DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
TESTEMUNHA CRIANÇA
Sumário

Estando em causa a investigação da prática, pelo denunciado, de um crime de violência doméstica, em que é ofendida a progenitora da criança cuja tomada de declarações para memória futura foi requerida pelo Ministério Público (criança que assistiu às ofensas praticadas pelo seu pai sobre a sua mãe), impõe-se a prestação de declarações para memória futura dessa criança (que tem 9 anos de idade).

Texto Integral



ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA



1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

Nos autos de inquérito nº 1296/23.5GBABF-A.E1, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira, Juiz 3, em que é denunciado E, e em que são investigados factos susceptíveis de integrar a prática de crime de violência doméstica, p.p., pelo Artº 152 nsº1 al. b) e 2 al. a) do C. Penal, veio o MP apresentar o seguinte requerimento para recolha de declarações para memória futura da ofendida A (transcrição):

Apresente de imediato os presentes autos ao Mmo. Juiz de Instrução a quem se requer que sejam tomadas declarações para memória futura ao(s) menor(es): A;
cfr. ponto IV. A. 2) e B. da Diretiva n.º 5/2019, da Procuradoria Geral da República e artigos 67.º-A, n.º 1 als. a), iii), b), c), d), n.º 3, e 271.º do CPP, artigos 2º, 22.º e 33º da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, artigos 15.º, n.º 1, 22.º, e 24º da Lei 130/2015 de 4 de Setembro e art. 26º, nº 1 e nº 2, 28º, nº 1 e nº 2, da Lei 93/99, de 14.07.
Porquanto,
Afigura-se-nos essencial a inquirição da criança, com 9 anos de idade, porquanto, será testemunha presencial de alguns dos factos denunciados e susceptíveis de consubstanciar crime de violência doméstica, perpetrado pelo denunciado, seu pai, sobre a ofendida, sua mãe.
Às vítimas especialmente vulneráveis, bem como aos seus familiares elencados na alínea c) do n.º 1 do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, são aplicáveis, além das normas processuais penais, as medidas de protecção previstas na Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, que aprova o Estatuto de Vítima, de entre as quais se mostra prevista a tomada de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade das respostas – cfr. artigos 15.º, n.º 1 e 21.º, n.º 2, al. d) e 24.º, ambos do mencionado diploma legal.
In casu, atenta a natureza do crime em investigação, a relação familiar (o denunciado é progenitor da testemunha menor), a idade da testemunha, afigura-se-nos que se deva proceder à sua inquirição durante a fase de inquérito, de modo a que as declarações pela mesma prestadas possam ser tomadas em conta no julgamento (na eventualidade do processo prosseguir para essa fase processual), não sendo as crianças sujeitas a semelhante diligência, com as consequências negativas que, ao nível psicológico e estabilidade emocional para as mesmas possam advir.
Por outro lado, sendo as declarações para memória futura tomadas em ambiente menos constrangedor do que seria em sede julgamento, poder-se-á obter uma maior espontaneidade por parte da testemunha.
Afigura-se, pois, ser essencial, a fim de minorar os efeitos da vitimização secundária, decorrentes da exposição ao contacto com o sistema judicial, que os menores sejam, então, inquiridos em sede de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, de modo a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas e a salvaguardar a estabilidade emocional dos menores, não sujeitando as crianças a semelhante diligência numa ulterior fase do processo.
Face ao exposto, o Ministério Público requer que seja designada data para a tomada de declarações para memória futura a A.
Mais se requer que:
- seja determinado que a tomada de declarações para memória futura seja realizada com afastamento do denunciado da sala de audiências, de forma a assegurar, no decurso da sua inquirição, a obtenção de respostas livres, espontâneas e sinceras;
- seja determinada a presença de técnico de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento das testemunhas, se for caso disso, e proporcionar à testemunha o apoio psicológico necessário por técnico especializado – artigo 27º da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho (Protecção de Testemunhas) e 33.º, n.º 3 da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, facultando-se os necessários contactos com a antecedência necessária a esse acompanhamento.


Tal requerimento foi indeferido por despacho judicial que reza nos seguintes termos (transcrição):
Veio o Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura de A. Fundamenta a sua pretensão na conjugação do disposto no art. 67º-A nº 1 al. c) do Código de Processo Penal (CPP), de onde decorre que a testemunha a ouvir é, por ser familiar da vítima do crime, vítima para efeitos daquele normativo, pelo que ao caso se aplica o disposto nos artigos 15º nº 1, 21º nº 2 al. d) e 24º do Estatuto da Vítima (Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro), normas que sustentam a realização da diligência requerida.
Cumpre decidir.
Antes do mais assinale-se que nem o art. 15º nº 1 nem o art. 21º nº 2 al. d) do Estatuto da Vítima dão suporte à requerida diligência.
Com efeito, o art. 15º da Lei nº 130/2015 trata de medidas de protecção genéricas às vítimas, sendo que a prestação de declarações para memória futura tem normas especiais consagradas no art. 24º do diploma. Por seu lado, o art. 21º nº 2 al. d) da Lei nº 130/2015 atribui à vítima especialmente vulnerável (e não ao Ministério Público) o direito de requerer a prestação de declarações para memória futura nos termos previstos no artigo 24º daquele mesmo diploma (a legitimidade do Ministério Público para requerer a diligência está consagrada apenas neste último normativo).
Mas, mais relevante, em face dos fundamentos invocados e do processado dos autos,
Designadamente, do teor de fls. 5, 19 verso, 29, 94 verso, 99, 110 verso, 111 verso,
Conclui-se que a testemunha em questão não é vítima do crime investigado (os familiares da vítima consideram-se eles próprios vítimas para efeitos do art. 67º-A do CPP somente no caso de morte causada pelo crime, e caso sofram dano em consequência dessa morte, circunstâncias que não ocorrem in casu — cfr. art. 67º-A nº 1 al. a) do CPP), pelo que é inaplicável ao caso a Lei nº 130/2015 de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima).
Assim sendo, por não se verificar o fundamento legal invocado para sustentar o requerido, indefiro a pretensão formulada pelo Ministério Público.

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP junto do tribunal recorrido, tendo concluído as respectivas motivações da seguinte forma (transcrição):

1. No âmbito do presente inquérito, foi requerida a tomada de declarações para memória futura a A, que foi indeferida por despacho judicial.
2. Decidiu o Mmo. Juiz, em conclusão, que “Assim sendo, por não se verificar o fundamento legal invocado para sustentar o requerido, indefiro a pretensão formulada pelo Ministério Público”.
3. Nestes autos investiga-se a eventual prática, pelo denunciado E, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nº 1, al. b) e nº 2, al. a), do C. Penal, sendo ofendida Karla Oliveira, progenitora da criança cuja tomada de declarações para memória futura ora se requereu.
4. Segundo a sub-alínea iii), da alínea a), do nº 1, do artigo 67º-A do Código de Processo Penal, vítima é a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
5. A factualidade exposta pelo Ministério Público no requerimento para tomada de declarações para memória futuras à criança refere expressamente que esta terá assistido a condutas maltratantes do denunciado E (pai da criança) contra a ofendida K (mãe da criança).
6. De acordo com literatura científica, a criança que vive em contexto de violência doméstica, a esta sendo exposta por a ela assistir, sofre danos directos, sendo, pois, "vitima" de tal crime.
7. Ultrapassada a dificuldade em considerar como vítima a criança indicada para ser inquirida em memórias futuras, cumpre referir o disposto no art. 33º, nº 1, da Lei 112/2009, segundo o qual “o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, norma que constituiu fundamento legal para proceder à tomada de declarações para memória futura da criança indicada pelo Ministério Público.
8. Considera o Ministério Público que esta criança é, não só vítima, mas sim vítima especialmente vulnerável.
9. Com efeito, o nº 3 do artigo 67º-A do Código de Processo Penal refere expressamente que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis”, sendo que o crime de violência doméstica configura expressa e legalmente criminalidade violenta –cfr. art. 1º, al. j) do CPP.
10. Acresce, que no caso concreto, a criança é especialmente vulnerável, não apenas porque tal é uma decorrência dos dispositivos legais referidos, mas também porque conta com 9 anos de idade; assistiu a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica, em que a ofendida é a própria mãe e o denunciado o próprio pai, situação que potencia um grau de agressividade passível de gerar sentimento de insegurança às crianças; e possui íntima relação familiar com o denunciado que, in casu, é seu progenitor.
11. Ora, o artigo 24.º, n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro (Estatuto da Vítima) consagra expressamente a possibilidade de proceder à tomada de declarações para memória futura à criança.
12. Sem prescindir, ainda que a criança não fosse vítima, ou vítima especialmente vulnerável, seria sempre “testemunha especialmente vulnerável”, para efeitos do disposto nos artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho.
13. Na verdade, o regime constante no artigo 271° do CPP aplica-se igualmente às testemunhas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 28°, n° 2, da Lei n° 93/99, de 14-07, dispondo este preceito, no seu n° 1, que durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
14. Ou seja, também estes normativos legais fornecem sustentação jurídica à tomada de declarações para memória futura da criança.
15. E, pelos fundamentos aduzidos supra quanto a especial vulnerabilidade da criança como vítima, crê-se que materialmente se cumprem os requisitos para a considerar como testemunha especialmente vulnerável.
16. Se o Mmo. Juiz não considera a criança vítima, teria de a considerar, inevitavelmente, como testemunha dos factos, pois que tal foi expressamente alegado pelo Ministério Público, sendo que a sua especial vulnerabilidade resulta, também ela, expressamente, de circunstâncias mencionadas no requerimento apresentado ao Mmo. Juiz de Instrução.
17. E, assim sendo, poderia, e deveria, o Mmo. Juiz pronunciar-se quanto à consideração da criança como testemunha especialmente vulnerável, até porque o Ministério Público invocou expressamente perante o Exmo. Juiz de Instrução os normativos legais que sustentam essa figura jurídica - art. 26º, nº 1 e nº 2, 28º, nº 1 e nº 2, da Lei 93/99.
18. Alheando-se por completo de tecer qualquer consideração quanto à consideração da criança como testemunha especialmente vulnerável para efeitos de tomada de declarações para memória futura, no despacho que proferiu, incorreu o Mmo. Juiz em manifesta omissão de pronúncia.
19. Numa perpectiva mais abrangente do nosso ordenamento jurídico, cumpre ainda referir o disposto no artigo 69.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa "as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições."
20. Por outro lado, é consabido que a Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, e, por conseguinte, em vigor no ordenamento jurídico português, estabelece no seu artigo 19.0, um quase poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor/menor.
21. Ora, da conjugação de todas estas normas resulta inequívoco que a Constituição da República Portuguesa apenas admite a interpretação de que as crianças/menores que testemunham actos de violência doméstica, são "vítimas especialmente vulneráveis" na acepção dos artigos artigo 2.º, alínea b) da Lei n.º 112/2009 de 16 de Setembro e do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas i) e B, e n.º 3 do Código de Processo Penal.
22. As crianças/os jovens exigem protecção e urge assumi-la, face aos preceitos aludidos, no processo penal, afigurando-se, pois, ser essencial, a fim de minorar os efeitos da vitimização secundária, decorrentes da exposição ao contacto com o sistema judicial, que sejam inquiridos em sede de declarações para memória futura, em ambiente informal e reservado, de modo a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas e a salvaguardar a estabilidade emocional dos menores, não sujeitando as crianças a semelhante diligência numa ulterior fase do processo.
23. A decisão recorrida violou os artigos 67.º-A, n.º 1, e nº 3, e 271.º, do Código de Processo Penal, os artigos 26.º a 28.º, da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho, e o artigo 24.º, n.º 1, da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro, e o art. 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.
24. Todo o regime jurídico acima mencionado impunha, salvo melhor entendimento, que o Mmo. Juiz tomasse decisão diversa, mormente determinando a tomada de declarações para memória futura.
25. Nesta senda, deverá ser julgado procedente o presente recurso, devendo ser ordenada a tomada de declarações para memória futura à criança A, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça!

C – Resposta ao Recurso

Inexiste resposta ao recurso.

D – Tramitação subsequente
Aqui recebidos, foram os autos com vista ao Exmº Procurador-Geral Adjunto, que militou pela procedência do recurso.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.


2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/"www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, impostas pelos Artsº 410 e 379 do CPP.
O objecto do recurso cinge-se à questão de saber se assiste, ou não, razão ao recorrente, no requerimento que dirigiu ao Mmº Juiz de instrução, no sentido de deferir a tomada de declarações para memória futura da menor A.

B – Apreciação
Definida a questão a tratar, de carácter eminentemente jurídico, é manifesto que assiste inteira razão ao recorrente.
Atente-se, antes de mais, no quadro legal aplicável.
Diz o Artº 271 nº1 do CPP, regulando as declarações para memória futura, que:
Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de pessoas ou contra a liberdade ou a autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento
É um procedimento, como se sabe, de natureza excepcional em relação aos princípios de imediação e da oralidade, que demandam, como regra, que toda a prova seja produzida em Audiência de Julgamento.
Ora, se o regime desta norma é, em si mesmo, uma excepção à norma geral, aquele que decorre do Artº 24 nº1 da Lei nº 130/2015, de 04/09 (Estatuto da Vítima), consagra, na verdade, uma excepção à excepção, na medida em que estabelece um regime próprio com pressupostos de aplicação menos restritivos dos que são exigidos pelo Artº 271 nº1 do CPP.
Estipula a referida norma que:
O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal.”.
Por outro lado, o nº6 deste normativo estatui que:
Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica da pessoa que o deva prestar
Como se constata, para a aplicação deste regime legal, basta que se esteja na presença de vítima especialmente vulnerável para que, em regra, se proceda à tomada das suas declarações para memória futura, pois estas só não devem ser colhidas antecipadamente se se concluir que, desse modo, se coloca em causa a saúde física ou psíquica da pessoa a depor e que o depoimento a prestar em julgamento se mostra indispensável à descoberta da verdade.
Sendo seguro que este regime não é de aplicação automática, no sentido de o juiz não estar vinculado ao requerido pelo MP ou pela própria vítima, é contudo evidente, pela mera leitura das normas, que tratando-se de uma situação de uma vítima especialmente vulnerável, o juiz apenas pode recusar a prestação antecipada do seu depoimento se verificar uma das duas situações alinhadas pelo nº6 do Artº 24 da citada Lei: estar em risco a saúde física ou psíquica de declarante, ou a verdade material exigir, como indispensável, que o seu depoimento seja prestado em audiência de julgamento (Cfr, neste sentido, Ac. da Relação de Évora de 23/06/2020, Proc. 1244/19.7PBFAR-A.E1, da Relação do Porto, de 24/09/2020, Proc. 2225/20.3JAPRT-A.P1 e da Relação de Lisboa, de 10/09/20).
Não estando em causa nenhuma destas duas realidades, a regra terá de ser a do deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, conclusão que se retira, não só, como se disse, pela simples linearidade do comando legal, como também pela sua inserção sistemática no diploma de protecção das vítimas especialmente vulneráveis.
Este regime prevalece, quer sobre o regime geral, de produção de toda a prova em julgamento, quer sobre o do Artº 271 nº1 do CPP que tem, manifestamente, critérios mais restritivos - como os da necessidade de averiguação de requisitos como a possibilidade de falecimento, doença ou deslocação para o estrangeiro - prevalência que se justifica amplamente, se considerarmos a intenção do legislador de proteger a evicção da vitimização da depoente, tendo, para o efeito, estabelecido rígidas regras de produção e de registo do acto: o MP, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do MP e do defensor; a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas e efectuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, (nsº2 a 4 do mencionado Artº 24 da Lei 130/2015 de 04/09).
Por fim, refere o Artº 67-A nº1 al. b) do CPP que se considera vítima especialmente vulnerável:
a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social
E, adianta a sub-alínea iii), da alínea a), do nº 1 da mesma norma, que vítima é a criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica.
Ora, perante este acervo normativo, torna-se evidente que o enquadramento da situação dos autos sempre teria de ser feito à luz do Artº 24 da Lei 130/95, de 04/09, como pretendido pelo recorrente.
Com efeito, estamos na presença de uma situação em que se investiga a eventual prática, pelo denunciado E, de um crime de violência doméstica, p.p., pelo Artº 152 nsº1 al. b) e 2 al. a) do C. Penal, sendo ofendida K, progenitora da criança cuja tomada de declarações para memória futura se requereu e que terá assistido a tais ofensas praticadas pelo seu pai sobre a sua mãe.
Como bem se escreveu no acórdão desta Relação de 06/02/24, no Proc. 121723.1PAENT-A.E1, com os mesmos subscritores do presente e sendo relatora a aqui adjunta;
“Assim e desde logo, para melhor se interpretarem as normas vigentes em Portugal, nomeadamente as que respeitam aos direitos das vítimas, entre os quais se inclui a prestação de declarações para a memória futura (art.º 21.º e 22.º do Estatuto da Vítima) há que ter em conta a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de Outubro de 2012, estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas; Como é sabido, esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de Setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de Setembro.
São estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, maxime o seu art.º 28.º (por força do que se dispõe no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009), e a Lei 112/2009 de 16 setembro, concretamente no seu art.º 33, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral vertida no art.º 271.º do CPP, que regulam a prestação de declarações para memória futura das vitimas de violência doméstica.
Por força do disposto no art. 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima.
A atribuição deste estatuto determina a aquisição por parte da vítima vários direitos de natureza processual, a que não é alheio o conhecimento científico sobre as fragilidades emocionais das vítimas de violência doméstica, que determinou, aliás, que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul, a Diretivas da União Europeia a que já se fez referência e bem assim a recente Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Estrasburgo, 8.3.2022, COM(2022) 105 final, 2022/0066 (COD).
Uma vez que o crime de violência doméstica, tendo em conta a sua natureza, preenche a previsão legal de criminalidade violenta ou especialmente violenta, como definidas no art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma.
Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, e no caso das crianças expressamente consagrado no art.º 22.º do mesmo Estatuto.
Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vitima.
Vejamos:
A Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, conhecida por Lei da Violência Doméstica, tem entre outras como Finalidades, definidas no art.º 3.º
A presente lei estabelece um conjunto de medidas que têm por fim:
a) Desenvolver políticas de sensibilização nas áreas da educação, da informação, da saúde, da segurança, da justiça e do apoio social, dotando os poderes públicos de instrumentos adequados para atingir esses fins;
b) Consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua protecção célere e eficaz;
c) Criar medidas de protecção com a finalidade de prevenir, evitar e punir a violência doméstica;
Determinando o art.º 16.º da mesma LVD, que consagra o direito à audição e à apresentação de provas, no seu n.º 2 que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Por sua vez o art.º 20.º, ainda da LVD, sobre o direito à proteção, nomeadamente que - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública. Donde se retira, sem qualquer margem para dúvidas que as declarações para memória futura constituem em si mesmas um meio de prova e um meio de proteção da vítima.
A preocupação do legislador de proteção da vítima contra a vitimização secundária, estende-se inclusivamente ao modo como a mesma deve ser ouvida/inquirida e para evitar que sofra pressões, o que expressamente consagrou no art.º 22.º da LVD, Condições de prevenção da vitimização secundária, tendo consagrado de forma expressa, no seu n.º 1 que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões.
Ora, é conhecimento público e comum, decorrente da investigação científica sobre as vítimas de violência doméstica, que estas vítimas sofrem pressões por parte dos agressores, para que alterem os seus depoimentos, o que logram conseguir atentas as sabidas fragilidades emocionais da vítima, caracterizadas por uma igualmente conhecida dependência emocional, psicológica e afetiva relativamente à pessoa do agressor, o que no caso concreto se verifica com particular acuidade dada a relação de pai e filha.
As declarações para memória futura constituem, assim, um meio de proteção da vítima, pelo que entendemos ser-lhe de aplicar o disposto no art.º 29.º-A da LVD, medidas de proteção à vítima, e por conseguinte as mesmas devem ser prestadas no prazo de 72 horas a que alude o n.º 1 deste normativo:
1 - Logo que tenha conhecimento da denúncia, sem prejuízo das medidas cautelares e de polícia já adotadas, o Ministério Público, caso não se decida pela avocação, determina ao órgão de polícia criminal, pela via mais expedita, a realização de atos processuais urgentes de aquisição de prova que habilitem, no mais curto período de tempo possível sem exceder as 72 horas, à tomada de medidas de proteção à vítima e à promoção de medidas de coação relativamente ao arguido.
Esta interpretação sai reforçada se tivermos em conta o elemento histórico e já consagrado no art.º 28.º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que institui a Lei de Proteção de Testemunhas, aplicável ao caso atento o disposto no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009, o qual dispõe, sobre a Intervenção no inquérito, que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
Quer garantir-se que a testemunha especialmente vulnerável preste depoimento o mais rapidamente possível a seguir à prática factos para garantir a sua memória mais viva e próxima da ocorrência e bem assim garantir a obtenção de prova, já que nas situações como a presente como já dissemos e repetimos, as vítimas estão ligadas ao agressor por laços afetivos e sofrem pressões para alterar os seus depoimentos ou não os produzirem de todo.
(…)
Assim, repita-se, da inserção sistemática das declarações para memória futura na Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência suas Vítimas (LVD), resulta sem qualquer dúvida que as mesmas constituem, para além de por natureza um acto judicial que consubstancia uma antecipação da audiência de julgamento, sujeito à observância do seu formalismo dentro do possível, um meio de proteção da vítima, constituindo mesmo um direito seu, já que estas vítimas são vítimas especialmente vulneráveis (cf. art.º 67.º A, n.º 3, 1.º al. j) e l) do CPP e art.º Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que aprovou o Estatuto da Vítima)”
In casu, foi alegado pelo recorrente que a criança, menor de idade, como apenas 9 anos, terá assistido aos maus tratos perpetrados pelo seu próprio pai sobre a ofendida, sua própria mãe, pelo que, tendo assistido a tais factos, sofreu danos directos, sendo pois, nessa medida, vítima de tal crime e vítima especialmente vulnerável, nos termos do nº3 do Artº 67-A do CPP, por estar em causa ilícito legalmente configurado como de criminalidade violenta (Artº 1 al. j) do CPP).
Ainda que assim não fosse, sempre a menor teria de se considerar como testemunha especialmente vulnerável, para efeitos do disposto nos Artsº 26 a 28 da Lei n.º 93/99, de 14 de Julho.
A especial vulnerabilidade da menor cujas declarações para memória futura se requer é, nestes termos, manifesta e perfeitamente cognoscível pelos factos indiciados no processo, pelo que, considerando esse estatuto, a gravidade dos factos imputados ao denunciado e a relação entre este e a ofendida, ter-se-á de concluir mal andou o tribunal a quo ao não ter aplicado o regime decorrente do Artº 24 nsº1 e 6 da Lei 130/205 de 04/09 e, consequentemente, deferido as requeridas declarações para memória futura da filha daquela.
A prestação de declarações para memória futura constitui, verdadeiramente, um direito seu, de se poupar à revitimização, onde se pretende evitar que aquela seja levada a reviver os sentimentos negativos de medo, ansiedade e dor que vivenciou aquando da prática dos factos num ambiente formal e público, e com a presença do arguido no edifício do tribunal, ainda que não na sala de audiências.
E para que sejam tomadas declarações para memória futura, no âmbito do regime consagrado no Artº 24 nsº1 e 6 da Lei n.º 130/2015, de 04/09, exige-se, tão-somente, o desenho de um quadro de especial fragilidade, o qual, in casu, se mostra manifestamente preenchido, sendo certo que não se vislumbra, nem tal consta do despacho recorrido, que a prestação de declarações para memória futura coloque em causa a saúde física ou psíquica da vítima, ou que a verdade material demande que o seu depoimento deva prestado em julgamento, únicos critérios que poderiam fundar o indeferimento do requerido.
Nestes termos, ao abrigo das disposições combinadas dos Artsº 271 nsº3 e 6 do CPP, 33 da Lei 112/2009 de 16/09 e, máxime, 21 nº2 al. d) e 24 nsº1 e 6 da Lei n.º 130/2015, de 04/09, o recurso não pode deixar de proceder, no sentido de o despacho recorrido ser objecto de revogação, devendo ser proferido outro que defira o requerido e designe data para a prestação das aludidas declarações.


3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se conceder provimento ao recurso e em consequência, revoga-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe data para a prestação de declarações para memória futura de A, nos exactos termos requeridos pelo MP.
Sem custas.
xxx
Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi integralmente revisto e elaborado pelo primeiro signatário.

Évora, 23 de abril de 2024
Renato Barroso
Carlos de Campos Lobo
Maria Gomes Perquilhas