CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VEÍCULO AUTOMÓVEL
GARANTIA
DEFEITO GENERALIZADO DA PINTURA
Sumário


I – A garantia prestada pelo fabricante poderá ser entendida como promessa pública ou como contrato de garantia.
II – Constando do texto da garantia que foi entregue ao comprador, na ocasião da venda, que se trata de uma “garantia contratual”, mas não existindo no texto da garantia qualquer espaço destinado à aceitação do comprador, mas apenas à identificação do vendedor e à aposição do seu carimbo, poder-se-á entender que se trata de um contrato de garantia em que se exige apenas a aceitação tácita por parte do comprador.
III – A garantia contratual poderá ser considerada aceite tacitamente pelo comprador,  quando, designadamente, este a exibe nas revisões e pede que seja preenchido o espaço destinado a comprovar a realização da revisão, para poder gozar da garantia, deduzindo-se assim destes factos a sua aceitação (artº 217º, nº 1 do CC).
IV – Para se concluir pelo defeito generalizado da pintura de um veículo, não se pode apenas apelar à experiência do homem médio e do normal acontecer, porque o homem médio não tem os necessários conhecimentos técnicos para formular uma conclusão no sentido da existência de um defeito de fabrico generalizado na pintura de um veículo.
V – A existência de uma garantia proposta pelo produtor e aceite tacitamente pelo comprador, não exclui outros direitos relacionados com a falta de outras qualidades ou a existência de outros vícios que poderão ser invocados ao abrigo do regime legal da compra e venda defeituosa contra o vendedor. A existência de uma garantia é um plus concedido ao comprador para sua proteção.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral



Relatora: Helena Melo
1.º Adjunto: Arlindo Oliveira
2.ª Adjunta: Catarina Gonçalves

 Processo 3260/20.7T8CBR.C1

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

 A..., Unipessoal, Lda., instaurou a presente ação declarativa de condenação sob a forma comum contra as rés B..., S. A., e C..., S. A..

Alegou para fundamentar o seu pedido que é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda, instalação e manutenção de todos os componentes de centrais de alarme, incêndio e videovigilância com controlo remoto, assim como instalação e manutenção de infra-estruturas elétricas na construção civil e industrial, domótica,  instalação e manutenção de sistemas de climatização, energia solar, e qualidade de ar interior. Dedica-se ainda à reparação de televisores e de outros bens de consumo similares.

A primeira e segunda rés são sociedades comerciais que se dedicam à atividade de comércio de veículos automóveis ligeiros, sendo a segunda ré a representante em Portugal do produtor de automóveis da marca de “Peugeot”, dedicando-se à importação para o território português de veículos novos da marca “Peugeot”, peças sobressalentes, acessórios e respetivos equipamentos e sua distribuição no referido território através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes e/ou por filiais, bem como, o aluguer de veículos automóveis, operações de manutenção e a formação profissional inerente às atividades referidas.

No dia 19 de Março de 2018, pelo preço de € 13.600,43 (treze mil, seiscentos euros e quarenta e três cêntimos), a autora comprou no stand de vendas da primeira ré, o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, de cor ..., com a matrícula ..-UJ-.., no estado de novo. Por convenção das partes, o veículo adquirido beneficiava de garantia automóvel contra defeitos e avarias, num período de dois anos após a compra, sem limitação de quilometragem, e de garantia sobre a pintura, pelo período de três anos. O referido veículo foi adquirido para uso na atividade comercial da autora, sendo especialmente afeto a uma equipa de trabalho composta por dois trabalhadores.

Em Fevereiro de 2020, a autora começou a notar em determinadas zonas do seu veículo um descasque anormal de tinta e corrosão na superfície da chapa. De imediato reportou e denunciou à primeira ré tal situação. Nessa sequência, e a pedido da primeira ré, foi feita uma avaliação técnica à pintura do veículo pelo perito AA.

Porquanto o relatório efetuado não era suficientemente esclarecedor para se perceber a totalidade dos defeitos na pintura, uma vez que excluiu a observação de outros pontos igualmente existentes, a autora reclamou nova observação técnica ao veículo, o que aconteceu. Assim, em 13-05-2020, o mesmo técnico AA, produziu novo relatório. Desta feita, foram também verificadas as zonas do “Capo; Ilharga vidro frt dta; Porta fr dta; Porta Deslizante dta; portas traseiras; jantes; travessa do tejadilho traseira”.

A A. solicitou ainda ao IPN - Laboratório de Ensaios, Desgaste e Materiais, sito em Coimbra, uma avaliação.

 A primeira ré por carta de 10-08-2020, negou a existência de quaisquer defeitos provindos do processo de fabrico do veículo, terminando por apresentar uma proposta negocial, por meio da qual a autora teria ao seu dispor a faculdade de adquirir um novo veículo da gama superior da marca, com o benefício de 39% de desconto sobre essa nova compra que a A. não aceitou.

Por conta dos defeitos na pintura no veículo da autora, esta viu-se privada do uso do veículo na sua atividade comercial, com afetação imediata na sua rentabilização económica e limitação em sede de satisfação dos trabalhos contratados junto dos seus clientes.

A autora, enquanto se manteve na expectativa de obter uma solução cabal das rés quanto aos defeitos do veículo, temeu o agravamento dos mesmos por via da sua utilização e exposição climatérica, pelo que deixou de circular com o veículo. Em sua substituição viu-se obrigada a recorrer ao aluguer de outro veículo, marca Peugeot Partner, junto da Iberocar rent-a-car, entre 21-07-2020 a 24-07-2020. Com o aluguer desse veículo, a autora despendeu a quantia de € 170,17 (cento e setenta euros e dezassete cêntimos).

 As rés não  providenciaram pela substituição, ainda que a título provisório, do veículo da autora durante os dias 11-02-2020 e 13-05-2020 em que o mesmo ficou imobilizado para a realização de testes de diagnóstico e avaliação dos defeitos da pintura, circunstância que privou a autora de manter a regular laboração da equipa de dois trabalhadores, durante esse período.

Dada a imobilização do veículo da autora nas descritas circunstâncias, o sócio gerente da autora viu-se obrigado a recorrer a veículos facultados por amigos ou parceiros de negócio, por forma a colmatar as necessidades de resposta da empresa. Assim como também fez uso do carro pessoal, colocando-o ao serviço da empresa, para as deslocações necessárias e imperativas à prestação de serviços a clientes. O que de facto fez em média dois a três dias por semana, conforme as respetivas necessidades de trabalho, ao longo dos meses de março a agosto de 2020. Por conta dessa utilização do carro próprio do sócio gerente da autora, impõe-se o ressarcimento do correspetivo prejuízo pelo desgaste do veículo, que estimou à razão de € 40 por cada dia, perfazendo o montante total de € 2.600,00  assim calculado: 2,5 dias por semana x 26 semanas x € 40 dia.

Alegou ainda estar onerada com um crédito automóvel, junto da instituição de crédito Banco 1..., contraído aquando da aquisição do veículo dos autos, num valor prestacional de € 197,72 (cento e noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos) por mês, que a autora tem vindo a suportar pontualmente - sem que tenha tido o correspetivo gozo do veículo durante os meses de março a agosto de 2020. E nesta medida, está, pois, a autora igualmente prejudicada no valor correspondente às prestações vencidas que pagou, que perfazem o total de € 1.186,32 (mil, cento e oitenta e seis euros e trinta e dois cêntimos).

 Por fim, invocou ainda ter suportado o prémio de seguro automóvel, contratado junto da Seguradora D..., S.A., nos referidos meses em que ficou privada do uso do seu veículo, pelo que deve ser ressarcida do montante correspondente a esses meses que pagou, perfazendo a quantia de € 78,30, assim calculada: € 156,60 de prémio anual / 12 meses x 6 meses.

Atenta a natureza dos defeitos, a reparação destes apenas se mostrará completa e integral se essa pintura abranger toda a superfície do veículo, e não apenas as zonas à data visíveis de oxidação e corrosão. A não ser assim, não ficará devidamente acautelada a possibilidade (aliás, muito provável) de no futuro surgirem novas marcas de oxidação e corrosão noutras zonas do veículo. Impõe-se, portanto, a desmontagem de todas as forras e equipamentos aplicados no veículo, de modo a melhor reparar também as zonas ocultas do veículo e assim proceder a nova e completa pintura.

As rés, em tempo e devidamente interpeladas, nunca se dispuseram até ao momento a proceder a tal reparação integral dos defeitos.

Concluiu, pedindo que as rés sejam solidariamente condenadas:

 a) A proceder à reparação integral dos defeitos na pintura do veículo ..-UJ-.., através de um procedimento completo e abrangente a todo o veículo, tanto no seu interior como exterior;

b) Por conta dessa reparação integral, e durante todo o período necessário à sua realização, sejam as rés condenadas a disponibilizar à autora um veículo de substituição equivalente; c) Caso se mostre impossível ou excessivamente onerosa a reparação integral do veículo nos termos supra peticionados, sejam as rés condenadas a substituir o veículo ..-UJ-.. por outro, sem defeito, de iguais características, qualidade e valor;

d) Em caso de condenação nos pedidos a), b) ou c), ainda sejam as rés condenadas a pagar à autora a quantia de € 100,00 (cem euros) por cada dia de incumprimento, a contar do trânsito em julgado, a título de sanção pecuniária compulsória.

 e) Por fim, na hipótese de ser impossível ou excessivamente onerosa a substituição em espécie, seja declarado definitivamente incumprido e resolvido o contrato de compra e venda do veículo ..-UJ-.., por culpa imputável às rés, devendo estas restituir à autora o valor de compra, contra a entrega daquele no estado em que se encontra;

f) Concomitante a qualquer dos pedidos supra, devem ainda as rés indemnizar a autora por todos os prejuízos sofridos e a que deram causa, por conta da imobilização e privação de uso do veículo ..-UJ-.. pela autora, na quantia de € 4.034,79 (quatro mil e trinta e quatro euros e setenta e nove cêntimos).

As RR. contestaram, apresentando cada uma a sua contestação.

Ambas as RR. arguiram a exceção da caducidade da ação e a 1ª R. deduziu reconvenção, tendo ambas defendido que a garantia contratual para a pintura é de 2 anos e não três, como alegado pela A..

A 1ª R. alegou ter transmitido à 2ª R., as queixas da A., tendo esta prontamente ordenado uma verificação técnica da viatura pelo fornecedor de tintas da marca Spies Hecker.  A viatura deslocou-se às instalações da 1ª ré em 11.02.2020, apenas tendo aí permanecido pelo tempo necessário à verificação das queixas apresentadas pela autora, tendo sido entregue no mesmo dia. O referido técnico produziu o relatório que consta da petição inicial como doc. 3, onde mencionou apenas o lastro da mala e o aro da porta esquerda, por entender que eram os locais onde se verificava falta de aderência da tinta. Sugeriu o procedimento necessário à respetiva reparação que passaria pelo desengorduramento, a lixagem das zonas afetadas para eliminação do descasque e a aplicação de primário, aparelho, base e verniz. Foi esta proposta de reparação que a 1ª ré apresentou à autora, o que seria assumido em garantia pela 2ª ré. Como a autora não aceitava o relatório, foi realizada nova avaliação, sendo que o técnico entendeu que os danos que fez constar do relatório de Maio de 2020 decorriam de agressões externas, como refere no respetivo texto e não de qualquer falta de aderência da pintura.

A 1ª ré apesar de não reconhecer nenhum defeito além, do referido no relatório de Fevereiro da entidade que representa a marca Spies Hecker,  com a autorização da 2ª, propôs à autora uma alternativa à reparação, a título de cortesia comercial, que passou pela concessão de um desconto comercial superior ao habitual na aquisição de um nova veículo, de modo a manter a confiança da autora na marca e a resolver consensualmente a questão.

 Assim, não é verdade que a autora seria onerada com uma nova compra, nem que tal proposta satisfizesse os interesses comerciais da ré, sendo antes uma solução comercial que a autora poderia naturalmente recusar, como recusou.

Relativamente aos danos invocados pela autora, a 1ª R. impugnou todos os danos reclamados, ocorridos no período entre Fevereiro e Maio de 2020, pois que a viatura circulou normalmente, sem prejuízo de normais paragens decorrentes do confinamento de muitos portugueses, o que se comprova, aliás, pelo número de quilómetros registados nos relatórios em ambas as datas. O aluguer de uma viatura em Julho não tem qualquer nexo com a causa de pedir destes autos, servindo certamente para suprir alguma necessidade pontual da autora. A autora poderia ter circulado com a viatura sem quaisquer restrições, o que terá feito certamente, sendo que se o não fez tal facto apenas a decisão sua se deve, o que se afigura completamente desnecessário e desproporcionado, apenas servindo para agravar um eventual dano, o que não se aceita. As rés não deram causa a qualquer privação do uso da viatura, nem nenhum concreto dano resulta sequer alegado, quanto a tal privação.

Relativamente às despesas de financiamento e de seguro, as mesmas respeitam à A. enquanto locatária e possuidora do bem, não podendo naturalmente onerar qualquer das rés. Acresce ainda que, caso procedam as pretensões de substituição da viatura ou de resolução do contrato - o que por mero dever de patrocínio se admite - sempre deverá ser considerado o atual valor comercial da viatura, tendo presente a desvalorização que lhe foi provocada pela autora nos últimos mais de dois anos.

Por sua vez a R. C..., S. A. alegou que o 1º relatório elaborado pelo técnico da Spies Hecke não foi claro na determinação de uma origem para os danos. No entanto, das imagens retiradas do relatório é possível constatar uma origem externa dos danos causados à pintura do carro.

Não obstante, a 1ª ré apresentou a proposta de reparação à autora, sendo essa reparação assumida em garantia pela 2ª ré.

Apesar de  não se reconhecer nenhum defeito, a 1ª ré, com a autorização da 2ª ré, propôs à autora uma alternativa à reparação, a título de cortesia comercial, que passava pela concessão de um desconto comercial superior ao habitual na obtenção de uma viatura nova da mesma marca, de modo a manter a confiança da autora na marca e resolver consensualmente a questão entretanto trazida a juízo.

Mais alegou, tal como a 1ª R.,  não ser devida qualquer indemnização a título de privação do uso.

Por fim, tal como alegado pela 1ª R., requereu que, caso procedam as pretensões de substituição da viatura ou de resolução do contrato, deverá ser considerado o  valor comercial atualizado da viatura, tendo presente a desvalorização que lhe foi provocada pela autora nos últimos mais de dois anos.

 

Foi realizada audiência prévia, foi fixado o valor da ação, foi proferido despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a exceção de caducidade, foi fixado o objeto do litígio e foram enunciados os temas de prova.

A 1ª R. desistiu do pedido reconvencional.

Realizada audiência final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

“Assim, nos termos das disposições legais citadas, decide-se condenar as rés, solidariamente: a) A proceder à reparação integral dos defeitos na pintura do veículo ..-UJ-.., mediante um procedimento completo e abrangente a todo o veículo, tanto no seu interior como exterior;

 b) Durante todo o período necessário à realização de tal reparação, condenar as rés a disponibilizar à autora um veículo de substituição equivalente;

c) condenar as rés a pagar à autora a quantia de € 100 (cem euros) por cada dia de incumprimento, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, a título de sanção pecuniária compulsória; d) condenar as rés a indemnizar a autora pelos danos derivados da privação de uso do veículo na quantia de € 3.170,17 (três mil, cento e setenta euros e dezassete cêntimos).

Custas por autora e rés, na proporção de 1/5 para a autora e 4/5 para as rés.”

A 2ª Ré não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, concluindo as suas alegações do seguinte modo:

(…).

A A. contra-alegou, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

(…).

II – Objeto do recurso

De acordo com as conclusões da apelação, as questões a decidir são as seguintes:

. se a sentença recorrida é  nula por falta de fundamentação (artº 615º, nº 1, alínea b) do CPC);

. se deve ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 3, 5, 6, 8, 12 e 13 (num segmento) e se devem ser considerados não provados os factos dados como provados nos pontos 7, 13 (noutro segmento) e 14.

. se devem ser aditados à matéria de facto provada os seguintes factos:

.O relatório elaborado pelo IPN limitou-se a realizar a análise de uma amostra da tinta da viatura, nomeadamente nas zonas indicadas como tendo defeito no primeiro relatório da Spies Hecker: lastro da mala e aro da porta esquerda. Tendo a amostra sido retirada do aro da porta esquerda.

.O relatório elaborado pelo IPN não incluía parecer técnico.

.O primeiro relatório elaborado pela Spies Hecker cingiu-se única e exclusivamente às zonas que tinham sido indicadas pela Autora como afetadas, nomeadamente no lastro da mala e aro da porta. Posteriormente, na segunda observação técnica foi realizada a análise à viatura na sua integra.

.Na primeira observação técnica realizada pela Spies Hecker foi analisado o lastro da mala e o aro da porta esquerda e no relatório do IPN foi realizado através de amostragem inferior a 12 cm retirada do aro da porta esquerda.

.De acordo com o relatório inicial elaborado pela Spies Hecker foi concluído que nos locais analisados (lastro da mala e aro da porta esquerda) existe descasque da película de tinta.

.De acordo com o relatório elaborado pelo IPN resulta que existe um destacamento da pelicula de tinta.

.Os danos que surgiram posteriormente à realização da primeira observação técnica são provenientes de agentes externos (agressões mecânicas e de limalhas).

. se a ação deve improceder uma vez que não se provou a existência de um defeito geral de fabrico na pintura do veículo da A., nem se provou que a A. tivesse sido privada do seu uso em consequência de defeitos na pintura.

III – Fundamentação

Na primeira instância foram considerados provados e não provados os seguintes factos (para facilidade de trabalho, uma vez que os factos provados não têm numeração, nem estão identificados por alíneas, adotou-se o método utilizado pela apelante, atribuindo um número a cada parágrafo):

Factos provados

.1.A autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda, instalação e manutenção de todos os seus componentes de centrais de alarme, incêndio e videovigilância com controlo remoto; instalação e manutenção de infraestruturas elétricas na construção civil e industrial; domótica; instalação e manutenção de sistemas de climatização; energia solar; qualidade de ar interior; reparação de televisores e de outros bens de consumo similares.

.2.A primeira e segunda rés são sociedades comerciais que se dedicam à atividade de comércio de veículos automóveis ligeiros. A segunda ré é representante em Portugal do produtor de automóveis da marca de “Peugeot”, dedica-se à importação para o território português de veículos novos da marca “Peugeot”, peças sobressalentes, acessórios e respetivos equipamentos e sua distribuição no referido território através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes e/ou por filiais, bem como, o aluguer de veículos automóveis, operações de manutenção e a formação profissional inerente às atividades referidas.

.3.No dia 19 de Março de 2018, a autora comprou no stand de vendas da primeira ré, sito em ..., Coimbra, o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, de cor ..., com a matrícula ..-UJ-.., no estado de novo, pelo preço de € 13.600,43 (treze mil, seiscentos euros e quarenta e três cêntimos). Tal veículo adquirido beneficiava de garantia automóvel contra defeitos e avarias, num período de dois anos após a compra, sem limitação de quilometragem.

.4.O referido veículo foi adquirido para uso na atividade comercial da autora, sendo especialmente afeto a uma equipa de trabalho composta por dois trabalhadores.

.5.Em Fevereiro de 2020, a autora começou a notar em determinadas zonas do seu veículo um descasque anormal de tinta e corrosão na superfície da chapa devidos a destacamento da película de tinta numa das camadas do sistema de pintura - uma falha coesiva do sistema de pintura.

.6.De imediato reportou e denunciou à primeira ré tal situação. Nessa sequência, e a pedido da primeira ré, foi feita uma avaliação técnica à pintura do veículo pelo técnico AA. Este elaborou, em 11-02-2020, um relatório denominado de “Análise a pintura de viaturas”. Nesse relatório fez constar, entre o mais, que o local do dano visível se situava no “lastro da mala e aro da porta esquerda”; que a espessura da tinta era de “49 a 53 microns”; que a causa se devia a “falta de aderência / outros”. Concluindo deste modo com o seguinte comentário: “A viatura em análise apresenta no interior da mala, vinco rebaixado junto às portas traseiras com aba protegida com borracha, vários pontos de descasque da película de tinta que quando forçada apresenta continuidade, assim como alguns empolamentos da película. Igualmente apresenta no aro da porta esquerda pequeno descasque, sendo que é visível na borracha que serve de batente o vestígio da tinta branca. Em qualquer dos casos a película de tinta descasca em conjunto com o aparelho.”. Porém, como não se mostrasse o sobredito relatório suficientemente esclarecedor para se perceber a totalidade dos defeitos na pintura, uma vez que excluiu a observação de outros pontos igualmente existentes, a autora reclamou nova observação técnica ao veículo, o que aconteceu. Assim, em 13-05-2020, o mesmo AA, produziu novo relatório de “Análise a pintura de viaturas”. Desta feita, foram também verificadas as zonas do “Capo; Ilharga vidro frt dta; Porta fr dta; Porta Deslizante dta; portas traseiras; jantes; travessa do tejadilho traseira”. Sendo aí verificado que a espessura da tinta era de “74 a 99 microns”. E desse relatório consta que a causa do dano se devia a “Agressão mecânica externa / Outros desconhecidos”. Após o que consta o seguinte comentário: “Este relatório complementa o datado de 11 fevereiro. A viatura em análise apresenta vários descasques de tinta na sua generalidade. A sua observação à lupa de 6 a 8 aumentos identifica que estamos perante agressões mecânicas externas, sendo visíveis raiados não uniforme adjacentes ao local de impacto, o que evidencia que algo entrou em contacto com aquele local. Em todos os danos, só a película de tinta ficou afetada, mostrando o aparelho cinza e não há continuidade no descasque. De facto, na ilharga traseira do tejadilho existe um descasque que apresenta leve corrosão numa zona de chapas sobrepostas e onde existe cordão de silicone. Podemos eventualmente atribuir este dano a deficiente tratamento da superfície neste local dada a sua característica já identificada. Também se observam grandes quantidades de limalhas com oxidação nos vincos das portas traseiras e nos vincos laterais. Igualmente identificamos descasque generalizado nas quatro jantes que quando forçado cede e tem continuidade, demonstrando séria falta de aderência no local.”.

.7.Perante os referidos dois relatórios, a autora concluiu que os defeitos apurados eram profundos e generalizados em toda a pintura do veículo, tanto nas zonas visíveis a olho nu que evidenciavam manifesta oxidação e corrosão, como também em zonas não visíveis, por ocultadas por silicone, forras e equipamentos do veículo.

.8.Apesar dos referidos relatórios elaborados a pedido da primeira ré, esta não se dispôs ou notificou a autora no sentido de se proceder à recolha do veículo com vista à sua reparação.

.9.A autora, através do seu mandatário, dirigiu à segunda ré uma carta, com aviso de receção, datada de 19-05-2020, dando-lhe conta dos defeitos supra referidos.

.10.Através do seu mandatário, a autora dirigiu também à primeira ré uma carta com aviso de receção, datada de 27-07-2020, a expor o assunto.

.11.A autora, por forma a melhor esclarecer as condições da pintura no veículo, solicitou outro Relatório de Ensaio tecnicamente aprofundado, ao IPN (Instituto Pedro Nunes) - Laboratório de Ensaios, Desgaste e Materiais, sito em Coimbra. Esta entidade elaborou, em 04-08-2020 um relatório do qual consta o seguinte: “Na amostra analisada não foram detetadas evidências de deformações (danos) provocadas por ações externas que potenciem o arrancamento da película. Pelas análises realizadas, o destacamento da película de tinta ocorre preferencialmente na interface de uma das camadas do sistema de pintura (zona castanha) indiciando estarmos perante uma falha coesiva do sistema de pintura”.

.12.A primeira ré respondeu à carta da autora em 10-08-2020, negando a existência de quaisquer defeitos provindos do processo de fabrico do veículo e apresentando uma proposta negocial, por meio da qual a autora poderia adquirir um novo veículo da marca, com o benefício de 39% de desconto sobre essa nova compra.

.13.A autora, enquanto se manteve na expectativa de obter uma solução junto das rés quanto aos defeitos do veículo, temeu o agravamento dos mesmos por via da sua utilização, pelo que deixou de circular com o veículo. Por isso, viu-se privada do uso do veículo na sua atividade comercial, o que teve o inerente reflexo na sua rentabilização económica - e na limitação em sede de satisfação dos trabalhos contratados junto dos seus clientes. A autora viu-se obrigada a recorrer ao aluguer de outro veículo, marca Peugeot Partner, junto da Iberocar rent-a-car, entre 21-07-2020 a 24-07-2020. Com o aluguer desse veículo, a autora despendeu a quantia de € 170,17 (cento e setenta euros e dezassete cêntimos).

.14.As rés não providenciaram pela substituição, ainda que a título provisório, do veículo da autora durante os dias 11-02-2020 e 13-05-2020 em que o mesmo ficou imobilizado para a realização de testes de diagnóstico e avaliação dos defeitos da pintura, circunstância que privou a autora de manter a regular laboração da equipa de dois trabalhadores, durante esse período. O sócio gerente da autora viu-se obrigado a recorrer a veículos facultados por amigos ou parceiros de negócio, por forma a colmatar as necessidades de resposta da empresa e também fez uso do carro pessoal, colocando-o ao serviço da empresa, para as deslocações necessárias e imperativas à prestação de serviços a clientes.

.15.À data dos factos, a autora estava onerada com um crédito automóvel, junto da instituição de crédito Banco 1..., contraído aquando da aquisição do veículo dos autos, num valor prestacional de € 197,72 (cento e noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos) por mês, que a autora suportou pontualmente.

.16.A autora suportou o respetivo prémio de seguro automóvel, contratado junto da Seguradora D..., S.A., nos referidos meses em que ficou privada do uso do seu veículo. o que perfaz a quantia de € 78,30 (setenta e oito euros e trinta cêntimos).

Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir, designadamente não se provou que:

- o veículo adquirido pela autora beneficiava de garantia automóvel sobre a pintura, pelo período de três anos.

- o sócio gerente da autora fez uso do carro pessoal, colocando-o ao serviço da empresa, em média dois a três dias por semana, conforme as respetivas necessidades de trabalho, ao longo dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020.

Da nulidade da sentença

Invoca a apelante que a sentença é nula, nos termos do disposto no artº 615º, nº 1, alínea b) do CPC porque não especifica quais foram as provas que foram consideradas para determinar os factos dados como provados e não provados.

Dispõe o artº 615º, nº 1, alínea b) do CPC que a sentença é nula quando não contenha os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

A exigência de fundamentação tem consagração constitucional (artº 205º, nº 1) e também ao nível do direito infra constitucional (artº 154º do CPC). Bem se compreende esta imposição. Só conhecendo os fundamentos da decisão poderá a parte a quem a decisão for desfavorável, decidir se deve ou não conformar-se com a mesma. E também o Tribunal de recurso tem de conhecer esses fundamentos para aferir se a mesma se mostra ou não correta.

Como é entendimento uniforme, apenas a total ausência de fundamentos de facto e/ou de direito constitui causa de nulidade.

Ora, como resulta de uma mera leitura da sentença, esta contém os factos provados e não provados e contém fundamentação de direito.

A deficiente fundamentação da matéria de facto não constitui causa de nulidade da sentença.

A deficiente fundamentação de algum facto essencial para o julgamento da causa apenas poderá conduzir a que a Relação, a pedido ou mesmo oficiosamente, determine que o tribunal de 1ª instância o fundamente (artº 662º, nº 2, alínea d) do CPC). Contudo, ainda que reconhecendo a deficiente fundamentação, a Relação não está obrigada a remeter os autos para melhor fundamentação. Só o fará se o entender necessário.

Sempre se dirá ainda que o tribunal a quo não está adstrito a fundamentar a matéria de facto, ponto por ponto. Tem, no entanto, que efetuar uma análise crítica da prova produzida e não se limitar a transcrever o que cada uma das testemunhas disseram.

Improcede, consequentemente, a arguição de nulidade.

Da impugnação da matéria de facto

(…)

A matéria de facto a considerar é, consequentemente, a seguinte:

Factos provados

.1.A autora é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de venda, instalação e manutenção de todos os seus componentes de centrais de alarme, incêndio e videovigilância com controlo remoto; instalação e manutenção de infraestruturas elétricas na construção civil e industrial; domótica; instalação e manutenção de sistemas de climatização; energia solar; qualidade de ar interior; reparação de televisores e de outros bens de consumo similares.

.2.A primeira e segunda rés são sociedades comerciais que se dedicam à atividade de comércio de veículos automóveis ligeiros. A segunda ré é representante em Portugal do produtor de automóveis da marca de “Peugeot”, dedica-se à importação para o território português de veículos novos da marca “Peugeot”, peças sobressalentes, acessórios e respetivos equipamentos e sua distribuição no referido território através de uma rede comercial constituída por concessionários independentes e/ou por filiais, bem como, o aluguer de veículos automóveis, operações de manutenção e a formação profissional inerente às atividades referidas.

.3.No dia 19 de Março de 2018, a autora comprou no stand de vendas da primeira ré, sito em ..., Coimbra, o veículo automóvel de marca Peugeot, modelo Partner, de cor ..., com a matrícula ..-UJ-.., no estado de novo, pelo preço de € 13.600,43 (treze mil, seiscentos euros e quarenta e três cêntimos). Tal veículo adquirido beneficiava de garantia automóvel, concedida pelo fabricante, contra defeitos e avarias, num período de dois anos após a compra, sem limitação de quilometragem.

.4.O referido veículo foi adquirido para uso na atividade comercial da autora, sendo especialmente afecto a uma equipa de trabalho composta por dois trabalhadores.

.5. Em Fevereiro de 2020, a autora começou a notar em determinadas zonas do seu veículo um descasque anormal de tinta, nomeadamente no lastro da mala e no aro da porta esquerda, estes devidos a uma falha coesiva do sistema de pintura.

.6.De imediato reportou e denunciou à primeira ré tal situação. Nessa sequência, e a pedido da primeira ré, foi feita uma avaliação técnica à pintura do veículo pelo técnico AA. Este elaborou, em 11-02-2020, um relatório denominado de “Análise a pintura de viaturas”. Nesse relatório fez constar, entre o mais, que o local do dano visível se situava no “lastro da mala e aro da porta esquerda”; que a espessura da tinta era de “49 a 53 microns”; que a causa se devia a “falta de aderência / outros”. Concluindo deste modo com o seguinte comentário: “A viatura em análise apresenta no interior da mala, vinco rebaixado junto às portas traseiras com aba protegida com borracha, vários pontos de descasque da película de tinta que quando forçada apresenta continuidade, assim como alguns empolamentos da película. Igualmente apresenta no aro da porta esquerda pequeno descasque, sendo que é visível na borracha que serve de batente o vestígio da tinta branca. Em qualquer dos casos a película de tinta descasca em conjunto com o aparelho.”. Porém, como não se mostrasse o sobredito relatório suficientemente esclarecedor para se perceber a totalidade dos defeitos na pintura, uma vez que excluiu a observação de outros pontos igualmente existentes, a autora reclamou nova observação técnica ao veículo, o que aconteceu. Assim, em 13-05-2020, o mesmo AA, produziu novo relatório de “Análise a pintura de viaturas”. Desta feita, foram também verificadas as zonas do “Capo; Ilharga vidro frt dta; Porta fr dta; Porta Deslizante dta; portas traseiras; jantes; travessa do tejadilho traseira”. Sendo aí verificado que a espessura da tinta era de “74 a 99 microns”. E desse relatório consta que a causa do dano se devia a “Agressão mecânica externa / Outros desconhecidos”. Após o que consta o seguinte comentário: “Este relatório complementa o datado de 11 fevereiro. A viatura em análise apresenta vários descasques de tinta na sua generalidade. A sua observação à lupa de 6 a 8 aumentos identifica que estamos perante agressões mecânicas externas, sendo visíveis raiados não uniforme adjacentes ao local de impacto, o que evidencia que algo entrou em contacto com aquele local. Em todos os danos, só a película de tinta ficou afetada, mostrando o aparelho cinza e não há continuidade no descasque. De facto, na ilharga traseira do tejadilho existe um descasque que apresenta leve corrosão numa zona de chapas sobrepostas e onde existe cordão de silicone. Podemos eventualmente atribuir este dano a deficiente tratamento da superfície neste local dada a sua característica já identificada. Também se observam grandes quantidades de limalhas com oxidação nos vincos das portas traseiras e nos vincos laterais. Igualmente identificamos descasque generalizado nas quatro jantes que quando forçado cede e tem continuidade, demonstrando séria falta de aderência no local.”.

.7.Perante os referidos dois relatórios, a autora concluiu que os defeitos apurados eram profundos e generalizados em toda a pintura do veículo, tanto nas zonas visíveis a olho nu que evidenciavam manifesta oxidação e corrosão, como também em zonas não visíveis, por ocultadas por silicone, forras e equipamentos do veículo.

.8. Após a elaboração dos relatórios elaborados a pedido da primeira R., esta não se dispôs ou notificou a autora, no sentido de se proceder à recolha do veículo com vista à reparação integral da pintura.

.9.A autora, através do seu mandatário, dirigiu à segunda ré uma carta, com aviso de receção, datada de 19-05-2020, dando-lhe conta dos defeitos supra referidos.

.10.Através do seu mandatário, a autora dirigiu também à primeira ré uma carta com aviso de receção, datada de 27-07-2020, a expor o assunto.

.11.A autora, por forma a melhor esclarecer as condições da pintura no veículo, solicitou outro Relatório de Ensaio tecnicamente aprofundado, ao IPN (Instituto Pedro Nunes) - Laboratório de Ensaios, Desgaste e Materiais, sito em Coimbra. Esta entidade elaborou, em 04-08-2020 um relatório do qual consta o seguinte: “Na amostra analisada não foram detetadas evidências de deformações (danos) provocadas por ações externas que potenciem o arrancamento da película. Pelas análises realizadas, o destacamento da película de tinta ocorre preferencialmente na interface de uma das camadas do sistema de pintura (zona castanha) indiciando estarmos perante uma falha coesiva do sistema de pintura”.

.12.A primeira R. respondeu à carta da A. em 10.08.2020, negando a existência de um “dano geral de pintura”, proveniente do processo de fabrico do veículo e apresentou uma proposta, por meio da qual a A. poderia adquirir um novo veículo da marca com o desconto de 39% ou  optar pela pintura parcial da viatura – lastro da mala e aro da porta esquerda -, de acordo com os procedimentos da marca Peugeot, respeitando também todos os parâmetros que nos são exigidos e sem quaisquer custos para o cliente.

.13.A autora, enquanto se manteve na expectativa de obter uma solução junto das rés quanto aos defeitos do veículo, temeu, designadamente, o agravamento dos mesmos por via da sua utilização, pelo que deixou de circular com o veículo. Por isso, viu-se privada do uso do veículo na sua atividade comercial. A autora viu-se obrigada a recorrer ao aluguer de outro veículo, marca Peugeot Partner, junto da Iberocar rent-a-car, entre 21-07-2020 a 24-07-2020. Com o aluguer desse veículo, a autora despendeu a quantia de € 170,17 (cento e setenta euros e dezassete cêntimos).

.14.As rés não providenciaram pela substituição, ainda que a título provisório, do veículo da autora durante os dias 11-02-2020 e 13-05-2020 em que o mesmo ficou imobilizado para a realização de testes de diagnóstico e avaliação dos defeitos da pintura, circunstância que privou a autora de manter a regular laboração da equipa de dois trabalhadores, durante esse período. O sócio gerente da autora viu-se obrigado a recorrer a veículos facultados por amigos ou parceiros de negócio, por forma a colmatar as necessidades de resposta da empresa e também fez uso do carro pessoal, colocando-o ao serviço da empresa, para as deslocações necessárias e imperativas à prestação de serviços a clientes.

.15.À data dos factos, a autora estava onerada com um crédito automóvel, junto da instituição de crédito Banco 1..., contraído aquando da aquisição do veículo dos autos, num valor prestacional de € 197,72 (cento e noventa e sete euros e setenta e dois cêntimos) por mês, que a autora suportou pontualmente.

.16.A autora suportou o respetivo prémio de seguro automóvel, contratado junto da Seguradora D..., S.A., nos referidos meses em que ficou privada do uso do seu veículo. o que perfaz a quantia de € 78,30 (setenta e oito euros e trinta cêntimos).

.17. . O relatório do IPN teve por base uma amostra da pintura do veículo da A. com 12 cms, retirada do aro da porta e não inclui parecer técnico.

.18. Os danos a que se refere o relatório de 13 de março de 2020, existentes no capô, ilharga vidro frente direita; porta frente direita; porta deslizante direita; portas traseiras; travessa do tejadilho traseira, são provenientes de agentes externos (agressões mecânicas e de limalhas).

Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão a proferir, designadamente não se provou que:

- o veículo adquirido pela autora beneficiava de garantia automóvel sobre a pintura, pelo período de três anos.

- o sócio gerente da autora fez uso do carro pessoal, colocando-o ao serviço da empresa, em média dois a três dias por semana, conforme as respetivas necessidades de trabalho, ao longo dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020.

- Que a pintura da viatura sofresse de uma falha geral coesiva do sistema de pintura.

- A não utilização da viatura pela A., teve o inerente reflexo na sua rentabilização económica  e na limitação em sede de satisfação dos trabalhos contratados junto dos seus clientes.

Da aplicação do direito aos factos

Do alegado erro de julgamento da sentença recorrida ao condenar a apelante a pintar totalmente a viatura adquirida pela A., no interior e exterior

A A. estruturou a petição inicial, alegando que a viatura que tinha adquirido, apresentava falta de espessura da tinta com a ausência ou deficiente aderência à chapa que cobre todo o veículo, tratando-se de defeito original na produção do veículo. E pediu que as RR. fossem condenadas solidariamente a proceder à reparação integral dos defeitos na pintura do veículo ..-UJ-.., através de um procedimento completo e abrangente a todo o veículo, tanto no seu interior como exterior.

No caso, afigura-se que a apelada estruturou a sua ação, fundamentando-se na garantia concedida pelo fabricante, representado pela 2ª R.,  e ainda apelando ao regime legal da compra e venda com defeitos .  Formulou, a título principal, o pedido de reparação do defeito peticionando uma pintura integral do interior e do exterior da viatura, pelo que lhe incumbia provar a existência de um defeito de origem na pintura da viatura, para poder responsabilizar a 2ª R., enquanto representante em Portugal do fabricante.

Note-se que a apelante, a 2ª R.,  não põe em causa que possa responder diretamente perante o comprador, nem põe em causa a sua responsabilidade solidária com a 1ª R., nem põe em causa a condenação constante da alínea b) da sentença, de ter providenciar um veículo de substituição durante a reparação, nem questiona a condenação no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória (alínea c) e a 1ª R. não interpôs recurso. A apelante apenas põe em causa que os danos apresentados na pintura sejam provenientes de um defeito de fabrico, ou pelo menos, a existir tal defeito, considera que o mesmo não é extensivo a toda a pintura, pelo que apenas esta  questão, assim como a indemnização pela privação do uso (alínea d) da sentença), estão em apreciação.

Entende a apelante que a apelada não logrou provar o que se propôs.

            Vejamos:

            No caso o veículo da A. beneficiava da garantia de pintura concedida pelo fabricante pelo período de dois anos (pág 3 e 7 da garantia).

            De acordo com a garantia prestada, a garantia de pintura  “cobre a renovação total ou parcial necessária para o tratamento de um defeito verificado pela AUTOMOBILES PEUGEOT ou por um representante.

 A garantia de pintura aplica-se sob condição expressa de que o veículo tenha sido sempre reparado respeitando integralmente as normas da AUTOMOBILES PEUGEOT e de que o cliente tenha feito realizar atempadamente e em conformidade o ciclo de manutenção definido pelo fabricante.

Para continuar a beneficiar da garantia de pintura PEUGEOT, o utilizador deve fazer reparar os danos devidos a causas exteriores nos dois meses a seguir à respetiva constatação; as reparações destes danos ficam a cargo do utilizador.”(página 7).

E estabelece ainda o texto da  garantia que esta não cobre os elementos seguintes:

“• danos à pintura ou à tinta da carroçaria provocados pelo ambiente, tais como por efeitos atmosféricos, químicos, animais ou vegetais, areia, sal, projeção de gravilha ou fenómenos naturais (granizo, inundações) e outros factores exteriores (por um acidente ou não);

• danos devidos à negligência do utilizador, à apresentação tardia do defeito a eliminar ou ao desrespeito pelas indicações do fabricante;

• danos resultantes de situações não cobertas pela Garantia contratual;

• consequências de reparações, transformações ou alterações realizadas por empresas não autorizadas pelo fabricante.”

A noção de defeito de pintura para efeitos da garantia é dado na página 3 onde se refere que a garantia de pintura cobre os defeitos de origem da pintura da carroçaria.

Já a noção legal de defeito é dada pelo artº 913º, nº 1 do CC onde se estabelece que ocorre venda de coisa defeituosa se a coisa vendida sofrer de vício que a desvalorize ou impeça a realização do fim a que foi destinada, ou não tiver as qualidades asseguradas pelo vendedor ou necessárias para a realização do fim a que se destina (artº 913º, nº 1  do CC). O vício corresponde a imperfeições relativamente à qualidade normal das coisas daquele tipo, enquanto a desconformidade representa a discordância com respeito ao fim acordado. Para Menezes Leitão, “a expressão “vícios”, tendo um conteúdo pejorativo, abrangerá as características da coisa que levam a que esta seja valorada negativamente”, e a “falta de qualidades”, “embora não implicando a valoração negativa da coisa, coloca-a em desconformidade com o contrato”. E prossegue: “para que os defeitos da coisa possam desencadear a aplicação do regime da venda de coisas defeituosas torna-se necessário que eles se repercutam no programa contratual, originando uma de três situações: a desvalorização da coisa; a não correspondência com o que foi assegurado pelo vendedor; e a sua inaptidão para o fim a que é destinada” (Direito das Obrigações, vol. III, 2016-11ª ed., págs. 121).

Assim, incumbia à A. alegar e provar que a viatura adquirida tinha um defeito na  pintura, defeito este de origem (cfr definição constante da página 3 da garantia) e  que se estendia à pintura de todo o veículo (interior e exterior)- (artº 342º, nº1 do CC).

A garantia de bom funcionamento  prestada pelo fabricante tende a ser caraterizada como promessa pública (como se entendeu no Ac. do TRP de 23.04.2020, proc. 621/16) ou como contrato de garantia. Para os autores que vêm os enunciados como contratos de garantia[1],  ao abrigo do princípio da liberdade contratual presente no artigo 405º do C.C., a emissão do documento de garantia é considerada como uma declaração negocial por parte do garante, no sentido de constituir uma proposta contratual dirigida ao público, dando-se a aceitação do beneficiário quando este remete, ao garante, o documento de garantia devidamente preenchido.

Para outros, tratar-se-á de uma promessa pública[2], efetuada pelo produtor ou por qualquer intermediário da cadeia de distribuição do bem. A garantia constituirá então um negócio jurídico unilateral não receptício e para que a declaração produza efeitos, não carece de ser dirigida e levada ao conhecimento de certa pessoa, bastando a sua simples emissão[3].

Se se entender que a garantia reveste a qualidade de uma promessa pública, ela deverá respeitar os requisitos impostos pelo artigo 459º do C.C. e seguintes, o que implica  que a promessa da prestação tem de tornar-se cognoscível pelo público através de um anúncio, concretizando-se através da publicidade ou das informações que possam constar da embalagem do bem ou que a acompanhem. Quando a garantia é emitida os promissários da garantia, não estão determinados, porém são determináveis, sendo considerados como beneficiários aqueles sujeitos que se encontrem nas condições descritas na garantia, tenham ou não conhecimento da mesma, tendo o  documento de garantia um valor “meramente probatório” . Ainda que seja  exigido o preenchimento do documento e o seu posterior envio ao garante, esse ato não se carateriza como uma aceitação.

Independentemente da posição que se adote, verifica-se um conjunto de características comuns. O documento de garantia deve conter um conjunto de informações fundamentais para que a prestação garantida possa ser desencadeada. Em ambos os casos verifica-se a emissão de uma declaração vinculativa que poderá ser ou não acompanhada da respetiva aceitação, conforme se entenda estarmos um contrato de garantia ou uma promessa pública. Em  qualquer dos casos é admissível a aplicação analógica do preceituado no artigo 921º do C.C. para as hipóteses não previstas no documento de garantia.

Note-se que no caso não se aplica o regime do DL 67/2003, de 08 de abril, em vigor à data da denúncia, posteriormente revogado pelo DL 84/2021, de 18 de outubro, uma vez que a A. não reveste a qualidade de consumidora, tendo em conta que consumidor para efeitos de ambos os diplomas é apenas o que destina o bem a uso não profissional (artº 1-B, al. a) do DL 67/2003 e artº 2 alínea g) do DL 84/2021). Também não se aplica o disposto no DL 383/89, de 6 de novembro, porque este diploma apenas prevê a ressarcibilidade dos danos  em coisa diversa do produto defeituoso e desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino (artº 8º), o que não é o caso.

O garante pode discriminar detalhadamente quais são os defeitos cobertos pela garantia e os que estão excluídos, definindo a prestação que o beneficiário tem direito em consequência  dos defeitos  que a coisa apresente, sendo usual que o objeto se identifique com a reparação ou com a substituição da coisa defeituosa. O garante pode ainda limitar a sua obrigação, fazendo refletir na esfera do beneficiário eventuais despesas derivadas de, designadamente,  deslocações ou mão-de-obra.

No caso dos autos, no texto da garantia que foi entregue ao comprador aquando da venda foi feito constar que se trata de uma “garantia contratual”, mas não existe no texto da garantia qualquer espaço destinado à aceitação do comprador, mas apenas à identificação do vendedor e à aposição do seu carimbo. Mas a garantia contratual poderá ser considerada aceite tacitamente pelo comprador,  quando, designadamente, este a exibe nas revisões e pede que seja preenchido o espaço destinado a comprovar a realização da revisão, para poder gozar da garantia[4], deduzindo-se assim destes factos a sua aceitação (artº 217º, nº 1 do CC).

Independentemente da natureza jurídica da mesma, quanto à sua formação, a garantia permite que o comprador possa exigir a reparação da coisa. Durante o período de garantia está assegurada a manutenção em bom estado ou o bom funcionamento (idoneidade para o uso) da coisa. O facto do garante assumir a garantia de um resultado, assume uma importância em matéria de ónus probandi: ao comprador bastará fazer a prova do mau funcionamento da coisa durante o período da garantia, sem carecer de identificar ou individualizar a causa do mesmo. Será o vendedor que, pretendo afastar a sua responsabilidade, terá de provar que o mau funcionamento é posterior à entrega da coisa e imputável a comprador (nomeadamente por má utilização), a terceiro ou devido a caso fortuito .

A existência de uma garantia proposta pelo produtor e aceite tacitamente pelo comprador, não exclui outros direitos relacionados com a falta de outras qualidades ou a existência de outros vícios que poderão ser invocados ao abrigo do regime legal da compra e venda defeituosa contra o vendedor. A existência de uma garantia é um plus concedido ao comprador para sua proteção.

Na venda de coisa defeituosa,  o comprador tem o direito:

.à  anulação total ou parcial  do contrato por erro ou dolo, desde que se verifiquem os requisitos da anulabilidade. Procedendo  a anulação do contrato, o comprador tem direito a ser indemnizado, mas com duas medidas diferentes. Em caso de dolo, será indemnizável todo o dano que não teria sofrido se a compra e venda não houvesse sido celebrada; em caso de erro, a indemnização abrangerá apenas os danos emergentes do contrato, dela se excluindo os benefícios que o comprador tiver deixado de obter (artºs 905 ex vi do 913/1, 908, 909 e 564 do CC);

. à  reparação da coisa ou a sua substituição,  se a coisa  for fungível (artº 914 do CC); e,

. à redução do preço, se se verificarem os pressupostos do artº 911 do CC, ex vi do artº 913/1 do CC, além da indemnização que no caso competir.

No regime do artº 913 a 919º do CPC, tratando-se de responsabilidade contratual, incumbe ao devedor provar que o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua (artº 799º, nº 1 do CC).

           

No caso, os factos provados são insuficientes para permitir a procedência total  do peticionado pela A.

            A circunstância de se ter provado que, perante os dois relatórios elaborados pela Spie Heckers, a A. concluiu que os defeitos eram extensivos a toda a pintura, tanto nas zonas visíveis, como nas zonas não visíveis, é irrelevante.  

Em face da matéria de facto dada como provada, apenas se pode concluir pela ocorrência de um defeito na pintura na zona analisada pelo técnico do INP – aro da porta - e nas zonas  analisadas no primeiro relatório da Spies Hecker – aro da porta e mala do veículo, tendo-se até provado a causa do defeito (falha coesiva do sistema de pintura) e ainda nas  4 jantes que apresentam  descasque generalizado que, quando forçado cede e tem continuidade, demonstrando séria falta de aderência no local e na ilharga traseira do tejadilho onde existe um descasque que apresenta leve corrosão numa zona de chapas sobrepostas e onde existe cordão de silicone, de acordo com as conclusões do segundo relatório. Neste caso das jantes e da ilharga traseira do tejadilho o descasque não é atribuído a qualquer agente externo ou qualquer outra causa exclusiva da responsabilidade, pelo que se entende que também é devida a sua reparação, pois a apelante não logrou provar factualidade integradora das causas de exclusão da garantia. Os demais danos objeto do exame que deu causa ao relatório de 13 de maio de 2020 estão excluídos da garantia, por serem provenientes de agressões externas (ambiente).

Não podem assim as RR. ser condenadas a proceder à reparação integral da viatura, mas apenas dos defeitos identificados, cuja causa não foi atribuída a agressões externas, sendo que no pedido de reparação total, está necessariamente compreendido o pedido de reparação parcial.

Note-se que para concluir pelo defeito generalizado da pintura de um veículo, não se pode apenas apelar à experiência do homem médio e do normal acontecer, como defende a apelada nas suas alegações, porque o homem médio não tem os necessários conhecimentos técnicos para formular uma  conclusão no sentido da existência de um defeito de fabrico generalizado na pintura de um veículo. A apelante alegou que atenta a natureza dos defeitos a reparação exigiria que a pintura abrangesse toda a superfície do veículo, e não apenas  a reparação dos defeitos visíveis com oxidação e corrosão, mas não o logrou provar.

Relativamente ao dano resultante da privação do uso

            A A. pediu a condenação solidariamente das RR. a indemnizá-la por todos os prejuízos sofridos e a que deram causa, por conta da imobilização e privação de uso do veículo ..-UJ-.. pela autora, na quantia de € 4.034,79 (quatro mil e trinta e quatro euros e setenta e nove cêntimos).

            O valor de 4.034,79 resulta da soma:

            . Da quantia de 170,17, relativa ao aluguer de outro veículo, marca Peugeot Partner, junto da IBEROCAR rent-a-car, entre 21-07-2020 a 24-07-2020;

            . a quantia de 2.600,00, relativa ao  valor necessário para compensar o desgaste sofrido pelo veículo do sócio gerente da A. que calculou em 40,00 diários, por ter colocado o seu carro pessoal ao serviço da empresa, para as deslocações necessárias e imperativas à prestação de serviços a clientes, em média dois a três dias por semana, conforme as respetivas necessidades de trabalho, ao longo dos meses de março a agosto de 2020 (período em que o mesmo ficou imobilizado para a realização de testes de diagnóstico e avaliação dos defeitos da pintura) assim calculado: 2,5 dias por semana X 26 semanas X € 40,00 dia;

            . A quantia de 1.186,32 correspondente às prestações vencidas que pagou, durante os meses de março a agosto de 2020, relativas ao crédito automóvel, junto da instituição de crédito Banco 1..., contraído aquando da aquisição do veículo dos autos, num valor prestacional mensal de € 197,72;

            . A quantia de 78,30 correspondente ao prémio de seguro relativo ao período de março a agosto de 2020.

            Na sentença recorrida consignou-se a propósito:

“Apurou-se que o veículo foi adquirido para uso na atividade comercial da autora. Mais se apurou que a autora, enquanto se manteve na expectativa de obter uma solução junto das rés quanto aos defeitos do veículo, temeu o agravamento dos mesmos por via da sua utilização, pelo que deixou de circular com o veículo. Ora, pensamos que tal temor da parte da autora não é descabido - desde logo porque as próprias rés diziam que o descasque da pintura se devia a “fatores externos”… Não se diga, pois, que a autora poderia ter circulado com a viatura sem quaisquer restrições e se o não fez tal facto apenas a decisão sua se deve… Assim, a autora ficou privada do uso do veículo na sua atividade comercial. A autora viu-se obrigada a alugar outro veículo entre 21-07-2020 e 24-07-2020 e com tal aluguer despendeu a quantia de € 170,17 (cento e setenta euros e dezassete cêntimos). As rés não providenciaram pela substituição do veículo da autora, nem mesmo durante os dias 11-02-2020 e 13-05-2020 em que o mesmo ficou imobilizado para a realização de testes de diagnóstico e avaliação dos defeitos da pintura. O sócio gerente da autora viu-se obrigado a usar o carro pessoal e a recorrer a veículos facultados por terceiros, por forma a colmatar as necessidades da empresa.

Face a todo o exposto, entendemos que a autora deve ser indemnizada na referida quantia de € 170,17. No mais terá de se recorrer a um juízo de equidade. E nesse juízo temos de ter em conta que sendo o veículo afeto a atividade profissional/comercial, não circularia todos os dias, mas apenas em dias de trabalho, pelo que não circularia aos fins de semana, nem em período de férias da empresa. Por outro lado, não se apurou que o sócio gerente da autora fez uso do seu carro pessoal ao serviço da empresa, em média dois a três dias por semana ao longo dos meses de Março, Abril, Maio, Junho, Julho e Agosto de 2020 - pelo que não se apurou o respetivo desgaste no montante de 40 €/dia. Nem se apurou que a autora tivesse despendido qualquer montante quando utilizou veículos facultados por terceiros amigos/parceiros…

Deste modo, ponderados os critérios de equidade que devem presidir à fixação da indemnização por privação de uso, afigura-se-me ajustado valorar o dano em causa no valor de € 3.000. Relativamente aos montantes peticionados pela autora relativos ao crédito automóvel junto da Banco 1... e ao prémio de seguro automóvel contratado junto da Seguradora D..., S.A. nos meses em que ficou privada do uso do seu veículo, entendemos que não se justifica a indemnização nos termos peticionados, pois sempre a autora teria que despender tais montantes.”

E condenou as RR. solidariamente a pagar à A. a quantia de 3.170,17 a título de privação do uso.

Para que, para lá do direito de reparação ou substituição da coisa constantes do art. 921.º do CC o comprador tenha direito à indemnização pelos prejuízos derivados do cumprimento inexato da prestação, onde se podem contar os da paralisação do veículo, é necessário que exista culpa do devedor nos termos da responsabilidade subjetiva - arts. 798.º e 483.º, n.º 1, do CC (cfr. se refere no Ac. do STJ de 29.11.2022, proc. 6886/18.5T8LRS.L1.S1 e Calvão da Silva, Responsabilidade Civil do Produtor, Coleção Teses, Almedina, 1999, pág. 208).

A questão da ressarcibilidade do dano da privação do uso tem sofrido ao longo do tempo uma evolução jurisprudencial que aponta num sentido de maior abertura na reparação de tal dano.

Num entendimento mais exigente para o lesado, para que o dano da privação do uso da coisa danificada seja indemnizável, exige-se a prova de factos demonstrativos da repercussão negativa dessa privação no património do lesado.

Outra corrente jurisprudencial, mais favorável ao lesado, basta-se com a prova de que o lesado usaria normalmente a coisa danificada para que o dano da privação do uso seja indemnizado. 

Finalmente, numa posição ainda mais favorável ao lesado, defende-se a ressarcibilidade do dano da privação do uso mesmo que não seja feita prova de uma utilização quotidiana do bem, indemnização a fixar com recurso à equidade e com ponderação das concretas circunstâncias de cada caso (cfr. se defende no Ac. do TRP de 08.03.2021, proc. 3822/19.5T8MAI.P1).

O dano da privação do uso poderá ser ressarcido mediante a alegação e prova de qualquer prejuízo patrimonial concreto, seja na forma de lucros cessantes – lucros que deixou de obter pelo facto de não poder usar o veículo sinistrado –, ou como dano emergente – pelos custos com a obtenção de um veículo de substituição, ou  , na falta de apuramento destes factos, mediante o recurso à equidade (artº 566º, nº 3 do CC).

Acontece, porém, que no presente caso, não há factos que sustentem o dano de privação do uso. Tratando-se de danos na pintura, a viatura não estava impedida de circular, nem foi feita qualquer prova de que, se a viatura continuasse a circular, os danos se agravariam. A decisão da iniciativa da A. da não utilização da viatura,  enquanto se manteve na expectativa de obter uma solução junto das rés quanto aos defeitos do veículo, por temer o agravamento dos danos por via da sua utilização, embora se compreenda, não estando demonstrado, nem tendo sido alegado que a viatura estava impedida de circular nem que os danos existentes podiam se agravar com a circulação, não permite estabelecer um nexo de causalidade entre o defeito e a privação (o dano).

Não há assim dano de privação do uso a indemnizar.

A 1ª R. não recorreu, não tendo posto em causa a sua responsabilidade nem a  condenação solidária juntamente com a apelante, mas beneficia da procedência parcial do recurso da apelante (artº artº 634º, nº 2, alínea c) do CPC).

A apelação deve proceder parcialmente.

Sumário:

(…).

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª secção em julgar parcialmente procedente a apelação, e consequentemente, alteram a alínea a) da sentença recorrida e, consequentemente, condenam as RR., solidariamente, a  reparar os danos na pintura do veículo com a matrícula ..-UJ-..  existentes no lastro da mala e no aro da porta referenciados no relatório de 11.02.2020 , nas jantes e na ilharga traseira do tejadilho mencionados no relatório de 13.05.2020 e revogam o decidido na alínea d),  mantendo o decidido nas alíneas b)  e c) da sentença recorrida.  

Custas da apelação, por ambas as partes, na proporção do decaimento que se fixa em 30% para a apelante e 70% para a A..

Custas na 1ª instância por ambas as partes, na proporção do decaimento que se fixa em 75% para as RR. e 25% para a A..

            Not.

            Coimbra, 9 de abril de 2024



[1] Mota Pinto e Calvão da Silva Responsabilidade Civil do Produtor, in O Direito, ano 121, 1989, p. 306.
[2]Ferreira de Almeida,  Texto e Enunciado Texto na Teoria do Negócio Jurídico, volume II, Almedina, Coimbra, 1992, pp.1031-1032.
[3] Seguiu-se o trabalho efetuado na tese de mestrado apresentada por Ana Manuela Costa Fernandes, subordinada ao tema “A Compra e Venda de Bens Defeituosos – A Garantia de Bom Funcionamento”, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2015, acessível em   https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/28647/1/A%20compra%20e%20venda%20de%20bens%20defeituosos.pdf, página 39,  que expõe os diferentes entendimentos em confronto, de acordo com conceituada doutrina.
[4] É habitual, como também consta da garantia em causa – página 7,  que o fabricante subordine a proteção da garantia aos casos em que o veículo tenha sido sempre reparado com respeito integral das normas do fabricante e desde que o cliente tenha feito realizar atempadamente e em conformidade o ciclo de  manutenção definido por aquele.