I - O ónus consagrado na alíneas a), do nº1, do art. 640º, do CPC, (de especificação de concretos pontos de facto considerados incorretamente julgados), pressuposto do conhecimento do mérito da impugnação da decisão de facto, cuja função é delimitar o objeto do recurso, tem de se mostrar cumprido nas conclusões das alegações, impondo a falta de tal especificação, bem como a falta de especificação da al. b) e da al. c), do referido nº1, e, ainda a da al. a), do nº2, em toda a peça das alegações (mesmo no seu corpo), a rejeição do recurso, na vertente de facto (cfr. nº1, do art. 639º e nº1 e 2, al. a), do art. 640º, daquele diploma legal).
II – Na aplicação casuística dos referidos preceitos devem ser preservados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, modelando-se, na medida do possível, adequado, justificado e necessário, os requisitos de forma para dar prevalência à substância.
III – Justifica-se no caso menor exigência de rigor na observância da regra da al. a), do nº2, do art. 640º, observadas se encontrando as do nº1, do referido artigo, por estar em causa na impugnação apenas um elemento de prova, o depoimento de parte da Ré, circunscrito se mostrando o mesmo às específicas questões de facto em causa nesta vertente do recurso.
IV – Dependendo a reapreciação da matéria de direito do recurso da procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto fixada, mantendo-se esta, o conhecimento daquela fica, necessariamente, prejudicado (nº2, do artigo 608º, ex vi da parte final, do nº2, do art. 663º, e, ainda, do nº6, deste artigo, ambos do CPC).
V - Observado que se mostre, pelo Autor, o ónus de alegação fáctica no articulado com que introduz a sua pretensão em juízo, levanta-se a, subsequente, questão da observância do ónus da prova dos factos essenciais densificadores da causa de pedir e perante a falta de prova dos factos constitutivos do direito do Autor (cfr. nº1, do art. 342º, do CC), vê este surgir, como consequência da mesma, a improcedência da ação em que pretendia fazer valer o alegado direito.
Relatora: Des. Eugénia Cunha
1º Adjunto: Des. Manuel Fernandes
2º Adjunto: Des. António Mendes Coelho
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação do Porto
Sumário (cfr nº 7, do art.º 663º, do CPC):
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Recorrente: AA
Recorrida: BB
AA, propôs ação declarativa sob a forma de processo comum contra BB, pedindo que se declare e se condene a ré a reconhecer:
i) - que as prestações devidas pelo autor e pela ré ao Banco 1..., entre 25 de julho de 2004 e 25 de setembro de 2019, em cumprimento das obrigações que ambos contraíram, solidariamente, pela via dos contratos de empréstimo referidos nos artigos 5 a 9 desta petição, foram integralmente pagas pelo autor, com dinheiro seu;
ii) - que, por esses pagamentos terem sido feitos pelo autor, a ré lhe deve metade desse valor.
Alegou, para tanto e resumidamente, que contraiu, juntamente com a ré, empréstimo bancário, que apenas o autor pagou as prestações do mesmo e com dinheiro próprio[1], motivo pelo qual pretende reaver metade dos valores pagos, quantia com a qual entende ter-se a ré enriquecido à sua custa.
Na contestação, que apresentou, a ré impugnou a factualidade alegada pelo autor [2], negando quer o pagamento exclusivo, pelo Autor, das prestações quer o seu enriquecimento à custa do mesmo, pois que, vivendo ambos em união de facto, pagou com o rendimento do seu trabalho despesas do agregado familiar, incluindo prestações ao banco, com o rendimento do seu trabalho, e realizou as tarefas domésticas, pretendendo a sua absolvição do pedido.
O Autor apresentou resposta.
“Em face do exposto, decido julgar a presente acção inteiramente improcedente e, em consequência:
a) Absolver a ré dos pedidos contra si formulados pelo autor.
b) Condenar o autor no pagamento das custas processuais, nos termos do disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil”.
CONCLUSÕES:
1º O presente recurso de apelação tem por objeto a sentença proferida que julgou a ação inteiramente improcedente, e, em consequência absolveu a Ré dos pedidos contra si formulados.
2.ª O Recorrente não se conforma com a referida decisão, pois entende o Recorrente que existiu erro tanto no julgamento da matéria de facto, como na aplicação do Direito. As conclusões, incidirão, também, em primeiro sobre as discordância da decisão da matéria de facto, e posteriormente da aplicação do Direito.
3.ª Assim, a decisão em recurso considerou como factos não provados, os seguinte:
“C. Todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, ate Setembro de 2019, foram integralmente pagas com parte dos rendimentos do trabalho do autor.
D. Entre 30 de Junho de 2004 e o mês de Setembro de 2019, a Ré nada pagou ao Banco 1..., relativamente as dividas que, perante este Banco, construiu com o autor, nesse dia 30 de Junho de 2004.
E. Desde antes do mês de junho de 2004 até ao mês de Setembro de 2019, todas as remunerações do trabalho que o autor recebeu, em todos esses meses, foram integralmente depositadas ou transferidas para a conta identificada no artigo 15 desta petição.”
4.ª A referida decisão para o Recorrente foi uma absoluta surpresa, a medida em que entendia que tais factos não constituíam matéria controvertida, pois estavam perfeitamente admitidos pelas partes em sede de articulados.
5.ª Isto porque, pese embora a Recorrida, em sede de contestação não ter como lhe competia tomado posição especificada sobre os factos alegados na petição inicial, pois limitou-se apenas a dizer que uma serie de factos eram um amontoado de deturpações da verdade e indesculpáveis omissões, não os tendo mesmo impugnado.
6.ª Sem prejuízo, analisando a defesa ou contestação no seu todo, resulta claro e evidente que a Recorrida disse que foi aberta a conta no Banco 1..., na qual passaram a depositar o vencimento do autor (veja-se artigos 38, 39 e 40 da contestação). E que foi aberta uma conta na Banco 2... onde era depositado o vencimento da Re (artigo 42 da contestação).
7.ª Por conseguinte, estava e está perfeitamente assente que as prestações que foram pagas ao banco mutuante para aquisição das frações que adquiriram em comum foram pagas através da conta do Banco 1... (este facto está assente sob o n.º 3) onde era depositado o salário do Recorrente. Sendo que, o salario da Recorrida, como a mesma admitiu, era depositado na Banco 2....
8.ª Tanto o foi que, o Recorrente, em sede de resposta a contestação, desde logo, disse que a Recorrida quis sim dizer que os empréstimos bancários eram pagos através da conta no Banco 1..., com os salários do Autor, e que as despesas da casa e do sustento dos dois e da filha eram pagos como seu salário, através da conta na Banco 2.... (veja-se artigo 65 do articulado de resposta). Isto foi o que disse a Recorrida.
9.ª Aliás, em abono da verdade, o que a Recorrida disse, em sede de contestação, e que apesar disso (conclusão anterior) teria existido um acordo entre Recorrente e Recorrida antes de passarem a viver como marido e mulher, que todos os bens que viessem a adquirir seriam adquiridos em partes iguais, e, suportadas por ambos com o rendimento dos respectivos trabalhos, independentemente do valor que um e outro auferissem (artigos 20º, 21º e 22º da contestação. O que e seguro não ficou provado.
10.ª Por conseguinte sempre esteve e assim deve estar assente que os empréstimos eram pagos com o dinheiro do Recorrente. Acrescendo, ainda, que isso mesmo foi confirmado pela Recorrida em sede de depoimento de parte prestado em audiência de julgamento.
11.ª Sobre isso mesmo veja-se o que consta na decisão em recurso sobre tal matéria “A este propósito, a autora explicou o modo como ambos contribuíam para as despesas do lar (…). Quanto as despesas que habitualmente suportava, referiu-se ao pagamento da água, da eletricidade, da farmácia das consultas médicas da filha e das roupas” (sublinhado nosso). Isto é, nada a propósito dos pagamentos dos mútuos ao banco, pois tal facto estava e esta perfeitamente aceite que era pago através da conta do Banco 1... (facto 5 da matéria de facto provada) onde era depositado o salario do Recorrente, pois obviamente caso não o fosse não haveria fundos para o pagamento da prestação.
12.ª Cumprindo, ainda, dizer que a Recorrida não fez qualquer prova, sendo certo que também nunca o disse, que alguma vez tenha feito qualquer deposito na referida conta do Banco 1... de onde eram pagas as prestaçoes dos mutuos.
13.ª Face ao exposto, a decisão em recurso laborou em claro erro na decisão sobre a matéria de facto, na medida em que os factos constantes nos pontos C, D e E da matéria de facto não provada, foram admitidos pela Recorrida em sede de contestação, bem como confirmados em sede de depoimento de parte, o que se colhe mesmo da leitura da motivação sobre a matéria de facto provada.
14.ª Pelo que, existe assim não só um claro erro entre a fundamentação e a decisão da matéria de facto na decisão em recurso (artigo 615º, n.º1, alinea c)). Bem como os factos em causa estavam aceites em sede de articulados, e foram posteriormente admitidos pela Recorrida em sede de depoimento de parte.
15.ª Por conseguinte, deve a decisão sobre a matéria de facto ser alterada, devendo os factos das alíneas C, D e E que foram considerados não provados devem ser alterados, devendo os mesmos ser dados como provados, o que se requer.
16.ª Esta alteração da decisão sobre matéria de facto que se requer e de extrema importância não só pelo repor da verdade dos factos, como terá que ter como consequência que a decisão de Direito deveria e deve ser outra.
17.ª Assim sendo, como consta dos autos Recorrente e Recorrida adquiriram a frações em causa em compropriedade. Não foi provado a existência de qualquer acordo entre ambos sobre essa aquisição, nomeadamente os ditos contratos de coabitação, de modo que as relações patrimoniais entre os mesmos ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.
18.ª As obrigações assumidas por Recorrente e Recorrida perante o banco nos mútuos destinados a adquirir essas frações são obrigações solidarias.
19.ª Isto é, cada um dos contraentes, no caso Recorrente e Recorrida, pagou a sua metade do preço das frações que adquiriram em compropriedade e devida aos vendedores, com metade da quantia que o Banco lhes emprestou. E constituíram-se numa obrigação solidária de restituir ao Banco as quantias mutuadas. Por isso, se um qualquer dos mutuários tiver pago mais do que metade de qualquer prestação mensal que lhe competia pagar ao Banco para que a prestação por ambos devida ao Banco mutuante seja paga, com esse pagamento fica constituído no direito de exigir do outro o que pagou a mais, e que era por este devido.
20.ª No caso dos autos como vimos todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, desde a data da celebração do contrato ate Setembro de 2019, foram integralmente pagas pelo Recorrente, através de desconto em conta bancaria de onde era depositado o seu salario. Isto e, foram integralmente pagas com o produto dos seus rendimentos.
21.ª E também seguro que durante esse período a Recorrida nada pagou ao Banco mutuante, relativamente a divida que havia contraído perante o mesmo.
22.ª Pelo que, a Recorrida deve ao Recorrente metade do valor das prestações que este pagou ao Banco 1..., desde Junho e 2004 ate Setembro de 2019, ou seja, metade do valor de 58.106,00 euros.
23.ª E, por conseguinte, deve a decisão proferida ser revogada e proferida sentença que julgue a ação totalmente provada e procedente, e consequentemente, seja declarado que as prestações devidas pelo Recorrente e Recorrida ao Banco 1..., entre Julho de 2004 e Setembro de 2019, em cumprimento das obrigações que ambos contraíram solidariamente, por via dos contratos de empréstimo celebrados foram integralmente pagas pelo Recorrente, com dinheiro seu, e como tal, deve ser declarado que em virtude desses pagamentos feitos pelo Recorrente, a Recorrida deve-lhe metade desse valor, ou seja, metade do valor de € 58.106,00.
- OBJETO DO RECURSO
Apontemos, por ordem lógica, as questões objeto do recurso, tendo presente que o mesmo é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, estando vedado ao tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se imponha o seu conhecimento oficioso, acrescendo que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do ato recorrido – cfr. arts 635º, nº3 e 4, 637º, nº2 e 639º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil -, ressalvado o estatuído no artigo 665º, de tal diploma legal.
Assim, as questões a decidir são as seguintes:
1ª- Quanto à impugnação da decisão de facto:
1.1 - Da observância ou não dos ónus de impugnação da decisão de facto;
1.2 - Da alteração da decisão de facto, por erro, discordância ou nulidade.
2ª- Da modificabilidade da decisão de mérito:
2.1- Da verificação do direito do autor a exigir da Ré metade das prestações do empréstimo bancário que ambos contraíram e que pagou com dinheiro exclusivamente seu.
3ª - Da responsabilidade tributária.
1. FACTOS PROVADOS
São os seguintes os factos considerados provados com relevância para a decisão (transcrição):
1. Em 30 de Junho de 2004, o autor e a ré adquiriram, em comum e na proporção de metade para cada um, de CC e mulher DD, a Fracção Autónoma designada pelas letras “AQ”, que corresponde ao segundo andar, do lado esquerdo e frente, do corpo 2, com entrada pelo número ..., da Rua ..., com área de 97 m2, e destinada a habitação, do Prédio Urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., ..., na freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob a descrição n.º ...-AQ, e inscrito na respetiva matriz sob o artigo ...-AQ.
2. No mesmo dia 30 de Junho de 2004, o autor e a ré adquiriram, em comum e na proporção de metade para cada um, de CC e mulher DD, a fração autónoma designada pelas letras “BJ”, que corresponde a uma garagem na cave do prédio identificado no artigo 1 desta petição, assinalada pelas respetivas letras, com entrada pelos números ... e ... da Rua ..., com a área de 20 m2, destinada a aparcamento de viaturas, do Prédio Urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., freguesia ..., concelho de Vila Nova de Gaia, descrita na Conservatória do Registo de Vila Nova de Gaia sob a descrição n.º ...-BJ, e inscrita na respetiva matriz sob o artigo ...-BJ.
3. Para pagamento das frações autónomas indicadas aos vendedores, o autor e a ré contraíram a 30 de junho de 2004 dois empréstimos junto do Banco 1..., sendo um empréstimo no valor de € 76.300,00 e o outro empréstimo no valor de € 6.000,00.
4. O autor e a ré obrigaram-se, solidariamente, a restituir as quantias que o Banco mutuante lhes emprestou.
5. O pagamento das prestações devidas pelo empréstimo que o Banco mutuante fez ao autor e à ré tem sido feito através da conta n.º ..., no Banco 1....
6. Os pagamentos ao banco mutuante somam, até setembro de 2019, € 58.106,00.
7. Autor e Ré viveram em condições análogas às dos cônjuges desde o ano de 1999 e até finais do ano de 2019.
8. Dessa relação nasceu, em 31 de maio de 2015, uma filha, de nome EE.
9. Enquanto durou a união de facto, o autor e a ré declararam os rendimentos à autoridade tributária de forma conjunta.
10. Durante tal período, a autora contribuiu com o seu salário para a economia doméstica do casal que então formavam as partes, pagando as despesas de eletricidade, água, gás, telecomunicações e outras despesas correntes do imóvel, alimentação, vestuário e saúde do agregado familiar.
11. A autora contribuía ainda para a economia doméstica do lar com a execução das tarefas domésticas.
12. A autora pagava consultas médicas e medicamentos da filha de ambos.
13. Enquanto viveram em união de facto, o réu passava a maior parte dos seus dias de cada ano no estrangeiro, como condutor de camião de longo curso.
2. FACTOS PROVADOS
Foram os seguintes os factos considerados não provados (transcrição):
A. O autor entregava à ré dinheiro, fruto do seu trabalho, para pagar as despesas da casa.
B. O autor pagava todas as compras que faziam no supermercado, para sustento de ambos e da filha.
C. Todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, até setembro de 2019, foram integralmente pagas com parte dos rendimentos do trabalho do autor.
D. Entre 30 de junho de 2004 e o mês de setembro de 2019, a ré nada pagou ao Banco 1..., relativamente às dividas que, perante este Banco, contraiu com o autor, nesse dia 30 de junho de 2004.
E. Desde antes do mês de junho de 2004 até ao mês de setembro de 2019, todas as remunerações do trabalho que o autor recebeu, em todos esses meses, foram integralmente depositadas ou transferidas para a conta identificada no artigo 15 desta petição.
F. O autor pagava o condomínio e entregava à ré dinheiro para o vestuário da filha e para consultas médicas.
1. Da impugnação da decisão de facto:
1.1 - Da observância dos ónus de impugnação.
Cumpre começar por decidir da impugnação da decisão de facto para que, ante a definitiva definição dos contornos fácticos do caso, possamos entrar na reapreciação da decisão de mérito.
Antes, porém, cabe analisar a questão da observância dos ónus, para tanto, impostos ao recorrente que impugne a matéria de facto (questão adjetiva, prévia à análise da apreciação de mérito da impugnação).
Encontram-se os ónus de impugnação da decisão de facto enunciados nos nº1, do art. 639º e nos nº1 e 2, a), do art. 640º, decorrendo eles dos princípios da cooperação, da lealdade e da boa-fé processuais, visando garantir a seriedade e a consistência do recurso e assegurar o exercício do contraditório.
Comecemos por referir que os ónus legalmente impostos em sede de impugnação da decisão da matéria de facto, constituem requisitos habilitadores a que o tribunal ad quem possa conhecer da impugnação.
Na verdade, a lei adjetiva, que no nº1, do art. 639º, consagra o ónus de alegar e de formular conclusões, estabelece que “o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão”, sendo as conclusões das alegações de recurso que balizam a pronúncia do tribunal (art. 635º).
E o art. 640º consagra ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelecendo no nº1, que:
“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)- os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b)- os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c)- a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
O n.º 2, do referido artigo, acrescenta que:
“a) … quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Verifica-se, no caso, que o apelante não cumpriu todos os ónus que lhe estão cometidos pelo nº1 e 2, a), do referido artigo 640º, para cujo incumprimento a lei comina a rejeição do recurso, nesta vertente.
E como analisou o STJ, na Decisão de 27/9/2023, proferida no proc. nº2702/15.8T8VNG-C.S1 que, por bem esclarecedora, se cita:
“Com ampla sedimentação na jurisprudência deste tribunal, no funcionamento dos efeitos do disposto nos artigos 640º e 662º, nº1, do CPC, devemos distinguir, a exigência da concretização dos pontos de facto incorretamente julgados, da indicação dos concretos meios probatórios convocados e da decisão a proferir, a que aludem as alíneas a), b) e c) do nº1 do artigo 640º, que integram o denominado ónus primário, atenta a sua função de delimitação do objeto do recurso e fundamentar a impugnação da decisão da matéria de facto.
De outro lado, o requisito da indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, contemplada na alínea a) do nº 2 do mesmo artigo 640º, que integra um ónus secundário, para permitir que a Relação aceda de forma dirigida aos meios de prova gravados, que o recorrente entende necessários à reapreciação do sentido probatório dos factos impugnados.
Ora, perante alguma dificuldade na aplicação do dispositivo legal em certas casuísticas, na aferição do cumprimento dos aludidos ónus pelo recorrente, devem perseverar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, modelando na medida necessária, os requisitos de forma.
Tal como reiterado em diversos arestos deste Supremo Tribunal, v.g., «I. Constitui jurisprudência do STJ que a verificação do cumprimento do ónus de alegação regulado no art. 640.º do CPC deve ser compaginada com os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, atribuindo-se maior relevo aos aspectos de ordem matérial em detrimento das questões formais.(…)»; « (…)III - De acordo com a orientação reiterada do STJ, a verificação do cumprimento do ónus de alegação do art. 640.º do CPC tem de ser realizada com respeito pelos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal.(...)» .[3]
No mesmo percurso, salienta o Acórdão do STJ de 19.01.2023 - «Entre os corolários do ónus de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, consagrado no n.º 1 do art. 640.º do CPC, está o de que o recorrente deve sempre indicar nas conclusões do recurso de apelação os concretos pontos de facto que julgou incorrectamente julgados.»
Por último, ainda na órbita do debate das exigências previstas no artigo 640º, nº1, do CPC, desenha-se como jurisprudência constante deste tribunal, o limite do cumprimento do ónus primário (al) a) nas conclusões de recurso , como pontifica, entre outros, o Acórdão do STJ de 22.09.2022 - « II -Nesta linha interpretativa, tem vindo a admitir-se que, no que se refere às exigências das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 640.º do CPC, possam as mesmas ser cumpridas apenas no corpo das alegações. Já quanto ao ónus da alínea a) da mesma disposição legal, afigura-se que a jurisprudência não se encontra estabilizada, não obstante se admitir que tem vindo a prevalecer o sentido de que o incumprimento de tal ónus nas conclusões recursórias implica a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto. »[4] (negrito e sublinhado nosso).
Pacífico vem sendo, na verdade, na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que as conclusões, que balizam o âmbito do conhecimento do tribunal ad quem, têm de conter a indicação dos concretos pontos de facto cuja alteração se pretende, ónus este que permite circunscrever o objeto do recurso no que concerne à decisão de facto. Deste modo, mesmo na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, vem a ser manifestada, reiteradamente, posição no sentido de, para cumprimento dos ónus impostos pelos art.s 639º e 640º, do CPC, o recorrente ter que indicar nas conclusões, com precisão, os pontos da matéria de facto que pretende que sejam alterados pelo tribunal de recurso, podendo os demais ónus impostos vir cumpridos apenas no corpo das alegações.
Com efeito, fixada foi, até, já, jurisprudência no sentido de “Nos termos da alínea c), do nº1, do artigo 640º, do Código de Processo Civil, o recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, nas alegações”[5].
Ora, manifesto é que o Recorrente não cumpriu todos aqueles ónus nas alegações, pois que apesar de ter indicado nas conclusões do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (al. a), do nº1), e nas alegações (podendo sê-lo no corpo das mesmas), os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa (al. b), do nº1) e a decisão que entende dever ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (al. c), do nº1) não cumpriu o estatuído na al. a), do nº2, do art. 640º, ao não indicar, em toda a peça em causa, com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso, convocado estando, para a reapreciação da prova, depoimento de parte da Ré, não confessório (sem assentada).
Assim, não tendo o apelante cumprido integralmente os ónus que lhe estão cometidos pelo nº1 e 2, a), do referido artigo, os requisitos habilitadores ao conhecimento impugnação, não estando preenchidos os pressupostos de ordem formal para se proceder à reapreciação da decisão de facto, sempre seria, na verdade, em estrita exigência de rigor, de rejeitar o recurso, na vertente da impugnação da decisão de facto.
Olhando, contudo, às circunstâncias do caso, não podemos deixar de considerar justificada uma menor exigência de rigor na observância da regra da al. a), do nº2, do art. 640º, observadas se encontrando, como vimos, as do nº1, do referido artigo, por na impugnação da decisão da matéria de facto apenas estar em causa um elemento de prova, o depoimento de parte da Ré, o qual está circunscrito, conforme resulta do despacho que o admitiu, às específicas questões de facto que são suscitadas nesta vertente do recurso.
Assim, para se não incorrer em excessivos formalismos, e na observância dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, passamos a analisar da substância da impugnação, na constatação, que se passa a efetuar, de os factos em causa, que o apelante pretende que passem de não provados a provados, não terem sido confessados pela Ré, nem na contestação nem no depoimento de parte que prestou em audiência de julgamento.
Analisemos das pretendidas alterações.
Conclui o Autor estar a matéria de facto constante das alíneas C), D) e E), dos factos não provados, assente, por, tendo sido, por si, alegados tais factos, na petição inicial, não foram impugnados na contestação, e que, de qualquer modo, tal matéria mostra-se confessada pela Ré no seu depoimento de parte, sempre se encontrando provada com base nesse depoimento, por a Ré a ter admitido.
São os seguintes os factos em causa:
“C. Todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, até setembro de 2019, foram integralmente pagas com parte dos rendimentos do trabalho do autor.
D. Entre 30 de junho de 2004 e o mês de setembro de 2019, a ré nada pagou ao Banco 1..., relativamente às dividas que, perante este Banco, contraiu com o autor, nesse dia 30 de junho de 2004.
E. Desde antes do mês de junho de 2004 até ao mês de setembro de 2019, todas as remunerações do trabalho que o autor recebeu, em todos esses meses, foram integralmente depositadas ou transferidas para a conta identificada no artigo 15 desta petição”.
Ora, do confronto da petição com a contestação, bem resulta terem os referidos factos, alegados nos artigos 16º a 19º daquele articulado sido impugnados neste último, motivadamente, bem resultando a sua negação pela Ré.
Com efeito, alegando o Autor, na petição inicial:
“16 Todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, até Setembro de 2019, foram integralmente pagas com parte dos rendimentos do trabalho do DEMANDANTE.
17 Desde antes do mês de Junho de 2004 até ao mês de Setembro de 2019, todas as remunerações do trabalho que o DEMANDANTE recebeu, em todos esses meses, foram integralmente depositadas ou transferidas para a conta identificada no artigo 15 desta petição.
18 E foi com parte do dinheiro do DEMANDANTE, depositado nessa conta, que todas as prestações, que ele e a DEMANDADA deviam ao Banco 1..., foram pagas a este Banco.
19 Entre 30 de Junho de 2004 e o mês de Setembro de 2019, a DEMANDADA nada pagou ao Banco 1..., relativamente às dividas que, perante este Banco, contraiu com o DEMANDANTE, nesse dia 30 de Junho de 2004”.
resulta que a Ré, que assumiu a posição manifestada no art. 2º e 3º, da contestação, acima transcritos, sustenta expressamente não ser isso verdadeiro por ter pago, também, com o produto do seu trabalho (cfr. supra citados artigos, designadamente os 34º e 35º - “que foram restituindo ao banco mutuante com o produto dos respetivos vencimentos” - 38º a 43º e 56º, da contestação).
Assim, impugnados pela Ré, motivadamente, os factos agora em causa, bem fundamenta o Tribunal a quo a decisão de considerar não provados os factos constantes das alíneas C), D) e E) “por ausência de elementos probatórios nesse sentido”, e bem resulta não ter a Ré confessado os referidos factos, pelo que não foi lavrada assentada.
Na verdade, a Ré não confessou os referidos factos alegados, nem no articulado nem no depoimento de parte que prestou em audiência de julgamento, bem resultando do seu depoimento de parte, não confessório, que a mesma se apresentou a manter a posição que assumiu no articulado, tendo afirmado ter pago prestações ao banco mutuante e ser o dinheiro depositado nessa conta, também, fruto do rendimento do seu trabalho.
Nenhuma alteração cabe efetuar à decisão da matéria de facto, pois que, revisitada toda a prova, bem se pode constatar que nenhuma das testemunhas inquiridas, seja do Autor seja da Ré, mostrou saber o que quer que seja da referida matéria e, contrariamente ao que o Autor conclui, a Ré nada confessou.
Ao invés, a Ré, de forma convincente e credível, negou que fosse verdade o afirmado pelo Autor, afirmando que as prestações ao banco foram pagas com dinheiro proveniente, também, do seu trabalho, desenvolvido quer em Portugal, quer, antes disso, em França.
Assim, bem resulta que se não provou que:
- Todas as prestações que foram pagas ao Banco mutuante, até setembro de 2019, foram integralmente pagas com parte dos rendimentos do trabalho do autor;
- Entre 30 de junho de 2004 e o mês de setembro de 2019, a ré nada pagou ao Banco 1..., relativamente às dividas que, perante este Banco, contraiu com o autor, nesse dia 30 de junho de 2004;
- Desde antes do mês de junho de 2004 até ao mês de setembro de 2019, todas as remunerações do trabalho que o autor recebeu, em todos esses meses, foram integralmente depositadas ou transferidas para a conta do Banco 1....
Destarte, não confessados os factos, nem no articulado nem em julgamento, não se mostram os mesmos provados por total falta de prova, como afirmado pelo Tribunal a quo.
2.1 – Da inobservância do ónus da prova.
Observado que se mostre, pelo Autor, o ónus de alegação fáctica no articulado com que introduz a sua pretensão em juízo, levanta-se a, subsequente, questão da observância do ónus da prova dos factos essenciais densificadores da causa de pedir.
E sem o seu cumprimento nunca a ação pode proceder.
Ora, dependendo a procedência do recurso em termos jurídicos, no que à interpretação e aplicação do direito respeita, da prévia procedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não tendo o apelante logrado impugnar, com sucesso, tal matéria, que assim se mantém inalterada, prejudicado ficaria o conhecimento daquela - v. nº2, do art. 608º, aplicável ex vi parte final, do nº2, do art. 663º e do nº 6, deste artigo.
Sempre se decide, contudo, que não resultou provado que o Autor tenha utilizado dinheiro exclusivamente seu para o pagamento das prestações em causa ao banco mutuante.
Com efeito, as partes adquiriram, em regime de compropriedade, duas frações autónomas com recurso a mútuos bancários, vivendo, elas, em união de facto, e, alegando o autor que apenas ele pagou as prestações inerentes aos contratos de empréstimos, pretende, cessada que se encontra a união de facto, a restituição de metade do que foi sendo pago ao banco no período em que a união de facto durou. Ora, e resultando, mesmo, ter a ré contribuído para despesas do agregado familiar, certo é que sequer logrou o Autor provar ser o dinheiro utilizado para o pagamento das prestações exclusivamente seu.
E, na verdade, consagra o nº1, do artigo 342º, do C. Civil, que regula a questão do ónus da prova, que “Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”.
Não tendo o Autor logrado provar os factos que alegou, constitutivos do direito de que se arroga, como bem refere o Tribunal a quo, tem o mesmo de sofrer, como consequência desvantajosa de o não ter conseguido, a improcedência da ação.
Neste conspecto, improcedem as conclusões da apelação, não ocorrendo a violação de qualquer dos normativos invocados pelo apelante, devendo, por isso, a decisão recorrida ser mantida.
As custas do recurso são da responsabilidade do recorrente dada a total improcedência da sua pretensão recursória (nº1 e 2, do artigo 527º, do Código de Processo Civil).
Pelos fundamentos expostos, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirmam, integralmente, a decisão recorrida.
Porto, 18 de março de 2024