PROCESSOS TUTELARES
SUPERIOR INTERESSE DA CRIANÇA
Sumário


I) Os processos tutelares cíveis têm a natureza de jurisdição voluntária, não estando o tribunal, nas providências a tomar, sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo como princípios orientadores, os estabelecidos na lei de protecção de crianças e jovens, e da simplificação, oralidade, consensualização e audição e participação da criança, devendo ser adoptada em cada caso a solução que se julgue mais conveniente e oportuna em defesa do superior interesse da criança, já que este se assume como o valor fulcral ou fundamental do processo.
II) O tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos, mas a aplicação do regime de residência alternada está subordinada ao apuramento de factos ou circunstâncias das quais resulte que este regime é o que melhor acautela o superior interesse da criança.
III) O critério normativo que continua a nortear a escolha do regime de guarda do menor é sempre, e em primeiro lugar, o superior interesse da criança.
(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA



Recurso de Apelação n.º 6134/22.3T8STB.E1-A

Acórdão da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora
I – Relatório
1. AA requereu, contra BB, a regulação das responsabilidades parentais relativamente aos filhos de ambos, CC, nascida em ../../2006, e DD, nascido em ../../2010, invocando a ruptura da relação em união de facto que manteve com o requerido, tendo passado cada um a viver em habitações diferentes, pedindo ainda o agendamento da conferência de pais para fixar o regime provisório, se pelo definitivo não anuírem.

2. Em 31 de Janeiro de 2023, realizou-se a conferência de pais, na qual foi proferida a seguinte decisão:
«Considerando que não houve acordo na presente data e que ouvidos os Il. Advogados e a Digníssima Procuradora todos concordaram com a vontade dos pais no sentido dos menores serem ouvidos, e, assim sendo, e considerando que, quer o pai quer a mãe estão defendidos por Il. Mandatários mais se justifica que as crianças igualmente tenham apoio idêntico, pelo que, nos termos do artigo 18º do RGPTC, determino que seja nomeado defensor a cada um dos menores.
Mais designo, colhida a anuência de todos, e a disponibilidade de agendas por consenso, o próximo dia 23 de Fevereiro pelas 14h00 para a audição dos menores.
Ouvidos os progenitores e a Digníssima Procuradora, determino que se solicite técnica para preparação da audição, relativamente ao DD, devendo o mesmo comparecer 30 minutos antes da hora designada para que possa ter contacto prévio com a técnica especializada para o efeito.
Sem prejuízo, nos termos do artigo 28º do RGPTC, em face da dilação temporal que decorrerá da presente data até ao dia designado para audição das crianças, fixa-se o seguinte regime provisório por acordo dos Progenitores:
Considerando que as crianças neste momento se encontram a residir com o pai, sem prejuízo, determino que passem os fins de semana de modo alternado com cada um dos progenitores, sendo que, o próximo fim de semana de dia 3 de Fevereiro, sexta-feira, até dia 5 de Fevereiro, domingo, será passado com a mãe; o fim de semana de 10 de Fevereiro, sexta-feira, a 12 de Fevereiro, domingo, será passado com o pai; e o outro a seguir, de 17 de Fevereiro, sexta-feira, a 19 de Fevereiro, domingo, será com a mãe.
Sem prejuízo, dos fins de semana se estabelecerem de forma alternada por ambos os progenitores, considerando que a mãe tem o dia do seu aniversário, no próximo domingo dia 12 de Fevereiro, será este dia excepcionalmente passado com a mãe, em virtude de ser um dia festivo.
No mais, será fixado o que houver por conveniente, após a audição das crianças.»

3. Na 2ª conferência de pais, que só veio a ocorrer em 18 de Outubro de 2023, após audição dos menores e ouvidas as partes para se tentar chegar a um acordo relativamente à regulação das responsabilidades parentais, o que não foi possível relativamente ao menor DD, foi proferido o seguinte despacho (despacho recorrido):
«Uma vez que as partes não chegam a acordo relativamente ao DD rementem-se para audição técnica especializada e, provisoriamente fixa-se o seguinte regime:-
1 - O menor DD continua a residir com o progenitor, devendo a progenitora entregar uma pensão de alimentos no valor mensal de 200 euros.-
2 - Para além do regime de visitas fixado, a mãe poderá jantar e pernoitar com o DD à quarta-feira.-
3 – Relativamente a este ano, o menor passará o Natal com a mãe e a véspera com o pai.»

4. Relativamente à menor CC, em face do acordo alcançado com os progenitores foi fixado o seguinte regime de regulação das responsabilidades parentais:
«1 – A menor CC ficará à guarda e cuidados dos progenitores, sendo as responsabilidades parentais, quanto a questões de particular importância, exercidas por ambos.
§ A residência partilhada é alternada semanalmente, de sexta a sexta-feira.
2 – Os progenitores contribuirão com 50% para as despesas escolares, médicas e medicamentosas, mediante a apresentação de comprovativo.
§ A inscrição em actividades extra-curriculares depende do consentimento de ambos os progenitores.
3 – Os pais passarão com a menor parte do período das férias da Páscoa, de Verão e Natal.
Os pais acordarão previamente no início de cada período a parte que lhes corresponde, comunicando para os email: mãe: ...”Hotmail.com; pai: ....
4 - A véspera de Natal e o dia de Natal serão passados com um dos progenitores, o mesmo sucedendo com a véspera de fim-de-ano e o dia de ano novo, alternando-se os períodos de forma anual.
Os pais acordarão previamente no início de cada período a parte que lhes corresponde, comunicando para os email: mãe: ...”Hotmail.com; pai: ....
Este ano, a menor passará o dia de Natal com a mãe e a véspera com o pai.
5 – A menor passará parte do dia do seu aniversário com cada um dos progenitores, almoçando com um e jantando com o outro, a acordar previamente entre os progenitores.
6 - A menor passará o dia de aniversário de cada um dos progenitores com estes, o mesmo se passando com o dia do pai e o dia da mãe.
7 – Os progenitores desde já se autorizam reciprocamente a viajar com a menor CC para o estrangeiro por um período de 3 semanas, desde que comunicado ao outro com uma antecedência de um mês.»

5. Inconformada, veio a progenitora interpor recurso da decisão relativa ao regime provisório fixado referente ao menor DD, nos termos e com os fundamentos seguintes:
1.ª Cabe ao Tribunal, mesmo no regime provisório a fixar que o superior interesse o menor terá de ser tutelado em face a desacordo ou conflito de posições entre progenitores, sendo que a actuação do Tribunal terá de encontrar, mesmo provisoriamente, uma solução de equilíbrio não apenas da posição dos progenitores mas, e sobretudo, favoreça um equilíbrio emocional e desenvolvimento positivo da personalidade do menor;
2.ª A redacção introduzida pela Lei 65/2020, de 4 de Novembro ao Artº 1906º do Cód. Civil é expressa no sentido de que a guarda conjunta com a residência alternada resulta de imposição legal, que prescinde o acordo dos progenitores e também do menor visado, desde que não se demonstre que, com aquele regime, coloca em causa o superior interesse do menor.
3.ª Não tendo sido demonstrada qualquer incapacidade educativa e formativa ou indisponibilidade de tempo para prestar assistência e cuidados ao menor, por parte de qualquer um dos progenitores e de que o menor com ambos mantém uma ligação de afecto, impõe que o menor possa beneficiar dos projectos de vida que cada um dos progenitores possa facultar.
4.ª Não se tendo apurado na diligência nem constando nos autos matéria factual que indique o afastamento da regra estabelecida na lei – Artº 1906º do Cód. Civil – é esta que o Juiz terá de aplicar independentemente dos agrados ou desagrados do menor.
5.ª Aliás, 4 minutos e poucos segundos para estabelecer comunicação com 2 adolescentes numa situação tão melindrosa, indica desde logo uma forma apressada de encontrar uma solução que permite experimentar e vir a avaliar em tempo.
6.ª O Artº 38 do RGPTC impõe ao juiz o estabelecimento de um regime provisório recorrendo à factualidade existente nos autos a que oficiosamente possa apurar e à que resulte em diligência, fazendo com eles um Juízo que determine o regime regra ou que lhe permita afastar por razões objectivas devidamente fundamentadas.
7.ª A decisão proferida violou o disposto no Artº 38º do RGPTC e 1906º do Cód. Civil.
Termos em que o regime provisório estabelecido deverá ser revogado e substituído por outro que estabeleça um regime de guarda partilhada com residência alternada em casa de cada um dos progenitores e faça cessar o pagamento de 200,00 (duzentos euros mensais) a título de pensão de alimentos por não se justificar atento o novo regime.

6. Contra-alegou o requerido/progenitor, e o Ministério Público, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, por o regime fixado ser o que neste momento salvaguarda o superior interesse do menor.

7. O recurso foi admitido como de apelação, com efeito meramente devolutivo, tendo subido nos autos principais, mas, por despacho do relator, foi determinado o seu processamento em separado.
Cumpre apreciar e decidir.
*
II – Objecto do recurso
O objecto do recurso, salvo questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, como resulta dos artigos 608º, nº 2, 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Considerando o teor das conclusões apresentadas, a questão essencial a decidir consiste em saber se a decisão proferida violou o disposto no artigo 38º do RGPTC e no artigo 1906º do Código Civil ao não fixar o regime de residência alternada e se deve ser alterada.
*
III – Fundamentação
A) - Os Factos
Com interesse para a decisão relevam os factos e ocorrências que resultam do relato dos autos.
*
B) – O Direito
1. Como resulta das alegações da recorrente, esta, logo no início, enuncia o propósito do recurso, que ali resume à questão de saber “se o juiz que fixou o Regime Provisório de Regulação das Responsabilidades Parentais deveria, é obrigado a aplicar o regime de guarda conjunta com regime de residência alternada em cumprimento do disposto do Artº 1906º do Cód. Civil, ou no caso de o afastar se tem ou não de fundamentar a sua não aplicação.”

2. Antes de mais, convém recordar que os processos tutelares cíveis, nos quais se inclui o regime do exercício das responsabilidades parentais, têm a natureza de jurisdição voluntária (cf. artigos 3º e 12º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível – RGPTC – aprovado pela Lei nº 141/2015 de 8 de Setembro, e artigos 986º e seguintes do Código de Processo Civil), não estando o Tribunal, nas providências a tomar, sujeito a critérios de legalidade estrita, tendo como princípios orientadores, os estabelecidos na lei de protecção de crianças e jovens, e da simplificação, oralidade, consensualização e audição e participação da criança (cf. artigos 4.º e 5.º do RGPTC, e artigo 4.º da Lei 147/99 de 1 de Setembro) devendo ser adoptada em cada caso a solução que se julgue mais conveniente e oportuna em defesa do superior interesse da criança, já que este, se assume, como o valor fulcral ou fundamental do processo, sendo esse interesse que deve presidir a qualquer decisão no âmbito da regulação das responsabilidades parentais.
Efectivamente, como resulta dos n.ºs 1 e 2 do artigo 40.º do RGPTC, o exercício das responsabilidades parentais será regulado de harmonia com os interesses da criança, devendo determinar-se que seja confiada a ambos ou a um dos progenitores, a outro familiar, a terceira pessoa ou a instituição de acolhimento, aí se fixando a residência daquela, sendo ainda estabelecido um regime de visitas que regule a partilha de tempo com a criança.
Regime este que é imposto pelo n.º 5 do art.º1906 do Código Civil, ao prescrever que “[o] tribunal determinará a residência do filho e os direitos de visita de acordo com o interesse deste, tendo em atenção todas as circunstâncias relevantes, designadamente o eventual acordo dos pais e a disponibilidade manifestada por cada um deles para promover relações habituais do filho com o outro”, adiantando o seu n.º 8 que “[o] tribunal decidirá sempre de harmonia com os interesses do menor, incluindo o de manter uma relação de grande proximidade com os dois progenitores, promovendo e aceitando acordos ou tomando decisões que favoreçam amplas oportunidades de contacto com ambos e de partilha de responsabilidade entre eles”.

3. Lembrados estes princípios, importa reter que, no caso em apreço, ainda nos movemos no âmbito de regime provisório, no âmbito de aplicação da norma do n.º 1 do artigo 38º do RGPTC, onde se prescreve que: “Se ambos os pais estiverem presentes ou representados na conferência, mas não chegarem a acordo que seja homologado, o juiz decide provisoriamente sobre o pedido em função dos elementos já obtidos …”.
Como salienta TOMÉ D’ALMEIDA RAMIÃO:
«Esta disposição vem estabelecer um novo procedimento quando na conferência os pais estão presentes ou representados e não chegaram a acordo que seja homologado.
Desde logo, parece impor obrigatoriamente ao juiz a prolação de decisão provisória sobre a regulação do exercício das responsabilidades parentais, ao estatuir que “o juiz decide provisoriamente” sobre o pedido em função dos elementos já obtidos. Pelo que se trata de um poder/dever atribuído ao juiz, contrariamente ao poder discricionário conferido no n.º 1 do artigo 28º.» (Regime Geral do Processo Tutelar Cível, Quid Juris, 4ª Edição, pág. 129).

4. Ao contrário do que advoga a recorrente, não cremos que se possa afirmar que resulte do artigo 1906º do Código de Processo Civil que o regime regra a fixar na regulação das responsabilidades parentais seja o da residência alternada, de modo a que o tribunal tenha que fundamentar o afastamento de tal regime. O que a alteração legal veio consagrar, ao introduzir a norma do n.º 6, pela Lei n.º 65/2020, de 4 de Novembro, foi a possibilidade de implementação deste regime, nas circunstâncias ali previstas.
Embora no n.º 1 do artigo 1906º do Código Civil se preveja que “[a]s responsabilidades parentais relativas às questões de particular importância para a vida do filho são exercidas em comum por ambos os progenitores …”, este exercício conjunto das responsabilidades parentais, não implica, por si só, a fixação de um regime de guarda conjunta e alternada da criança com ambos os progenitores, o qual só deve ser decretado se o superior interesse da criança o determinar.
E a norma do n.º 6 deste artigo é esclarecedora, ao estipular que:“[q]uando corresponder ao superior interesse da criança e ponderadas todas as circunstâncias relevantes, o tribunal pode determinar a residência alternada do filho com cada um dos progenitores, independentemente de mútuo acordo nesse sentido e sem prejuízo da fixação da prestação de alimentos”. (sublinhado nosso)
Ou seja, a aplicação do regime de residência alternada não é uma imposição e está subordinada ao apuramento de factos ou circunstâncias das quais resulte que o referido regime é o que melhor acautela o superior interesse da criança.
Por outras palavras, os critérios normativos que continuam a nortear a escolha do regime de guarda do menor são sempre, e em primeiro lugar, os que respeitam ao superior interesse da criança.

5. É certo que da decisão não resulta uma fundamentação expressa relativamente ao regime provisório nela previsto, mas a mesma mais não é do que a manutenção do anterior regime provisório já fixado na conferência de pais de 31/01/2023 – em que as crianças se mantiveram a residir com o pai, com regime de visitas à mãe –, tendo ainda sido tido em conta as declarações do menor, que à data já tinha 13 anos de idade, que manifestou, aquando da sua audição, quando confrontado com a possibilidade da implementação de um regime de residência alternada, o desconforto que tinha em relação ao companheiro da mãe, como refere o Ministério Público nas contra-alegações.
Acresce que a decisão recorrida não se limitou a reafirmar o regime provisório anteriormente fixado, pois procurou ainda aumentar o contacto do menor com a progenitora, ao estipular que, para além do regime de visitas quinzenais, o menor jantaria e pernoitaria em casa da mãe à quarta-feira, sendo de realçar que aquando da audição dos menores se procurou sensibilizar a criança para as vantagens do regime de residência alternada, como se ouviu na respectiva gravação.
Sublinha-se que não está em causa qualquer incapacidade educativa e formativa ou indisponibilidade de tempo para prestar assistência e cuidados ao DD por parte da progenitora e é certo que o menor mantém uma ligação de afecto com ambos os progenitores, mas, como refere o Ministério Público, ao fixar o regime provisório em causa teve-se em consideração a não imposição de um regime com o qual o DD não se sentia confortável, por ainda não se sentir preparado para tal, ao contrário do que aconteceu com a CC, e relativamente à qual foi alcançado acordo de regulação das responsabilidades parentais.
De resto, sublinha-se que a decisão em causa tem natureza provisória, o que não impede que a mesma venha a ser alterada a todo o tempo, se fundamento superveniente para tal se verificar.

6. Por fim, uma palavra para a necessidade de articulação deste regime provisório com o regime homologado em relação à ainda menor CC, de modo a também potenciar que os irmãos passem mais tempo juntos. Mas estamos certos que os progenitores, pela postura que manifestaram, estão atentos a esta necessidade.
*
IV – Decisão
Nestes termos e com tais fundamentos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas a cargo da Apelante.
*
Évora, 20 de Fevereiro de 2024
Francisco Xavier
José António Moita
Manuel Bargado
(documento com assinatura electrónica)