ACÇÃO PAULIANA
SIMULAÇÃO
LEGITIMIDADE PASSIVA
RÉ INSOLVENTE
LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Sumário


I. Numa acção em que é pedida a nulidade, por simulação, de um negócio de dação em pagamento, a ré insolvente não pode estar por si em juízo, havendo lugar à aplicação do nº4 do artº 81º do CIRE.
II. Cabendo ao administrador da insolvência assumir a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, a ele está atribuída a legitimidade passiva para a presente acção, devendo aquela ser absolvida da instância.
III. Ocorrendo ilegitimidade passiva da ré, declarada insolvente antes da propositura da acção, estando-lhe vedada a prática de actos processuais que possam ter reflexo na massa e não havendo lugar à substituição processual, a acção não poderá prosseguir com a ré não insolvente.

Texto Integral


Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório (feito com base no relatório da sentença apelada).

EMP01..., lda, pessoa coletiva n.º ...67, com sede em Guimarães, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra EMP02... – Sociedade Industrial de Malhas Têxteis Unipessoal, lda, pessoa coletiva n.º ...49 e AA, NIF ...30, residente em ..., pedindo, a final, que se julgue ineficaz o negócio de dação em cumprimento que teve como objecto o prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial ... sob o nº ...06 da freguesia ... e ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...64, e por via dele decretar-se o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade a favor da 2ª ré e eventuais registos de aquisição que se venham a efetuar na pendência desta ação, de modo a que o referido imóvel regresse à esfera jurídica da 1ª ré, para que possa ser apreendido e vendido para posterior pagamento do crédito da autora.
Subsidiariamente, pediu que o mesmo negócio seja considerado nulo por simulação, devendo as rés ser condenadas a reconhecer a nulidade do mesmo e em consequência decretar-se na conservatória do registo predial o cancelamento do registo de aquisição a favor da 2ª ré de modo a que o imóvel alienado regresse à esfera jurídica da 1ª ré.
Para tanto, alega, em síntese, que as rés, celebraram a referida dação em cumprimento, sem fundamento contabilístico, apenas com o intuito de desviar do património da 1.ª ré o seu bem mais valioso, sabendo das dificuldades financeiras e inviabilizando a cobrança do crédito da autora, no montante de 5.032,28€, em sede de processo executivo e em subsequente processo de insolvência.
Acrescenta que a 2.ª ré, em 24.09.2020, declarou prometer vender o imóvel à sociedade EMP03..., Unipessoal, Lda., cujo único sócio e gerente é irmão da 2ª ré, BB e filho do gerente da 1ª ré, mantendo a mesma actividade comercial.
Foram citadas as rés para contestar a presente ação, nos termos legais.
A 2.ª ré, além da excepção de ilegitimidade passiva da ré EMP02..., alegou que desconhecia o estado em que se encontrava a sociedade, tendo ajudado na liquidez, a pedido do seu pai, e sempre na perspetiva de recuperação; que o crédito da autora é ulterior à dação e que o seu intuito, com a realização de empréstimos, foi ajudar a sociedade, o que aconteceu, tendo a insolvência ocorrido mais de três anos após a dação.
A autora respondeu às excepções, concluindo pela sua improcedência.
Foi proferido despacho saneador, no qual, quanto à excepção de ilegitimidade passiva foi decidido o seguinte:
“Na sua contestação a Ré invoca a ilegitimidade passiva da EMP02..., além do mais, por preterição do litisconsórcio necessário, atento o disposto no art. 81º do CIRE, donde resulta que o Administrador da Insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caracter patrimonial que interessem à insolvência, pelo que a ré não tem poderes de representação que bastem à sua intervenção nos autos.
Em resposta a autora pugna pela improcedência da exceção.
Apreciando e decidindo:
Ora, como é sabido, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (…).
Todavia, como nota a autora, o bem/imóvel cujo negócio aqui é colocado em causa, não é bem integrante da Massa Insolvente, quer porque não foi apreendido, quer porque sobre ele não foi requerida qualquer diligência prevista no artigo 120º e seguintes do CIRE.
Não tendo, a MI, requerido a resolução do negócio, não reveste qualquer interesse para a mesma, a discussão da ineficácia do negócio que aqui se discute e, por isso, à contrario do disposto no artigo 81º/4 do CIRE, o administrador não assume a representação do devedor, uma vez que os efeitos de carater patrimonial desta ação, nada interessam a MI, até porque os efeitos da impugnação pauliana aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.
Sem olvidar que de acordo com o artigo 82º/1 do CIRE, os órgãos sociais do devedor, mantém-se em funcionamento após a declaração de insolvência (…).
Não se verificando a ilegitimidade da ré EMP02..., não se verifica a apontada preterição do litisconsórcio necessário, pelo que julgo improcedentes as exceções deduzidas”.

Realizado o julgamento, foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

III. Decisão
Face ao exposto, julgo a presente ação procedente, declarando a nulidade, por simulação, do contrato de dação em cumprimento outorgado por documento particular a 29 de maio de 2018 entre as Rés EMP02... – SOCIEDADE INDUSTRIAL DE MALHAS TÊXTEIS UNIPESSOAL, LDA. e AA, do prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial ... sob o nº ...06 da freguesia ... e ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...64, determinando-se o cancelamento do respetivo registo (Ap. ...62 de 2018/05/29).
Custas pelas Rés (artigo 527.º, n.º1 do C.P.C.).
Registe e notifique.”.

*
Inconformada com estas duas decisões, a ré AA delas interpôs recurso e formulou, a terminar as respectivas alegações, as seguintes conclusões (após convite ao seu aperfeiçoamento) que se transcrevem:
“CONCLUSÕES

I. O presente recurso incide sobre a matéria de facto, mais concretamente sobre os factos provados 4, 11, 12 e 14, mais se pretendendo o aditamento de factos à matéria de facto provada; mas incidirá ainda sobre a matéria de direito, invocando-se a violação de normas jurídicas e erro na determinação nas normas aplicáveis.
II. Entende a Recorrente que não se provou o facto provado 4: não se provou o desfecho do processo n.º 4587/19....; o processo n.º 220/20.... foi extinto por inutilidade superveniente da lide, devido ao requerimento de insolvência; existe um auto de penhora efetuado ao abrigo do processo n.º 4587/19...., no dia 06/02/2020, em que terão sido penhorados bens no valor de € 4.100,00.
III. Também entendemos que foi incorretamente julgado o facto provado 11), que mais não é do que o somatório de três conclusões desprovidas de suporte fáctico, até porque a testemunha CC explicou que a Recorrente “ajudava” a empresa há vários anos, que a mesma reside em ... há dez anos, que não existia qualquer processo em tribunal nem mora à banca, à data dos empréstimos, e que toda a documentação respeitante aos diversos empréstimos foi entregue ao advogado da empresa para preparar o negócio da dação; e a testemunha BB esclareceu que a Recorrente efetivamente dispunha de capacidade financeira para efetuar os empréstimos à sociedade.
IV. A Recorrente explicou os empréstimos e a forma da sua concretização, situou-os no tempo; demonstrou a sua disponibilidade financeira; esclareceu que o valor do imóvel foi alcançado por um agente imobiliário; explicou que desconhecia qualquer intenção do seu irmão em abrir uma nova empresa e que confiava na recuperação da EMP02..., tanto que depois da dação continuou a “agilizar a viabilidade do negócio”; explicou que efetuava os empréstimos porque com isso poupava despesas e juros à sociedade; explicou que pretendia ser ressarcida desses montantes e, quando os mesmos se acumularam, começou a pressionar para receber, o que originou um conflito familiar, mais deixando claro que, tivesse sabido que a empresa iria fechar, nunca teria emprestado dinheiro após a dação.
V. O tribunal fundamenta a prova dos factos com as declarações da senhora administradora, que demonstrou não merecer qualquer juízo de credibilidade: é que a testemunha apôs no relatório de insolvência que a Insolvente EMP02... e o contabilista recusaram prestar informações, (tal afirmação levou a que viesse a ser qualificada a insolvência da EMP02... como culposa), e afirmou agora, neste processo, pela primeira vez, que afinal “houve um lapso da sua parte”, porque afinal viu o email mas não viu os anexos que o mesmo continha; a testemunha refere ainda que não viu documentos das transferências, mas não refere nem afirma que as mesmas não se tenham concretizado.
VI. DD prestou declarações e explicou que enviou à administradora de insolvência os elementos que a mesma solicitara mas que a mesma referiu em tribunal que a empresa não colaborou; esclareceu que assumiu a contabilidade apenas em 2019, apenas consultou o balancete geral respeitante ao período anterior e que não verificou as transferências porque a dívida já estaria saldada e não seria contabilisticamente relevante.
VII. Não decorre da prova produzida que “a dívida da ré não existia, nem se pretendeu extingui-la com a dação em cumprimento, pretendendo enganar-se os credores.”, pelo que, conjugando a prova produzida com as regras do ónus da prova, impunha-se que o facto provado 11 constasse da factualidade não provada.
VIII. Já no que respeita ao facto provado 12), está aceite que as Rés não tinham quaisquer relações comerciais, mas convém relembrar que o ativo da sociedade não foi retirado, foi dado em pagamento.
IX. Não se provou que a Recorrente tivesse conhecimento da existência de dívidas em cobrança: o incumprimento é posterior dação; houve pagamentos à Recorrida após a dação em pagamento; a Recorrente reside em ... e virá a Portugal uma a duas vezes por ano, não tendo acesso à gerência da sociedade nem qualquer meio para confirmar a veracidade das informações que o pai lhe prestasse, pelo que não pode ter-se tal facto como verdadeiro e muito menos como decorrente da prova produzida, impondo-se sobre o mesmo decisão diversa, ou seja, que fosse dado como não provado!
X. Também o facto provado 14), tal como está, foi incorretamente julgado: a sociedade EMP03... não continuou a laborar no mesmo prédio da 1.ª Ré, uma vez que a dação ocorreu em maio de 2018 e o imóvel foi entregue, nessa data, devoluto de pessoas e bens, conforme a própria afirmou nas suas declarações; a sociedade EMP03... foi constituída apenas em fevereiro de 2019, conforme também decorre dos autos; não se provou que durante cerca de nove meses existisse qualquer atividade no imóvel objeto dos presentes autos, por intermédio da Recorrente e, menos ainda, da sociedade que só seria constituída mais à frente, não podendo falar-se de uma continuação de laboração.
XI. É mencionado no facto provado 9. que foram juntos os comprovativos de pagamento da quantia de € 11.556,62, pelo que podia e devia ter ficado a constar na matéria de facto provada que “A 2.ª Ré pagou à 1.ª Ré o valor devido pelo remanescente do valor do prédio que ultrapassava o seu crédito”, até porque se trata de um dos elementos essenciais da matéria em discussão e deve, nesse seguimento, à mesma ser aditado, o que desde já se requer.
XII. A Recorrente tinha capacidade económica, tinha motivo para emprestar e tinha meios facilitados e, se existisse alguma intenção fraudulenta, não aceitaria suportar mais despesas – como o pagamento de valor adicional de € 11.556,62, que influiriam necessariamente no valor de IS e IMT, e muito menos injetaria novamente capital na empresa, como adiante melhor veremos – isso é que não é, de todo, credível!
XIII. Conjugadas as declarações da Recorrente, do legal representante da EMP02... CC e de BB, nos trechos mencionados para a factualidade supra impugnada, entendemos ter-se provado que “A Ré AA, até à celebração do contrato de dação em pagamento, era credora da Ré EMP02... da quantia total de € 138.443,38.” – até porque a prova do inverso caberia à Autora.
XIV. Conjugando o ofício do banco Santander de 26/01/2023 com a documentação junta por CC no requerimento de 02/03/2023, deveria ter-se dado como provado que “A Ré AA efetuou duas transferências bancárias para a conta da Ré EMP02..., nos valores de € 10.000,00 e € 5.000,00, datadas de 08 e 24/10/2018, através de Homebanking (... do Banco 1... S.A.), da conta IBAN  ...08 para a conta IBAN  ...15.”
XV. Não se provou nenhum dos requisitos da simulação e não existem elementos de facto que permitam suportar essas conclusões, na medida em que as mesmas teriam de existir elementos objetivos para preencher o conceito de conluio, o dolo, a falsidade das declarações – e não existem!
XVI. Aplicando-se o regime legal do ónus da prova, a ação teria que improceder mas, ao invés disso, verificamos uma injustificada violação das regras do ónus da prova, pelo que a douta sentença recorrida violou o disposto nos artigos 342.º e 343.º do CC.
XVII. A douta sentença fundamenta a prova da matéria de facto com base em elementos conclusivos e meros indícios que são insuficientes para sustentar a douta decisão proferida, socorrendo-se das regras da experiência, que mais não são do que a expressão máxima do princípio da livre convicção do juiz, só que a livre convicção, ainda que configure uma ferramenta de análise da prova, devidamente ponderada, não pode convergir para um verdadeiro instrumento de arbitrariedade e não deixa de ter de socorrer-se de provas e indícios constantes dos autos e, inclusivamente, da matéria de facto provada.
XVIII. A Recorrente prestou declarações, não se podendo retirar do seu depoimento qualquer facto contra si prejudicial – não foi lavrada assentada do depoimento de parte do legal representante da 1.ª Ré, assim como das declarações de parte da 2.ª Ré, aqui Recorrente, pelo que nenhum facto desfavorável resultou do seu depoimento e, ainda que tivesse resultado, não tendo sido lavrada a respetiva assentada, não poderia o mesmo ser usado para fundamentar a douta decisão recorrida, pelo que se entende que a douta sentença proferida violou o disposto no artigo 463.º do CPC.
XIX. No caso concreto, pode não se ter provado que a Recorrente tenha entregue determinadas quantias de dinheiro à Ré EMP02... mas não pode afirmar-se que se provou que não entregou: são coisas distintas com tratamento jurídico também eles distinto; não foi dado como provado que a Recorrente não emprestou € 138.443,38€ - de acordo com as regras do ónus da prova, essa diferença resultaria em benefício da posição da Recorrente.
XX. A douta sentença não se refere especificadamente a nenhum dos requisitos da simulação mas faz antes uma apreciação generalizada, o que, em nosso ver, não satisfaz as exigências de fundamentação que sobre o tribunal impendem, pelo que será forçoso concluir que a douta sentença enferma do vício de falta de fundamentação, que a fere de nulidade, nos termos do disposto no artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC, nulidade que expressamente se invoca, para os devidos e legais efeitos.
XXI. A prova do facto provado 11 não decorre da prova testemunhal nem dos elementos documentais constantes dos autos, parecendo resultar de presunção judicial; só que para que o tribunal pudesse socorrer-se de presunções judiciais teriam de preencher-se dois requisitos: partir de factos conhecidos para infirmar o facto desconhecido; e, adicionalmente, fundamentar a sua decisão em ambos os sentidos: indicar concretamente os factos em que se baseou, sendo tais factos os decorrentes da matéria de facto provada; e explicar fundamentadamente o que o levou a tirar a ilação que o levou ao facto desconhecido.
XXII. Não há um único facto conhecido que permita pensar que a dívida da sociedade EMP02... à aqui Recorrente não existisse e fosse fraudulenta, da mesma forma que inexiste qualquer facto que permita suportar a existência de conluio entre os intervenientes na dação em pagamento, e por fim, nenhum facto existe que permita fazer concluir pela vontade em iludir terceiros.
XXIII. As regras da experiência não podem contrariar a prova produzida no caso concreto, e o que resulta dos autos é que: a sociedade EMP03... foi constituída quase um ano após a dação; a EMP02... ainda mantinha a sua atividade – há faturas emitidas à Recorrida Autora já após a constituição dessa nova sociedade; a insolvência não foi requerida pela EMP02..., mesmo depois de decorridos os tais dois anos mencionados.
XXIV. O único indício existente nos autos são os laços de parentesco existentes entre a Recorrente e o legal representante da EMP02... e da EMP03..., que são combatidos com outras provas e indícios que corroboram a realidade afirmada no contrato de dação: as declarações das Rés, os documentos juntos, as transferências efetuadas, os impostos pagos e, principalmente, no facto das relações de parentesco até terem sofrido consequências negativas.
XXV. Entende a Recorrente verificar-se ilegitimidade passiva por não ter sido demandada a Massa Insolvente da Ré EMP02..., dando-se por reproduzidos os argumentos invocados na contestação, os quais saem reforçados pelo teor da douta sentença proferida – tendo sido decretada a nulidade do negócio celebrado pela Insolvente, mas estando a mesma alheada dos seus poderes de representação, o efeito prático da douta sentença é discutível, porquanto não interveio na ação uma parte essencial – a massa insolvente.
XXVI. Foi igualmente invocada em sede de contestação a preterição do litisconsórcio necessário, por fundamentos que damos aqui por integralmente reproduzidos, entendendo a Recorrente que existirá, pelo menos quanto à sociedade EMP03..., se não um verdadeiro litisconsórcio legal, pelo menos um litisconsórcio natural, chamando-se aqui à colação o douto aresto do STJ, de 22/10/2015, Relator Lopes do Rego.
XXVII. A sentença proferida nos presentes autos colide diretamente com direitos constituídos a favor dessa sociedade, até porque o seu direito estava registado quando foi proposta a ação, e porque, declarando-se nulo o negócio, o imóvel objeto dos autos regressará à esfera jurídica da Recorrida EMP02... – sem que possa o registo que existe a seu favor ser cancelado.
XXVIII. Em face da prova produzida, impunha-se decisão diferente quanto à matéria de facto, assim como se impunha um enquadramento jurídico diferente do seguido na douta sentença recorrida, a qual violou o disposto nos artigos 463.º CPC, 615.º, n.º 1, als. b) e c), 30.º, 33.º, 278.º, 576.º, n.º 2 e 578.º CPC; 342.º, 343.º, 349.º e 351.º CC e 80.º, n.º 1, 4 e 5 do CIRE.
Nestes termos e nos melhores de direito deve o presente recurso ser julgado procedente e ser a sentença revogada, como é de DIREITO E JUSTIÇA!”.
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A autora contra-alegou e requereu a ampliação do objecto do recurso, terminando com as seguintes conclusões, que igualmente se transcrevem:
“CONCLUSÕES:

QUANTO À APELAÇÃO
A apelante pretende que o Tribunal dê como provado a existência de transferências de elevadas quantias, só com base no depoimento testemunhal.
A matéria de facto foi corretamente julgada, na medida em que não existe qualquer comprovativo de transferências da Apelante para a sociedade devedora.
Para além disso, inexiste no processo qualquer documento a que alude o artigo 1143 do código civil.
A Apelante AA é filha do gerente da sociedade EMP02... (CC) e irmã de BB, que é gerente da sociedade EMP03..., a favor de quem prometeu transmitir o imóvel que lhe havia sido dado em pagamento pela sociedade do seu Pai (a EMP02...).
Por isso, as rés não tinham relações comerciais, servindo-se dação para retirarem do património da sociedade EMP02... o seu ativo mais valioso, já que sabiam da existência de dificuldades financeiras, que motivaria as ações de cobrança dos credores.
A sociedade EMP03..., Lda. foi construída em fevereiro de 2019, e tem o mesmo objeto comercial da EMP02..., continuando a laborar no mesmo prédio.

QUANTO À AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO.
A Autora/apelada entende que se verificam os requisitos conducentes à procedência da impugnação pauliana, uma vez que a prova produzida e considerada assente pelo tribunal, é suficiente para concluir pelos requisitos conducentes à procedência da impugnação pauliana. • O Tribunal considerou provado: i) a existência do crédito a favor da Autora, ainda que o mesmo fosse posterior ao negócio (facto provados em 2 a 6 da sentença); ii) a prática, pela devedora EMP02..., de um ato que provocou para a Autora um prejuízo, que consistiu na impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito, traduzido na dação em pagamento realizada em 25/05/2018 (facto provado em 7 e 8); iii) sendo o crédito posterior, a dação, foi praticada com o intuito de impedir a satisfação do direito do futuro crédito (facto provado em 11); iv) que o ato gerador de prejuízos para a Autora/credora sendo oneroso, que o devedor e o terceiro, isto é, ambos os Réus, tenham agido de má-fé, ou seja, que tenham consciência do prejuízo que o ato causava ao credor (facto provado em 11 e 12)
Encontrando-se preenchidos os requisitos da impugnação pauliana, deveria esta ter sido dada como prova e, em consequência, ser o pedido principal, julgado procedente por provado.
Foi violado o artigo 610º do código civil
Termos em que deve ser admitida a requerida ampliação do recurso de modo que a mesma seja apreciada e revogada a sentença na parte que julgou improcedente o pedido de impugnação pauliana, pois só assim será feita JUSTIÇA !”.
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O recurso foi admitido, como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Já nesta instância foram as partes ouvidas sobre a (in)admissibilidade da ampliação do objecto do recurso.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC) –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber, por ordem lógica:

1. como questão prévia, da admissibilidade da requerida ampliação do objecto do recurso;
2. da ilegitimidade passiva;
3. da invocada nulidade da sentença;
4. da impugnação da matéria de facto;
5. se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação da ré/apelante - decidindo-se pela improcedência dos pedidos da acção.
6. caso seja admissível a ampliação do objecto do recurso: do pedido deduzido a título principal.
*
III. Fundamentação de facto.

Os factos que foram dados como provados na sentença sob recurso são os seguintes:
1. A Autora dedica-se ao comércio de embalagens e, por sua vez, a 1.ª Ré dedicava-se, entre outros, à indústria, comércio, importação e exportação de malhas e fios têxteis, artigos de vestuário, brindes e produtos de higiene e limpeza.
2. No exercício das respetivas atividades, a Autora forneceu à 1.ª Ré, vários artigos do seu comércio, entre outros, constantes dos documentos emitidos entre 6-9-2018 e 15-5-2019, e que ascendem a 3.745,42€:
-Nº ...07 de 05-09-2018 no valor de 272,22€ e da qual falta pagar a aquantia de 138,81€;
- Nº ...43 de 06-09-2018 no valor de 287,82€;
- Nº ...88 de 13-09-2018 no valor de 511,19€;
- Nº ...54 de 02-10-2018 no valor de 174,17€;
- Nº ...38 de 08-10-2018 no valor de 7,38€;
- Nº ...69 de 09-10-2018 no valor de 183,27€;
- Nº ...23 de 10-10-2018 no valor de 22,76€;
- Nº...78 de 17-10-2018 no valor de 230,01€;
- Nº ...83 de 17-10-2018 no valor de 12,30€;
- Nº ...38 de 24-10-2018 no valor de115,62€;
- Nº ...18 de 04-12-2018 no valor de 106,35€;
- Nº ...19 de 04-12-2018 no valor de 81,48€;
- Nº ...42 de 25- 01-2019 no valor de 658,67€;
- Nº ...15 de 18-02-2019 no valor de 82,41€;
- Nº ...66 de 25-03-2019 no valor de 317,93€;
- Nº...96 de 29-03-2019 no valor de 162,11€;
- Nº ...38 de 01-04-2019 no valor de 135,79€;
- Nº ...74 de 10-04-2019 no valor de 117,47€;
- Nº ...18 de 30-04-2019 no valor de 176,63€;
- Nº...29 de 09-05-2019 no valor de 164,21€;
- Nº ...76 de 15-05-2019 no valor de 184,50€;
- Nota de Crédito nº ...41 de 01-04- 2019 no valor de 125,00€.
3. Face ao não pagamento, a Autora intentou a 12/11/2019 Injunção contra a Ré, que correu termos sob o nº 106273/19...., onde peticionava o pagamento da quantia total de 4.384,25€, tendo sido aposta fórmula executória, por não ter sido deduzida oposição.
4. A Autora intentou ação executiva sob o nº 220/20.... que correu termos no Juízo de Execução de Guimarães – J..., com vista à cobrança coerciva da quantia exequenda de 4.436,38€UR, sendo que os bens que a Autora logrou penhorar estavam já penhorados à ordem do processo 4587/19.... e eram insuficientes para solver qualquer um dos credores.
5. A Autora requereu a declaração de Insolvência da 1ª Ré, cujo processo com o nº 2268/21.... correu termos no Juízo de Comércio de ... – Juiz ..., tendo sido proferida sentença de declaração de insolvência em 12-10-2021.
6. A 14-10-2021, a Autora reclamou o crédito para a AJ no montante de 5.032,28€, que corresponde ao crédito da autora, acrescidos dos juros vincendos, ascendo o montante de créditos reclamados a € 431.246,82.
7. Em sede de liquidação não foram apreendidos bens, tendo sido localizado um prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial ... sob o nº ...06 da freguesia ... situado em ... inscrito na matriz urbana sob o artigo ...64 da freguesia ... e ..., onde a sociedade Ré exercia a sua atividade, contudo o identificado imóvel tinha sido transmitido por dação em cumprimento registado a 29/05/2018 pela AP ...62 a favor de AA, filha do sócio gerente.
8. Por documento outorgado a 25 de maio de 2018 a sociedade Ré declarou ser devedora à 2ª Ré de 138.443,38€ e que com intuito de extinguir essa obrigação declarou dar-lhe em pagamento, o prédio urbano descrito na Conservatória do registo predial ... sob o nº ...06 da freguesia ... e ... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o artigo ...64, com o valor patrimonial de 130.256,28€ e atribuído de 150.000,00€.
9. Por sua vez a 2ª Ré declarou aceitar em pagamento da indicada dívida até ao montante de 138.443,38€, o mencionado imóvel, obrigando-se a pagar à 1ª Ré o remanescente do valor do prédio que ultrapassa o seu crédito, que fica assim extinto, ou seja, a quantia de 11.556,62€ no prazo máximo de 3 meses (tendo sido juntos comprovativos de depósitos efetuados em junho de 2018).
10. Em 2020/09/24 foi feita uma promessa de alienação para a empresa EMP03... Lda., sendo único sócio e gerente BB, irmão de AA e filho do gerente da Ré sociedade.
11. A dívida a favor da Ré não existia, nem se pretendeu extingui-la com a dação em cumprimento, pretendendo enganar-se os credores, de modo a criarem a aparência nestes de que o património havia sido realmente transferido da esfera jurídica da 1ª Ré.
12. As Rés não tinham relações comerciais, servindo-se da dação para retirarem do património da 1.ª Ré o seu ativo mais valioso, já que sabiam da existência de dificuldades financeiras, que motivaria ações de cobrança dos credores.
13. Após a referida dação, a Ré continuou a exercer a atividade industrial/comercial nas referidas instalações, não obstante ter mudado formalmente de sede para uma loja de um Centro Comercial na ... em maio de 2018.
14. A sociedade EMP03..., Lda. foi constituída em fevereiro de 2019, e tem o mesmo objeto comercial da 1ª Ré, continuando a laborar no mesmo prédio.
15. A 2.ª Ré procedeu à transferência para pagamento do IMT.
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Foram dados como não provados os seguintes factos:
“Com interesse para a boa decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos acima não descritos ou com estes em contradição, com exclusão sobre considerações jurídicas, conclusões ou juízos de valor e factos não essenciais à decisão da causa, nomeadamente, que a 2.ª Ré ajudou a sociedade, na perspetiva de recuperação desta; que era credora por empréstimos e transferências realizadas a favor da Ré sociedade.”.
*
IV. Do objecto do recurso.          
  
1. Antes de mais, e como questão prévia, vejamos se é admissível a requerida ampliação do objecto do recurso deduzida pela apelada.
Resulta do disposto pelo art. 636º nº 1 do CPC que no caso de pluralidade de fundamentos da acção ou da defesa, o tribunal de recurso conhece do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respectiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
Não pode confundir-se a interposição de recurso subordinado com a ampliação do objecto do recurso. Para além de terem diferentes objectivos que se pretendem alcançar com um e com outro instrumento processual, são diversas s circunstâncias que os motivam, já que o recurso subordinado implica que a parte ficou vencida em relação ao resultado declarado na sentença, ao passo que a ampliação do objecto do recurso pressupõe apenas que não foi acolhido o fundamento (ou fundamentos) invocado pela parte para sustentar a decisão que, apesar disso, lhe foi favorável (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª edição, Almedina, págs. 91 e 92, nota 159).
Se o decaimento, em lugar de respeitar a meros fundamentos da acção ou da defesa invocados pela parte vencedora, se reportar a um dos pedidos formulados pelo autor ou ao pedido reconvencional deduzido pelo réu, não será mediante a ampliação do âmbito objectivo do recurso que essa parte promoverá a reapreciação da decisão no segmento em que saiu vencido, mas mediante apresentação de recurso autónomo (quando este seja admissível) ou de recurso subordinado, sob a cominação do caso julgado nessa parte, Com efeito, quando no nº1 do art. 636º se faz referência aos “fundamentos da acção” está a reportar-se a causas de pedir inerentes a determinado pedido e não aos pedidos, ainda que subsidiários (cfr. Abrantes Geraldes, ob cit, págs. 115 e 116, nota 205).
Tendo em vista tais considerandos, temos que a ampliação do objecto do recurso requerida pela apelada não é admissível, pois que pretende a mesma a reapreciação da decisão no segmento em que saiu vencido (pedido principal).
2. Da invocada ilegitimidade passiva.
Na sua contestação, a 2ª ré veio invocar a ilegitimidade passiva da ré EMP02..., nos seguintes termos:
“6.º Diz-nos o artigo 30.º, n.º 1 do CPC que “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.”
7.º Diz-nos o n.º 1 do artigo 81.º do CIRE que “Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.”
8.º No mesmo sentido, “O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.” – cfr. artigo 81.º, n.º 4 do CIRE.
Por sua vez,
9.º Diz-nos o n.º 5 do mesmo artigo que “A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário.”
10.º A contrario, podemos assumir com clareza que o devedor mantém os seus poderes de representação, apenas e tão-somente, no processo de insolvência e seus apensos, naqueles que são os atos que requeiram a sua intervenção direta e insubstituível.
11.º Não será o caso dos presentes autos, que nem sequer fazem parte ou estão apensos ao processo de insolvência.
12.º Assim, a Ré EMP02... não tem poderes de representação que bastem à sua intervenção nos presentes autos.
13.º Tanto mais que não teria poderes, por exemplo, para transigir, se tal implicasse efetuar uma disposição patrimonial.
14.º Donde resulta que a Ré EMP02... é parte ilegítima, devendo ser absolvida da instância.
A este propósito,
15.º O douto aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13/07/2020, Relator Alberto Ruço, diz-nos claramente que “A instauração de ação declarativa contra réus já declarados insolventes implica que estes sejam absolvidos da instância por ilegitimidade – n.º 1 e 4 do artigo 81.º do CIRE e artigos 578.º, 278.º, n.º 1, al. d), e 576.º, n.º 2, do C.P.C.”
Sem prescindir,
16.º O n.º 1 do artigo 85.º do CIRE, por sua vez, determina que “Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.”
17.º O n.º 3 do mesmo artigo diz-nos que “O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as ações referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária.”
Aqui chegados,
18.º A Autora, subsidiariamente, requer que seja declarado nulo, por simulação, o negócio em discussão nos presentes autos.
19.º A proceder tal pedido, o imóvel referido na douta petição inicial regressaria à esfera jurídica da Ré EMP02....
20.º O que resultaria numa flutuação flagrante do valor da massa insolvente, por incremento do seu ativo.
21.º Pelo que, também aqui, nos termos supra referidos, a Ré EMP02... é parte ilegítima, devendo ser absolvida da instância”.
Como resulta do relatório deste acórdão, tal excepção foi julgada improcedente.
Vejamos então.
A legitimidade processual, “pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa” não se confunde com a denominada “legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido” (cfr. Ac. do STJ de 14.10.2004, relator Araújo de Barros, disponível in www.dgsi.pt).
Na lei está consagrada a tese subjectivista, que defende que a legitimidade processual deve ser apurada em função da relação controvertida, tal como configurada unicamente pelo autor na petição inicial, como decorre do nº 3 do artigo 30º do CPC.
De facto, nos termos dos nºs 1 e 3 deste artigo, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer; estes têm interesse directo na causa quando são sujeitos da relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor.
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". A "parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular". (cfr. Castro Mendes, Manual de Processo Civil, Coimbra, 1963, págs. 260, 261, 262).
Mas do referido artº 30º, nº3 do CPC, também resulta que, além da legitimidade directa, resultante da coincidência entre as partes na acção e os sujeitos da relação material, a lei pode também atribuir legitimidade aos não titulares da relação material, a chamada legitimidade indirecta.
Teixeira de Sousa, na sua obra intitulada “As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex 1997, pag. 53., escreve que a legitimidade indirecta, comporta duas subespécies:
- legitimidade substitutiva, no caso de existência de um interesse próprio na tutela processual de uma situação subjectiva alheia; e
- legitimidade representativa, no caso de existência de um interesse alheio na tutela adjectiva de uma situação subjectiva alheia.
Os pedidos deduzidos nos presentes autos são os seguintes:
- ser declarada a ineficácia do negócio melhor referido supra em 12º e 13º e por via dele decretar-se o cancelamento do registo de aquisição do direito de propriedade a favor da 2ª ré e eventuais registos de aquisição que se venham a efetuar na pendência desta acção, de modo a que o referido imóvel regresse à esfera jurídica da 1ª ré, para que possa ser apreendido e vendido para posterior pagamento do crédito da autora.
- subsidiariamente e quando assim não se entenda, deverá então o mesmo negócio ser considerado nulo por simulação, devendo os réus ser condenados a reconhecer a nulidade do mesmo e em consequência decretar-se na conservatória do registo predial o cancelamento do registo de aquisição a favor da 2ª ré, de modo a que o imóvel alienado regresse à esfera jurídica da 1ª ré.
Como resulta dos autos, a 1ª ré foi declarada insolvente, antes da propositura da presente acção.
Mas, como também dos autos se verifica, foi ela directamente demandada e é ela que tem intervindo pessoalmente na acção, praticando todos os actos processuais que julga pertinentes.
A questão que se coloca é se poderá assim ser.
Antes de mais, há que esclarecer que a impugnação pauliana é um meio de conservação patrimonial que não coloca em crise a validade do acto impugnado; em que o credor não aspira a que o tribunal declare inválido (nulo ou anulável) um qualquer acto patrimonial praticado por um seu devedor em seu prejuízo; mas em que apenas pretende que o acto seja ineficaz (Antunes Varela, in RLJ, ano 122º, pág. 252 e ss.) em relação a si (art. 616º do CC - ineficácia relativa), podendo executar o bem no património do obrigado à restituição.
A acção tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor.
Trata-se, portanto, de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor (M. Henrique Mesquita, in RLJ, ano 128º, pág. 256).
Ou seja, a pretensão da aqui autora/apelada, com o primeiro pedido deduzido, seria não colocar em crise a validade do acto impugnado, sendo que para ela – e para a lógica jurídica duma acção pauliana – a adquirente (a ré apelante) passou a ser a proprietária do bem adquirido através do acto impugnado e continuaria a sê-lo ainda que tal pedido procedesse, tendo a autora/apelada “direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição” (cfr. art. 616.ºnº 1 do Cód. Civil).
Assim, se tal bem continua a ser propriedade da adquirente (aqui 2ª ré e apelante), não é propriedade da 1ª ré, insolvente, e consequentemente não é bem integrante da sua massa insolvente, nem passará a ser por via da procedência de tal pedido de impugnação pauliana.
Nessa medida, tem a ré insolvente legitimidade passiva, no que a tal pedido diz respeito.
Quanto ao pedido subsidiário, de declaração de nulidade por simulação, já o nosso entendimento é outro.
Como se escreveu no recente acórdão desta Relação de Guimarães, de 23.11.2023, relatora Raquel Rego, in www.dgsi.pt, e que agora passamos a seguir de muito perto, com meras adaptações de redacção para o caso dos autos, é inquestionável que a declaração de insolvência acarreta diversos efeitos na esfera jurídica daquele que é seu objecto. Assim e desde logo, como decorre dos nºs 1 e 2 do artigo 81º CIRE, por efeito da declaração de insolvência, fica o insolvente imediatamente privado, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
E também por força desse mesmo preceito, agora no seu nº4, o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência.
De facto, como escreveu Teixeira de Sousa in blog do IPPC, num post de 11.01.2022, referindo-se ao administrador do condomínio: “Dado que o administrador não está em juízo defendendo interesses próprios, mas antes os interesses alheios do condomínio, o que se consagra nos referidos preceitos é o que em termos doutrinários se qualifica como substituição processual representativa (como também se verifica, por exemplo, quanto ao administrador de insolvência) […].”
Catarina Serra, “Direito da Insolvência”, in http://ae.fd.unl.pt/wp-content/uploads/2019/10/Sebenta-insolve%CC%82ncia.pdf, pag.28 escreveu: “O que está aqui em causa é a destituição do insolvente dos direitos que são inerentes a qualquer proprietário. O insolvente não deixa de ser proprietário, só deixa de poder exercer estes poderes. (…) Trata-se de uma presunção por parte do legislador de que o insolvente vai tentar praticar atos prejudiciais aos credores…».
E, como se afirmou no acórdão da Relação do Porto de 19.05.2016, Procº 2060/14.8YYPRT.P1, «Tal privação não abrange os bens excluídos da massa insolvente, em relação aos quais o insolvente conserva poderes de administração e de disposição. Significa tal que o insolvente, pessoa singular, não está impedido da prática de actos de carácter patrimonial, apenas lhe sendo vedada essa prática se os actos se reflectirem sobre a massa insolvente», acrescentando, em molde de citação do ali aresto identificado que «Em rigor, a massa não abrange a totalidade dos bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas apenas os que forem penhoráveis e não excluídos por disposição especial, acrescidos dos que, não sendo penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo devedor, conquanto a sua impenhorabilidade não seja absoluta. Igualmente os bens advenientes ao devedor no decurso do processo, seja a que título for, integrarão a massa insolvente se penhoráveis ou se decorrerem da sua oferta voluntária. Claro que se o devedor insolvente apresentar voluntariamente os bens relativamente impenhoráveis, eles passarão a integrar a massa definitivamente e não mais poderão ser desafectados enquanto decorrer o processo [...].
Considerações que facultam a conclusão de que o devedor, não obstante a sua declaração de insolvência, pode administrar e dispor dos seus bens desde que não integrem a massa insolvente, o que equivale a afirmar que o devedor insolvente não sofre quaisquer limitações aos poderes de administração e até de disposição de bens não compreendidos na massa insolvente e que, em princípio, esses actos são válidos e eficazes».
De resto, «A apreensão dos bens do devedor/insolvente é um efeito da sentença que declara a insolvência deste, e impõe ao administrador de insolvência que apreenda todo o património do devedor, que lhe pertença à data da declaração da insolvência e que lhe venha a pertencer na pendência do processo de insolvência e que seja suscetível de ser penhorado, com exceção dos bens que se encontrem apreendidos em processo penal ou contra-ordenacional, por virtude, respetivamente, de infração criminal ou de mera ordenação social» - Acórdão da Relação de Guimarães datado de 04.02.2021, processo n.º 257/20.0T8VNF-D.G1.
Visa-se, portanto, acautelar todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência e aos credores.
É certo que na presente acção não se peticiona o reconhecimento de um crédito, mas isso não afasta, a nosso ver, todas as repercussões que o legislador quis acautelar quando estatui no sentido vertido no citado art. 81º nº 4.
É que, é manifesta a relevância da sorte deste pedido de nulidade por simulação para os credores da insolvente, posto que a prova da simulação e da procedência da acção traz, para o património destes, activos relevantes e aptos a satisfazer, se não totalmente, pelo menos parte dos créditos dos primeiros.
E se tivermos em linha de conta que, declarada a insolvência, vigora o princípio par conditio creditorum, o regresso ao património da insolvente do bem objecto da alegada simulação é de inquestionável interesse para todos eles.
De acordo com os ensinamentos de há longo tempo, mas com plena actualidade, de Pedro Macedo, “uma vez que não pode constituir, modificar ou extinguir relações jurídicas patrimoniais, no campo do direito substantivo, pela mesma razão se impõe que se lhe não permita praticar actos processuais com reflexo nessas relações jurídicas” - Manual de Direito das Falências, Vol. II, pág. 114 /115.
Nessa medida, é nosso entendimento que a ré insolvente não poderia estar por si em juízo e que haveria lugar à aplicação do nº4 do artº 81º do CIRE, ou seja, cabendo ao administrador da insolvência assumir a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, a ele está atribuída a legitimidade passiva para a presente acção, devendo aquela ser absolvida da instância.
Neste ponto, também nós acompanhamos o pensamento e solução jurídica adoptada no acórdão da Relação de Coimbra de 13 de Julho de 2020, tirado no procº 3872/18.9T8LRA.C1: aí se decidiu, seguindo o último autor citado, que os actos praticados pelo insolvente, após a insolvência, são feridos de nulidade e devem ser repetidos e que a acção ali proposta, de cariz patrimonial com reflexos na massa, tal como a presente, não podia ser interposta, devendo a ré insolvente ser absolvida da instância por ilegitimidade.
E, estando em causa a invocação de um negócio simulado, há que atentar no disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 33º do CPC: há lugar a litisconsórcio necessário quando a lei ou o contrato o impuserem ou quando resultar da própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão a obter produza o seu efeito útil normal.
Assim, ocorrendo ilegitimidade passiva da ré declarada insolvente antes da propositura da acção, estando-lhe vedada a prática de actos processuais que possam ter reflexo na massa e não havendo lugar à substituição processual, a acção não poderá prosseguir com a outra ré não insolvente.
Nestes termos, julga-se verificada a invocada excepção da ilegitimidade passiva, no que ao pedido subsidiário diz respeito, com a consequente absolvição das rés da instância.
*
Aqui chegados, há que dizer que se torna desnecessário o conhecimento das restantes questões suscitadas pela apelante, considerando que, quanto à improcedência do pedido principal, não houve recurso (e não foi admitida a requerida ampliação do objecto deste, com esse fundamento) e quanto ao pedido subsidiário, verifica-se a absolvição das rés da instância.
Procede, pois, parcialmente, a apelação.
*
Sumário (ao abrigo do disposto no art. 663º, n.º 7 do CPC):

I. Numa acção em que é pedida a nulidade, por simulação, de um negócio de dação em pagamento, a ré insolvente não pode estar por si em juízo, havendo lugar à aplicação do nº4 do artº 81º do CIRE.
II. Cabendo ao administrador da insolvência assumir a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, a ele está atribuída a legitimidade passiva para a presente acção, devendo aquela ser absolvida da instância.
III. Ocorrendo ilegitimidade passiva da ré, declarada insolvente antes da propositura da acção, estando-lhe vedada a prática de actos processuais que possam ter reflexo na massa e não havendo lugar à substituição processual, a acção não poderá prosseguir com a ré não insolvente.
*
V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes desta 3ª Secção do Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente a apelação, revogar parcialmente a sentença recorrida e absolver as rés da instância no que ao pedido subsidiário diz respeito.
Custas pela apelada.
                                                       *
Guimarães, 18 de Abril de 2024

Assinado electronicamente por:
Fernanda Proença Fernandes
José Manuel Flores
Maria Amália Santos, com a seguinte

Declaração de voto:
Como dispõem os n.ºs 1 e 2 do artigo 30.º do CPC, intitulado “Conceito de legitimidade”, “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer”, sendo que “O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha”.
Resulta do exposto, que na presente ação, a primeira ré tem interesse direto em contradizer, porque o pedido formulado pela Autora a pode afetar, porquanto o bem em disputa nos autos não pertence à massa insolvente, sendo do interesse daquela a sua não apreensão para a massa.
Consequentemente, também o Administrador da Insolvência nunca poderia ser considerado parte legítima na ação, na qualidade de Réu (ainda que em litisconsórcio com a primeira ré), porquanto não tem interesse em contradizer. Como “defensor” da massa insolvente e “garante” dos interesses de todos os credores, o seu interesse na ação seria, quando muito, o de demandar as Rés (juntamente com a A), para obter a procedência da ação e a aquisição para a Massa insolvente do bem pertencentes à ré insolvente.
Concluiria, assim, pela legitimidade da primeira Ré para a ação (como se concluiu na decisão da primeira Instância).
(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações/transcrições” efectuadas que o sigam)