AUTORIDADE DO CASO JULGADO
PRESSUPOSTOS
IDENTIDADE SUBJETIVA
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
IDENTIDADE DE FACTOS
QUESTÃO PREJUDICIAL
INCÊNDIO
DOLO
CULPA IN VIGILANDO
PRESUNÇÃO DE CULPA
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
CULPA CONCORRENTE DE TERCEIRO
Sumário


I - A autoridade de caso julgado estende-se a situações em que existe ausência formal de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente. Para aferir da autoridade de caso julgado, e se se verifica similitude entre a causa de pedir de um e outro processo, importa para o efeito, não propriamente os factos que foram alegados, mas sim os factos que efectivamente resultaram apurados num e noutro processo, após as contingências probatórias ocorridas numa e noutra lide.
II - Não tendo ficado provado, num primeiro processo, que o incêndio deflagrou em consequência de acção humana levada a cabo de forma consciente e voluntária, e provado em nova acção que tal accionamento humano ficou demonstrado, sendo pois compreensível que, ante as normas que regem a culpa in vigilando (art. 493.º, n.º 1, do CC) tenha resultado um silogismo decisório diferenciado, pois que naquele processo o tribunal concluiu no sentido da culpa da ré, por presunção de culpa desta, condenando a mesma no pagamento dos prejuízos causados, enquanto neste concluiu pela afastamento de tal presunção, por ilisão da mesma por parte da ré, absolvendo esta do pedido, não tem aquele processo autoridade de caso julgado sobre este novo pleito. As vicissitudes da prova, numa e noutra acção, com conseguimentos de ónus distintos, são condicionantes que não podem ser sopesadas para efeitos de ponderação da verificação de autoridade de caso julgado, a fim de se poder concluir se aquela decisão de facto se impõe neste processo.
IV - De facto, considerando que a factualidade apurada num e noutro processo, em si constitutivas do antecedente lógico indispensável à decisão, são distintas, não pode afirmar-se que a decisão ali proferida possa assumir no processo presente qualquer autoridade ou força de caso julgado, ou que possa constituir pressuposto da decisão de mérito proferida no acórdão recorrido, pois que esta decisão não desrespeita minimamente aquela, antes se compaginando perfeitamente com a leitura dos preceitos legais e com o silogismo judiciário concretizado num e noutro julgamento.
V - No art. 493.º, n.º 1, do CC, alusivo à culpa in vigilando, estabelece-se a presunção de culpa, em si indissociável da presunção da própria ilicitude, cometida por quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais aqueles, e a responsabilidade pelos danos que a coisa ou os animais causarem.
VI - O incumprimento da obrigação de vigilância apenas torna responsável quem deva diligenciar por coisa ou animais, e que por força dessa omissão decorram danos para terceiros.
VII - A presunção legal de culpa ínsita naquele normativo assenta na omissão do dever de vigilância pelo obrigado à vigilância por ter o bem à sua guarda, tratando-de de presunção “iuris tantum”, que pode ser ilidida por aquele, desde que prove que cumpriu o dever de vigilância a que está obrigado, com a diligência do bonus pater famílias, de um cidadão mediamente previdente e cauteloso, segundo as circunstâncias do caso concreto, e que, apesar desse cuidado, o dano ocorreu, ou que, mesmo que o tivessem cumprido, sempre o mesmo se teria verificado.
VIII - Serão as circunstâncias específicas de cada caso que permitem ao julgador ponderar se verifica a presunção de culpa de quem está obrigado à vigilância e até que ponto houve violação dos deveres de vigilância das coisas e animais sob sua guarda, e em que medida é que essa violação foi propiciadora dos danos verificados.
IX - Não pode a ré, obrigada à vigilância do interior do seu estabelecimento comercial aberto ao público, ser responsabilizada por culpa in vigilando, quando um terceiro, de forma ardilosa e criminosa, faz deflagrar incêndio que causa destruição e danos, porquanto aos olhos do cidadão mediamente previdente e cauteloso nenhuma censura pode àquela ser dirigida, por não lhe ser exigível que tenha de prever o fogo posto por terceiro que se infiltrara no interior do seu estabelecimento comercial, onde é impossível estabelecer o melhor e absoluto controle de proximidade visual entre os seus funcionários e o terceiro , que supostamente ali entrou para comprar bens ali expostos para venda, não sendo previsível que a sua intenção tivesse propósitos malévolos e destrutivos de deflagração de fogo sobre tais bens.

Texto Integral

AA, BB, CC e DD intentaram a presente ação com processo comum de declaração contra Zhou Suiping, Unipessoal, Lda., sendo interveniente acessória C... - Companhia de Seguros de Ramos Reais, S.A.., pedindo a condenação solidária das rés a pagar:

– Aos 1ºs autores a quantia de €29.405,70, a título de danos patrimoniais, e o montante de €50.000,00 a título de danos não patrimoniais, na proporção de metade a cada um deles, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

– Aos 2ºs autores a quantia de €30.287,22, a título de danos patrimoniais, e o montante de €40.000,00 a titulo de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, desde a citação, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.

Ré e interveniente contestaram, alegando, em síntese, que uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento daquela, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada e na execução de um plano previamente delineado, deflagrou propositadamente o incêndio em causa. Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa ou pessoas lançaram fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração A.

Concluíram pela improcedência da ação.

Procedeu-se à audiência de julgamento e, a final, proferida sentença, na qual a ação foi parcialmente procedente e, em consequência:

a) Condenada a ré a pagar aos primeiros autores AA e BB a quantia de €14.160,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento; bem como na quantia a liquidar, necessária para ressarcir os primeiros autores dos valores que tiveram de despender, devido ao incêndio, para aquisição de roupa, eletrodomésticos e outros bens essenciais, com o limite máximo de €4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros).

b) Condenada a ré a pagar aos segundos autores CC e DD a quantia de €6.626,27, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento; bem como a quantia a liquidar, necessária para ressarcir os segundos autores dos valores que tiveram de despender, devido ao incêndio, para aquisição de roupa, eletrodomésticos e outros bens essenciais, com o limite máximo de €2.782,23 (dois mil, setecentos e oitenta e dois euros e vinte e três cêntimos) e a quantia a liquidar, necessária para ressarcir os segundos autores dos valores que tiveram de vender, devido ao incêndio, com a reparação dos danos sofridos no seu veículo automóvel, com o limite máximo de €2.000,00.

c) Condenada a ré a pagar a AA a quantia de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais; a pagar a BB a quantia de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais; a pagar a CC a quantia de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais; e a pagar a DD a quantia de €5.000,00, a título de danos não patrimoniais;

d) Julga-se a ação improcedente quanto ao demais que foi peticionado.

Inconformadas com esta decisão, dela vieram, ré e interveniente apelar para o Tribunal da Relação do Porto, oferecendo as suas alegações e formulando as seguintes conclusões:

Apelação da ré Zhou Suiping, Unipessoal, Lda.

1. O recurso visa impugnar a matéria de facto identificada e com interesse para o mesmo.

2. A decisão em crise peca por manifesta incorreção e erro na apreciação da prova produzida em julgamento, face aos documentos constantes do processo e ao depoimento da testemunha indicada na transcrição junta.

3. Na verdade, com interesse para este recurso, o Tribunal deu como não provados os seguintes factos:

“I) Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento da Ré, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada e na execução de um plano previamente delineado, deflagrou propositadamente o incêndio em causa no presente processo.

II) Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa ou pessoas lançaram fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração “A”.

XIII) Todos os extintores do estabelecimento da Ré estavam em bom estado de conservação e funcionamento.

XV) O sistema interno de vídeo-vigilância abrangia toda a loja.

XVII) O estabelecimento da ré não tinha qualquer material inflamável ou auto-inflamável.

XVIII) Não existiam em todo o espaço da loja materiais ou substâncias que pudessem reagir entre si resultando em reação química de auto-combustão.

XX) O incêndio não foi provocado ou iniciado por bens existentes nas frações “A” e “B”.

XXI) As frações “A”, “B” e “C” tinham bocas de incêndio. “(…), sic.

4. Em face disso, mas também face à prova que consta do processo – relatório da Polícia Judiciária de fls.… e depoimento da testemunha EE (inspetor da polícia judiciária), resulta exatamente o contrário.

5. Sendo ainda certo que, e salvo melhor opinião, estes factos dados como não provados, contradizem os factos dados como provados, pelo que outra conclusão não se pode retirar que não seja a de os factos ora elencados – com interesse para este recurso – deviam ter sido dados como provados.

6. Contradição especificamente verificada atentos os factos provados nos pontos 22, 26, 33, 35, 52, 53, 54,57, 58, 59, 63, 64 da sentença que aqui se dão por reproduzidos para os legais efeitos e por economia processual.

7. Impugnando-se nesta parte aqueles factos dados por não provados.

8. Os factos dados por não provados e que supra vão identificados, certo é que tais factos deviam ser antes dados como provados, atento o depoimento prestado pela testemunha EE, inspetor (especialista) da Polícia Judiciária.

9. E por isso se pode dizer que o incêndio dos autos teve origem:

f) num ato criminoso;

g) propositadamente deflagrado;

h) o fogo foi ateado propositadamente;

i) que todos os extintores estavam em bom estado de conservação e funcionamento;

j) que em todo o espaço da loja não existiam materiais ou substâncias que pudessem reagir entre si resultando em reação química de autocombustão.

10. Daí se impugnar e nesta parte os factos dados (os não provados), devendo antes ser dados como provados.

11. Pelo que, salvo melhor opinião, e sobretudo com base no depoimento do citado inspetor da Polícia Judiciária, a origem e a deflagração do incêndio não coube ou teve participação ou atuação de pessoa que trabalha na loja e ou sequer pudesse ter sido o seu próprio gerente,

12. Sendo estranho à experiência comum e ao conhecimento mediano que os bombeiros (em grande quantidade) e viaturas (em grande quantidade) não tivessem sido capazes de apagar e de modo eficaz o incêndio, mesmo com a ideia de que o mesmo assumiu grandes proporções.

13. Provado está que na “loja” existiam vários extintores portáteis, sinalética e plantas de segurança,

14. A recorrente nenhuma responsabilidade teve na deflagração do incêndio, no seu desenvolvimento e consequências, tendo tomado tudo o que lhe era exigível para prevenir e combater um incêndio, tudo como se colhe do depoimento supra descrito,

15. A recorrente face aos factos provados e aos não provados, mas que devem ser dados por provados, como supra se entende, nenhuma responsabilidade tem ou deve ter.

16. Pois, atuou de modo a prevenir e combater um incêndio para o qual em nada contribuiu ou sequer permitiu ou facilitou.

17. Por isso, a recorrente não agiu com culpa e menos ainda com negligência, porquanto, na produção do evento nem sequer nele participou, antes saiu lesada, tal qual os recorridos...

18. A recorrente não praticou qualquer acto para aquela produção, pelo que não se pode falar em ilicitude e consequentemente não existe nexo causal, já que a guarda do “estabelecimento” foi e estava a ser exercida conforme as normas exigíveis para o tipo de estabelecimento e risco…

19. Como bem refere a decisão em crise, a lei (artigo 487º, nº 1, do C.C.) dispõe que: compete ao lesado provar a culpa do autor da lesão, o que no caso dos autos não existe ou se fez, sendo admissível por outro lado, a (exceção) da presunção de culpa, prevista no artigo 493º do C.C. - e aqui, a prova para o afastamento da culpa – presumida – cabe àquele sobre quem recai a presunção, que in caso, provado está nos autos, todos os “sinais” factos que praticou, nomeadamente de e para: a) vigilância; b) prevenção; c) manutenção e conservação do imóvel, constituído por três frações autónomas que consubstancia um só estabelecimento comercial.

20. Prova que se encontra plasmada e de forma clara e objetiva nos documentos juntos no processo – relatório da Polícia Judiciária – como na testemunhal, concretamente no depoimento prestado pela testemunha identificada.

21. Assim, a recorrente enquanto proprietária e possuidora dos imóveis dos autos, deixou provados todos os factos e atos praticados conducentes aos comportamentos de e para a vigia, prevenção e manutenção/conservação do espaço do seu comércio (frações) afastando nessa medida aquela exceção de presunção de culpa,

22. Estando demonstrado nos autos que a “coisa” à sua guarda e passível de causar danos, efetivamente, estava sujeita a actos de controlo... e vigilância em ordem a proteger a produção de danos – como também para evitar danos, tanto mais que provado está que o incêndio dos autos não resultou de culpa sua – cf. relatório da Polícia Judiciária e depoimento da testemunha, EE.

23. Quando assim se não entender, todos os proprietários e possuidores de (coisas) imóveis, respondem sempre e em qualquer circunstância apenas porque são titulares de um direito de propriedade ou de posse – o que não se concebe.

24. Estão assim violados os artigos 483.º, 487.º, 493.º do C.C.

Apelação da interveniente.

1. Vem o presente recurso impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que, com base na mesma, a ação foi julgada improcedente, por não provada.

2. A decisão de primeira instância, quanto à matéria de facto, padece de incorreções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo – documentos e depoimentos das testemunhas, que impunham decisão diversa da recorrida, que abaixo melhor se especificará.

3. O presente recurso versará a impugnação da matéria de facto dada como provada, uma vez que se conclui que a mesma não tem suporte na prova constante dos autos, bem como da produzida em audiência de julgamento, pelo que urge ser alterada a decisão da matéria de facto, nos moldes infra expostos.

4. Salvo o devido respeito por opinião diversa, a recorrente entende que a resposta dada a determinados factos articulados não é correta e que decorre de uma interpretação da prova que não sufragamos.

5. São os seguintes os pontos da matéria de facto que foram incorretamente julgados:

No que respeita aos factos não provados:

“I) Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento da ré, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada e na execução de um plano previamente delineado, deflagrou propositadamente o incêndio em causa no presente processo.

II) Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa ou pessoas lançaram fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração “A”.

XIII) Todos os extintores do estabelecimento da ré estavam em bom estado de conservação e funcionamento.

XV) O sistema interno de vídeo-vigilância abrangia toda a loja.

XVII) O estabelecimento da ré não tinha qualquer material inflamável ou auto-inflamável.

XVIII) Não existiam em todo o espaço da loja materiais ou substâncias que pudessem reagir entre si resultando em reação química de auto-combustão.

XX) O incêndio não foi provocado ou iniciado por bens existentes nas frações “A” e “B”.

XXI) As frações “A”, “B” e “C” tinham bocas de incêndio. “(…), sic.

6. A análise da prova produzida em audiência de julgamento não permite que se conclua como o tribunal recorrido deseja, impondo-se decisão diversa.

7. Vejamos o depoimento da testemunha EE.

8. Esta testemunha é agente da Polícia Judiciária – trabalhando na investigação de incêndios há mais de 12 anos, sendo inspector-chefe da secção de incêndios. Referiu que como se tratou de um incêndio, a Polícia Judiciária foi chamada ao local para fazer uma inspecção judiciária, tendo a testemunha e uma equipa da Judiciário deslocado ao local do incêndio no dia em que o mesmo ocorreu, tendo-se deparado com um enorme incêndio, não conseguindo fazer a inspecção judiciária, nem nesse dia, nem nos dias seguintes.

9. Que ingressou no local do sinistro nos dias 7, 8 e 9 seguintes e que apesar do grande aparato de destruição que tinha, verificou que as marcas deixadas pelo fogo possibilitam leituras, pese embora pelo caminho encontrem materiais bastante inflamáveis, mas as mesmas possibilitam concluir o início do incêndio: o mesmo iniciou-se no fundo da loja, numa zona em que continha plásticos, baldes e coisas, e afins.

10. Ao longo do seu depoimento, referiu, de forma clara e coerente que no local onde deflagrou o incêndio existiam umas prateleiras com materiais de limpeza e plásticos e que a partir do ponto onde deflagrou o incêndio, verificou-se uma progressão do fogo em “V” desde as prateleiras mais baixas e junto ao chão, atacando as restantes prateleiras, bem como pilares ali existentes.

11. Referiu que o fogo afetou, primeiro, a fração “A”, de seguida a totalidade da fração “B” e finalmente, com menor intensidade, parte da fração “C” e que ao longo do caminho percorrido pelo fogo no indicado sentido, verificou-se, depois de extinto o incêndio, uma maior carbonização na área da fração “A”.

12. Concretizou que a partir do ponto de início do incêndio, verificou-se na vertical a projeção no tecto, o qual foi destruído junto a esse local, bem como as paredes circundantes, que apresentam um elevado grau de destruição e que a partir daquele ponto situado na fracção “A” e em direção à fração “C”, passando pela fração “B”, o grau e sinais de destruição vão abrandando.

13. Mais referiu que a instalação elétrica existente nas frações “A”, “B” e “C” do prédio não apresentava qualquer colapso ou anomalia, estando as cablagens intactas e sem qualquer fusão. E que o incêndio em causa não deflagrou nem ocorreu por qualquer acidente ou acidente elétrico.

14. Concretizou que na zona onde deflagrou o incêndio não existia qualquer tomada ou aparelho elétrico, com exceção das lâmpadas de iluminação que não apresentavam, depois de extinto o fogo, qualquer sinal de colapso ou anomalia.

15. Disse, de forma clara, lógica, coerente e com apoio cientifico, que pela investigação que fez, juntamente com a equipa que com ele esteve, que o incêndio foi dolosamente provocado por terceiro.

16. Referiu ter apurado que o incêndio não teve origem acidental, nem que tenha sido um acidente elétrico, uma vez que não havia qualquer colapso elétrico e no local onde se iniciou a deflagração, não havia tomadas elétricas nem contador.

17. Disse não ter dúvidas absolutamente nenhumas, que o incêndio foi dolosamente provocado por terceiro, embora não lhe tenha sido possível proceder à identificação desse terceiro: “Assim, nesta fase é afastada qualquer hipótese de acidente eléctrico, sendo tratado como incêndio doloso”. Doloso, pressupõe a intervenção de terceiros. Vide Relatório:

18. Disse que da averiguação efetuada, exclui que o incêndio tenha sido provocado pelo sócio gerente da ré – que nem sequer estava no local quando o mesmo deflagrou – nem pelos funcionários presentes na loja, concluindo apenas que foi um terceiro não identificado. – Vide depoimento: até porque nas câmaras de vigilância vê-se o indivíduo na caixa e, logo a seguir, vê-se a azáfama dos funcionários a correrem, a acorrerem ao sítio onde começou a arder.

19. Concluiu, a referida testemunha, que a forma de início do incêndio foi através de chama direta, mormente isqueiro ou fósforo.

20. Diga-se que foi apenas esta testemunha e a sua equipa – que analisaram o local do sinistro e apuraram as suas causas e consequências. Trata-se de uma equipa com vasta experiência e competência neste dominó de investigação, pelo que não vemos qualquer motivo para descredibilizar quer a investigação quer as conclusões obtidas.

21. A testemunha relatou ao tribunal todos estes factos, com prontidão, clareza, espontaneidade e sem qualquer contradição ou obscuridade que motivasse o seu descrédito.

22. Tudo conjugado com a demais prova produzida, mormente o inquérito junto aos autos, deverá a sentença recorrida ser revogada nesta parte impugnada, e substituída por outra que determine a alteração da matéria de facto, o que se requer, com todas as consequências legais daí resultantes, não tendo sido a prova produzida nos autos analisada de forma global e crítica, como o legislador prevê no artigo 607º, nº 4, do C.P.C.

23. Ora, cremos que a conjugação destes factos e da análise crítica da prova, impõe a revogação da decisão de facto atinente, devendo ser dada como assente a seguinte matéria de facto:

O incêndio em causa teve origem num ato criminoso.

O incêndio ocorrido no dia .../06/2017 foi propositadamente deflagrado por pessoa não concretamente identificada, usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida sobre os objectos que se encontravam nesse local.

Foi essa pessoa ou pessoas a dar origem ao incêndio que teve início na fraccão “A”.

O fogo foi ateado propositadamente.

As luvas de borracha adquiridas pelo jovem nos instantes que antecederam o acionamento do alarme estavam colocadas junto ao ponto do início do incêndio.

Todos os extintores estivessem em bom estado de conservação e funcionamento.

24. De acordo com a alteração da matéria de facto proposta, o fogo verificado nos imóveis pertencentes à Zhou Suiping Unipessoal, Lda., não ocorreu de forma acidental, mas antes propositada.

25. Constata-se que os danos na fração do autor foram provocados pelo incêndio que teve origem na fraccão “A”, utilizada pela 1ª ré, certo é que se logrou provar o fenómeno concreto que originou a deflagracão do incêndio na fraccão “A” – acidente dolosamente provocado por terceiro –, assim afastando a presunção de ilicitude e culpa da 1.ª R., por violacão do dever que enquanto locatária e única utilizadora tinha de vigilância do seu estado e das suas condições de funcionamento.

26. Ora, radicando a causa do incêndio numa atuação dolosa de terceiro e não tendo este originado de qualquer defeito de construção, de manutenção, com violação do dever de vigilância, é patente que não se mostram preenchidos os requisitos do artigo 493º, nº 1, do C.C."

27. Assim, nenhuma das características da fração onde o incêndio deflagrou e para as quais se alastrou contribuíram, de modo direto ou indireto, para a ocorrência do mesmo.

28. De referir que o incêndio foi propositadamente deflagrado num dos cantos da loja, em local onde, apesar de estar abrangido pelo sistema de videovigilância do estabelecimento, tal atuação passaria e passou despercebida, por se confundir com a mera observação ou manipulação por quem se julgou ser cliente de algum dos produtos aí comercializados.

29. Por outro lado, o incêndio propositadamente deflagrado, atingiu, em escassos minutos grandes proporções. Face à intensidade do fogo e à rapidez da sua propagação, nenhum dispositivo de autoproteção que existisse no imóvel seria capaz de extinguir o fogo.

30. Diga-se, de qualquer forma, que a 1ª ré tinha implementadas todas as medidas de autoproteção impostas pela Lei.

31. Mesmo assim, tal não seria suficiente para evitar o incendio e as proporções que tomou;

32. Só o facto de esse incêndio ter assumido, logo nos primeiros momentos, grande proporção, impediu os funcionários da 1ª Ré de o extinguirem. De facto, encontra-se provado que escassos segundos depois de detetado o fogo, o sistema de iluminação do estabelecimento deixou de funcionar, tornando em quase total escuridão o interior da loja.

33. E dada a intensidade das chamas, a quantidade de fumo produzido e a quase total escuridão que se instalou, os funcionários da loja não foram capazes de prosseguir o combate ao fogo, nem puderam dominá-lo. E sob pena de risco para a sua própria integridade física, os funcionários da 1ª ré tiveram de sair da loja e refugiar-se no exterior.

34. Em suma, nenhuma responsabilidade pode ser assacada à 1ª ré, impondo-se a sua absolvição da ora contestante de todos os pedidos.

35. Deste modo, não só pelo que vimos de referir, como também face a todo o exposto, ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo violou, entre outras disposições legais, o disposto nos artigos 342º, nº 1, 373º a 376º e 493º e seguintes do C.C., sendo manifesto o erro na apreciação da prova.

O autor AA apresentou contra-alegações, concluindo pela improcedência dos recursos.

Foi proferido Acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, que, aditando os factos provados 97, 98 e 991, decidiu revogar a sentença recorrida e, consequentemente absolver a ré Zhou Suiping, Unipessoal, Lda., dos pedidos formulados pelos autores.

Inconformado, veio o Autor interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, oferecendo as suas alegações, que culminam com as seguintes conclusões:

I - O presente recurso incide sobre a decisão proferida pelo douto Tribunal da Relação do Porto, a qual revogou a decisão de primeira instância, absolvendo consequentemente a Ré dos pedidos formulados pelos Autores, ora Recorrentes, por entender que aquela não perpetrou qualquer violação do seu dever de vigilância relativamente ao seu estabelecimento comercial, daí resultando a inexistência de uma obrigação de indemnizar.

II - Sucede que, salvo o devido respeito, a decisão que ora se pretende sindicar versou sobre uma questão de elevada relevância jurídica e social, cuja aplicação, nos moldes ocorridos, põe em causa valores constitucionais respeitantes à confiança e segurança jurídica, obstando de certo modo à prossecução da pacificação social.

III - Porquanto atentou contra o instituto do caso julgado, na sua dimensão positiva, pelo facto de não atender à existência de uma decisão prévia, proferida pelo mesmo tribunal (e pela mesma secção) e relativamente ao mesmo objeto processual, decisão essa que já transitou em julgado e que constitui o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023 (proc. n.º 641/20.0...).

IV - O tribunal recorrido tinha a obrigação de conhecer oficiosamente do caso julgado ocorrido, nos termos do disposto no art.º 578.º e 577.º do CPC e, ao não o fazer, mal andou, tendo a decisão que ser revogada.

V - Ora, perante a existência de uma decisão já transitada em julgado (art. 628.º do CPC), a decorrente força obrigatória desta (art. 619.º, n.º 1 do CPC) desdobra-se numa dupla eficácia, positiva – autoridade de caso julgado - e negativa – exceção de caso julgado, sendo que enquanto a primeira consiste na vinculação das partes e do tribunal a uma decisão anterior, a segunda implica a proibição da repetição de nova decisão.

VI - Isto é, enquanto a exceção de caso julgado resulta numa imposição feita aos tribunais de acatar a decisão tomada anteriormente, impedindo que sobre um mesmo objeto processual seja proferida mais do que uma decisão, a eficácia positiva do caso julgado admite a produção de decisões de mérito sobre objetos materialmente conexos, embora tal produção esteja sujeita à condição de prevalência decisória da primeira decisão – assim o determinam o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15/12/2022 (proc. n.º 25737/21.7T8LSB-A.L1-4) e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/09/2018 (proc. n.º 687/17.5T8PNF.S).

VII - Ademais, a exceção de caso julgado exige a verificação de uma tríplice identidade – de sujeitos, causa depedir e pedido –da qual a autoridade de caso julgado prescinde.

VIII - Sucede que em ambos os processos que aqui se destacam - o que foi alvo de decisão transitada em julgado e o que deu origem à presente decisão da qual se recorre - verifica-se uma identidade de causa de pedir e do pedido que decorre do facto de estarmos perante a mesma situação: o deflagrar de um incêndio num estabelecimento comercial - do qual é possuidora e locatária a Ré Zhou Suiping - que gerou danos na esfera de terceiros, os quais intervêm como Autores em cada um dos processos em apreço porquanto consistem nos proprietários das frações afetadas por aquele trágico acontecimento.

IX. E em ambos os processos pretende-se aferir da responsabilidade civil da Ré pela deflagração e propagação do incêndio que determinou a existência de vários danos para os Autores/Recorrentes, nomeadamente pela destruição das suas habitações, que ficaram desse modo inabitáveis e determinaram consequentemente gastos avultados para aqueles, como com o arrendamento de uma nova casa onde residir, com o pagamento dos empréstimos bancários que haviam contraído para a compra das respetivas frações, com a compra de bens essenciais e indispensáveis à sua subsistência durante aquele período em que permaneceram privados de utilizar as suas frações, entre outros.

X. Coincidindo os processos em apreço relativamente à causa de pedir e ao pedido elaborado pelos autores, e divergindo somente no que concerne aos sujeitos do processo e extensão dos danos pois que, cada família afetada teve que atuações diversas quando ficou desalojada e teve mais ou menos despesa, sendo que num intervém como Autor o proprietário de uma fração, enquanto noutro intervém outro proprietário.

XI. Pelo que, coincidindo o núcleo fulcral das questões de direito e de facto a apreciar e discutir num e noutro processo, impunha-se a autoridade de caso julgado e bem assim a exigência de a segunda decisão ter a primeira como pressuposto indiscutível, o que não ocorreu.

XII. A verdade é que o tribunal, na prolação da decisão que ora se recorre, decidiu de modo desconforme com o douto acórdão anteriormente proferido em Fevereiro do presente ano, o qual, perante o mesmo caso concreto, concluiu pela responsabilidade da Ré face ao dever de vigilância que lhe incumbia enquanto possuidora e locatária do estabelecimento comercial em que o incêndio teve origem.

XIII. Justificando que «mesmo no desconhecimento do fenómeno concreto que originou a deflagração do incêndio na fração “A”, permanece a presunção de ilicitude e culpada 1.ª R., por violação do dever que, enquanto locatária e única utilizadora, tinha de vigilância do seu estado e das suas condições de funcionamento, sendo ela a “polícia” do local, com especial dever de prevenção do perigo de incêndio e de evitar danos como os que o Autor sofreu, decorrentes do incêndio que teve origem em tal fração».

XIV. Evidenciou o tribunal a quo que a Ré não ilidiu a presunção de culpa que sobre si recaiu porquanto não demonstrou que tomou as providências necessárias e imprescindíveis a impedir a verificação do dano, ou que este se produziria ainda que tivesse atuado com toda a diligência e zelo, uma vez que se constata a omissão da devida vigilância e a falta de diligência nesta, pelo facto de os funcionários da Ré só se terem apercebido da existência de um incêndio quando este já tinha assumido tão graves dimensões que nada puderam fazer para evitar a sua propagação.

XV. Daí se retirando a não disponibilização pela Ré de meios eficazes para vigiar e prevenir o dano que veio a consubstanciar-se sobre terceiros.

XVI. Ignorando tal decisão previamente proferida e já transitada em julgado (aliás na mesma secção, do mesmo tribunal), proferiu o douto tribunal no acórdão de que aqui se recorre a formação de uma convicção totalmente distinta relativamente aos mesmos factos, considerando que o incêndio foi determinado por intervenção humana, o que crê afastar a culpa da Ré e a consequente indemnização devida aos Autores pelos danos que do incêndio derivaram.

XVII. Tornando-se, por conseguinte, evidente a contradição existente entre as decisões, contradição essa que afronta o instituto do caso julgado na sua dimensão positiva (já que não está em causa uma tríplice identidade que justifique a exceção de caso julgado) e, coloca de forma flagrante o prestigio dos tribunais e da justiça pois que, pelo mesmo sinistro teremos condomínios que serão ressarcidos e outros que não.

XVIII. Em face disso, deveria o tribunal ter tido a primeira decisão como pressuposto indiscutível da que proferiu, sob pena de obstar à finalidade do instituto referido, designadamente obstar à existência de decisões concretamente incompatíveis, e tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/03/2023 (proc. n.º 4143/20.6T8MAI.P3) «garantir o prestígio dos Tribunais – que seria comprometido se a mesma situação concreta, uma vez definida, pudesse ser decidida em sentido diferente por uma sentença posterior -, e assegurar a certeza e a segurança jurídicas, impedindo o surgimento de decisões que ponham em causa o acertamento jurídico formulado judicialmente».

XIX. Ao decidir de modo tão divergente no âmbito da mesma situação concreta, põe-se em causa a paz jurídica dos cidadãos e denigre- se a imagem da justiça e a clareza dos comandos jurisdicionais a que se deve obediência, não se concebendo a razão de a um condomínio ser reconhecido o direito de se ver ressarcido dos danos sofridos, negando-se ao outro o mesmo direito que advém do mesmo acontecimento.

XX. Depreendendo-se, assim, para além da violação da lei, a existência de uma grave injustiça que põe em causa a tutela dos interesses dos cidadãos e acarreta o desprestígio dos tribunais, que com a tomada de decisões divergentes e incompatíveis põem em causa a clareza e estabilidade das suas decisões e por conseguinte os princípios basilares de um Estado de Direito Democrático: o princípio da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica.

XXI. Desta forma e, sob pena de se manter na ordem jurídica uma decisão violadora da lei, do caso julgado e bem assim, da constituição, terá a mesma que ser revogada e, ser proferida nova decisão onde se atente ao transito em julgado da decisão proferida no âmbito do processo 641/20.0... e, nessa conformidade seja condenada a Ré a indemnizar os Recorrentes nos termos decididos em primeira instância.

XXII. A decisão proferida naquele douto acórdão da Relação do Porto (aliás, da mesma secção), no processo nº. 641/20.0..., e que considerou existir responsabilidade da Ré e obrigação desta por indemnizar os terceiros lesados por aquele incêndio, terá de impor-se nos presentes autos, por força da autoridade de caso julgado.

XXIII. Se porventura não se atender a tamanha violação do efeito do caso julgado, o que por mera hipótese se admite, é notório que da prova produzida resultou de modo claro o preenchimento dos pressupostos exigíveis à responsabilidade da Ré decorrente do artigo 493.º do Código Civil e, mesmo a admitir-se ser possível a Relação alterar uma matéria de facto que já se encontrava fixada, mesmo assim, crê-se evidente que a Ré não afastou a presunção que sobre a mesa incide.

XXIV. Tendo os Autores ora recorrentes, demonstrado que os danos evidenciados nas suas frações foram provocados por um incêndio que se desencadeou na fração utilizada pela 1.ª Ré, nada mais lhe seria exigível demonstrar, nomeadamente, a concreta causa que lhe tenha dado origem. De facto, esse ónus assiste à Ré, devendo esta – para ilidir a presunção de culpa e de ilicitude que sobre si recai enquanto possuidora e locatária do imóvel – provar que não teve culpa no ocorrido ou que tais danos se produziriam de igual modo, ainda que tivesse agido com toda a diligência.

XXV. O que a mesma não concretizou, visto que se limitou a invocar a intervenção humana na origem do incêndio. Contudo, a verdade é que mesmo que assim fosse, não se veria aquela desonerada do dever de vigilância relativamente ao imóvel que utiliza.

XXVI. Em todo o caso, deveria ter tomado todas as providências necessárias não só a evitar uma ocorrência danosa como também a minimizar os danos que, da sua consumação, pudessem advir, pois, tal como decorre do acórdão proferido a 27/02/2023 pela Relação do Porto e no âmbito do mesmo sinistro, a Ré possui o cargo de “polícia do local”, cabendo-lhe assim supervisionar tudo o que ocorresse nas suas instalações.

XXVII. Não basta – para considerar cumprido o dever de vigilância - demonstrar a existência de câmaras de videovigilância e de instrumentos de segurança de combate a incêndios no local, aliada da participação às autoridades competentes, sendo imprescindível que de facto saibam ser manuseados e sejam utilizados os devidos instrumentos, que se fiscalize e se proteja as instalações, designadamente, a sua estrutura, componentes e conteúdo, de modo a impedir quer um evento quer uma atuação que venha a desencadear perigo e a provocar danos para terceiros.

XXVIII. Possuindo o controlo e o dever de vigilância sobre aquela fração, deveria a Ré ter atuado de modo mais diligente, zeloso e atento para evitar um desastre como o que veio a ocorrer, pois mesmo que aquele tenha sido causado por um terceiro, a verdade é que o incêndio só foi notado pelos funcionários daquele estabelecimento comercial quando já tinha assumido grandes e graves dimensões, que dificultaram a ação da Ré no sentido de evitar a sua propagação.

XXIX. Da sua conduta resulta que além de não ter efetuado tudo o que estava ao seu alcance para evitar a ocorrência do acidente, deixando algo da sua responsabilidade desprovido da devida vigilância e cautela – pois inicialmente nem sequer se apercebeu do sucedido - também não tinha meios aptos e eficazes a combater as chamas e a minimizar os estragos.

XXX. Pelo que nada mais poderá concluir-se do que pela responsabilidade da Ré perante os danos que se verificaram na fração dos AA e ora Recorrentes de que são proprietários, razão pela qual lhe assiste o direito de se ver ressarcido, nos termos decididos em primeira instância.

XXXI. Nestes termos deverá a decisão recorrida ser revogada e ser proferida nova decisão que julgue procedente a ação nos termos referidos em primeira instância.

Não foram oferecidas contra-alegações.

Cumpridos os vistos, cumpre decidir, tendo presente que são as conclusões das alegações recursivas que delimitam o objeto do recurso, estando vedado ao tribunal de recurso conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, com excepção daquelas que são de conhecimento oficioso (cfr. art. 635º nº 4, 639º nº 1, 608º nº 2, ex vi art. 679º, todos do CPC).

OBJECTO DO RECURSO:

O que nos cumpre apreciar e decidir é se a decisão proferida pelo Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023 (proc. n.º 641/20.0...) deve ser sopesada neste processo, pela autoridade de caso julgado que, na óptica da recorrente, a mesma encerra.

Tracemos então o esboço conceptual da excepção de caso julgado (exceptio rei judicante) versus a autoridade de caso julgado (auctoritas rei judicatae)

Estatui o n.º 1 do artigo 619.º do Código de Processo Civil que “transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele dentro dos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º”.

E estabelece o artigo 621.º do mesmo código que “a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado um determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo de preencha ou o facto se pratique”.

Por outro lado, o n.º 1 do artigo 580.º do mesmo diploma dispõe que “as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete

estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado”.

E acrescenta o artigo 581.º do mesmo diploma:

1 - Repete-se a causa quando se propõe uma acção idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.

2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.

3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.

4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.

(...)”.

O caso julgado pode ser material ou formal conforme resulta dos arts. 619.º e 620.º do Código de Processo Civil.

O caso julgado material, que é aquele que aqui interessa, é normalmente considerado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. Enquanto excepção, o caso julgado, tem uma função negativa, a qual pressupõe a repetição de uma causa já decidida por sentença transitada em julgado e tem por fim evitar que o tribunal, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie ou reafirme o anteriormente decidido, já enquanto autoridade de caso julgado, o mesmo tem uma função positiva que corresponde à imposição da primeira decisão à segunda decisão de mérito, isto é, decidida com força de caso julgado material uma determinada questão de mérito, não mais poderá ela ser apreciada numa acção subsequente, quer nela surja a título principal, quer se apresente a título prejudicial, e independentemente de aproveitar ao autor ou ao réu.

Como escreve Lebre de Freitas (in Código de Processo Civil Anotado, vol. 2.º, pág. 354) “a excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade de caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado um obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (...). Este efeito positivo assenta numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida”.

É este também o entendimento da Jurisprudência nacional, quer nos Tribunais da Relação, quer no Supremo Tribunal de Justiça, sendo disso exemplos paradigmáticos os acórdãos do STJ de 07.05.2015, proc. 15698/04.2YYLSB-C.L1.S1 e do TRP de 06.06.2016, proc. 1226/15.8T8PNF.P1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Assim, a excepção dilatória do caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois da primeira, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objecto e baseada na mesma causa de pedir, ter sido decidida por sentença que não admita recurso ordinário, e obsta ao conhecimento do mérito da causa e, consequentemente importa a absolvição da instância (tudo conforme arts. 576.º, n.º 1, 577.º, al. i), 578.º e 580.º, todos do Código de Processo Civil).

Já a figura da autoridade do caso julgado tem a ver com a existência de relações, já não de identidade jurídica, mas de prejudicialidade entre objectos processuais.

Como se afirmou no Acórdão deste STJ (3210/07.6TCLRS.L1.S1), “o caso julgado tem como limites os que decorrem dos próprios termos da decisão, pois como estatui o artº 673º do CPC, «a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».

Trata-se de um corolário do conhecido princípio dos praxistas enunciado na fórmula latina «tantum judicatum quantum disputatum vel disputari debebat». Mesmo para quem entenda que relativamente à autoridade do caso julgado não é exigível a coexistência da tríplice identidade, como parece ser o caso da maioria jurisprudencial e de amplo sector doutrinal, será sempre em função do teor da decisão que se mede a extensão objectiva do caso julgado[1]e, consequentemente, a autoridade deste. Ainda que se não verifique o concurso dos requisitos ou pressupostos para que exista a excepção de caso julgado (exceptio rei judicatae), pode estar em causa o prestígio dos tribunais ou a certeza ou segurança jurídica das decisões judiciais se uma decisão, mesmo que proferida em outro processo, com outras partes, vier dispor em sentido diverso sobre o mesmo objecto da decisão anterior transitada em julgado, abalando assim a autoridade desta”.

Julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto dessa primeira causa, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes, incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na acção posterior.

A respeito do alcance da autoridade do caso julgado, escreve Teixeira de Sousa (in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, págs. 578 e 579) que “o caso jugado abrange a parte decisória do despacho, sentença ou acórdão, isto é, a conclusão extraída dos seus fundamentos (…) que pode ser, por exemplo, a condenação ou absolvição do réu ou o deferimento ou indeferimento da providência solicitada. Como toda a decisão é a conclusão de certos pressupostos (de facto e de direito), o respectivo caso julgado encontra-se sempre referenciado a certos fundamentos. Assim, reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão.”

Assim, os limites objectivos do caso julgado integram as questões preliminares que constituem o antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva da sentença, abrangendo todas as questões e excepções suscitadas na sentença, por imperativo legal e conexas com o direito a que se refere a pretensão do autor. Ou seja, a autoridade do caso julgado da sentença não se estende a todos os motivos objectivos da mesma, mas abrange as questões preliminares que constituiriam as premissas necessárias e indispensáveis à prolação da decisão.

Assim se conclui que o caso julgado abrange o envolvente segmento decisório e a decisão das questões preliminares que sejam seu antecedente lógico indispensável, não sendo de excluir o recurso à parte da motivação da decisão para alcançar e fixar o verdadeiro conteúdo da mesma decisão.

Deste modo, consideramos que, quando o réu suscite defesa por excepção - e referimo-nos às excepções peremptórias -, alegando factos destinados a impedir, modificar ou extinguir o direito alegado pelo autor, e porque tais questões serão objecto de julgamento e de resolução (como são os casos da prescrição, da caducidade, do pagamento, da excepção do não cumprimento do contrato, etc.), deve entender-se que a decisão tomada sobre tal questão está abarcada na força de caso julgado do decidido.

Entender doutro modo seria possibilitar que em nova acção o réu viesse alegar (deduzindo pretensão fundada em tais factos) factos que na acção principal tinha alegado como meio da defesa na anterior e que aí foram apreciados e decididos - e que não podem assim voltar a ser discutidos pelas partes.

Assim, todas as questões que devam considerar-se antecedentes lógicos e indispensáveis do julgado, devem considerar-se abrangidas pela autoridade do caso julgado, obrigando as partes (identidade de partes referida no art. 581.º, n.º 2 do Código de Processo Civil), não importando as diferentes posições que assumam nas acções, quanto ao efeito jurídico que delimita a acção e quanto à causa de pedir.

Refira-se, ainda, que apesar de não podermos confundir a questão da força ou autoridade do caso julgado com a excepção dilatória do caso julgado, devemos considerar que o conhecimento e decisão da questão da força do caso julgado deve estar sujeita aos mesmos moldes e condicionalismos da excepção, já que ambas visam a mesma finalidade (se bem que com amplitudes diferentes, já que a excepção abrange toda a matéria da segunda acção, e daí que o tribunal pura e simplesmente se deva abster de conhecer do pedido, enquanto que a força do caso julgado implica apenas que se dê como decidida e assente uma questão - ou várias - que estão em causa, juntamente com outra ou outras na nova acção e que são pressupostos ou fundamentos jurídicos da decisão a proferir) - qual seja a de evitar que a contradição entre decisões judiciais sobre a mesma questão, relativamente às mesmas partes e quando estas repetem os mesmos fundamentos.

Na jurisprudência deste Supremo Tribunal, patente nos Acórdãos de de 10.07.97 – Proc. 04A1060, de 20.05.04 – Proc. 04B281, entende-se que não é apenas a conclusão ou dispositivo da sentença que tem força de caso julgado, aceitando-se como mais equilibrado um critério ecléctico, que, sem tornar extensiva a eficácia do caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença, reconhece, todavia, essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que forem antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, em homenagem à economia processual, ao prestígio das instituições judiciárias quanto à coerência das decisões que proferem e, finalmente, à estabilidade e certeza das relações jurídicas.

O art. 581.º do CPC coloca os dois requisitos da identidade objectiva – pedido e causa de pedir – precisamente no mesmo plano, sem qualquer diferença de projecção e alcance.

Factos e pedido são, portanto, sempre partes do objecto do processo de igual valor e importância. É esta a ideia central defendida pela doutrina e pela jurisprudência alemãs, e aceite por Castro Mendes, segundo a qual “o caso julgado é o raciocínio como um todo e não cada um dos seus elementos” (Cf. Schwab, Der Streitgegenstand, p. 148, apud Castro Mendes, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, 1968, pp. 161-162 e Rosenberg/Schwab/Gottwald, Zivilprozess-recht, 15. Auflage, München, 1983, p. 532).

O objecto do processo é necessariamente dual, pois sem causa de pedir não há individualização da pretensão processual e sem pedido não existe requisição de tutela jurisdicional para a pretensão processual individualizada (cf. Teixeira de Sousa, O objecto da sentença e o caso julgado material (O estudo sobre a funcionalidade processual), BMJ,1983, Abril, n.º 325, p. 105).

“Entre a causa de pedir e a pretensão processual existe um nexo de individualização caracterizado pela reciprocidade: a causa de pedir individualiza a pretensão delimitada e a pretensão delimitada individualiza a causa de pedir. Esta reciprocidade permite determinar a causa de pedir em razão da pretensão processual individualizada e a pretensão processual individualizada em razão da causa de pedir, estabelecendo-se entre ambas uma relação de implicação mútua” (Teixeira de Sousa, in O objecto da sentença…ob. cit., p. 106).

Ensina também Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, p. 712 e 714) que “É a resposta dada na sentença à pretensão do autor, delimitada em função da causa de pedir, que a lei pretende seja respeitada através da força e autoridade do caso julgado” e “a eficácia do caso julgado, como se depreende do art. 498.º, apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença (art. 659.º, n.º 2, in fine, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor ou do réu, concretizada no pedido ou na reconvenção e limitada através da respectiva causa de pedir”.

Como foi afirmado na revista 233/2000.C2.S1, “A aplicação da excepção dilatória de caso julgado material não constitui um obstáculo arbitrário ou desproporcionado ao direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva, justificando-se numa necessidade de segurança jurídica para a comunidade e na coerência das decisões judiciais, valores que contribuem para promover a paz jurídica e social e o respeito dos cidadãos pelos tribunais”.

Assim como na revista 120/13.1TTGRD-A.C1S1, que “o caso julgado – regulado nos arts. 671.º a 675.º do CPC - visa, essencialmente, “obstar à contradição prática” entre duas decisões, visa obstar “decisões contraditórias concretamente incompatíveis”, ou seja, que “o tribunal decida de modo diverso sobre o direito, situação ou posição jurídica concreta, já definida por decisão anterior, ou seja, desconheça de todo ou em parte os bens por ela reconhecidos e tutelados”. Cfr. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, p. 391 – 392.

Também no Acórdão deste STJ de 24-02-2015 (processo 915/09.0TBCBR.C1.S1) se refere que “o alcance do caso julgado, por razões de certeza e de segurança jurídica e de prestígio dos tribunais, não se limita aos estreitos contornos definidos, nos artigos 580.º e seguintes do CPC, para a excepção do caso julgado, antes se estendendo a situações em que apesar da ausência formal de identidade de sujeitos, pedido e causa de pedir, o fundamento daquela figura jurídica está notoriamente presente.”

Miguel Teixeira de Sousa (in Estudos sobre o Novo Processo Civil, p. 578 e segs) afirma que “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão. (…) [E]ssa eficácia do caso julgado exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada.

Deste modo, compreende-se que se admita o chamado “caso julgado implícito”, quando a afirmação que faz caso julgado impõe, como consequência necessária, outra a que o caso julgado se alarga (Vaz Serra, RLJ 103/432 e Cardona Ferreira, Guia dos Recursos em Processo Civil, 5.ª Edição, p. 90).

Entende-se por decisão implícita aquela que está subentendida numa decisão expressa, o que acontece quando a solução da questão que sobre ela recaiu pressupõe a prévia resolução de uma outra questão que, todavia, não foi expressamente abordada/assumida (Ac. STJ de 12-09-2007, SJ200709120009234).

Aqui chegados, ponderemos se no caso vertente, se verifica a invocada autoridade de caso julgado na decisão de 27/02/2023 proferida na apelação 641/20.0...

Desde já afirmaremos que a resposta é absolutamente clara em relação à não verificação da excepção de caso julgado (que de resto nem foi invocada), pois não há identidade das partes, nem do pedido, assim como também a causa de pedir é distinta, como veremos.

Já quanto à ofenda da autoridade caso julgado, como pretende a recorrente, cumpre desde também afirmar que, pese embora possa considerar-se estar em causa ali e neste processo o mesmo pedido, o de indemnização pelos danos sofridos pelos demandantes de um e outro processo em consequência do mesmo incêndio, ocorrido no dia no estabelecimento comercial da 1ª Ré Zhou Suiping, Unipessoal, Lda, já as partes não são as mesmas, porquanto são pessoas distintas os demandantes, sendo distintos os pedidos.

E, poderemos dizer também que a causa de pedir revela-se distinta num e noutro processo, importando para tal conclusão não propriamente os factos que foram alegados, mas sim os factos que efectivamente resultaram apurados num e noutro processo, após as contingências probatórias ocorridas numa e noutra lide, máxime no tocante ao cumprimento do onus probandi ínsito no art. 342º do CC e bem assim na inversão de tal ónus nos termos do art. 493º nº 1 do mesmo diploma.

Vejamos então tal factualidade apurada, de onde resultaram decisões díspares, ali de condenação e aqui de absolvição:

Factos provados no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 27/02/2023 (proc. n.º 641/20.0...).

96. No dia .../05/2017 EE teve um desentendimento com um dos funcionários da 1.ª R. no interior do seu estabelecimento, na sequência do que esta apresentou participação policial.

97. Posteriormente, a mãe de EE tentou desistência de queixa que não teve lugar.

98. O jovem que se encontrava na loja nos instantes que antecederam o acionamento do alarme de fogo adquiriu umas luvas de borracha que se encontravam no espaço da fração “A”.

Não provados

O incêndio em causa tenha tido origem num acto criminoso.
- O incêndio ocorrido no dia .../06/2017 tenha sido propositadamente deflagrado.

- Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento pouco antes das 20.30 h do dia .../06/2017 de forma voluntária e propositada e na execução de um plano previamente delineado, tenha deflagrado um incêndio.

- Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa ou pessoas tenham lançado fogo sobre objetos que se encontravam nesse local.

- Tenha sido essa pessoa ou pessoas a dar origem ao incêndio que teve início na fração “A”.

Neste processo, os factos provados:

97. Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento da ré, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada, deflagrou o incêndio em causa.

98. Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa lançou fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração A.

99. O incêndio não foi provocado ou iniciado por bens existentes nas frações A e B.

Ora, está bom de ver que os quadros factuais apurados num e noutro processo se revelam entre si antagónicos, pois que enquanto na apelação 641/20.0... não ficou provado que o incêndio tenha deflagrado em consequência de acção humana levada a cabo de forma consciente e voluntária, neste nosso processo tal accionamento humano ficou demonstrado, sendo pois compreensível que, ante as normas que regem a culpa in vigilando, tenha resultado um silogismo decisório diferenciado, pois que naquele processo o tribunal concluiu no sentido da culpa da Ré, por presunção de culpa desta, condenando a mesma no pagamento dos prejuízos causados, enquanto neste concluiu pela afastamento de tal presunção, por ilisão da mesma por parte da Ré, absolvendo esta do pedido.

Mas as vicissitudes da prova, numa e noutra acção, com conseguimentos de ónus distintos são condicionantes que não podem ser sopesadas para os efeitos aqui pretendidos, quais sejam o de apurar se aquela decisão se impõe neste processo por força da sua autoridade de caso julgado

De facto, considerando que a factualidade apurada num e noutro processo, em si constitutivas do antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado, são distintas, não pode afirmar-se que a decisão ali proferida possa assumir no processo presente qualquer autoridade em termos de força de caso julgado, ou que possa constituir pressuposto da decisão de mérito proferida no Acórdão recorrido, pois que esta decisão não desrespeita minimamente aquela, antes se compaginando perfeitamente com a leitura dos preceitos legais e com o silogismo judiciário concretizado num e noutro julgamento.

Assim, haverá que concluir que entre a decisão proferida nos autos de apelação 641/20.0... e a decisão proferida no Acórdão ora recorrido não existe qualquer contradição que possa afronta o instituto do caso julgado na sua dimensão positiva de autoridade de caso julgado, pelo que não podem deixar de improceder as conclusões da revista, no que a este aspecto toca.

II – Num segundo momento, postula a recorrente que, mesmo que não se entenda haver violação de autoridade de caso julgado, sempre os factos que resultaram apurados são em si demonstrativos de que a Ré não afastou a presunção de culpa que sobre si impende, e que, como tal, deveria ser condenada, como foi na 1ª instância.

Vejamos:

No Acórdão recorrido, em termos muito sucintos, disse-se que “À ré Zhou Suiping, Unipessoal, Lda., enquanto locatária financeira e única utilizadora das frações A e B, e proprietária e única utilizadora da fração C, competia ilidir a presunção de culpa, demonstrando que não houve culpa da sua parte (justificando a causa do incêndio) ou que os danos se teriam igualmente produzido, ainda que agisse com toda a diligência.

Ora, a ré conseguiu provar a ausência de culpa da sua parte, demonstrando que uma terceira pessoa, de forma voluntária e propositada, é que fez deflagrar o incêndio em causa.

Deste modo, não tendo perpetrado qualquer violação do dever de vigilância, a ré não está obrigada a indemnizar os autores, visto que não se mostram preenchidos os pressupostos do citado artigo 493º, nº 1, do C.C.”

Vejamos:

Dispõe assim este dispositivo legal:

1. “Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.

2. ”.

Estabelece-se neste artigo a presunção de culpa, em si indissociável da presunção da própria ilicitude, cometida por quem tem a seu cargo a vigilância de coisas ou de animais, pelos danos que a coisa ou os animais causarem.

Como ensinou Vaz Serra (in BMJ nº 101, pag. 130 e sgs), “esta responsabilidade civil especial, designadamente quanto aos danos causados por coisas, assente numa presunção de culpa, cabe a quem tiver em seu poder coisa, com o dever de a vigiar. Ao atribuir a responsabilidade a quem tiver a guarda coisa, o legislador admitiu o a presunção daquele que guarda a coisa ter culpa no facto causador do dano, quer por ter o dever de providenciar que tal não venha a verificar-se, quer também por estar em melhor posição para fazer a prova da culpa, pois estando à sua disposição deve saber se realmente foi cauteloso na sua guarda”.

O dever que tem o proprietário de vigiar o estado de conservação do imóvel que é sua propriedade de sorte a impedir que nele se ocasionem focos danosos, sob pena de incorrer na obrigação de indemnizar os danos causados pelo mau estado de conservação do imóvel, tem sido afirmada em múltiplos arestos do STJ.

Como se escreveu no Acórdão de 14/03/2019 (processo 2446/15.0T8BRG.G2.S1), “Aquele regime legal corresponde a uma hipótese em que, tal como naquelas outras previstas nos arts. 491º, 492º, e 493º, nº 2, do CC, se consagraram os denominados deveres de segurança no tráfego (da terminologia germânica Verkehrssicherungspflicten) ou deveres de prevenção do perigo, que permitem concretizar a responsabilidade civil por omissões, na medida em que neles se consubstancia a exigência do art. 486º do CC, no sentido de que, para além dos requisitos gerais da responsabilidade civil por facto ilícito e culposo (previstos no art. 483º, nº 1, do CC), exista o dever de praticar o acto omitido (cfr., neste sentido, os acórdãos de 07/04/2016, proc. nº 7895/05.0TBSTB.E1.S1, e de 14/06/2018, proc. nº 8543/10.1TBCSC.L1.S1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt).

Em geral, a responsabilidade civil por violação de deveres de segurança no tráfego tem conhecido um enorme desenvolvimento dogmático no direito português recente (cfr., em especial, a obra de referência de Rui Mascarenhas Ataíde, Responsabilidade civil por violação de deveres de tráfego, Almedina. Coimbra, 2015).

Tradicionalmente, tanto a doutrina (cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, Vol. I, 10ª ed., Almedina. Coimbra, 2000, págs. 594, e Almeida Costa, Direito das Obrigações, 12ª ed., Almedina, Coimbra, 2009, págs. 586-587) como a jurisprudência nacionais entendiam que o regime do nº 1 do art. 493º do CC, consagra uma presunção de culpa, sendo que, entretanto, se vem também afirmando que essa presunção será indissociável da presunção da própria ilicitude (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado do Direito Civil, Vol. VIII – Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2014, págs. 580 e 584; Mafalda Miranda Barbosa, Lições de Responsabilidade Civil, Princípia, Cascais, 2017, págs. 244-245). Neste sentido, cfr., por exemplo, o acórdão deste Supremo Tribunal de 30/09/2014 (proc. nº 368/04.0TCSNT.L1.S1)

Sendo excepcional a responsabilidade civil por facto de outrem, a reparação do dano causado supõe, fora dos casos previstos na lei, a culpa pela não execução de uma obrigação que ao próprio incumbe, pessoalmente, e não aquele, e que se pode fundar, nomeadamente, na omissão do dever de vigilância (VAZ SERRA, Responsabilidade de Pessoas Obrigadas à Vigilância, BMJ nº 85, 382.).

E a omissão é causa do dano sempre que haja o dever jurídico de praticar o acto omitido, com a consequente obrigação de reparar esse dano, nos termos do disposto pelo artigo 486º do CC.

A responsabilidade civil por omissões importa, para além do pressuposto específico que consiste no dever jurídico da pratica do acto omitido, a verificação dos demais requisitos legais, nomeadamente, a existência de um nexo de causalidade, de modo a que a realização do acto teria obstado, seguramente ou com a maior probabilidade, à verificação do dano (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 357 e nota (364); ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 559.) .

Dispõe o artigo 487º, nº 1, do CC, que “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”.

A lei consagra situações de presunção legal de culpa do responsável, que implicam uma inversão do ónus da prova, mas que são ilidíveis, em princípio, mediante prova em contrário, nos termos do estipulado pelo artigo 350º nº 1 e 2 do CC, não se tratando, portanto, de casos de responsabilidade objectiva.

Como se afirma no Acórdão do STJ de Ac. 14.09.2010 (processo 403/2001), (I) “se o autor prova que as águas que inundaram e danificaram o seu apartamento provieram do interior do apartamento dos réus, mostra-se preenchido o ónus da prova (art. 342º do CC), de que o facto danoso teve origem ou causa na coisa sob vigilância dos réus (art. 493º/1 do CC), não lhe cumprindo provar ainda que a razão (sub-causa) da inundação (uma eventual ruptura da canalização, uma torneira deixada a correr por incúria ou distracção, etc.). II - O proprietário que tenha o imóvel em seu poder tem o dever de vigiar o seu estado de conservação e responde pelos danos originados no imóvel (infiltrações de água, incêndios, etc), salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa (art. 493º, nº1 do CC).

Como é afirmado no Acórdão do STJ de 10.11.2016 (processo 472/10), “A responsabilidade civil especial, prevista no art. 493º, nº1 do CC, designadamente quanto aos danos causados por coisas, móveis ou imóveis, assente numa presunção de culpa, cabe a quem tiver em seu poder a coisa, com o dever de a vigiar.”

Olhando o nosso caso, por constituir um pressuposto da obrigação de indemnizar (art. 483º do CC), incumbe ao Autor o ónus da prova de que os danos sofridos no imóvel de que é proprietário resultaram do incêndio que teve origem no prédio da Ré, tal observando o disposto no nº1 do art. 342º do CC que consagra o princípio segundo o qual “aquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.”

O que o nº1 do art. 493º tem de particular é que, derrogando a norma do art. 487º nº1 do Código Civil, segundo a qual “é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa”, estabelece uma presunção de culpa que recai sobre o réu, ficando este com o ónus de ilidir a mesma, não dispensando, todavia, o autor de provar que os danos cuja ressarcibilidade pretende tiveram origem na coisa sujeita a vigilância do réu.

Postos estes princípios, é altura de reverter ao caso dos autos, recordando (novamente) o que se provou neste âmbito:

97. Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento da ré, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada, deflagrou o incêndio em causa.

98. Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa lançou fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração A.

99. O incêndio não foi provocado ou iniciado por bens existentes nas frações A e B.

A obrigação de indemnizar o lesado que recai sobre o agente, proveniente de responsabilidade civil extracontratual, não abrange todos os danos, cronologicamente, sobrevindos ao facto ilícito, mas, tão-só, de acordo com o preceituado pelos artigos 483º, nº 1 e 563º, ambos do CC, os danos causados ou resultantes da violação, “em que o efeito danoso seja uma causa provável ou adequada do efeito verificado” (MANUEL DE ANDRADE, Direito das Obrigações, 355 e ss.), aqueles que o lesado, provavelmente, não teria sofrido se não fosse a lesão, ou seja, os danos que constituam uma consequência normal, típica, provável do facto ilícito, e não já aqueles para cuja verificação tenham concorrido, decisivamente, circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais (ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, I, 1970, 429, 652, 654 e 659.). .

Quer isto dizer que, no âmbito da responsabilidade civil extracontratual em que se situa a causa de pedir da acção, o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado para o efeito, e o haja produzido, unicamente, em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais (ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 10ª edição reelaborada, 2006, 764.), desde que se não mostre idóneo para agravar o risco de produção do prejuízo, segundo o que a experiência de vida ensina, em face da própria índole do acto e das circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis pelo agente (GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 7ª edição, revista e actualizada, 1997, 405; STJ, de 15-1-2002, CJ (STJ), Ano X, T1, 36.).

A presunção legal de culpa na omissão do dever de vigilância, sendo de natureza relativa ou “iuris tantum”, pode ser ilidida ou destruída, exonerando-se de responsabilidade as pessoas obrigadas à vigilância, desde que provem que cumpriram o seu dever de vigilância, com a diligência de um homem médio, segundo as circunstâncias do caso concreto, nas quais se incluem a ocupação e a condição do próprio vigilante, e, não obstante, a lesão ocorreu, ou que, mesmo que o tivessem cumprido, sempre o dano se teria produzido (neste sentido, embora na optica de vigilância de incapazes, os Acórdãos do STJ, de 20-3-91, AJ, 17º, 5; de 23-2-88, BMJ nº 374, 466; Dário Martins de Almeida, Manual de Acidentes de Viação, 1980, 232.).

Regressando ao nosso caso, a sustentação para a responsabilização da Ré em cujas instalações deflagrou o incêndio que se estendeu às instalações da Autora, resulta da mera circunstância de aquela ser proprietária daquelas instalações.

De facto, embora tal nexo real entre a Ré e a instalação imobiliária originária do incêndio, logrou aquela demonstrar que não se verificou da sua parte qualquer omissão que tenha dado causa ao incêndio, uma vez que este foi comprovadamente causado, por uma pessoa que se infiltrou no interior daquele estabelecimento com o propósito e o pessoal desígnio de ali vir a deflagrar o incêndio em causa, para tanto usando fonte de fogo ou calor cuja natureza se não apurou, lançando fogo sobre objetos que ali se encontravam.

Ou seja, o incêndio foi causado por terceiro sobre os objectos que se encontravam no estabelecimento da Ré e não causado por estas mesmas coisas.

Houve uma sinistra vontade de terceiro no sentido da deflagração em causa, não tendo esta ocorrido por circunstância desconhecida.

Ora, a Ré não pode ser responsabilizada pela conduta de terceiro, levada a cabo de forma ardilosa e criminosa, nada se lhe podendo apontar de censurável, porquanto não lhe é exigível que tenha de prever o fogo posto por terceiro que se infiltrara no interior do seu estabelecimento comercial, onde nem sempre é possível estabelecer o melhor controle de proximidade visual entre os funcionários da Ré e os seus clientes, que supostamente entram no estabelecimento para comprar algum bem de que necessitem, não sendo previsível aos olhos do cidadão mediamente previdente e cauteloso, que a sua intenção seja a deflagração de fogo sobre os objetos ali expostos para venda.

Como bem sabemos, no interior de um estabelecimento comercial, mesmo que provido de câmaras de vigilância, existem sempre espaços escondidos onde alguém, na veste de cliente, mas malévolo ou mal intencionado e com propósitos destrutivos, pode lançar um fogo, sem que tal conduta seja controlada por quem, em princípio, está obrigado a proceder à vigilância do espaço.

Não sendo pensável ou crível, nem aceitável, nem exigível, que cada utente ou cliente daquele estabelecimento tenha de ter atrás de si um vigilante “por sua conta”, que o controle.

Sendo certo também que o estabelecimento comercial em causa se trata de um espaço aberto, onde qualquer cidadão pode entrar, num quadro de liberdade e auto-responsabilidade a que o obrigado à vigilância do espaço é alheio, não se lhe podendo assacar responsabilidades pelos actos em desvio àquela liberdade e auto-responsabilidade que terceiros ali venham a perpetrar encapotada, voluntaria e criminosamente.

Ora, tendo o incêndio sido deflagrado por terceiro com aqueles viciados contornos volitivos, não pode a Ré proprietária do estabelecimento ser responsabilizada por isso, pois que nenhuma conduta omissiva lhe pode ser imputada, antes pelo contrário, uma vez que não resultou apurado que esta não se tenha comportado na medida do que lhe era razoavelmente exigível.

Nada se apurou no sentido de que a Ré não tenha feito o que estava ao seu alcance no quadro da sua obrigação de vigilância do seu estabelecimento, não sendo possível exigir-lhe uma conduta de absoluto controle individual de cada cliente que entre naquele espaço, nem imaginável nesse âmbito outro procedimento, para que pudessem ser ultrapassados a tramoia e o estratagema de terceiros com intuitos criminosos, assim como as consequências danosas das mesmas resultantes.

Não podendo concluir-se, nem se podendo presumir, ante a factualidade apurada, que a Ré não ombreou com os cuidados e cautelas idóneos à não verificação do incêndio e do subsequente acto danoso, tomados aqueles cuidados e cautelas pela postura que o cidadão comum, mediamente culto, o bonus pater familias, adoptaria nessas circunstâncias concretas, como dono do estabelecimento em causa.

Ou seja, afigura-se impensável, porque humanamente impossível, exigir a quem expõe e tem aberto ao publico um estabelecimento comercial, que controle todos os passos e movimentos de um seu suposto cliente, sendo inquestionável que a vigilância desse estabelecimento não pode passar obrigatoriamente pela mera instalação de câmaras de vigilância, pois da mesma também não resultaria a absoluta limitação da liberdade de movimentos dos seus clientes, não se revelando exigível que a Ré “controlasse” e “fiscalizasse” todas as deslocações e movimentos desses mesmos supostos clientes naquele espaço, de forma a impedir, em todo e qualquer momento, que os mesmo praticassem um qualquer acto lesivo.

Assim, haverá que concluir que, sendo certo que a Ré se encontrava especialmente responsabilizada pela segurança e pela vigilância do seu estabelecimento, pela circunstância de ser sua proprietária e entidade que explorava comercialmente o espaço, certo é que no caso vertente não lhe era exigível prever a conduta criminosa de terceiro que ali se infiltrou e agiu ardilosamente, e adoptar uma outra específica conduta preventiva para que aquela acção criminosa deixasse de ocorrer.

Impondo-se-nos concluir, ante as circunstâncias do caso, que tal o dever de vigilância da Ré não ficou a descoberto, tendo sido cumprido na medida do que estava ao seu alcance, não se lhe podendo imputar culpa in vigilando.

Devendo assim improceder a revista, com a confirmação do Acórdão recorrido.

DECISÃO

Por todo o exposto, Acordam os Juízes que integram a 7ª Secção Cível deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 11 de Janeiro de 2024

Relator: Ataíde das Neves

1º Adjunto: Juiz Conselheiro Ferreira Lopes

2º Adjunto: Juiz Conselheiro Lino Ribeiro

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1. 97. Uma das pessoas que estava no interior do estabelecimento da ré, pouco antes das 20:30 horas, no dia ...-06-2017, de forma voluntária e propositada, deflagrou o incêndio em causa.

  98. Usando uma fonte de fogo ou calor desconhecida, essa pessoa lançou fogo sobre objetos que se encontravam no estabelecimento da ré, na área correspondente à fração A.

  99. O incêndio não foi provocado ou iniciado por bens existentes nas frações A e B.