EMBARGOS DE EXECUTADO
INTEGRAÇÃO EM PERSI
Sumário


I – O incumprimento da obrigação de pagamento das prestações de um contrato de mútuo, apenas confere ao credor o direito potestativo de considerar vencidas todas as prestações acordadas, devendo o exercício desse direito ser efetuado através de uma comunicação do mutuante ao mutuário, manifestando a sua vontade de considerar vencidas todas as prestações acordadas, face ao incumprimento ocorrido.

II – O  decurso do prazo, provocando a extinção do PERSI, só é eficaz após a comunicação do facto ao cliente bancário, em suporte duradouro, com descrição do fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a sua manutenção - art.º 17º, n.º 3 e 4º, pelo que só a partir desta data desta comunicação é que a execução poderia ter sido insaturada.
III -  Não tendo a Embargada provado a data da comunicação da extinção do PERSI aos executados, sendo sobre ela que incide o ónus de alegação e prova[1] de que procedeu às comunicações devidas ao devedor incumpridor e exigidas pelo PERSI, impõe-se concluir que nos termos do art.º 18º, n.º 1, c) do DL 227/12, estava-lhe vedado o direito de instaurar a presente execução.
IV - A omissão das comunicações relativas ao PERSI e das informações a transmitir ao devedor – que são condição de admissibilidade da ação -  constitui uma exceção dilatória insuprível que determina a extinção da instância – art.º 576, nº 2 do C. P. Civil.

[1]  Por todos o acórdão do T. R. L. de 17.2.2022, relatado António Santos e acessível em www.dgsi.pt.


Texto Integral


Adjuntos: Henrique Antunes

               Pires Robalo


                             Embargante: AA

Embargada: A... STC, S.A.

                    *
          Acordam na 3ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra

Por apenso à execução que lhe foi movida, a Embargada deduziu oposição à mesma mediante embargos de executado, alegando, em síntese apertada:
 -  nunca foi notificada de qualquer cessão de créditos;
-  nos termos da legislação em vigor à época, incumbia à mutuante incluir a executada no procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento (PERSI);  
- da documentação junta decorre que o contrato foi cedido a terceiros em julho de 2019 sem que tivesse sido comunicado o vencimento antecipado do contrato, sendo que, à luz do art. 18.º e 39.º do DL 227/12 de 25 de outubro, encontrava-se vedada a possibilidade de ceder o crédito;
-  a Exequente passou a exigir de uma vez só o montante em dívida à Executada, sem lhe conceder a possibilidade de estabelecer um plano de regularização da divida em prestações mensais;
- por outro lado, nos termos do art. 310.º, al. e) do Cód. Processo Civil, encontram-se prescritas as quotas de amortização do capital pagáveis com juros, visto que não ocorreu o vencimento antecipado das prestações.


A Embargada apresentou contestação, alegando em síntese:
- A cessão de créditos realizada entre si e o B... S.A. obedeceu aos requisitos legais e foi notificado à Executada em 28 de junho de 2019.
- À data de entrada em vigor o regime do PERSI o contrato de crédito já não estava em vigor, razão pela qual as disposições do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de outubro não lhe são aplicáveis.
-  O incumprimento do contrato deu-se em 13 de março de 2011, pelo que, atendendo ao art. 39.º desse diploma não havia lugar à integração dos Executados por a mora se ter iniciado há mais de um ano e ter determinado a resolução do contrato.
- Por outro lado, o C... reclamou créditos no processo de execução fiscal n.º ...56, na sequência da penhora concretizada em 21/01/2011, que determinou a exigibilidade das prestações vincendas e, como tal, a resolução antecipada do contrato. Pelo que, não existia obrigação de integração dos devedores no regime de PERSI.
- Não se verifica, também, a prescrição porquanto o não pagamento das prestações conferiu ao banco mutuante o direito de resolver e considerar o crédito imediatamente vencido. Ciente da necessidade de proceder à interpelação da Embargante, por carta datada de 09 de julho de 2023 o banco mutuante comunicou a resolução do contrato e, assim, a divida tornou-se vencida e exigível.
-  O banco mutuante intentou execução contra os Executados em 31 de julho de 2014, que deu origem ao processo n.º 1271/14...., que foi extinto, por deserção, em novembro de 2022.

No saneador foi proferida sentença que decidiu os embargos pela seguinte forma:
Julgo verificada a exceção dilatória inominada por força do artigo 18.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 227/2012 de 25 de outubro e, em consequência, determino a extinção da execução, extensiva ao Executado BB.  

                                                 *

A Embargada interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões:
I. O Tribunal a quo considerou estar o exequente obrigado a integrar a executada no PERSI, sendo que não tendo demonstrado o cumprimento das normas legais imperativas, constitui falta de condição objetiva de procedibilidade, impedindo- o de instaurar ação judicial com vista à satisfação do crédito.
II. Na perspetiva da Recorrente e contrariamente ao que resulta da douta sentença recorrida, não se verifica, consequentemente, qualquer incumprimento de legislação obrigatória por parte do ora recorrente, suscetível de determinar, como decidido pelo Tribunal a quo, e julgar verificada a exceção dilatória inominada de preterição de sujeição dos Executados ao PERSI e, consequentemente, decide rejeitar a execução.
III. O intuito do Decreto-Lei nº 227/2012 de 25 de Outubro é estabelecer princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e regularização das situações de incumprimento, criando uma rede extrajudicial de apoio aos clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações através do mecanismo do PARI e PERSI.
IV. O mencionado diploma destina-se a obrigar as instituições de crédito a apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira dos clientes e avaliar propostas alternativas dos próprios clientes.
V. Ora, os bancos são instituições altamente profissionalizadas e organizadas, pelo que, é altamente provável que ao entrar em vigor esta legislação dirigida aos bancos, qualquer deles tenha criado uma equipa e um procedimento de rotina, automático, para tratar de todos os casos suscetíveis de serem integrados no mencionado PERSI, isto é, logo que houvesse incumprimento das prestações.
VI. Com efeito, uma organização com a dimensão e profissionalismo de um banco não trata de cada caso como fosse o primeiro, estudando antecipadamente as matérias e criando instrumentos de rotina que aplica de início a qualquer caso.
VII. Acresce que o próprio Banco de Portugal foi chamado a intervir na implementação deste mecanismo bancário.
VIII. Está, pois, assim, a Recorrente convicta de que Vossas Excelências, subsumindo a matéria vertida nas normas legais aplicáveis, tudo no mais alto e ponderado critério, não deixarão de dar provimento ao recurso apresentado e negar a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo.
IX. Entre BB e a Embargante, na qualidade de mutuários, e o C..., S.A., na qualidade de mutuante, foi celebrado, no dia 28 de março de 2006, contrato de empréstimo com hipoteca e mandato, outorgado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial em ..., a cargo da Notária CC, exarado no livro ...2..., de fls. 64 e ss. e respetivo documento complementar elaborado nos termos do art. 64.º, n.º 2 do Cód. Notariado, que se mostra junto com o Requerimento Executivo com referência 9236786 de 25 de novembro de 2022.
X. Através do mencionado contrato o então C... concedeu a BB e à Embargante um empréstimo de 75 mil €uros, destinado a fazer face a compromissos financeiros anteriormente assumidos e à aquisição de equipamentos para a sua residência, pelo prazo de 240 meses, a reembolsar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, as taxas contratualizadas.
XI. Para garantia das responsabilidades assumidas no contrato, foi constituída hipoteca sobre o prédio misto sito às ..., ..., ..., composto de casa de habitação de rés-do-chão com garagem e terra de cultura com oliveiras e um poço, descrito na C.R.Predial ... sob o n.º ...67 e descrito na matriz urbana sob o artigo ...31.º e na matriz predial rústica sob o artigo ...38.º, que se mostra registada pela AP ...5 de 2006/03/17.
XII. O incumprimento do contrato de mútuo celebrado entre a recorrida e os executados deu-se em 13.03.2011.
XIII. Após envio de várias cartas e diversos contactos telefónicos, o Banco Mutuante em 31/07/2014 procedeu ao acionamento judicial do contrato (com envio das respetivas cartas de denúncia), dando origem ao processo judicial n.º 1271/14...., que correu termos no Juízo de Execução ... - Juiz ....
XIV. Nestes termos, os contratos de mútuo supra aludidos não foram pontualmente cumpridos pelos recorridos, atendendo à verificação reiterada da ausência de pagamentos nas datas certas em que se venciam as prestações mensais.
XV. Ora, atendendo ao disposto no art. 39.do DL 227/2012 de 25 de outubro não havia lugar à integração dos executados no PERSI, na medida em que a mora resultante do incumprimento (falta de pagamento das prestações) se iniciara há mais de um ano e na medida em que tal incumprimento determinou a resolução do contrato de mútuo celebrado entre as partes.
XVI. O não pagamento das respetivas prestações nos exatos termos convencionados pelos recorridos consubstanciou uma situação de mora, independentemente de interpelação, a partir de 2011 – altura em que deixaram de pagar as prestações – por força do disposto na alínea a) do n.º 2 do artigo 805.º do Código Civil (doravante CC).
XVII. A persistência da mora contratual, que não foi regularizada pelos recorridos, veio, então, a converter-se em incumprimento definitivo, conforme estipula o artigo 808º n.º 1 do CC.
XVIII. Atenta a conversão do incumprimento verificado em definitivo, operou a resolução automática dos contratos e concomitantemente, o vencimento antecipado de todas as prestações vincendas, nos termos do artigo 781.º do CC.
XIX. Nesse sentido, verificou-se sem margem para dúvidas, a resolução automática dos contratos sub judice, ao abrigo não só do princípio da liberdade contratual, plasmado no artigo 405.º do CC, mas também do disposto no artigo 436.º n.º 2 do CC e bem assim do estipulado nos próprios contrato.
XX. As partes contratantes, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, regularam especialmente as situações em que o mutuário se encontrasse em mora ou incumprimento, ficando estabelecido que bastava a ocorrência do incumprimento para que pudesse considerar resolvido o contrato e de imediato constituir-se o Banco no direito de exigir globalmente a obrigação de reembolso do capital mutuado, igualmente resultando que as partes afastaram a necessidade de o mutuante usar do seu direito de resolução para exigir tudo o que se mostrasse devido nos termos do contrato, e ainda que não vencido.
XXI. Repisa-se por ser verdade: as partes regularam especial e especificamente cada uma das situações que levariam à resolução do contrato não o tendo feito de forma genérica ou abstrata.
XXII. Deste modo, e salvaguardando sempre e para todos os efeitos que à data da entrada em vigor do regime legal do DL 227/2012 os contratos já estavam resolvidos por incumprimento, conclui-se que a resolução operada e motivada pelo incumprimento foi imediata, legítima e eficaz, tendo produzido validamente os seus efeitos.
XXIII. Assim, ao contrário do que profere a douta sentença, que refere que o contrato nunca terá sido resolvido, e salvo o devido respeito, essa mesma resolução operou, eficazmente, antes da entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, pelo que não estava o Banco Cedente obrigado a integrar o Recorrido no PERSI.
XXIV. Pois que, na data da entrada em vigor daquele procedimento, já o contrato se encontrava resolvido e não em simples mora – sendo este último o requisito para integração no PERSI.
XXV. O executado figurou também como executado no processo de execução fiscal nº ...56 cuja penhora foi efetuada em 21/01/2011, no qual, à data, o C..., S.A. (Banco cedente) reclamou os créditos respetivos.
XXVI. Existindo penhora a favor de terceiro sobre o bem do devedor que garantia o crédito, não se impunha em face do incumprimento contratual a submissão deste ao regime do PERSI, atendendo a que a que penhora torna inviável a possibilidade de qualquer regularização ou restruturação do crédito, sendo até uma das causas da extinção do Procedimento, conforme dispõe o artº 17º, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25/10.
XXVII. Perante a existência de penhora à data da entrada em vigor do Dec.-Lei 227/2012, bem como à data do início do incumprimento contratual, no âmbito de execução movida por terceiro, a qual incide sobre a imóvel garantia do contrato que no entender da credora/exequente torna inviável a possibilidade de regularização ou reestruturação do crédito.
XXVIII. Se à partida se sabe que procedimento a iniciar vai ser extinto pelo facto de já existir penhora a favor de terceiro, sobre os bens do devedor, não faz sentido, até, atento o princípio de limitação dos atos, a realização de atos inúteis, não devendo a não integração no PERSI, no caso em apreço, ser obstáculo à instauração da presente ação executiva no que concerne ao incumprimento do contrato de mútuo.
XXIX. O fundamento último do Decreto-Lei 227/2012 de 25.10 é evitar o recurso à execução movida pela instituição de crédito, motivada pelo incumprimento dos contratos e expectável venda judicial do imóvel garantia dos contratos,
XXX. O que não pode ter-se por garantido, mesmo com submissão do devedor ao PERSI, uma vez em face da execução movida por terceiro com registo de penhora prévia à entrada em vigor do diploma e início do incumprimento do contrato, ainda que este fosse objeto de regularização ou reestruturação, tal não impedia a venda judicial do imóvel garantia do contrato naquela execução.
XXXI. A ora recorrente teve ainda o cuidado de encetar diversos contactos com os mutuários de modo a tentar a resolução extrajudicial do presente litígio.
XXXII. A atuação da Recorrente sempre se baseou na observância dos ditames da boa-fé e no cumprimento dos deveres de diligência e transparência que lhe são aplicáveis, tendo encetado todos os esforços com vista à obtenção da regularização do empréstimo em situação de incumprimento, tendo reiteradamente interpelado todos os Recorridos para o efeito.
XXXIII. Pelo exposto, dúvidas não restam de que a atuação da Recorrente sempre se baseou na observância dos ditames da boa-fé e no cumprimento dos deveres de diligência e transparência que lhe são aplicáveis, tendo encetado todos os esforços com vista à obtenção da regularização do empréstimo em situação de incumprimento.
XXXIV. Foram violadas, entre outras disposições, o previsto nos arts. 334.º, 405.º, 432.º, n.º 1, 436.º, n.º 2, 781.º e 808.º do CC, 17.º, n.º 1 e 2 e 39.º do DL 226/2012.
Conclui pela procedência do recurso.

A Embargante apresentou resposta, pugnando pela confirmação da decisão.

                                                 *

1. Do objeto do recurso
Considerando que o objeto do recurso é definido pelas conclusões formuladas a questão a apreciar é apurar se se impunha a integração dos devedores no PERSI.

                                                 *
                            
2. Os factos

Os factos provados são:
a. Entre BB e a Embargante, na qualidade de mutuários, e o C..., S.A., na qualidade de mutuante, foi celebrado, no dia 28 de março de 2006, contrato de empréstimo com hipoteca e mandato, outorgado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial em ..., a cargo da Notária CC, exarado no livro ...2..., de fls. 64 e ss. e respetivo documento complementar elaborado nos termos do art. 64.º, n.º 2 do Cód. Notariado, que se mostra junto com o Requerimento Executivo com referência 9236786 de 25 de novembro de 2022, como Doc. 2, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b. Através do mencionado contrato o então C... concedeu a BB e à Embargante um empréstimo de 75 mil €uros, destinado a fazer face a compromissos financeiros anteriormente assumidos e à aquisição de equipamentos para a sua residência, pelo prazo de 240 meses, a reembolsar em prestações mensais, constantes e sucessivas de capital e juros, as taxas contratualizadas.
c. Para garantia das responsabilidades assumidas no contrato, foi constituída hipoteca sobre o prédio misto sito às ..., ..., ..., composto de casa de habitação de rés-do-chão com garagem e terra de cultura com oliveiras e um poço, descrito na CRPredial ... sob o n.º ...67 e descrito na matriz urbana sob o artigo ...31.º e na matriz predial rústica sob o artigo ...38.º, que se mostra registada pela AP ...5 de 2006/03/17
d. Em março de 2011 encontrava-se em divida a prestação n.º 59, no valor de 124,05 €uros.
e. Em dezembro de 2011 encontravam-se em divida a prestação n.º 67, no valor de 250,29 €uros, vencida em 10/11/2011 e a prestação n.º 68, no valor de 251,21 €uros, vencida em 10/12/2011.
f. Nessa mesma data, a Embargante foi informada que o contrato se encontra em fase de contencioso.
g. Em 09 de julho de 2013, por que se mantinha a situação de incumprimento, o C... “denunciou” o contrato e exigiu o pagamento da totalidade do valor do contrato.
h. No dia 7 de junho de 2019 entre o B... S.A. e a A... STC, S.A. foi celebrado um contrato de cessão de créditos vencidos, respetivas garantias e acessórios, que se mostra junto com o Requerimento Executivo com referência 9236786 de 25 de novembro de 2022, como Doc. 1, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
i. Na sequência da cessão de créditos, encontra-se registada a favor do Exequente a hipoteca registada pela ... n.º ...5 de 2006/03/17, por Averb. AP ...45 de 2019/12/11.
j. Com data de 15.12.2011 foi inscrita na Conservatória de Registo Predial ..., a favor da Fazenda Nacional e para garantia da quantia exequenda de €3.456,50 referente ao processo de execução fiscal ...56, penhora do prédio objeto da hipoteca referida em i. – facto aditado.
l. Com data de 1.3.2013 foi inscrita na Conservatória de Registo Predial ..., a favor do IGFSS, I.P. e para garantia da quantia exequenda de €4.679,00 referente ao processo de execução fiscal ...66 penhora do prédio objeto da hipoteca referida em i. – facto aditado.
m. As penhoras referidas em l e m foram objeto do declaração de cancelamento pela Fazenda Nacional e pelo IGFSS, IP em 1.3.2013 e 17.3.2023, respetivamente. – facto aditado por este tribunal e constante dos documentos juntos ao processo principal em 17.7.2023.
n. A execução de que estes embargos são dependência foi instaurada em 25.11.2022. – facto aditado.

                                               *

3. Da inobservância do PERSI quanto aos Executados
O presente recurso vem interposto da decisão que absolveu os Executados da instância executiva por verificação da exceção dilatória inominada decorrente do incumprimento da Exequente da obrigatoriedade de integração daqueles no PERSI.
A Recorrente discorda desta decisão, alegando, em primeiro lugar que à data da entrada em vigor do DL nº 227/2012, de 25.10, o contrato já estava resolvido por incumprimento, e ainda que existindo uma penhora a favor de terceiro, efetuada em 21.1.2011, do bem dado em garantia, não se impunha a integração dos Executados no PERSI.
O DL nº 227/2012, de 25.10, entrado em vigor em 1.1.2013, estabelece princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários e criar uma rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.
Consta do seu preâmbulo:
A degradação das condições económicas e financeiras sentidas em vários países e o aumento do incumprimento dos contratos de crédito, associado a esse fenómeno, conduziram as autoridades a prestar particular atenção à necessidade de um acompanhamento permanente e sistemático, por parte de instituições, públicas e privadas, da execução dos contratos de crédito, bem como ao desenvolvimento de medidas e de procedimentos que impulsionem a regularização das situações de incumprimento daqueles contratos, promovendo ainda a adoção de comportamentos responsáveis por parte das instituições de crédito e dos clientes bancários e a redução dos níveis de endividamento das famílias.
Neste contexto, com o presente diploma pretende-se estabelecer um conjunto de medidas que, refletindo as melhores práticas a nível internacional, promovam a prevenção do incumprimento e, bem assim, a regularização das situações de incumprimento de contratos celebrados com consumidores que se revelem incapazes de cumprir os compromissos financeiros assumidos perante instituições de crédito por factos de natureza diversa, em especial o desemprego e a quebra anómala dos rendimentos auferidos em conexão com as atuais dificuldades económicas.
Em concreto, prevê-se que cada instituição de crédito crie um Plano de Ação para o Risco de Incumprimento (PARI), fixando, com base no presente diploma, procedimentos e medidas de acompanhamento da execução dos contratos de crédito que, por um lado, possibilitem a deteção precoce de indícios de risco de incumprimento e o acompanhamento dos consumidores que comuniquem dificuldades no cumprimento das obrigações decorrentes dos referidos contratos e que, por outro lado, promovam a adoção célere de medidas suscetíveis de prevenir o referido incumprimento.
Adicionalmente, define-se um Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor.

O seu âmbito de aplicação rege-se pelo art.º 2º que dispõe:
1 - O disposto neste diploma aplica-se aos seguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a) Contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria;
b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel;
c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis n.os 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato;
e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês.
2 - O disposto no presente diploma não prejudica o regime aplicável aos sistemas de apoio ao sobre-endividamento, instituído pela Portaria n.º 312/2009, de 30 de março.
Nos arts. 12º a 21º do mencionado DL, encontra-se regulado o procedimento extrajudicial de regularização de situações de incumprimento – PERSI – cabendo às instituições de crédito a sua implementação relativamente a clientes bancários que se encontrem em mora no cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito.
O cliente bancário, por seu turno, é o consumidor na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2 da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei nº 24/96, de 31.7, e alterada pelo DL nº 67/2003, de 8.4, que intervenha como mutuário em contrato de crédito – cfr. art. 3, al. a) do DL nº 227/2012().
Sendo obrigatório o procedimento de integração de cliente bancário no PERSI, uma vez verificados os respetivos pressupostos, e até à sua extinção (art. 17), a instituição de crédito está impedida de resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento, de intentar ações judiciais para a satisfação do crédito, de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou de transmitir a terceiro a sua posição contratual (art. 18, nº 1).
Por conseguinte, a instituição de crédito só pode instaurar ação judicial destinada à cobrança do crédito após a extinção do PERSI quando haja lugar a este.
Do que vem de dizer-se, resulta, assim, em resumo, que o regime do PERSI previsto no referido DL nº 227/2012, de 25.10, só se aplica a situações de incumprimento dos contratos de crédito referidos no seu art. 2, nº 1, destinando-se apenas aos clientes bancários, enquanto consumidores na aceção da LDC. [1]
 A aplicação deste procedimento no tempo encontra-se prevista no art.º 39º do referido DL nos seguintes termos:
1 - São automaticamente integrados no PERSI e sujeitos às disposições do presente diploma os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora relativamente ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito que permaneçam em vigor, desde que o vencimento das obrigações em causa tenha ocorrido há mais de 30 dias.
2 - Nas situações referidas no número anterior, a instituição de crédito deve, nos 15 dias subsequentes à entrada em vigor do presente diploma, informar os clientes bancários da sua integração no PERSI, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 14.º
3 - Os clientes bancários que, à data de entrada em vigor do presente diploma, se encontrem em mora quanto ao cumprimento de obrigações decorrentes de contratos de crédito há menos de 31 dias são integrados no PERSI nos termos previstos no n.º 1 do artigo 14.º
No que concerne ao contrato subjacente à execução a que os presentes embargos foram apostos, e sendo, para a implementação do PERSI, cumulativos os requisitos do devedor ser cliente bancário e os contratos de crédito estarem em vigor – art.º 12º -  deve começar por se averiguar se os mesmos se encontravam em vigor em 1.1.2013 – data da entrada em vigor do DL 227/2012 de 25.10.
Da matéria de facto provada não resulta que na data da entrada em vigor do aludido DL o contrato de crédito não estivesse em vigor, contrariamente ao que a Embargada defende, alegando:
XVIII. Atenta a conversão do incumprimento verificado em definitivo, operou a resolução automática dos contratos e concomitantemente, o vencimento antecipado de todas as prestações vincendas, nos termos do artigo 781.º do CC.
XIX. Nesse sentido, verificou-se sem margem para dúvidas, a resolução automática dos contratos sub judice, ao abrigo não só do princípio da liberdade contratual, plasmado no artigo 405.º do CC, mas também do disposto no artigo 436.º n.º 2 do CC e bem assim do estipulado nos próprios contrato.
Vejamos:
Radicando a ratio da excecionalidade consagrada do art.º 781º do C. Civil, sobretudo, na quebra da relação de confiança que esteve na base da celebração do acordo de pagamento fracionado no tempo, provocada pelo incumprimento parcial do pagamento de algumas dessas prestações, justifica-se que o vencimento das demais prestações fique dependente da avaliação que o credor faz da capacidade económica do devedor e da sua vontade em satisfazer as restantes prestações, podendo, inclusive, optar por aguardar algum tempo, confiando em que a dificuldade de pagamento seja temporária e que o devedor tenha capacidade económica para retomar o pagamento regular das prestações acordadas.
Ora, tendo o artigo 781º do C. Civil natureza supletiva[2],  é o estipulado pelas partes que rege a perda do benefício do prazo pelo devedor, pelo que o vencimento das restantes prestações, tal como aliás sucede com a melhor interpretação do disposto naquele preceito legal[3], não resultou automaticamente do incumprimento da obrigação de pagamento das referidas prestações. Esse incumprimento apenas confere ao credor o direito potestativo de considerar vencidas todas as prestações acordadas, devendo o exercício desse direito ser efetuado através de uma comunicação do mutuante ao mutuário, manifestando a sua vontade de considerar vencidas todas as prestações acordadas, face ao incumprimento ocorrido.
Assim, não estando demonstrado que tenha havido resolução do contrato, pois esta não decorre, sem mais da mora no seu cumprimento, impõe-se a conclusão que o mesmo permanecia em vigor.
Tendo o vencimento das obrigações ocorrido há mais de 30 dias na data da entrada em vigor do DL 227/2012 de 25.10 e mantendo-se o contrato em vigor, os devedores, por força do disposto no art.º 39º, n.º 1, do citado DL, foram automaticamente – ope legis – integrados no PERSI, devendo o credor, no cumprimento dos deveres procedimentais que sobre si impendem, formalizar o procedimento e criar o processo individual inerente à condição dos devedores – art.º 19º e 20º.
A integração dos devedores no PERSI é impeditiva, como acima se disse, até à sua extinção, do direito do credor resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento, de intentar ações judiciais para a satisfação do crédito, de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou de transmitir a terceiro a sua posição contratual, como decorre do art.º 18º do DL 227/2012.
Por conseguinte, a instituição de crédito só pode instaurar ação judicial destinada à cobrança do crédito após a extinção do PERSI quando haja lugar a este.
No caso dos autos é manifesto, como decorre dos factos apurados, que a instituição bancária, apesar dos Executados estarem terem sido ope legis, integrados no PERSI, nunca cumpriu os seus deveres procedimentais.
Um dos fundamentos da extinção do PERSI – n.º 1, c) do art.º 17º do DL 227/2012 – é o decurso do prazo de 91º dias a contar da data da integração dos devedores. Assim, tendo estes sido integrados no PERSI em 1.1.2023, este extinguiu-se em 2.4.2013.
No entanto, o decurso do prazo, provocando a extinção do PERSI, só é eficaz após a comunicação do facto ao cliente bancário, em suporte duradouro, com descrição do fundamento legal para essa extinção e as razões pelas quais considera inviável a sua manutenção - art.º 17º, n.º 3 e 4º, pelo que só a partir desta data desta comunicação é que a execução poderia ter sido insaturada.
 Não tendo a Embargada provado a data da comunicação da extinção do PERSI aos executados, sendo sobre ela que incide o ónus de alegação e prova[4] de que procedeu às comunicações devidas ao devedor incumpridor e exigidas pelo PERSI, impõe-se concluir que nos termos do art.º 18º, n.º 1, c) do DL 227/12, estava-lhe vedado o direito de instaurar a presente execução.
A omissão das comunicações relativas ao PERSI e das informações a transmitir ao devedor – que são condição de admissibilidade da ação -  constitui uma exceção dilatória insuprível que determina a extinção da instância – art.º 576, nº 2 do C. P. Civil, tal como decidido pela 1ª instância.
Assim, ainda que por fundamentação diversa, confirma-se a decisão recorrida, julgando-se improcedente a apelação.

                                                 *

Decisão
Nos termos acima expostos, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se – com fundamentação diversa – a sentença proferida.

                                                 *

Custas pela recorrente.

                                                 *
                                                                                         9.4.2024




[1] Ac. do T. R. L. de 9.102018 relatado por Conceição Saavedra e acessível em www.dgsi.pt .

[2] ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 12.ª ed., Almedina, 2009, pág. 1018, nota 1, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Código Civil Comentado, vol. II, Almedina, 2021, pág. 986, ANA AFONSO, Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 1071, e ANA PRATA, Código Civil Anotado, vol. I, Almedina, 2017, pág. 980.

[3] [3] PESSOA JORGE, Direito das Obrigações, AAFDL, 1975-1976, pág. 316-318,  VASCO LOBO XAVIER, Venda a prestações: algumas notas sobre os artigos 934.º e 935.º do Código Civil, R.D.E.S., Ano XXI, n.º 1-2-3-4, pág. 201, nota 4, ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, 7.ª ed., Almedina, 2013, pág. 53-54, ALMEIDA COSTA, ob. cit., pág. 1017-1018, RIBEIRO DE FARIA, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, 1990, pág. 325, nota 1, BRANDÃO PROENÇA, Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra Editora, 2011, pág. 85, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito Civil, vol. IX,  3ª ed., Almedina, 2019, pág. 96-97, MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, 12.ª ed., vol. II, Almedina, 2019, pág. 166, NUNO PINTO OLIVEIRA, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, pág. 391-392, ANA AFONSO, ob. cit., pág. 1071, PEDRO ROMANO MARTINEZ, ob. cit., pág. 986, JANUÁRIO GOMES, Assunção fidejussória de dívida, Almedina, 2000, pág. 955, BRUNO FERREIRA, Contratos de Crédito Bancário e Exigibilidade Antecipada, Almedina, 2011, pág. 187-188, MIGUEL BRITO BASTOS, O Mútuo Bancário. Ensaio Sobre a Estrutura Sinalagmática do Contrato de Mútuo, Coimbra Editora, 2015, pág. 206-210, nota 432.

No mesmo sentido e, a título de exemplo, os seguintes acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça:
de 15.05.2005, relatado por Moitinho de Almeida;
de 17.01.2006, relatado por Azevedo Ramos;
de 25.05.2017, relatado por Olindo Geraldes;
de 12.07.2018, relatado por Hélder Almeida,
de 11.07.2019, relatado por Ilídio Sacarrão Martins;
de 14.01.2021, relatado por Tibério Gomes.


[4]  Por todos o acórdão do T. R. L. de 17.2.2022, relatado António Santos e acessível em www.dgsi.pt.