a que adiante voltaremos) “Está pois em causa, apenas, determinar quais são os tribunais competentes para apreciar o pedido da autora, se os tribunais judiciais – que, no conjunto do sistema judiciário, têm competência residual (n.º 1 do artigo 211º da Constituição, n.º 1 do artigo 40º da Lei de Organização do Sistema Judiciário, a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto e artigo 64.º do Código de Processo Civil) – , se os tribunais administrativos e fiscais, cuja jurisdição é delimitada pelo n.º 3 do artigo 212º da Constituição e pelos artigos 1.º e 4º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

Os tribunais administrativos «são os tribunais comuns em matéria administrativa, tendo «reserva de jurisdição nessa matéria, excepto nos casos em que, pontualmente, a lei atribua competência a outra jurisdição» [ver AC TC nº508/94, de 14.07.94, in Processo nº777/92; e AC TC nº347/97, de 29.04.97, in Processo nº139/95]” – acórdão do Tribunal dos Conflitos de 8 de Novembro de 2018, www.dgsi.pt, proc. n.º 020/18).”

Na verdade, na base da competência em razão da matéria, está o princípio da especialização, com o reconhecimento da vantagem de reservar para certos órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do Direito, pela vastidão e pela especificidade das normas que os integram (Antunes Varela, Miguel Bezerra, Sampaio e Nora, ob. cit./197).

Como é sabido, o art. 212° nº 3 da CRP define o âmbito da jurisdição administrativa por referência ao conceito de relação jurídica administrativa, já que prescreve competir aos tribunais administrativos o julgamento de acções e recursos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes de relações jurídicas administrativas e fiscais.

E a competência dos tribunais judiciais é residual, ou seja, são da sua competência as causas não legalmente atribuídas à competência dos tribunais de outra ordem jurisdicional.

Pelo contrário, os Tribunais Administrativos têm a sua competência limitada às causas que lhe são especialmente atribuídas.

Tendo em conta o disposto no nº 3 do art. 212º da Constituição e no art. 1º do ETAF, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal é definido em função da qualificação dos litígios como emergentes de relações jurídicas administrativas, que constitui assim a regra geral para a delimitação da competência jurisdicional dos tribunais administrativos com os demais tribunais, detendo por força dela os Tribunais Administrativos competência para dirimir os litígios emergentes de relação jurídicas administrativas, exceto nos casos em que, pontualmente, o legislador atribua competência a outra jurisdição, como os desde logo previstos nos nºs 2 e 3 do artigo 4º do ETAF, mas também os que são ou venham a ser contemplados em legislação avulsa (neste sentido MARIA HELENA BARBOSA FERREIRA CANELAS “A AMPLITUDE DA COMPETÊNCIA MATERIAL DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS EM SEDE DE ACÇÕES RELATIVAS A RESPONSABILIDADE CIVIL CONTRATUAL”, in Revista Julgar, nº 15, 2011).

Refere-se no Acórdão do Tribunal de Conflitos de 16-05-2014 (processo nº 033/14.A), que a “atribuição de competência ao tribunal de jurisdição comum pressupõe a inexistência de norma específica que atribua essa competência a uma jurisdição especial para resolver determinado litígio, tal como o autor o configura. (Como explicita Miguel Teixeira de Sousa “[a] competência material dos tribunais comuns é aferida por critérios de atribuição positiva e competência residual. Pelo primeiro critério cabem-lhes as causas cujo objecto é uma situação regulada pelo direito privado, civil ou comercial. Pelo segundo, incluem-se na sua competência todas as causas que apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são legalmente atribuídas a nenhum tribunal não judicial ou a tribunal especial” - cf. A Competência declarativa dos tribunais comuns, 1994, p.76

Para além dos termos em que a acção em configurada em termos de causa de pedir e de pedido, para a determinação da competência em razão da matéria, importa ter presente a lei em vigor à data da propositura da acção, mormente à luz do ETAF na redacção do DL nº 214-G/2015 de 2.10 (considerada a competência residual dos tribunais comuns).

Embora tenha o ETAF de se conjugar com as leis aplicáveis ao contrato cujo cumprimento se discute, pelo que, para efeitos de determinação do foro competente, deve ser equacionado também o regime legal em vigor à data desse mesmo contrato.

No caso que nos ocupa, está em causa um contrato de adesão ao sistema integrado de gestão de resíduos e embalagens que a A. celebrou com a R., através do qual esta transferiu para a A. a gestão e o destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado, mediante o pagamento de um preço àquela.

Sendo a A. uma sociedade gestora de resíduos de embalagens, a quem foi atribuída uma licença no âmbito do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens, e sendo a Ré uma sociedade que no âmbito da sua atividade produz e comercializa embalagens de papel e plástico, estando obrigada a gerir os respetivos resíduos das embalagens não reutilizáveis que coloca no mercado, o que pode fazer por si ou através de um sistema integrado, sistema este dependente de autorização e licença, nos termos previstos no art.º 7.º n.º 1 do DL 152-D/2017 de 11 de dezembro, segundo qual “Para efeitos do cumprimento das obrigações estabelecidas no presente decreto-lei, os produtores do produto, os embaladores que utilizam embalagens não reutilizáveis e os fornecedores de embalagens de serviço não reutilizáveis ficam obrigados a gerir os respetivos resíduos através de um sistema individual ou de um sistema integrado, sujeito a autorização ou licença, respetivamente, nos termos do presente decreto-lei, ou através do sistema de depósito previsto no artigo 23.º-C.”

Ora, tendo em conta o preceituado no art.º 1.º Código dos Contratos Públicos (Decreto Lei 18/2008 de 29 de janeiro, diploma que aprova o Código dos Contratos Públicos (CCP), estabelecendo a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo, o contrato celebrado entre as sociedades aqui litigantes não se inscreve no âmbito da legislação sobre contratação pública, porquanto a relação entre as mesmas não se reveste de natureza jurídico- administrativa, tratando-se sim de contrato sujeito às normas de direito privado e não de direito público, não obstante a sua integração no âmbito da Lei dos Serviços Públicos (doravante LSP) aprovada pelo Decreto Lei 23/96 de 26 de julho, que cria no ordenamento jurídico alguns mecanismos destinados a proteger o utente (a pessoa singular ou colectiva a quem o prestador do serviço se obriga a prestá-lo) de serviços públicos essenciais, designadamente os serviços de fornecimento de água, fornecimento de energia eléctrica, fornecimento de gás, o serviço de telefone, os serviços postais, os serviços de recolha a tratamento de águas residuais, os serviços de gestão de resíduos sólidos urbanos e os serviços de passageiros (Lei dos serviços públicos).

De facto, como bem é referido no Acórdão recorrido, assinala-se na Exposição de Motivos da proposta de lei daquele diploma que “Cumpre realçar também as alterações propostas para o âmbito da jurisdição e da competência dos tribunais administrativos e fiscais. A necessidade de clarificar determinados regimes, que originam inusitadas dificuldades interpretativas e conflitos de competência, aumentando a entropia e a morosidade, determinaram as alterações introduzidas no âmbito da jurisdição. Esclarece-se que fica excluída da jurisdição a competência para a apreciação de litígios decorrentes da prestação e fornecimento de serviços públicos essenciais. Da Lei dos Serviços Públicos (Lei n.º 23/96, de 26 de julho) resulta claramente que a matéria atinente à prestação e fornecimento dos serviços públicos elencados constitui uma relação de consumo típica, não se justificando que fossem submetidos à jurisdição administrativa e tributária; concomitantemente, fica agora clara a competência dos tribunais judiciais para a apreciação destes litígios de consumo.”

Sendo que a prestação de serviços desta natureza não implica, por si só e imediatamente a consideração da Autora como entidade pública, como resulta do nº 4 do art. 1º da LSP, segundo o qual Considera-se prestador dos serviços abrangidos pela presente lei toda a entidade pública ou privada que preste ao utente qualquer dos serviços referidos no n.º 2, independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão.”

Normativo excludente da natureza necessariamente pública da entidade prestadora daqueles serviços, que se articula na perfeição com a al. a) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF (alterado e republicado pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de Outubro e pela Lei 114/2019 de 12 de setembro), que continua a deixar de fora da competência dos tribunais da jurisdição administrativa “a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a contratos celebrados por órgãos da administração pública e submetidos a um regime de direito privado que não hajam de ser celebrados nos ternos da legislação sobre contratação pública.”

Haverá, assim, que concluir que estão em causa sociedades de direito privado, porquanto nenhuma delas exerce qualquer função de natureza pública, e tendo presente o pedido formulado pela A., de condenação da R. no pagamento de uma fatura por serviços prestados, no quadro dos respectivos objectos sociais e da natureza do contrato acima delineado, não vislumbramos como se possa interpretar tal negócio num segmento de índole jurídico-administrativa.

À A., como sociedade de direito privado, apenas foi atribuída uma licença para laborar na concretização da gestão do sistema integrado de gestão de resíduos de embalagens.

Por seu turno, a Ré, também sociedade comercial de direito privado, transferiu para a A. a gestão e o destino final, mediante reciclagem, dos resíduos de embalagens que coloca no mercado, no quadro da sua actividade industrial e comercial de materiais de embalagens e produtos afins.

Considerando que a presente acção foi instaurada em 13 de maio de 2021, para efeitos da atribuição da competência material, importa ter presente o disposto no art. 4.º do ETAF então em vigor - na redacção que lhe foi conferida pelo DL 241-G/2015 de 2 de outubro (que teve em vista clarificar “desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo atual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos”) e pela Lei 114/2019 de 12 de setembro.

Sob a epígrafe “âmbito da jurisdição”, dispõe aquele normativo nos termos seguintes:

“1 - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

c) Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais atos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;

e) Validade de atos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;

f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas coletivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;

g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo ações de regresso;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas coletivas de direito público;

i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;

j) Relações jurídicas entre pessoas coletivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;

k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;

l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo e do ilícito de mera ordenação social por violação de normas tributárias;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas coletivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de atos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;

o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

2 - Pertence à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios nos quais devam ser conjuntamente demandadas entidades públicas e particulares entre si ligados por vínculos jurídicos de solidariedade, designadamente por terem concorrido em conjunto para a produção dos mesmos danos ou por terem celebrado entre si contrato de seguro de responsabilidade.

3 - Está nomeadamente excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto a impugnação de:

a) Atos praticados no exercício da função política e legislativa;

b) Decisões jurisdicionais proferidas por tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal;

c) Atos relativos ao inquérito e instrução criminais, ao exercício da ação penal e à execução das respetivas decisões.

4 - Estão igualmente excluídas do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal:

a) A apreciação das ações de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais pertencentes a outras ordens de jurisdição, assim como das correspondentes ações de regresso;

b) A apreciação de litígios decorrentes de contratos de trabalho, ainda que uma das partes seja uma pessoa coletiva de direito público, com exceção dos litígios emergentes do vínculo de emprego público;

c) A apreciação de atos materialmente administrativos praticados pelo Conselho Superior da Magistratura e seu Presidente;

d) A fiscalização de atos materialmente administrativos praticados pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça;

e) A apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.

Enumera e tipifica este dispositivo legal um conjunto de litígios cuja apreciação compete aos tribunais da jurisdição administrativa, mediante o “desenho” das relações administrativas e fiscais que visa abarcar, embora naqueles também englobando, na al. o), a apreciação de litígios que tenham por objeto relações administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Assim, pese embora seja exaustiva a descrição das situações e litígios que deverão ser submetidos à apreciação e julgamento dos tribunais administrativos, não é a mesma taxativa, tal resultando explícito daquela al. o).

Trata-se, pois, de uma enumeração exemplificativa, através da qual podemos delimitar ou balizar os critérios que de alguma forma se encontram subjacentes a todas as situações especialmente previstas, e que sejam determinantes para a subordinação dos pleitos à jurisdição administrativa, para tanto recorrendo a técnicas de interpretação da lei.

A relação jurídica administrativa define-se, pois, sempre, como aquela que se desenvolve entre um ente público e pessoas privadas sob a égide de normas de direito público, isto é, que de forma distinta da regulação das correspondentes relações privadas, porquanto nela sempre participa uma entidade munida de poderes públicos, analisa uma sujeição especial, procurando satisfazer a necessidade de conferir especial eficácia à tutela do interesse público.

Pese embora a natureza exemplificativa ínsita no preceito, resulta à evidência, ante a análise dos diversos “tipos” ali configurados, que a situação dos autos, em que é peticionado o pagamento de um dívida por serviços de gestão de resíduos prestados pela Autora à Ré, ali não encontra respaldo, uma vez que a nenhuma das entidades societárias em conflito nestes autos conferiu o legislador qualquer autoridade de índole pública, assim como não está em causa no pleito qualquer confrontação perante qualquer autoridade integrante da administração pública.

Como se decidiu no Acórdão do Tribunal de Conflitos, de 28/09/2010 (proc. 023/09), na competência destes tribunais integram-se:

“(…) os litígios que envolvam, pelo menos, uma entidade pública ou uma entidade privada no exercício de poderes públicos e que versem sobre a qualificação de bens como pertencentes ao domínio público e actos de delimitação destes com bens de outra natureza, que antes da reforma do contencioso administrativo de 2004, se encontravam expressamente excluídos do âmbito da jurisdição administrativa (cfr. artº 4º/1 e) do ETAF/84), mas que depois daquela reforma passaram a integrar o âmbito da jurisdição”.

Contudo, a situação dos autos não encontra acolhimento nesta norma, uma vez que, do contrato celebrado entre as partes não resulta qualquer vínculo de índole administrativa.

O conceito de relação jurídica administrativa erigido pela CRP (também com expressão no artº 1º nº 1 do ETAF) deve ser entendido como o elemento chave de distinção na repartição de jurisdição entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos, sendo que, na falta de clarificação legislativa do conceito constitucional de relação jurídica administrativa, deve entender-se que tem o sentido tradicional de relação jurídica administrativa, correspondente a relação jurídica pública, em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido, numa palavra competindo aos tribunais administrativos dirimir todos os litígios originados no âmbito da administração pública globalmente considerada, com excepção dos que o legislador ordinário expressamente atribuiu a outra jurisdição.

Neste sentido, as relações jurídicas administrativas pressupõem o relacionamento de dois ou mais sujeitos, num feixe de posições activas e passivas, regulado por normas jurídicas administrativas e sob a égide da realização do interesse público.

O critério material da distinção assenta, agora, em conceitos como relação jurídica administrativa e função administrativa - conjunto de relações onde a Administração é, típica ou nuclearmente, dotada de poderes de autoridade para cumprimento das suas principais tarefas de realização do interesse público (neste sentido Vieira de Andrade, in Justiça Administrativa, 9ª ed., pág. 103).

Entende este Mestre de Coimbra (ob. cit., pág. 55.) diz ser a relação jurídica administrativa (seguindo um critério estatutário, que combina sujeitos, fins e meios) "aquela em que um dos sujeitos, pelo menos, seja uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido''.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA (in "O Novo Regime do Processo nos Tribunais Administrativos", 2005 - 4.ª Edição, Revista e Actualizada, Almedina, pág. 57) refere que "as relações jurídico-administrativas não devem ser definidas segundo um critério estatutário, reportado às entidades públicas, mas segundo um critério teológico, reportado ao escopo subjacente às normas aplicáveis. São, assim, jurídico-administrativas as relações jurídicas que, independentemente do estatuto dos sujeitos nelas intervenientes, sejam reguladas por normas de direito administrativo - isto é, segundo a melhor doutrina, por normas que atribuam prerrogativas ou imponham deveres, sujeições ou limitações especiais por razões de interesse público, que não intervêm no âmbito de relações de natureza jurídico-privada. São por isso, de direito administrativo muitas relações jurídicas litigiosas que eclodem entre privados, designadamente no domínio das agressões ao ambiente, quando a actividade dos particulares se encontra regulada por normas de direito administrativo e a lesão que, no desenvolvimento dessa actividade, elas causam às condições ambientais de outrem resulta especificadamente da infracção dessas normas.".

Já FERNANDES CADILHA (in Dicionário de Contencioso Administrativo, 117/118) afirma que “por relação jurídico administrativa deve entender-se a relação social estabelecida entre dois ou mais sujeitos (um dos quais a Administração), que seja regulada por normas de direito administrativo e da qual resultem posições jurídicas subjectivas”.

No mesmo sentido FREITAS DO AMARAL (in Lições de Direito Administrativo, Vol. III, pág. 339-340) define relação jurídica administrativa como “aquela que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à administração perante particulares, ou aquela que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a administração”.

Ora, não podendo qualquer das partes ser considerada pessoa coletiva de direito público, fica excluída a possibilidade de entre as mesmas, por força do contrato celebrado, se ter estabelecido uma relação de natureza jurídico-administrativa.

Sendo que, mesmo que se considerasse (o que não se aceita) a Autora como pessoa colectiva de direito público, sempre a matéria em discussão nos presentes autos estaria excluída da competência material dos tribunais administrativos, face ao que dispõe o art. 4º nº 4 al. e) do ETAF, na redacção conferida a Lei 114/2019 de 12 de setembro, que exclui a “apreciação de litígios emergentes das relações de consumo relativas à prestação de serviços públicos essenciais, incluindo a respetiva cobrança coerciva.

Aqui chegados, cumpre-nos ainda apreciar se a Autora, como titular de licenciamento, conferido por autoridades públicas, para a gestão de resíduos, se encontra, por isso, investida de qualquer poder ou autoridade pública, e se por essa via é suportável entendimento de se estabeleceu entre as partes uma relação jurídico-administrativa.

A resposta não poderá deixar de ser negativa como bem se entendeu no Acórdão recorrido.

Embora o acesso ao licenciamento sempre dependa da verificação de um conjunto de conformidades legais e operacionais para o exercício de determinado serviço essencial, não sendo por isso livre e para quem quer que a tal se proponha, como é o caso da gestão de resíduos urbanos e industriais, constituindo a licença uma formalidade de natureza administrativa, da sua concessão a determinada entidade particular apenas resulta a prerrogativa ou o direito de poder exercer a actividade económica visada, não investindo a titular na veste de entidade de direito público, não se encontrando entendimento contrário na disposição legal ínsita na al. e) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF, que considera como contratos administrativos os celebrados nos termos da legislação pública, “por pessoas coletivas de direito público ou outras entidades adjudicantes.”

Isto porque a Autora não pode ser considerada como entidade adjudicante, à luz do Código da Contratação Pública que define tal conceito, tal como, com toda a clareza, vem explicado no já acima citado Acórdão do Tribunal de Conflitos de 31-01-2023 (em que foi relatora a Senhora conselheira Maria dos Prazeres Beleza, no processo 045750/21.3YIPRT-L1-S1), que aqui voltamos a referir, ao cair do pano desta decisão que já vai longa, e que talvez fosse bastante, em que também está em causa averiguar da qualidade de entidade adjudicante de uma sociedade comercial que se dedica à indústria e comércio de materiais de embalagem e produtos afins (por coincidência também a aqui autora Novo Verde – Entidade Gestora de Resíduos de Embalagens, S.A.), como no caso que ora nos ocupa, aresto de que o Acórdão recorrido lançou mão e seguiu de perto).

Sendo que, por absoluta desnecessidade de outra roupagem semântica, e por inteira concordância, aqui o vamos transcrever, na parte que agora nos interessa:

“…

Segundo o Código dos Contratos Públicos (CCP), cujo artigo 1.º, após afirmar no n.º 1, que “estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo”, dispõe (n.º 2) que “O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.”, são entidades adjudicantes, no contexto da contratação pública em geral, aquelas que vêm indicadas nos n.ºs 1 e 2 do seu artigo 2.º, a) e b) e, quanto aos sectores da água, da energia, dos transportes e dos serviços postais, no artigo 7.º Como escreve Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa cit., pág. 109, nota (198), “Essas ‘entidades adjudicantes’ são, além das pessoas colectivas públicas, os ‘organismos públicos’ – entidades criadas especificamente para satisfazerem necessidades de interesse geral, sem carácter industrial ou comercial, desde que financiadas (maioritariamente e regularmente) por pessoas colectivas públicas ou sujeitas ao seu controlo ou à sua influência dominante (art.º 2.º do CCP), bem como, no âmbito dos sectores especiais (água, energia, transportes e serviços postais), quaisquer entidades, incluindo as empresariais, que exerçam essas actividades, quando estejam sujeitas a controlo ou influência dominante de entidades adjudicantes artigo 7.º). Claro que se o regime aplicável for de direito privado, é esse o regime que será aplicado pelos tribunais administrativos.”

O Decreto-Lei n.º 366-A/97, de 20 de Dezembro, transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 94/62/CE, do Parlamento e do Conselho, de 20 de Dezembro de 1994, e estabeleceu “os princípios e as normas aplicáveis à gestão de embalagens e resíduos de embalagens, com vista à prevenção da produção desses resíduos, à reutilização de embalagens usadas, à reciclagem e outras formas de valorização de resíduos de embalagens e consequente redução da sua eliminação final, assegurando um elevado nível de proteção do ambiente, e ainda a garantir o funcionamento do mercado interno e a evitar entraves ao comércio e distorções e restrições da concorrência na Comunidade”.

O Despacho n.º 14202-D/2016, de 25 de Novembro, concedeu à requerente Novo Verde – Sociedade Gestora de Resíduos de Embalagens, S. A. (designada por “Titular”) a licença para a gestão de um sistema integrado de resíduos de embalagens.

A requerente é, assim, titular de uma licença concedida pela Administração Pública (Gabinetes dos Secretários de Estado Adjunto e do Comércio e do Ambiente).

O Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, estabelece o regime da gestão de fluxos específicos de resíduos sujeitos ao princípio da responsabilidade alargada do produtor, transpondo as Diretivas n.ºs 2015/720/UE, 2016/774/UE e 2017/2096/EU.

Refere-se no preâmbulo daquele diploma que “O Governo definiu, no Programa Nacional de Reformas, como prioridade da política pública de resíduos, a promoção da prevenção e da gestão de resíduos integrados no ciclo de vida dos produtos. Esta política, centrada numa economia tendencialmente circular também alinhada com o Plano de Ação para a Economia Circular em Portugal, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º xx/2017, visa o aumento da taxa de preparação de resíduos para reutilização e reciclagem, desviando assim os resíduos passíveis de valorização multimaterial da deposição em aterro.

Para a prossecução de tal desiderato assume especial relevância a aplicação dos regimes jurídicos relativos aos fluxos específicos de resíduos que prevêem a operacionalização de sistemas integrados de gestão, assentes no princípio da responsabilidade alargada do produtor, e que, através das respetivas entidades gestoras, assumem as responsabilidades dos operadores económicos que colocam produtos no mercado nacional.

A articulação e cooperação entre os referidos sistemas integrados e outros intervenientes no mercado, designadamente os operadores de gestão de resíduos, são decisivas para alcançar as metas de reutilização, reciclagem e valorização a que a República Portuguesa está vinculada, por via de legislação europeia e nacional.”.

Subjacentes ao Decreto-Lei n.º 152-D/2017 estão, pois, prioridades de política pública de resíduos e a promoção da prevenção e da gestão de resíduos integrados no ciclo de vida dos produtos.

Do Decreto-Lei n.º 152-D/2017 salienta-se o seguinte: a distinção entre sistema individual (artigo 9.º.º) e sistema integrado de gestão de resíduos (artigo 10.º e segs.), no qual se verifica a transferência da responsabilidade pela gestão dos resíduos “para uma entidade gestora licenciada para o efeito” (n.º 1 do artigo 10.º); a qualificação dessa entidade gestora como “uma pessoa coletiva de direito privado, de natureza associativa ou societária” (n.º 1 do artigo 11.º), sujeita a regras estritas quanto ao destino do “resultado líquido positivos” (n.º 6), à obrigação de prestação de caução a favor da APA, I.P., (n.º 7) , ou de propor à APA, I.P. e à DGAE “um modelo de determinação dos valores de prestações financeiras, para a totalidade do período de vigência da licença” (artigo 15.º); a sujeição da entidade gestora a licenciamento governamental, seu requisitos e formalidades (artigo 16.º).

Deste quadro normativo resulta, … que à requerente “foi atribuída a obrigação legal de gestão e destino final dos resíduos de embalagens que coloca no mercado nacional a qual apenas pode ser cumprida, ou através de um sistema individual – sujeito a autorização atribuída por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da economia e do ambiente – ou através da transferência da sua responsabilidade para uma entidade gestora, através de um sistema integrado operacionalizado pela mesma, sujeito a licença e mediante a contrapartida de pagamento à entidade gestora de uma prestação financeira – tudo ao abrigo dos artigos 9.º, n.º 11 e 10.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 152-D/2017, de 11 de Dezembro, que estabeleceu o Regime da Gestão de Fluxos Específicos de Resíduos (RGFER) na redacção da Lei 41/2019 de 21 de Junho.”

Não resulta, todavia, que, os contratos como o que está em causa nos autos, tenham que ser “celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública”, como exige a al. e) do n.º 1 do artigo 4.º do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, para que caiba à jurisdição administrativa a apreciação de questões relativas à sua execução (cfr. o acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 19 de Maio de 2021. www.dgsi.pt, proc. n.º 04/20).

Assim como não resultaria tal imposição do disposto no Código dos Contratos Públicos, por não se verificarem os requisitos para que a autora, ora recorrente, possa ser qualificada como entidade adjudicante – cfr. artigo 2.º do Código dos Contratos Públicos, maxime o respectivo n.º 2 e acórdão deste Tribunal dos Conflitos de 13 de Julho de 2022. www.dgsi.pt, proc.n.º 012788/18.8T8PRT.S1-CP.

Assim, não se configurando nestes autos um contrato administrativo ou celebrado nos termos da legislação sobre contratação pública por pessoa coletiva de direito público ou entidade adjudicante, não se pode qualificar a A. como sujeito público, nem atuando no exercício de um poder público, não sendo também uma entidade adjudicante por não s tratar de pessoa coletiva pública, não se verificando o condicionalismo ínsito na al. e) do n.º 1 do ETAF, haverá que concluir que a apreciação e julgamento da presente acção não é da competência material da jurisdição administrativa, mas sim da competência dos tribunais judiciais comuns.

Decisão:

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram esta 7ª secção Cível do Supremo Tribunal de justiça em julgar improcedente a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Relator: Nuno Ataíde das Neves

1º Adjunto: Senhora Juíza Conselheira Fátima Gomes

2º Adjunto: Senhor Juiz Conselheiro Lino Ribeiro