FURTO DE OBJECTO DEIXADO NO VEÍCULO
Sumário

Um automóvel com as portas fechadas/trancadas não pode ser considerado um receptáculo, para efeito do artigo 204 n.1 alínea e) do Código Penal de 1995.

Texto Integral

Acordam, em audiência, na Secção Criminal (2.ª) do Tribunal da Relação do Porto:

No 1.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, no processo comum n.º .../02.0GVRL, os arguidos B.......... e C.........., foram submetidos a julgamento, perante tribunal singular (art.º 16.º, n.º 3, do CPP), sob acusação do Ministério Público que lhes imputou factos que, em seu entender, integravam a prática, por cada um dos arguidos, em concurso efectivo, de dois crimes de furto qualificado, p. e p. pelo art.º 204.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
Realizado o julgamento, por sentença de 14-05-2003, o tribunal decidiu, no que ora releva, o seguinte:
- absolver os arguidos B.......... e C.......... da prática, em concurso efectivo, de dois crimes de furto qualificado, ps. e ps., cada um deles, pelo art.º 204.º, n.º 1, al. b), do C. Penal, pelos quais vinham acusados;
- julgar inadmissível o procedimento criminal instaurado nos presentes autos contra os arguidos B.......... e C.........., pela prática de um crime de furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do C. Penal, no que concerne aos objectos subtraídos do veículo de matrícula “..-..-EA”;
- condenar o arguido B.........., pela prática, em co-autoria, de um crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto no art.º 50.º do Cód. Penal, decido suspender pelo período de 2 (dois) anos;
- condenar o arguido C.........., pela prática, em co-autoria, de um crime de Furto, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do C. Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão, cuja execução, ao abrigo do disposto no art.º 50.º do C. Penal, decido suspender pelo prazo de 2 (dois) anos;
[…]

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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso extraindo da respectiva motivação as seguinte conclusões que se transcrevem:
1ª) Na sentença recorrida deu-se como provado ou assente que os arguidos, agindo de comum acordo, depois de para o efeito terem aberto, com a utilização de um arame, uma das respectivas portas, que se encontravam trancadas, retiraram do interior da viatura ligeira de passageiros de matrícula ..-..-EA, pertencente ao ofendido D.........., um painel de autorádio e um agrafador industrial, no valor de cerca de €.300, com a intenção de os fazerem coisas suas, como efectivamente fizeram;

2ª ) E subsumindo tais factos ao crime de furto simples, de natureza semi- pública, ali se considerou legalmente inadmissível o correspondente procedimento, pela ausência da condição de procedibilidade que a apresentação da pertinente queixa por parte do ofendido respectivo constitui (cfr arts 203°, n°3 do C.Penal, 48° e 49º, n°1 do C.P.Penal);

3ª ) Sucede que noutra interpretação dos preceitos incriminadores aqui passíveis de serem aplicáveis, a assinalada factualidade integra a previsão qualificativa contida na alínea e) do n°1 do art° 204° do C.Penal, com base na consideração de que, à luz da finalidade e do âmbito de protecção daquela norma agravativa, um automóvel com as portas fechadas deve ser equiparado a um receptáculo (v. Ac da Relação do Porto, de 19/11/2001 , in CJ XXVI, t.5, p.221);

4ª ) Ora, para quem entenda ser essa a interpretação correcta da sobredita previsão agravativa típica, revestindo o crime de furto que integra natureza pública, inócua se revela para efeitos de instauração ou extinção do correspectivo procedimento criminal a manifestação de vontade nesse sentido expressa pelo ofendido respectivo;

5ª ) Isso levando, do mesmo passo, a concluir que ao subsumir a sobredita factualidade apenas ao crime de furto simples e ao considerar, de seguida, legalmente inadmissível o correspondente procedimento, por falta de legitimidade do M°P° para o exercício da pertinente acção penal, o M° Juiz recorrido efectuou errada determinação da norma incriminatória aplicável ao caso e violou, consequencialmente, o disposto nos arts 9°, n° 1 e 48° do C.P.Penal;

6ª ) Sendo que, neste entendimento, deverá proceder-se à revogação, na parte em causa, da douta sentença recorrida e à condenação dos arguidos pela prática do sobredito crime de furto qualificado, que a matéria da facto dada como provada também integra.
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O recurso foi admitido pelo despacho de fls. 148, e, os arguidos apresentaram resposta à motivação do recurso, propugnando pela manutenção da douta sentença recorrida (fls. 163).
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Nesta instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu proficiente parecer, do qual destacamos o seguinte:
«Em minha opinião e ao contrário do que foi sustentado no acórdão desta Relação citado pelo Ex.mo magistrado recorrente, a conduta descrita é, após a alteração legislativa introduzida ao Código Penal com o DL n.° 48/95, de 15 de Março, como se diz na sentença recorrida, subsumível ao tipo de crime de furto simples, que tem natureza semi-pública, havendo necessidade de queixa do ofendido para que o M° P° possa ter legitimidade para a acção penal.
Ninguém põe em causa que, por força da referida alteração legislativa, as circunstâncias «noite» ou «chave falsa » deixaram de qualificar o crime imputado.
Como bem se explica no Ac. do STJ de 1/03/2000 (CJ, ano VIII, Tomo I, 212), cuja orientação foi seguida pelo tribunal «a quo», a chave do problema não está na indagação dos meios de penetração, mas na natureza do local onde esta se verifica. A norma penal em apreço (art.º .° 214° do CP) elege, com efeito, entre outros factores, vários locais merecedores de uma maior protecção, agravando a punição de quem neles se introduza para se apropriar de coisa que lhe não pertença. É, por exemplo, o caso dos objectos transportados em veículos (n.º 1, al. b)), ou fechados em gaveta, cofre ou outro receptáculo equipados com fechadura (n.° 1, e)) ou introduzindo-se o agente ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar (n.° l, f)).
No primeiro caso, o elemento comum às várias situações típicas é que a coisa «se encontre numa relação de transporte com o veículo e não numa qualquer outra relação com este, designadamente a derivada da circunstância de a coisa móvel ter sido deixada no veículo».
No segundo, os outros receptáculos têm que ter um mínimo de semelhança com os demais sob protecção normativa (gaveta, cofre), não se descortinando razões fortes para a eles equiparar os objectos deixados em veículos ainda que fechados, porquanto, ao contrário do que acontece com as gavetas ou cofres, os veículos não se destinam à guarda de objectos (No mesmo sentido: Maia Gonçalves, Código Penal Português, 15ª edição, 659; Faria Costa, Comentário Conimbricense, II, 66).
No terceiro, o bem jurídico que a lei especialmente protege com a incriminação qualificada é a habitação e os espaços fechados dela dependentes. Um veículo automóvel aparcado na via pública, muito embora sendo um espaço fechado, não é subsumível ao conceito de habitação e espaços dela dependentes, não merecendo, por isso, maior protecção do que qualquer outra "coisa alheia" susceptível de apropriação ilegítima por parte doutrem.
Assim, opinando pelo acolhimento da corrente jurisprudencial e doutrinal seguida na douta sentença recorrida, sou de parecer que o recurso não merece provimento.»
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Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do CPP, não houve resposta.
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Colhidos os vistos legais e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir.
A sentença recorrida assentou na seguinte factologia que se transcreve:
«2.1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Da discussão da causa resultou provada a seguinte matéria de facto :
1. no dia 11/01/2002, cerca das 4 h 15 m e no parque de estacionamento do estabelecimento denominado “Discoteca X.....”, sito em .....,....., Vila Real, os arguidos, depois de para o efeito terem aberto, com a utilização de um arame, uma das respectivas portas, que se encontravam trancadas, retiraram do interior da viatura ligeira de passageiros de matrícula ..-..-EA de marca Seat, modelo Ibiza e pertencente ao ofendido D.......... um painel de autorádio de marca Balupunkt e um agrafador industrial, de valor não superior a 3.000 euros, no valor de cerca de € 300;
2. nessas circunstâncias espacio-temporais, os arguidos retiraram, ainda, do interior da viatura ligeira de passageiros de matrícula ..-..-HQ, de marca Renault e modelo Clio, uma casaca (parka) de cor verde pertencente ao ofendido E.........., com o valor de cerca 200 euros;
3. sendo que ao apoderarem-se da sobredita forma dos referidos objectos, os arguidos sabiam e quiseram actuar da forma por que o fizeram, actuaram consciente e livremente, de comum acordo e em conjugação de esforços, de harmonia, aliás, com plano previamente congeminado por ambos, com intenção de os fazer coisas suas, como efectivamente fizeram;
4. tinham, no entanto, perfeito conhecimento de que : - nenhuma das aludidas viaturas e objectos nelas existentes lhes pertenciam; - agiam sem e contra a vontade presumível dos respectivos donos;
5. os arguidos sabiam que a sua conduta era proibida e punida por lei;
6. os arguidos vieram a ser surpreendidos e detidos, quando fugiam do local, por pessoa cuja identidade não foi possível apurar em concreto, que subsequentemente os entregou à G.N.R.;
7. os arguidos indicaram, então, o local onde haviam escondido os subtraídos objectos, que foram, à excepção do agrafador, recuperados e restituídos aos ofendidos;
8. o ofendido D.......... declarou não desejar procedimento criminal contra os arguidos;
9. o arguido B.......... era, à data dos factos, consumidor de cocaína e de haxixe;
10. o arguido B.......... tem a 4.ª classe e, actualmente, vive com a mãe, encontra-se desempregado e frequenta o CAT do Porto, estando aí a realizar um tratamento à sua toxicodependência;
11. o arguido C.......... tem o 6.º ano de escolaridade e, actualmente, vive com os pais, é vendedor de frutas e faz serviços de segurança aos fins-de-semana, auferindo um rendimento médio mensal de cerca de € 750;
12. os arguidos B.......... e C.......... têm antecedentes criminais;
13. o arguido B.......... mostrou-se arrependido da prática dos factos.
2.2. MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA
Com relevo para a decisão, não ficou demonstrado que :
14. para efeito de abrirem uma das portas do veículo de matrícula ..-..-HQ, que se encontravam trancadas, os arguidos utilizaram um arame;
15. a pessoa que surpreendeu e deteve os arguidos, entregando-os à G.N.R., foi a testemunha F...........

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Tendo sido documentada a prova produzida em audiência de julgamento, mediante gravação magnetofónica, (cf. acta de fls. 111-115), os poderes de cognição deste tribunal abrangem a matéria de facto e de direito (art.º 428.º do CPP).
De acordo, porém, com a jurisprudência corrente, uniforme e pacífica, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, (art.os 412.º, n.º 1, 402.º e 403.º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, ainda que não invocados ou arguidas pelos sujeitos processuais (art.os 428.º, n.º 2, e 410.º, n.os 2 e 3, todos do CPP [E jurisprudência fixada pelo Ac. do STJ n.º 7/95, de 19/10, in DR I Série A, de 28-12-95, e pelo Ac. do STJ n.º 1/94, de 2/12, in DR, I Série A, de 11-2-94]).
No caso vertente, face às conclusões acima transcritas, a questão suscitada pelo Ex.mo magistrado do M.º P.º recorrente traduz-se em saber:
- se, em relação ao furto de objectos de valor superior ao diminuto e inferior ao elevado, que os arguidos retiraram do interior do autoligeiro ..-..-EA depois de abrirem com um arame uma das portas que se encontravam trancadas, ... houve erro em subsumir tal factualidade ao crime de furto simples, absolvendo-se os arguidos deste crime, por se ter considerado legalmente inadmissível o correspondente procedimento, por falta de queixa do ofendido para o M.º P.º ter legitimidade para a acção penal (cfr. art.os 203°, n.º 3 do CP, 48.° e 49.º, n.° 1, do CPP), mas, noutra interpretação dos preceitos incriminadores, aqueles factos integram o crime de furto qualificado pela circunstância da al. e) do n.º 1 do art.º 204.º do CP, por um automóvel com as portas fechadas dever ser equiparado a outro receptáculo... (v. Ac da RP, de 19/11/2001, in CJ XXVI, t. 5, p. 221), devendo ser revogada a sentença na parte em questão e condenados os arguidos por tal crime.
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Não se detectando da análise do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, qualquer dos vícios previstos nos n.os 2 e 3 do art.º 410.º, vejamos, se houve o apontado erro de enquadramento jurídico-penal daqueles factos.
Como resulta da sentença recorrida (cf. ponto 2.4.1.), em face da matéria de facto provada, o tribunal a quo não considerou preenchida a circunstância qualificativa prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 204.º do Código Penal - como constava da acusação deduzida pelo M.º P.º - concluindo que os arguidos praticaram, tão só, em co-autoria, dois crimes de furto simples, p. e p. pelo art.º 203.º, n.º 1, do Cód. Penal.
Como em relação ao crime de furto de objectos do interior do veículo ..-..-EA, o ofendido D.......... declarou não desejar procedimento criminal contra os arguidos - cf. n.º 8 dos factos provados - o tribunal a quo considerou falecer legitimidade ao M.º P.º para proceder criminalmente contra os arguidos pela prática de tal crime (furto simples) sendo, nessa medida, legalmente inadmissível o procedimento (cfr. art.os 116.º 113.º e 203.º, n.º 3, do Cód. Penal. e art.º 49.º do Cód. Proc. Penal). Daí, a absolvição do crime de furto qualificado por que foram acusados.
Não questionando o afastamento da circunstância qualificativa prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 204.º do Código Penal, o que o Ex.mo Recorrente pretende agora é que, perante a factualidade dada como provada, relativamente ao furto cometido pelos arguidos no veículo ..-..-EA se considere verificada a circunstância qualificativa prevista na alínea e) do n.º 1, do art.º 204.º do Código Penal, entendendo, com base em certa jurisprudência, que um automóvel com as portas fechadas/trancadas, dever ser equiparado a um receptáculo, devendo revogar-se a sentença na parte absolutória e condenar-se os arguidos pelo crime de furto agravado por tal circunstância qualificativa.
Entendemos, porém, que não lhe assiste qualquer razão, estranhando-se até que o Ministério Público, que em sede de acusação definiu o objecto do processo, indicando os factos e as disposições legais aplicáveis, pretenda agora, em sede de recurso, alterar a qualificação dos mesmos factos, apelando a jurisprudência que, entretanto, deixou de ser seguida, como referiu já o Ex.mo P.G.A., no seu douto parecer, como acima se transcreveu.
Na verdade, o Ex.mo Magistrado Recorrente invoca o entendimento perfilhado no citado acórdão desta Relação (v. conclusão 3.ª) e poderia convocar ainda em reforço de tal entendimento a jurisprudência do nosso mais alto tribunal que também chegou a considerar que um veículo automóvel pode funcionar como “receptáculo”, com o sentido previsto na citada alínea e), pois que, como se ponderou no Acórdão do STJ de 18-11-98, C.J., Acs. STJ, VI, T.º 3.º, pág. 219, [Neste acórdão, citam-se também os Acs. do S.T.J. de 15/01/97 e de 01/10/97, in C.J. Acs. do S.T.J., 1997, respectivamente, T.º 1.º, 197 e T.º 3.º, 180 e José António Barreiros, Crimes contra o Património, Universidade Lusíada, págs. 57 e 58] referindo-se que:
- “se mostra preenchido o requisito da tipicidade, ou seja, da legalidade jurídico-penal (afigura-se que a fechadura e vidros do automóvel se destinam também especialmente à segurança de bens deixados no seu interior, considerando a ampla e matizada utilização do veículo automóvel no circunstancialismo da vida de hoje);
- corresponde a uma solução justa e adequada para o “problema”, tendo em consideração o pensamento sistemático (as qualificações do furto são resultantes de circunstâncias que revelam maior ofensividade da acção, ofensividade traduzida nas hipóteses da al. e) por importarem a superação de mecanismos especiais de segurança colocados pelo titular dos bens subtraídos);
- assim o exigem as conhecidas finalidades valorativas e ordenadoras de natureza político-criminal (atendendo à frequência e às consequências dos furtos desta natureza)”.
No entanto, há que salientar que esta jurisprudência sofreu profunda alteração, como resulta do Ac. do STJ de 28-06-2000, [Já antes o Ac. do STJ de 01-03-2000, in BMJ n.º 495, p. 59, se havia pronunciado no sentido de que “um veículo automóvel, quando em serviço da sua normal utilização, não deve ser considerado «receptáculo» para os efeitos de integrar a norma do art.º 204.º, n.º 1, al. e), do Código Penal”], [Veja-se também o elucidativo Ac. do STJ de 05-07-2000, in BMJ n.º 499, p. 98, relativamente à não qualificação do furto de bens transportados ou fechados em veículo automóvel] in C.J., Acs. STJ, VIII, T.º 2.º, 230, no qual, relativamente à alínea e) do n.º 1 do art.º 204.º do CP, veio a considerar-se que “o legislador, no âmbito desta qualificativa, teve um pensamento especificadamente direccionado”, explicitando-se:
“Na realidade, se bem atentarmos nos dizeres da lei, logo.., logo topamos com a preocupação de se acentuar que o que se pretende aí acautelar criminalmente é algo a que o seu titular quis conferir uma “especial” protecção, pondo-a fora do fácil alcance de terceiros.”
“Donde que, ultrapassada essa barreira de resguardo, que pressupõe naturalmente um esforço maior e de mais empenhamento por parte do agente da infracção, acuda o legislador com uma retribuição censória mais enérgica, precisamente para a adequar à gravidade acrescida da conduta.”
“Assim sendo, não parece ajustado incluir na noção de “receptáculo” espaços ou lugares de irrelevante contexto protector, mas apenas e tão-só aqueles “especialmente” vocacionados para o efeito, como sejam os cofres, os armários, os baús, as malas ou pastas com chaves, aloquetes ou segredos que dificultem o acesso a estranhos (relativamente aos veículos, v.g., o “porta-luvas” ou a “bagageira”, se fechados à chave ou por outro sistema semelhante).”
Neste acórdão assumiu-se o entendimento defendido por Faria e Costa, [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, T.º II, § 29, pág. 65] sobre o que se deve entender por “receptáculo” para efeitos de uma correcta interpretação teleológica.
Segundo este Autor, “é absolutamente intolerável - porque desvirtuante da finalidade e do âmbito de protecção da norma - considerar qual-quer objecto, por mais abstruso que ele seja e por maior que seja a diferença que se possa detectar quanto à sua normal finalidade, como receptáculo que o legislador define como pertinente no âmbito do presente texto-norma. Neste sentido, considera-se, fácil é percebê-lo, incompreensível sustentar que um automóvel, com as portas fechadas, deva ser considerado como um receptáculo no sentido que aqui se lhe empresta.” Acrescenta ainda o mesmo Autor que “quando o legislador fala em outros receptáculos equipados com fechadura ou com outros dispositivos de segurança, é óbvio que pressupõe - sob pena de intolerável, ilegal e injustificado alargamento das margens da punibilidade - que a finalidade primacial desse receptáculo seja a de guardar coisas com um mínimo de segurança. Por isso, que se saiba, um automóvel está longe de ter como fim primeiro o de servir de caixa, cofre ou gaveta para guardar o que quer que seja. Quando se traz à discursividade interpretativa um qualquer elemento (in casu: receptáculo) a sua concretização tem de ter uma conexão específica com a finalidade da norma e, sobre-tudo, essa mesma concretização tem ainda de passar pelo crivo da semelhança material - dentro, por exemplo, da interpretação extensiva - com as outras concretizações que o legislador enunciou. Ultrapassar esta barreira é intolerável analogia que está proibida, como bem se sabe, ao intérprete no campo, sobretudo, da norma incriminadora.”
No caso em apreço, nenhuma crítica merece a sentença recorrida que, embora não se refira a este entendimento doutrinal, já adoptado também pelo Supremo Tribunal de Justiça no citado acórdão e posteriormente, [Cf. v.g., Ac. STJ de 04-06-2003, in CJ Ano XI, T.º II, p. 210] também não tinha que se pronunciar sobre ele por não constar da acusação nem ter sido requerida, em sede de audiência, qualquer alteração quanto à qualificação ou re-qualificação dos factos imputados aos arguidos, nos termos previstos nos art.os 358 e 359.º do CPP.

Assim, no que respeita à absolvição dos arguidos do crime de furto qualificado por que vinham acusados e à ausência de condenação dos arguidos pelo crime de furto simples, por falta de queixa do ofendido que conferisse legitimidade ao Ministério Público para exercer a acção penal, (cfr. art.os 203.º, n.º 3, 113.º e 116.º do CP e 48.º e 49.ºdo CPP), nenhuma censura ou reparo merece a sentença recorrida, não se verificando, contrariamente ao alegado, que tenha havido errada determinação da norma incriminatória aplicável ao caso, ou violação de quaisquer normas legais, nomeadamente as invocadas pelo Ex.mo Recorrente, razão por que improcede a sua argumentação no sentido da revogação da sentença recorrida na parte em causa, e da condenação dos arguidos pela prática do referido crime de furto qualificado.
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Decisão:
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, confirmar a douta sentença na parte recorrida.
Não há lugar a tributação. Honorários à Exmª Def. Of.º pela intervenção ocasional: os da tabela.
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Porto, 2 de Junho de 2004
Agostinho Tavares de Freitas
José João Teixeira Coelho Vieira
Maria da Conceição Simão Gomes
Arlindo Manuel Teixeira Pinto