ARRENDAMENTO
FALTA DE PAGAMENTO DE RENDAS
Sumário


I. Numa ação em que a autora, locadora, invoca a falta de pagamento das rendas por parte da ré, locatária, impende sobre a esta o ónus de provar o pagamento, por se tratar de facto extintivo do direito invocado pela autora (artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), ainda que a ré tenha sido julgada à revelia.
II. Assentando a causa de pedir na falta de pagamento das rendas durante a vigência do contrato de arrendamento, que cessou por outra causa que não a falta de pagamento das rendas vencidas, assiste à locadora o direito de receber o valor das rendas em mora e o valor da indemnização prevista no artigo 1401.º, n.º1, do Código Civil.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral



Processo n.º 2004/19.0T8STR.E1(Apelação)
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca ..., ... - JC Cível - J...
Apelante: BANIF Imobiliária, S.A.,
Apelada: Changwu & Congcong – Importação e Exportação, Lda.

Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Évora

I – RELATÓRIO
BANIF IMOBILIÁRIA, S.A., intentou ação de processo comum, contra CHANGWU & CONGCONG – IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO, LDA, formulando os seguintes pedidos:
«a) Ser a Ré condenada ao pagamento de todas as rendas vencidas, no valor actual de €383.550,19;
b) Ser a Ré condenada no pagamento da indemnização correspondente a 50% do valor em dívida pela mora no cumprimento da obrigação, a qual se computa no valor de €191.775,09».
Para fundamentar a sua pretensão, alegou, em suma, que em 05-04-2010, o Banif Imopredial – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, na qualidade de locador (tendo a Autora assumido essa posição em 01-01-2012), e a Ré, na qualidade de arrendatária, celebraram um contrato de arrendamento do imóvel identificado pelas letras ..., ... e ... sito em ..., Rua ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00, da freguesia ..., inscrito na respectiva matriz predial da freguesia ... sob o artigo ...44.
O contrato foi celebrado como arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo, com a duração inicial de 05 anos, com início a 01-04-2010, e termo a 31 de dezembro, sendo automaticamente renovado por períodos sucessivos de 01 ano, caso nenhuma das partes se opusesse à sua renovação com uma antecedência inferior a 180 dias relativamente ao termo inicial ou renovado.
A renda mensal inicial global acordada foi de €13.640,00 encontrando-se sujeita à atualização anual.
A renda prevista e acordada entre as partes foi alvo das sucessivas atualizações anuais, estando prevista para o ano de 2013 uma renda mensal de €14.100,00 para o ano de 2014 e 2015 uma renda de €14.239,59.
A Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de €383.550,19.
Tentou notificar a Ré, através de notificação por contacto pessoal promovida por Agente de Execução em 10-12-2015, de que o contrato de arrendamento se encontrava resolvido pela mora no pagamento das rendas acordadas; porém, o imóvel já se encontrava devoluto, não tendo sido possível à Autora proceder à sua notificação.
Procedeu, ainda, ao envio da carta de resolução para a Ré ao abrigo do artigo 10.º, n.º 5 do NRAU, tendo também carta de interpelação a 28-12-2015, na qual advertiu a Ré para a existência das rendas vencidas e não pagas.
As rendas não foram pagas.
A Ré foi citada editalmente, por se ter frustrado a sua citação pessoal.
Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 15.º do CPC, com citação do Ministério Público, que apresentou contestação declarando desconhecer os factos alegados na petição inicial não suportados por documentos certificados.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença, constando da sua parte dispositiva:
«Pelo exposto e de harmonia com a fundamentação que antecede, julgo esta acção totalmente improcedente e absolvo a Ré do pedido.»
Apelou a Autora, defendendo a revogação da sentença, apresentando para o efeito as seguintes CONCLUSÕES:
«1. Não poderá o Recorrente concordar com a factualidade dada como não provada no ponto 2 (‘’Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de € 383.550,19;)
2. A Sentença proferida é nula por não conter a motivação de facto e de direito que devia conter, porquanto o tribunal a quo limita-se a indicar de forma sumária que pretendia ouvir prova testemunhal quanto ao não pagamento das rendas, ignorando por completo a necessidade de proceder à motivação de direito por detrás de tal decisão.
3. A Sentença proferida peca, igualmente, pelo vício de erro no julgamento, designadamente através da errada aplicação do direito.
4. A Recorrente e a Recorrida celebraram um contrato de arrendamento segundo o qual, e ao abrigo do princípio da liberdade contratual, foram fixadas e estipuladas de forma concreta quais as condições do contrato.
5. De acordo com o referido contrato, e tal como resulta dos factos dados como provados, a Recorrida estava obrigada ao pagamento de uma renda mensal e a Recorrente a conceder o uso e gozo do imóvel objeto do contrato.
6. A Recorrente juntou aos presentes autos toda a documentação necessária a fazer prova da existência de tal relação arrendatícia, tendo, ainda, junto o extrato da conta corrente das rendas convencionadas, do qual resulta que a Recorrida procedeu à realização de 3 pagamentos isolados, nada mais tendo pago à Recorrente.
7. O tribunal a quo negligenciou por completo as regras da distribuição do ónus da prova, tendo atribuído à Recorrente o ónus de provar que a Recorrida não tinha procedido ao pagamento das rendas.
8. De acordo com as regras aplicáveis, à Recorrente era apenas obrigatória a prova de que tinha direito a auferir tal quantia, e não o não recebimento das quantias. Essa prova eventualmente poderia vir a ser necessária se a Recorrida tivesse alegado o pagamento, juntando para o efeito documentos comprovativos.
9. Não obstante a Recorrida ser revel (ainda que inoperante),
10. Assim, deveria o tribunal a quo dado como provado o seguinte:
Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de € 368.280,00 10. Assim, deveria o tribunal a quo dado como provado o seguinte:
Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de € 368.280,00
11. Isto porque o tribunal não considerou provadas as atualizações da renda, pelo que considerando que a Recorrida não procedeu ao pagamento das rendas no período compreendido entre junho de 2013 até agosto de 2015 (data em que entregou de forma voluntária o imóvel), correspondente a 27 meses, o valor em dívida é de €368.280,00.
12. A acrescer ao acima exposto e dando-se como provado o não pagamento das rendas, no valor de €368.280, deverá igualmente a Recorrida ser condenada no pagamento de uma indemnização correspondente a 50% do valor em dívida, tudo num total de €552.420,00.
13. Pelo acima exposto, dúvidas não existem que a Recorrida não logrou provar que pagou as rendas peticionadas, e que a Recorrente provou a existência de uma relação arrendatícia que lhe concede o direito a receber as rendas, deverá a Recorrida ser condenada ao pagamento da quantia devida, acrescida de juros de mora e da indemnização pelos prejuízos causados à Autora.
Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, sendo a sentença proferida declarada nula, por omissão de pronúncia, oposição dos factos provados e por erro na aplicação dos factos.»

Não foi apresentada resposta ao recurso.

II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1 e 608.º, n.º 2, do CPC), não estando o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do CPC), no caso, impõe-se apreciar:
- Nulidade da sentença
- Impugnação da decisão de facto e, sendo a mesma procedente, se deve ser revogada a sentença conforme pretendido pela Apelante.

B- De Facto
A 1.ª instância proferiu a seguinte decisão de facto:
Factos Provados
«1. Por contrato de arrendamento celebrado em 5 de abril de 2010, o Banif Imopredial – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, deu de arrendamento à Ré o imóvel identificado pelas letras ..., ... e ... sito em ..., Rua ..., ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...00, da freguesia ..., inscrito na respectiva matriz predial da freguesia ... sob o artigo ...44.
2. A 1 de janeiro de 2012, por aditamento ao contrato de arrendamento acima descrito, a Autora assumiu a posição de senhoria nesse mesmo contrato, atento o facto de ter adquirido as fracções que foram dadas de arrendamento à Ré.
3. O contrato foi celebrado como arrendamento para fins não habitacionais com prazo certo, com a duração inicial de 5 anos, com início a 1 de abril de 2010 e termo a 31 de dezembro, sendo automaticamente renovado por períodos sucessivos de 1 ano, caso nenhuma das partes se opusesse à sua renovação com uma antecedência inferior a 180 dias relativamente ao termo inicial ou renovado.
4. A renda mensal inicial global acordada foi de € 13.640,00, encontrando-se sujeita à atualização anual.
5. A Autora enviou à Ré duas cartas, datadas de 23 e 28 de dezembro de 2015, juntas como documentos n.ºs 5 e 6, que aqui se dão por integralmente reproduzidas.»

Factos Não Provados
«Para a boa decisão da causa não se provaram os demais factos alegados pela Autora na petição inicial, nomeadamente:
- Que a renda prevista e acordada entre as partes foi alvo de sucessivas actualizações anuais, estando prevista para o ano de 2013 uma renda mensal de € 14.100,00 e para os anos de 2014 e 2015 uma renda de € 14.239,59;
- Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de € 383.550,19;
- Que a Ré recebeu estas cartas.»

C- Do Conhecimento das questões suscitadas no recurso
1. Nulidade da sentença
Alega a recorrente que a sentença é nula por violação do artigo 615.º, n.º 1, alínea b), do CPC, «por não conter a motivação de facto e de direito que devia conter, porquanto o tribunal a quo limita-se a indicar de forma sumária que pretendia ouvir prova testemunhal quanto ao não pagamento das rendas, ignorando por completo a necessidade de proceder à motivação de direito por detrás de tal decisão».
Vejamos.
As nulidades da sentença encontram-se taxativamente elencadas nas várias alíneas do n.º 1 do referido artigo 615.º, do CPC e correspondem a vícios formais que afetam a decisão em si mesma, mas não se confundem com erros de julgamento de facto ou de direito, suscetíveis de determinar a alteração total ou parcial da decisão proferida.
A falta de fundamentação a que alude o n.º 1, alínea b) do artigo 615.º, do CPC, está em consonância com o dever de fundamentação as decisões, consagrado na CRP e na lei ordinária (artigo 205.º, n.º 1, da CPR, artigos 154.º, n.º 1 e 607.º, n.º 4, do CPC).
Porém, como tem sido entendido de forma consensual, a arguida nulidade só ocorre quando a falta de fundamentação for absoluta, o que não se verifica quando haja insuficiente ou errada fundamentação de facto e/ou de direito, vícios para os quais a lei tem remédios diversos que não passam pela declaração de nulidade do decidido (cfr., assim, artigos 639.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), 640.º e 662.º, n.º 1 e 2, alíneas c) e d), todos do CPC).
No caso em apreciação, a sentença elenca os factos provados e não provados em resultado do julgamento, fundamenta a decisão de facto assente nos meios de prova produzidos, e convoca o regime legal que julgou aplicável.
Lendo-se concretamente na fundamentação da decisão de facto:
«Os factos provados descritos nos n.ºs 1 a 5 fundaram-se nos documentos juntos com a petição inicial (contratos de arrendamento, certidão predial, nota de notificação pessoal, cartas).
No que diz respeito aos factos não provados, consigna-se que não foi produzida prova testemunhal quanto aos mesmos, sendo certo que os documentos juntos aos autos, nomeadamente as cartas enviadas pela Autora à Ré, são manifestamente insuficientes para que se pudesse dar como provado que esta está a dever a quantia de € 383.550,19, a título de rendas vencidas e não pagas. Com efeito, o que se pode dar como provado com base em tais cartas é tão somente que a Autora as elaborou e enviou. Quanto à demonstração do conteúdo dessas cartas que releva para esta causa (falta de pagamento de rendas), teria sido necessário e indispensável produzir outra prova, mormente testemunhal, o que não sucedeu. Também não foi produzida qualquer prova quanto à atualização das rendas.»
E de seguida, em termos de direito, justificou a improcedência da ação, consignando:
«Com a presente causa pretende a Autora obter a condenação da Ré no pagamento das quantias devidas a título de rendas vencidas e não pagas (art. 1038.º, al. a), do CC), acrescida da indemnização prevista no art. 1041.º, n.º 1, do CC, uma vez que o contrato de arrendamento não foi resolvido com base na falta de pagamento de rendas, mas na sequência de entrega voluntária do locado pela própria Ré.
Não tendo a Autora logrado provar a falta de pagamento de rendas, o pedido que deduz não pode ser acolhido.
Pelo exposto e de harmonia com a fundamentação que antecede, julgo esta acção totalmente improcedente e absolvo a Ré do pedido.»
Resulta do assim extratado que a sentença fundamentou a decisão de facto e a decisão de direito, pelo não existe falta total e absoluta de fundamentação, seja de facto, seja de direito.
Coisa diversa é saber se ocorreu erro de julgamento quanto à matéria de facto, que deve ser analisado em sede de impugnação da decisão de facto (que o apelante impugnou), ou erro de julgamento quanto à aplicação do direito aos factos, a analisar em termos de apreciação do mérito do decidido.
Em suma, em face do modo como o tribunal a quo fundamentou a decisão de facto e direito, e considerando a fundamentação da arguição da nulidade da sentença, não incorreu na arguida nulidade, pelo que improcede este segmento do recurso.

2. Impugnação da decisão de facto
Considerando que na impugnação da decisão de facto a recorrente cumpriu minimamente os pressupostos do artigo 640.º do CPC (sendo que a prova produzida é apenas documental), atento o disposto no artigo 662.º, n.º1, do mesmo Código, passa-se a apreciar a impugnação em relação à factualidade dada como não provada com o seguinte teor:
«Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de €383.550,19.»
Pretende a recorrente que esta factualidade passe a constar dos factos provados, com a seguinte redação:
«Que a Ré cessou o pagamento das rendas a partir de junho de 2013, encontrando-se em dívida a quantia de € 368.280,00.»
Para o efeito invoca que juntou documentos comprovativos do contrato de arrendamento, extrato da conta corrente das rendas convencionadas e pagas e que competia à Ré, não à Autora, provar o pagamento das rendas que esta vem alegar não se encontrarem pagas, por aplicação do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil, sem que a revelia inoperante da Ré altere a inversão desse ónus probatório.
Analisando.
Os documentos juntos (contrato de arrendamento na versão consolidada) prova a relação locatícia alegada pela Autora e o seu clausulado, donde decorre que a renda inicialmente contratada era de €13.640,00, sujeita a atualizações nos termos ali convencionados.
Também ficou convencionado que o pagamento da renda era feito por transferência bancária (cláusula 4.4. do contrato de arrendamento consolidado).
Competia à Autora provar as atualizações da renda por sobre si incumbir a obrigação de comunicar à arrendatária o valor da atualização e o coeficiente utilizado (cláusula 4.3. do contrato de arrendamento consolidado e artigo 1077.º, n.º1, alínea c), do Código Civil).
A Autora não provou ter feito essa ou essas comunicações, sendo que o ónus de prova sobre si impedia (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
O extrato bancário junto aos autos não prova a comunicação exigida por lei.
Efetivamente, e como faz notar o Ac. RC, de 12-07-2011 (ponto IV do sumário)[1]:
«Estabelecendo a lei um procedimento de diligência anual a cargo do locador para que o direito à actualização do valor da renda possa ser accionado, o facto de no contrato de arrendamento se deixar estipulado que a renda fixada será actualizável não dispensa o senhorio de diligenciar anualmente pela comunicação formal, expressamente prevista e desejada pelo legislador como condição (anual) para uma eficaz actualização.»

De qualquer modo, o valor que a ora recorrente vem invocar como estando em dívida corresponde a 27 meses (junho 2013 a agosto 2015), à razão de €13.640,00 por mês, o que significa que a recorrente levou em conta a renda inicialmente contratada e não o valor que resultaria das atualizações.
Ademais, não vem impugnar a factualidade não provada referente às atualizações da renda para os anos de 2014 e 2015.
Por conseguinte, a questão das atualizações encontra-se precludida pelos termos em que a recorrente formula o recurso, o que encontra arrimo no disposto no artigo 635.º, n.º 4, do CPC.
Resta, assim, aferir da questão do ónus de prova da falta de pagamento das rendas peticionadas.
Cremos que se trata de jurisprudência consolidada a que defende que o ónus de prova do não pagamento das rendas, mesmo nas situações de revelia inoperante (como é o caso dos autos), impende sobre o arrendatário, por se tratar de facto extintivo do direito de crédito invocado pelo senhorio assente na falta de pagamento de rendas vencidas durante a vigência do contrato de arrendamento, por aplicação do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil.
Veja-se, assim, entre outros:
Ac. STJ, de 22-03-2018[2]:
«I- Em matéria de cumprimento do ónus da prova num contrato de arrendamento, a regra é no sentido de que o credor tem de provar a celebração do contrato e, consequentemente, as obrigações dele decorrentes, nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC.
II - Por sua vez, o cumprimento da respectiva obrigação, designadamente o pagamento da renda convencionada, como facto extintivo do direito de crédito invocado, incumbe ao devedor, nos termos do art. 342.º, n.º 2, do CC, tanto mais que, em direito, o pagamento não se presume a não ser em casos expressamente previstos na lei (cfr. art. 786.º do CC).»

Ac. da RL, de 30-05-2023[3]:
«II. Numa ação de resolução de contrato de arrendamento com fundamento na falta de pagamento de rendas pelo locatário, compete ao senhorio demonstrar a existência do contrato e alegar o não pagamento, não lhe competindo, contudo, fazer prova desse não pagamento das rendas.
III. É ao arrendatário que incumbe o ónus da prova do pagamento das rendas (Art.º 342º, nº 2, do Código Civil).»

Ac. RL, de 24-06-2014[4]:
«2. O pagamento, enquanto facto extintivo da obrigação, deve ser invocado e provado pelo devedor (art. 342º, nº2 do Cód. Civil), afirmação que vale para acção de dívida, como para aquela em que o locador pretende exercer o direito à resolução base em falta de pagamento de rendas.»

Ac. da RC de 12-07-2011, supra citado:
«I – É entendimento jurisprudencial maioritário o de que o não pagamento de rendas – seja como causa de pedir de acção de dívida, seja como fundamento de resolução do contrato de arrendamento – não tem a natureza de facto constitutivo, antes se configurando o seu pagamento como facto extintivo do direito a esse pagamento, cabendo o ónus de prova nesta matéria não ao autor, mas ao réu – artº 342º, nº 2, C.Civ..
II – Nesta problemática deve-se propender, pois, na consideração segundo a qual o pagamento das rendas, ou melhor, o seu não pagamento, não se distingue, no essencial, da dogmática jurídica do normal incumprimento, fazendo recair a sua alegação e prova no devedor.»

Ac. Tribunal da RL, de 04-10-2007[5]:
«O ónus da prova do pagamento de renda cabe ao locatário, por se tratar de facto extintivo do direito do autor (artigo 342.º/2 do Código Civil) ainda que se trate de acção de resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de renda, não importante inversão do ónus da prova o facto de o réu ter sido julgado à revelia.»

Ac. RL, de 18-11-2021[6]:
«IV. A revelia (inoperante) impede a cominação, mas ela não inverte o ónus da prova, continuando mesmo nos casos de revelia a ser o réu/locatário quem tem o ónus de provar o facto extintivo do direito da Autora.»

Em face do que vem exposto, procede a impugnação da decisão de facto, eliminando-se a factualidade não provada e impugnada, aditando-se aos factos provados, o ponto 6, com a seguinte redação:
«6. A Ré não pagou as rendas a partir de junho de 2013 até agosto de 2015, no valor de €368.280,00.»

3. Mérito da sentença
Em face da alteração introduzida na decisão de facto, importa reanalisar a decisão de direito.
Estando provada a celebração entre as partes de um contrato de arrendamento para fins não habitacionais, cuja renda foi fixada no valor mensal de €13.640,00, a violação da obrigação da arrendatária de pagamento da renda desde junho a 20013 a agosto de 2015, a que se obrigou, concede à locadora o direito de obter a condenação da locatária no valor das rendas vencidas e não pagas (artigos 1022.º, 1023.º, 1038.º, alínea a), 1041.º, n.º 1, 1.ª parte, 1057.º e 1108.º do Código Civil).
A Autora para além de peticionar o pagamento das rendas em mora, defende que tem direito à indemnização prevista no artigo 1041.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil (redação em vigor à data da resolução, dada pelo Decreto-Lei n.º 293/77, de 20-07– artigo 2.º do Código Civil), correspondente a 50% do que for devido, por a cessação do contrato de arrendamento não se basear na resolução por falta de pagamento das rendas, mas na entrega voluntária do locado pela arrendatária, ainda que sem solver a obrigação de pagamento das referidas rendas.
Lida a p.i. decorre da mesma que a causa de pedir, enquanto «facto jurídico concreto que serve de fundamento ao efeito jurídico pretendido»[7] (artigo 581.º do CPC) assenta na cessação do contrato de arrendamento por entrega voluntária do locado por parte da Ré, peticionando a Autora as rendas vencidas e não pagas entre julho de 2013 e agosto de 2015 (cfr. artigo 7.º da p.i.), ou seja, o facto jurídico genético e constitutivo do direito invocado não é a resolução do contrato de arrendamento por falta de pagamento de rendas, mas a cessação do contrato de arrendamento por outro motivo, pelo que, para além de serem devidas as rendas em mora, tem a Ré direito a receber a indemnização de 50% do valor das rendas vencidas e não pagas, como estipula o artigo 1041.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil.
Sufraga-se, assim, o entendimento acolhido pela jurisprudência quando defende que o direito à indemnização prevista no artigo 1401.º, n.º 1, do Código Civil, «(…) existe sempre que haja situação de mora no pagamento de rendas, salvo quando o senhorio opte pela resolução do contrato com base nessa causa, e o contrato for resolvido com base em tal fundamento; ao invés, o locador mantém o referido direito à indemnização pela mora no pagamento de rendas, quando a resolução do contrato de arrendamento radica em acto eficaz de revogação unilateral da iniciativa do locatário.»[8]
Em face do exposto, e considerando que se encontram em dívida 27 meses de renda (julho de 2013 a agosto de 2015), à razão de €13.640,00 mensais, mais a indemnização de 50% sobre o valor em dívida, incorreu a Ré na obrigação de pagar à Autora a quantia total de €552,420,00 (€13.640,00x27+€184,140).
Nestes termos, procede a apelação, impondo-se a revogação da sentença recorrida em conformidade com ora decidido.
Responsabilidade tributária:
Nesta instância de recurso não são devidas custas, por a recorrente não ter ficado quantitativamente vencida e a recorrida não ter apresentado resposta ao recurso, ficando, porém, as custas devidas na 1.ª instância a cargo das partes, na proporção do vencimento (artigo 527.º do CPC), dispensando-se, desde já, o pagamento do remanescente da taxa de justiça, considerando que a causa não apresenta complexidade que justifique o acréscimo (artigo 6.º, n.º 7, do RCP).

III- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar procedente a apelação e, consequentemente, revogam a decisão recorrida, condenando a Ré a pagar à Autora, a título de rendas vencidas e indemnização sobre o valor em dívida, a quantia global de €552.420,00 (Quinhentos e cinquenta e dois mil, quatrocentos e vinte euros).
Custas nos termos sobreditos.
Évora, 20-02-2024
Maria Adelaide Domingos (Relatora)
Maria José Cortes (1.ª Adjunta)
Francisco Xavier (2.º Adjunto )
_________________________________________________
[1] Proc. n.º 1806/04.7TBPBL.C1, em www.dgsi.pt
[2] Proc. n.º 67525/14.6YIPRT.L1.S1, em www.dgsi.pt
[3] Proc. n.º 14114/21.0T8LSB.L1-7, em www.dgsi.pt
[4] Proc. n.º 2218/09.1TCLRS.L1-1, em www.dgsi.pt (subscrito pela ora Relatora como 1.ª Adjunta).
[5] Proc. n.º 5406/2007-8, em www.dgsi.pt
[6] Proc. n.º 4072/19.6T8SNT.L1-6, em www.dgsi.pt
[7] VARELA, ANTUNES, et al., “Manual de Processo Civil”, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 245.
[8] Ac. STJ, de 1110-2005, proc. n.º 04B4383/04; Ac. RL, de 18-11-2021, proc. n.º 4072/19.6T8SNT.L1-6, em www.dgsi.pt