AMNISTIA
PERDÃO
LEI ESPECIAL
APLICABILIDADE
CRIME DE ROUBO
LEI NOVA
NÃO RETROACTIVIDADE
Sumário

I - A Lei n° 38-A/2023, de 02-08 com a redação das alíneas b) e g) do nº 1 do artigo 7º incorre numa aparente antinomia normativa, pois numa mesma lei, com apenas catorze artigos, ainda por cima num mesmo artigo e número deste, só diferindo as alíneas, dizer primeiro que o crime de roubo simples não está excecionado da regra geral do perdão, dele beneficia, para uns passos mais abaixo dizer que o crime de roubo simples não beneficia do perdão, porque de acordo com o artigo 67º-A do CPP é um crime cometido contra pessoa especialmente vulnerável e, por isso, está excluído.
II - A aparente antinomia desaparece com a aplicação do princípio da não retroatividade da lei penal desfavorável, pois a aplicação do artigo 67º-A do Código de Processo Penal agrava a posição processual ou a responsabilidade penal do arguido condenado nestes autos, excluindo um pressuposto negativo da punição – o direito de graça.
III - Não fora esse artigo, aparecido no ordenamento jurídico-penal, no direito penal em sentido amplo, em momento posterior à data do cometimento dos factos, e a sua situação beneficiaria do perdão geral de penas da Lei n.º 38-A/2023 e veria a redução de um ano na pena que tinha de cumprir.
IV - Assim se compreende que relativamente aos crimes de roubo simples mais antigos, anteriores à entrada em vigor da Lei 130/2015, dado tratar-se de uma criminalidade de relativamente menor importância, o legislador entendesse abrangê-los pela clemência do perdão de penas, já quanto aos crimes de roubo simples mais recentes terá entendido que não deveriam ser perdoados.
V - Assim, o condenado por um crime de roubo simples cometido antes da entrada em vigor do artigo 67º-A do CPP beneficia da aplicação da graça concedida pela Lei n.° 38-A/2023, de 02-08, não lhe sendo aplicável a exclusão do perdão prevista do art.º 7º, nº 1, al. g) desta Lei.

Texto Integral

 Processo n.º 486/06.0GAPFR-A.P1


Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: Francisco Mota Ribeiro
2ª Adjunta: Paula Cristina Jorge Pires

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Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto:
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1 - RELATÓRIO
No Processo n.º 486/06.0GAPFR do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, Juízo Central Criminal de Penafiel - Juiz 2, o Sr. Juiz, em 29.9.2023, proferiu despacho (Referência: 93032996) no qual declarou perdoado, à pena aplicada a AA, um ano de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
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Não se conformando com esta decisão, recorreu o Ministério Público, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:
«1. O presente recurso mostra-se limitado à decisão que declarou perdoado ao arguido AA um ano de prisão, ao abrigo da Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, sob a condição resolutiva prevista no seu artigo 8.º, n.º 1.
2. Só um legislador completamente inepto excluiria o perdão relativamente a crimes contra vítimas especialmente vulneráveis, após ter definido estas como vítimas de crimes violentos, pretendo excluir desta classe de vítimas aquelas que foram vítimas de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210º, nº 1 do Código Penal.
3. Só um legislador inepto desconheceria que o crime de roubo, previsto no art.º 210.º, n.º 1, do Código Penal, punido com uma pena de prisão até 8 anos, integra o conceito de criminalidade especialmente violenta (art.º 1.º, al. l), do Código de Processo Penal), e que nos termos do nº 3 do art. 67º-A do Código de Processo Penal, “As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.”
4. Resulta do artº 9º do Código Civil que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (nº 1), não podendo, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (nº 2); na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3).
5. Foi intenção do legislador, de acordo com a exposição de motivos da Lei, excluir a aplicação de perdão da criminalidade dita “muito grave”.
6. Percorrendo a legislação não encontramos qualquer definição de “criminalidade muito grave”. Prevê-se no art. 1º do Código de Processo Penal, “criminalidade violenta”, “criminalidade especialmente violenta” e “criminalidade altamente organizada”.
7. Nos termos da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações electrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações) define-se no art. 2º, al. g) “criminalidade grave” como “crimes de terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade altamente organizada, sequestro, rapto e tomada de reféns, crimes contra a identidade cultural e integridade pessoal, contra a segurança do Estado, falsificação de moeda ou de títulos equiparados a moeda, contrafação de cartões ou outros dispositivos de pagamento, uso de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos, atos preparatórios da contrafação e crimes abrangidos por convenção sobre segurança da navegação aérea ou marítima”.
8. O legislador optou por um critério empírico para determinar a tal “criminalidade muito grave” a que se alude na exposição de motivos da proposta de lei.
9. O legislador exclui a aplicação de perdão de crimes que dificilmente se podem qualificar como muito graves, e outrossim, permite a sua aplicação a crimes que na definição da Lei nº 32/2008 de 17 de Julho, são considerados “graves”, permitindo, inclusivamente, o uso de meios de obtenção de prova particularmente invasivos da vida privada.
10. O pensamento do legislador foi expresso de forma imperfeita. Se por um lado exclui a aplicação de perdão de crimes que não são necessariamente “graves” (até, p. ex. crimes de perigo concreto como o crime de condução perigosa, em que para a verificação do crime se prescinde de resultado danoso, bastando a simples criação do perigo), por outro lado determina a sua aplicação a crimes graves, em relação aos quais o legislador até permite o uso de meios invasivos da vida privada na investigação.
11. Quis, pois, o legislador, a fim de atribuir às vítimas (conceito diverso de “lesado”, “ofendido” ou “assistente”) um conjunto de direitos, corporizados na mencionada Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro, clarificar quem são as vítimas especialmente vulneráveis, e nestas incluiu, sem qualquer margem para dúvidas, as vítimas de crime de roubo “simples”, p. e p. pelo art. 210º do Código Penal.
12. Com a Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, foi intenção do legislador, tal como decorre da exposição de motivos, excluir da aplicação do perdão crimes praticados contra vítimas especialmente vulneráveis, considerando que estas são as que previamente havia definido com a introdução do art. 67º-A no Código de Processo Penal, por considerar que estes são crimes muito graves.
13. O traço comum a todos os crimes excluídos da aplicação do perdão é tratar-se de crimes que o legislador considerou que, por força da repercussão social e do sentimento criado na comunidade, são crimes que não são merecedores de um “amaciamento” da reacção penal que lhes foi aplicada, e nessa perspectiva, tratando-se de vítimas de crimes graves – e mesmo o crime de roubo “simples” não deixa de ser um crime grave, atendendo ao uso de violência para a apropriação, gerando forte sentimento de insegurança na população.
14. Aplicar o perdão a um crime praticado contra pessoa, ope legis, qualificada como particularmente vulnerável representa uma interpretação que viola a unidade do sistema jurídico, e a teleologia da própria Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, que visou reduzir o tempo de prisão a condenados por crimes de pouca ou reduzida gravidade.
15. O legislador manda apenas atender à pena concretamente aplicada, sendo certo que, por força da Lei, não fora a expressa exclusão todos os condenados por aqueles crimes expressamente excluídos, em pena de prisão até 8 anos, poderiam ver perdoado um ano de prisão.
16. O legislador quis, inquestionavelmente, vedar a aplicação de perdão a condenados por crimes contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis.
17. Para tal, em lugar de expressamente enunciar que não beneficiavam de perdão todos os condenados por crimes cometidos contra pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime, e cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social, e as vítimas de condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos, ou com pena de máximo igual ou superior a 8 anos e de terrorismo, optou pela técnica de remissão para norma legal que contém aquela mesma definição.
18. Se o legislador tivesse procedido à transcrição do conceito na norma em questão, não se colocaria qualquer questão de eventual aplicação retroactiva.
19. Não se “transforma” um ofendido numa vítima especialmente vulnerável, que não o era ao tempo da prática dos factos.
20. O legislador apenas esclareceu que em função da qualidade de certa sorte de vítimas, nas quais incluiu para além de crianças e jovens, vítimas que passou a considerar especialmente vulneráveis, apesar de poderem estar presentes todos os outros requisitos para a aplicação da lei do perdão, nomeadamente, a data da prática dos factos, a idade do arguido, a medida concreta da pena, e a não exclusão expressa nas alíneas do art. 7º, não haveria lugar a perdão.
21. A interpretação do pensamento do legislador não pode ser outra senão a de foi sua intenção excluir da aplicação do perdão, os crimes praticados contra uma classe especial de vítimas, in casu aquelas vítimas de condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.
22. A não aplicação do perdão não comporta, desta forma qualquer aplicação retroactiva da Lei nº Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro.
23. O douto acórdão recorrido viola o disposto art. 7º, nº 1, al. g), da Lei nº 38- A/2023, de 2 de Agosto; o disposto no art. 67º-A/2023, do Código de Processo Penal e o disposto no art. 9º do Código Civil.
TERMOS em que Concedendo VV. Exas. provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão sob recurso,
a) Julgando excluído da aplicação do perdão de pena previsto na Lei nº 38-A/2023, de 2 de Agosto, a pena cominada ao arguido de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática, a 23 de Julho de 2006, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal.
b) Determinando o cumprimento da parte da pena perdoada, farão inteira JUSTIÇA»
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Foi proferido despacho a admitir o recurso.
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O condenado não apresentou alegações de resposta.
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Nesta instância, o Ministério Público emitiu parecer que concluiu nos seguintes termos:
«Concluímos, pois, tal como o Ilustre Magistrado recorrente, que o crime de roubo previsto no art.º 210º, nº 1, do CP integra criminalidade violenta, pelo que não beneficia do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, por imposição do art.º 7º, nº 1, al. g), do mesmo diploma.
E tal conclusão não é afastada pela circunstância, para o efeito completamente irrelevante, de o legislador da Lei nº 38-A/2023 se ter socorrido, para efeitos de exclusão do perdão, nos termos do art. 7º al. g), da expressão “vitima especialmente vulnerável”, introduzida no CPP pela Lei nº 130/2015, de 04 de setembro.
É óbvio que o legislador da amnistia conhece o conteúdo da expressão e, por isso, é inequívoco que o que pretendeu significar, com a importação do conceito, foi que não há lugar a aplicação do perdão aos condenados por crimes praticados contra aquelas vítimas, sem necessidade de discriminar cada uma das “sub-categorias” que integram o conceito.
A exclusão do perdão não depende do nomen juris que o legislador atribuiu ao grupo - vitimas especialmente vulneráveis – mas antes da circunstância da vítima integrar alguma daquelas “sub-categorias” à data da prática do crime.
Assim sendo, como se nos afigura que é, não podem beneficiar do perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, os condenados por criminalidade violenta, como tal qualificada nas als. j) e l) do artigo 1º do CPP, na sua redação atual e no artigo 1º, nº 2 al. b) do mesmo código, na redação vigente à data da prática do crime, a introduzida pela Lei nº 52/2003, de 22 de agosto.
Por todo o exposto e o demais invocado na motivação de recurso merece provimento o recurso do Ministério Público.»
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Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP.
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Colhidos os vistos e indo os autos à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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2 - FUNDAMENTAÇÃO

2.1 - QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, a questão a apreciar e decidir é de saber se o condenado por um crime de roubo simples cometido antes da entrada em vigor do artigo 67º-A do CPP, deve ou não beneficiar da aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 02-08, por força da exclusão do perdão prevista do art.º 7º, nº 1, al. g) desta Lei.
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2.2- A DECISÃO RECORRIDA E CIRCUNSTÂNCIAS RELEVANTES EXTRAÍDAS DOS AUTOS:
2.2.1- O despacho recorrido.
É o seguinte o teor da decisão recorrida:
 «A. Ref. 93049913 de 25.9.2023:
Vi que o arguido se apresentou no Estabelecimento Prisional ... para cumprimento da pena em que foi condenado.
B. DO PERDÃO DA PENA
1. O Ministério Público veio promover que se remeta o Mandado de Detenção Europeu já redigido tendo em vista a detenção e condução do arguido AA a Portugal para que o mesmo cumprisse a pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo arguido 210.º, n.º 1, do Código Penal, em que foi condenado, mais argumentado que aquele crime não se mostra abrangido pelo perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
2. Notificado para se pronunciar, o arguido AA nada disse.
3. Entretanto, tivemos conhecimento que o arguido AA se apresentou no dia 25 de setembro de 2023 no Estabelecimento Prisional ... para cumprir a pena em que foi condenado.
4. Cumpre apreciar da aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, cuja entrada em vigor ocorrerá a 1 de setembro de 2023, tomando já em consideração a retórica argumentativa do Magistrado do Ministério Público — no sentido de que à situação do arguido AA não é aplicável o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto — razão pela qual se decidirá de imediato.
5. À decisão importa considerar a seguinte factualidade:
a) O arguido AA nasceu no dia ../../1982;
b) No âmbito do presente processo, por decisão transitada em julgado a 15.11.2012, o arguido foi condenado pela prática, a 23 de julho de 2006, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão;
6.
6.1. A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações relativamente a ilícitos praticados até às 00.00 horas do dia 19 de junho de 2023 por pessoas que tenham entre 15 e 30 (inclusive) anos de idade à data da prática do facto.
Nos termos da apontada lei, nomeadamente do seu artigo 3.º, n.º 1, é perdoado um ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, perdão que também tem “lugar sendo revogada a suspensão da execução da pena” (n.º 3 do artigo 3.º).
6.2. Tendo por certo que o arguido foi condenado pela prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, entende o Ministério Público que não lhe deve ser aplicado o perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, uma vez que “a vítima daquele (crime) é sempre uma «vítima especialmente vulnerável»”, razão pela qual, “por força do n.º 1, al. g), do preceito em análise, que exclui a aplicação do perdão a condenados por crimes praticados contra «vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal», sendo que “o crime de roubo, previsto no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, punido com uma pena de prisão até 8 anos, integra o conceito de criminalidade especialmente violenta (artigo 1.º, al. l), do Código de Processo Penal)” e “nos termos do n.º 3 do artigo 67º-A do Código de Processo Penal, «as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.»”.
6.3. Desde já, temos sérias reservas a que a vítima do crime de roubo tipificado no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, deve considerar-se “vítima especialmente vulnerável” para efeitos de estar excluída do perdão previsto na Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
a) Desde logo, importa anotar o modo como o legislador se refere aos crimes contra o património que estão excluídos do perdão. É a seguinte redação do artigo 7.º, n.º 1, al. b), da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto:
“1 – Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei:
(…)
b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados:
i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal;
ii) Por crime de extorsão, previsto no artigo 223.º do Código Penal;”
Sendo certo que esta redação aponta, inequivocamente, para a exclusão do artigo 210.º, n.º 1, do elenco dos crimes não perdoáveis (e que o legislador até teve o cuidado de apontar para o crime de extorsão, com uma pena inferior ao crime de roubo simples), mal se compreenderia que, afinal, pretendesse que aquele crime ficasse excluído do perdão por força da qualidade da vítima ser especialmente vulnerável ao abrigo do disposto no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal. Se, naverdade, fosse intenção do legislador excluir o roubo dos crimes perdoáveis, não seria mais fácil dizer, preto no branco, tal como fez para a extorsão, que não é aplicável o perdão aos condenados por crime de roubo, previsto no artigo 210.º, sem mais? Aliás, só um legislador completamente inepto, querendo que todos os condenados pela prática do crime de roubo ficassem excluídos do perdão teria optado por tal redação da lei.
b) É certo, igualmente, que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto também exclui do perdão “os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º -A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro” (al. g) do n.º 1 do artigo 7.º).
i. É justamente, com base nesta norma que o Ministério Público entende não dever ser aplicado o perdão ao arguido, como já vimos. E, diga-se, tem a companhia de BB (Notas práticas referentes à Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, Julgar online, agosto de 2023), referindo este autor o seguinte:
“O elenco das exceções é feito em função dos crimes em causa, tendo em conta o bem jurídico protegido e os elementos constitutivos (cf. n.º 1, als. a) a f)) ou, independentemente dos concretos crimes, das respetivas vítimas (cf. n.º 1, al. g), e n.º 2) de determinadas qualidades ou características do agente (cf. n.º 1, als. h), k) e l)), da pena aplicada (cf. n.º 1, al. i)) ou da verificação de determinada agravante geral (cfr. n.º 1, al. j)).
Deste modo, o facto de um crime não constar no elenco daqueles que, por si só, determinam a exclusão das medidas estabelecidas na Lei em análise, não impede que o respetivo agente possa, ainda assim, não beneficiar destas por força das demais exceções igualmente previstas.
Ora, as vítimas de criminalidade violenta (cf. art.º 1.º, al. j), do C.P.P.), de criminalidade especialmente violenta (cf. art.º 1.º, al. l), do C.P.P.) e de terrorismo (cf. art.º 1.º, al. i), do C.P.P.), são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis (cf. art.º 67.º-A, n.º 1, al. b), e n.º 3, do C.P.P.).
Por exemplo, dos crimes contra a vida, o crime de incitamento ou ajuda ao suicídio, previsto no art.º 135.º, n.º 2, do C.P., é punido com uma pena de prisão até 5 anos, sendo o crime de exposição ou abandono, previsto no art.º 138.º do C.P., punido com uma pena de prisão até 5 anos (cf. art.º 138.º, n.os 1 e 2, do C.P.), que em certos casos se estende até 8 anos (cf. art.º 138.º, n.º 3, al. a), do C.P.) e até mesmo 10 anos (cf. art.º 138.º, n.º 3, al. b), do C.P.). Desta forma, integram o conceito de criminalidade violenta (cf. art.º 1.º, al. j, do C.P.P.) e, no caso do crime de exposição ou abandono, p. e p. pelo art.º 138.º, n.º 3, al. a), do C.P., o de criminalidade especialmente violenta (cf. art.º 1.º, al. l), do C.P.P.), pelo que a respetiva vítima será sempre uma vítima especialmente vulnerável (cf. art.º 67.º-A, n.º 1, al. b), e n.º 3, do C.P.P.). Ora, assim sendo, apesar de os ditos crimes não constarem elencados no n.º 1, al. a), i), da Lei em análise, o certo é que, por força do n.º 1, al. g), da mesma Lei, o agente de tais crimes não poderá beneficiar do perdão da respetiva pena que lhe tiver sido aplicada.
Da mesma forma, apesar de o crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210.º, n.º 1, do C.P., não constar elencado no n.º 1, al. b), i), da Lei em análise, onde apenas se faz referência, na parte que agora interessa, ao roubo agravado, p. e p. pelo art.º 210.º, n.º 2, do C.P., o certo é que a vítima daquele será sempre uma vítima especialmente vulnerável, pelo que o seu agente também não poderá beneficiar do perdão da pena aplicada por tal crime por força do n.º 1, al. g), do preceito em análise.
Na verdade, cumpre salientar que o crime de roubo, previsto no art.º 210.º, n.º 1, do C.P., punido com uma pena de prisão até 8 anos, integra o conceito de criminalidade especialmente violenta (cf. art.º 1.º, al. l), do C.P.P.). Na verdade, o crime de roubo traduz-se numa conduta dolosa dirigida contra, pelo menos, a integridade física da pessoa que é vítima do assalto, sendo a violência típica do roubo a violência específica do ato apropriativo, sob a forma de emprego de força física, maior ou menor, pelo que sempre terá que se considerar verificado o requisito que determina a sua integração em tal conceito. Assim, pelas mesmas razões, também o crime de roubo, na forma tentada, previsto no art.º 210.º, n.º 1, do C.P., punido com uma pena de prisão superior a 5 anos, integra o conceito de criminalidade violenta (cf. art.º 1.º, al. j), do C.P.).” (o itálico é nosso).
ii. Esta interpretação das normas suscita-nos, todavia, algumas reservas.
α. Em primeiro lugar, crê-se não se deve interpretar esta norma sem atentar ao modo como se encontra redigida a alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da apontada Lei, tal como já enfatizamos, e daí retirar consequências quanto à intenção do legislador quanto ao inclusão ou exclusão do crime de roubo tipificado no artigo 210.º, n.º 1, nos crimes perdoáveis.
β. Depois, entende-se que na alínea g) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, a remissão para o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal serve, essencialmente, para aí ir buscar a definição/caraterização do que sejam “as crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis”: será «criança ou jovem» quem, “até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica” (artigo 1.º, n.º 1, al. a), iii), do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal); e será «vítima especialmente vulnerável» “a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social” (alínea b) do n.º 1 do artigo 67.º-A, do Código de Processo Penal).
É certo que o artigo 67.º-A, no seu n.º 3, dá conta que “as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1”, mas a definição de «criminalidade violenta» — para nos atermos ao caso em apreço — dada pelo artigo 1.º, al. j) do Código de Processo Penal (“as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos”) têm “efeitos apenas para o disposto no presente Código [de Processo Penal]”
γ. Não se tente, ainda, argumentar que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto procurou uma aplicação tão “automática” quanto possível, seja na determinação do âmbito geral da sua aplicação, quer na determinação dos concretos casos em que a sua aplicação está excluída. Isto é, diz-se e procurando dirigir a nossa atenção para a situação em análise, a lei, ao definir os crimes que se encontram excluídos do perdão, procurou evitar que o tribunal reapreciasse os factos subjacentes à condenação, dizendo diretamente os crimes que não estão abrangidos pelo perdão.
Em primeiro lugar, deve dizer-se que esta suposta “aplicação automática” da lei é, apenas, uma tentativa de indicar as condutas delituosas que devem ou não ser abrangidas pelo perdão de penas de modo claro, no sentido de evitar interpretações equívocas.
Depois, e mais relevante, não é verdade que do elenco dos crimes não perdoáveis inexistam situações em que o julgador se encontrará na necessidade de apreciar a concreta factualidade que esteve na origem da condenação. Veja-se, por exemplo, que para determinar se é ou não perdoável a pena em que foi condenado um “titular de cargo político ou de alto cargo público, magistrado judicial ou do Ministério Público”, será necessário verificar se tal condenação foi por crime praticado “no exercício de funções ou por causa delas” (alínea h) do n.º 1 do artigo 7.º); ou, no que toca aos “membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários” importará verificar dos factos provados que os mesmos foram condenados por crime relativo “à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena” (alínea k) do n.º 1 do artigo 7.º). Aliás, não é só a verificação do conceito de “vítima especialmente vulnerável” que exige a análise do caso concreto e, designadamente, dos concretos factos que a decisão condenatória considerou como provados: também só a análise dos concretos factos provados permitirá afirmar se estamos perante um crime contra uma “criança” ou contra “um jovem”.
c) Por fim, crê-se ainda que a inclusão do crime de roubo no elenco dos crimes perdoáveis corresponde à intencionalidade normativa que atravessa a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto. Aliás, neste contexto, é importante dizer que o crime de roubo previsto no artigo 210.º, n.º 1 é punido com pena de prisão de 1 até 8 anos, também a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto vem dizer que “sem prejuízo do artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos”. E, além disso, boa parte dos condenados por crimes que o roubo previsto no artigo 210.º, n.º 1, consome, posto que levados a cabo tendo em vista o ato apropriativo da coisa ou animal, tal como a ofensa a ameaça, mesmo que agrava (artigos 153.º e 155.º), e a ofensa à integridade física (artigo 143.º), mesmo que qualificada, salvo quanto à alínea c) do n.º 1 do artigo 144.º, são abrangidos pelo perdão.
6.4. Teremos, assim, de concluir que os condenados pela prática do crime de roubo previsto no n.º 1 do artigo 210.º são abrangidos pela Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto e, por isso, as penas em que os mesmos foram condenados terão de ser perdoadas nos termos previstos no artigo 3.º da apontada Lei, posto que, da factualidade subjacente, não resulte que foi praticado contra “crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis”, o que terá de se aferir em face do concreto circunstancialismo em que os crime foi praticado.
Ora, a análise da factualidade provada que serviu à condenação do arguido na pena de 1 ano e 6 meses de prisão pela prática de um crime de roubo previsto no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, mostra-nos que a vítima do crime foi a sua mãe (cf. a factualidade provada descrita em 1.), cujo relacionamento, desde 1997, “começou a registar fortes disfuncionalidades” (cf. 15.), “incompatibilidade relacional”” a ponto de deixar de viver com ela e passar a residir numa casa abandonada nas suas proximidades (cf. 17.), mais nos dizendo que “a interação com a mãe carateriza-se pela conflitualidade, manifestando ansiedade e mesmo cólera, emoções que se revelam de tal intensidade que o levará a solicitar ajuda aos outros, no sentido de o conter e proteger a integridade física daquela” (cf. 21.).
Contudo, esta factualidade não nos permite afirmar que a mãe do arguido, CC, se encontra numa situação de “especial fragilidade” que “resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social” e que, por isso, se deva considerar uma vítima especialmente vulnerável.
Consequentemente, será de perdoar um ano de prisão à pena em que o arguido foi condenado.
7. Mas mesmo que se considere que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, exclui do perdão os condenados pela prática do crime de roubo previsto no n.º 1 do artigo 210.º do Código Penal por se tratar de “criminalidade violenta” e as vítimas deste tipo de crimes deverem considerar-se “sempre vítimas especialmente vulneráveis”, sempre a pena em que o arguido foi condenado, por haveria de ser perdoada, uma vez que, à data da prática dos factos, o crime não foi praticado contra uma “vítima especialmente vulnerável”.
Expliquemo-nos.
7.1. É pela Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro, entrada em vigor a 4 de outubro desse mesmo ano, que o conceito de “vítima especialmente vulnerável” entra no Código de Processo Penal. Portanto, até aí, as vítimas dos crimes de roubo tipificado no artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, não eram, ao menos “sempre”, vítimas especialmente vulneráveis e, consequentemente, a qualidade de vítima especialmente vulnerável não surgia automaticamente pela mera verificação, além de outros, de puros critérios formais, nomeadamente ser vítima de “as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos” (criminalidade violenta: cf. o artigo 1.º, al. i), do Código de Processo Penal) ou de “l) “condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos” (criminalidade especialmente violenta: cf. o artigo 1.º, al. l), do Código de Processo Penal).
Portanto, importa reter que o artigo 67.º-A do Código de Processo Penal apenas entrou em vigor a 4 de outubro de 2015, data bem posterior à da prática dos factos.
E será aquele conceito aplicável às situações ocorridas antes da sua entrada em vigor?
7.2. Importa aqui apelar, desde logo, ao princípio da legalidade criminal.
a) É usual definir o princípio da legalidade criminal através de um brocardo latino: nullum crimen, nulla poena sine legge”, cujo conteúdo essencial se traduz em que não pode haver crime nem pena que não resultem de uma lei prévia, escrita, estrita e certa.
Ficam, portanto, duas notas assentes:
– não há crime sem lei, princípio que está plasmado no artigo 29.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (“ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão,…)”, sendo com tal princípio que o Código Penal abre portas (artigo 1.º, n.º 1: “só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da sua prática”); e
– não há pena sem lei, o que significa que, por mais reprovável e nocivo que seja determinado comportamento, só depois de o legislador o considerar como crime e lhe cominar uma pena é que pode ser punido penalmente; por isso, a Constituição da República Portuguesa, no seu artigo 29.º, n.º 3, estabelece que “não podem ser aplicadas penas ou medidas de segurança que não estejam expressamente cominadas em lei anterior”.
Estas notas implicam que não se possa aplicar qualquer pena ao agente/arguido relativamente a comportamentos seus que, ao tempo da sua prática, não estavam descritos na lei como crime e para os quais, portanto, não estava prevista uma sanção criminal ou pena.
b) Uma das dimensões mais importantes que o princípio da legalidade criminal assume diz respeito ao chamado princípio da proibição da retroatividade da lei penal in malem partem, isto é, contra o agente.
Com efeito, “o facto [criminoso] considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se tenha produzido” — artigo 3.º do Código Penal.
Por outro lado, “as penas … são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto” (artigo 2.º, n.º 1 do Código Penal) e “ninguém pode sofrer pena … mais graves do que as previstas no momento da correspondente conduta” (artigo 29.º, n.º 4, 1.ª parte da Constituição), assim dando guarida ao princípio (com força constitucional) de que as penas devem já estar determinadas no momento em que o agente pratica o facto.
Dito de modo seco: não é possível a aplicação retroativa de lei penal que seja desfavorável ao agente.
c) Contudo, admite-se a aplicação (retroativa) de lei posterior à prática dos factos desde que seja mais favorável para o agente.
Tal ideia encontra consagração constitucional (artigo 29.º, n.º 4, 2.ª parte: “aplicando-se retroativamente as leis penais de conteúdo mais favorável ao arguido”) e legal expressa numa dupla dimensão: em caso de descriminalização e na situação em que uma lei nova atenua a consequência jurídica.
i. Estamos perante uma situação de descriminalização, naquelas situações em que “o facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma nova lei o eliminar do número das infrações” (artigo 2.º, n.º 2.º, 1.ª parte do Código Penal), caso em que, não havendo ainda condenação, esta nem sequer vai ocorrer e, tendo-a havido “cessam a execução e os seus efeitos penais” (artigo 2.º, n.º 2, fine).
ii. Estando perante uma situação em que a lei nova atenua as consequências jurídicas do facto (nomeadamente a pena, a medida de segurança ou os efeitos penais do facto), deve aplicar-se retroativamente a lei que for mais favorável: “quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, será sempre aplicado oregime que concretamente se mostre mais favorável ao agente” (artigo 2.º, n.º 4, 1.ª parte do Código Penal).
Note-se que, neste último caso, deve aplicar-se a lei que “concretamente” se mostrar mais favorável ao agente, pelo que “o sopeso da gravidade dos dois regimes não pode fazer-se só na consideração abstrata da lei, mas tem de ser feito depois de conexionada aquela consideração com as circunstâncias concretas do caso” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal: Parte Geral – Tomo I, Gestlegal, 3.ª ed., 2019, págs. 239 e 240). Importa ainda assinalar que, em princípio, o regime “aplicável não pode ser composto pelo juiz com partes da regulamentação emanada da lei antiga e partes emanadas da lei nova”, razão pela qual deve haver uma “opção por um dos regimes em bloco”, “mas é obvio” que tal princípio “não pode obstar a que, considerando-se, v.g., aplicável a lei antiga à apreciação do tipo legal de crime ou (e) da pena, todavia acabe por aplicar-se a lei nova na parte em que considerar, diversamente da lei anterior, que o crime está prescrito”, justamente “porque, em definitivo, aquela conduz à responsabilização, esta à irresponsabilização penal do agente” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., pág. 240).
7.3. Sendo evidente que a Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto é para aplicar a condenações por factos do passado — às condenações por ilícitos “praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023” — pergunta-se agora se as alterações na lei processual penal posteriores à data da prática dos factos também devem aplicar-se apenas para o futuro ou também deve regular as situações ocorridas antes da data da sua entrada em vigor.
a) A regra que se mostra inscrita no artigo 5.º, n.º 1, do Código de Processo Penal é de que “a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos atos realizados na vigência da lei anterior”.
Compreende-se o sentido da norma: assente — ainda que com limitações — o caráter instrumental das normas processuais, estas aplicar-se-iam à forma de regular o andamento do processo, razão pela qual seriam de aplicar aos atos que haveriam de realizar tendo em vista a realização da justiça penal.
Todavia, a regra da aplicação imediata da lei processual penal deve ser temperada por razões associadas às garantias de defesa do arguido e, além disso, em nome da harmonia unitária do processo. Por isso, no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Penal, estatui-se o seguinte:
“2 – A lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:
a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou b) Quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo.”
b) Esta doutrina tem, todavia, de tomar em consideração que nem todas as normas processuais dizem exclusivamente respeito “ao processo”, antes configuram uma verdadeira consequência jurídico-penal — e, hoc sensu, uma penalidade — a que o agente de determinado facto tipificado na lei penal como crime fica sujeito. Fala-se, assim, em “normas processuais materiais”, as quais “condicionam, positiva (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos adicionais da punição: p. e., queixa e acusação particular) ou negativamente (impedimentos processuais que são verdadeiros impedimentos da punição: p. e., a prescrição do procedimento criminal) a responsabilidade penal” ou “que dizem diretamente respeito aos direitos e garantias de defesa do arguido (p.e., espécies de prova e valoração da sua eficácia probatória, graus de recurso) ou “que afetam, direta, incisiva e gravemente o direito fundamental da liberdade” (Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de leis penais, 2.ª ed., Coimbra Editora, 1997, pág. 261). Isto é, “representam, em termos materiais, uma verdadeira pré-conformação da penalidade a que o arguido poderá ficar sujeito” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 4.ª ed., 2007, pág. 62; em sentido algo diferente, Henrique Gaspar, Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 31, considerando que as normas processuais materiais “regulam espaços que têm que ver ainda com a dignidade penal do facto e com a dicotomia «lícito-ilícito», e não com a «admissibilidade-inadmissibilidade» dos atos”). Estas normas são, assim, reflexo da “relação de mútua complementariedade funcional entre direito processual penal e direito penal” e que permitem afirmar que alguns institutos apresentam uma “natureza mista, simultaneamente participante de caraterísticas jurídico-substantivas e jurídico-processuais” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, ed. policopiada, 1988-89, págs. 4 a 14).
Ora, relativamente a estas normas processuais materiais — ou, na expressão feliz do Professor Gomes Canotilho (Anotação ao Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/90 – Proc. n.º 229/89, in Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3792, pág. 95), “normas ou fragmentos de normas processuais penais de natureza substantiva” — vale, na íntegra e nos termos que já assinalámos, o princípio da legalidade criminal:
– a data relevante para a aplicação das normas processuais materiais é a da prática dos factos;
– é proibida a aplicação retroativa de normas processuais materiais, salvo se as mesmas forem mais favoráveis para o agente/arguido; e
– quando as normas processuais materiais vigentes à data da prática dos factos forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicável o regime que, em concreto, se mostrar mais favorável ao agente, devendo a comparação entre os regimes legais em concurso ser feita em termos concretos e globais (isto é, considerando o conjunto da normas aplicáveis, não havendo a possibilidade de se escolher as “partes” dos diferentes regimes), mas sem prejuízo de se apurar aqueles casos em que a aplicação “repartida” de diferentes regimes poderá implicar a desresponsabilização penal do arguido.
7.4. Aplicando as precedentes considerações ao caso sub iudice, impõe-se dizer que, muito embora o artigo 67.º-A seja, essencialmente, uma norma processual — no sentido que define o que é “vítima”, “vítima especialmente vulnerável” e “familiares” tendo em vista a determinação dos seus direitos processuais — ao caraterizar como “vítima especialmente vulnerável” toda e qualquer pessoa contra quem seja praticado crime que dolosamente se dirige contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos associando aquela qualificação/caraterização a um certo efeito da pena — in casu, o de poder ou não beneficiar de uma lei de perdão que exclui o agente por força de a sua conduta assumir um novo (por à data da sua prática não o ter) enfoque político-criminal — teremos então de considerar que aquela norma “possui significação jurídico-substantiva e pertence consequentemente ao direito penal substantivo” (expressão que fomos buscar a Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 692), justamente porque está, ainda, associada às consequências do próprio facto e, nessa medida, deve ser entendida como uma verdadeira e própria penalidade. Razão pela qual se entende, consequentemente, que tal norma constitui uma norma processual penal, sujeita ao princípio da legalidade criminal, designadamente ao princípio da proibição da aplicação retroativa in malem partem.
Ora, esta ordem de ideias permite afirmar, então, que não é possível aplicar retroativamente (aos factos ocorridos antes da sua entrada em vigor, portanto) uma norma que, qualificando certa vítima como de “especial vulnerabilidade”, torna a conduta daquele concreto agente excluída do âmbito de aplicação de uma lei de perdão ou de amnistia.
Ademais, só esta solução respeita a natureza mista (substantiva e processual) da amnistia e do perdão enquanto concretização do direito de graça do poder punitivo estadual — se este tem o poder de punir, terá, também, o poder de “perdoar”, independentemente do modo como este poder se manifeste, seja a título de medida de graça de caráter geral (dirigida a grupos de factos ou agentes, que pode incidir sobre os próprios factos/crimes e aí falamos de amnistia, ou poderá incidir sobre as consequências jurídicas do facto e aí estamos perante o perdão) ou de caráter individual (indulto) — isto porque (seguimos Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, págs. 692 e 693):
– funciona como um “obstáculo à efetivação da punição” e, nessa medida, constitui “um pressuposto negativo da punição (obstáculo ao procedimento criminal ou obstáculo à execução da sanção)”, sendo um “verdadeiro pressuposto processual”, assim ficando claro o seu “específico cunho processual”;
 – contudo, mostra-se intimamente “relacionado com a doutrina da consequência jurídica”, razão pela qual se apresenta como “um instituto que, não tendo a ver com a doutrina do crime, ainda possui significação jurídico-substantiva e pertence consequentemente ao direito penal substantivo.”
8. Tudo visto, impõe-se então concluir que o arguido, considerando que à data da prática dos factos (23.7.2006) não havia completado 31 anos de idade (nasceu a ../../1982) e os ilícitos levados a cabo não determinam a exclusão do perdão nos termos do artigo 7.º, n.º 1 e n.º 2, da referida Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, teremos então de concluir que deve ser perdoado um ano de prisão à pena aplicada, o que importa declarar e daí retirar as devidas consequências.
9. Importa advertir o arguido, todavia, que o presente perdão “é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”, tal como estatui o artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
10. Pelo exposto, declara-se perdoado, à pena aplicada a AA, um ano de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto.
Remeta boletins ao registo (artigo 6.º, al. f), da Lei n.º 37/2015, de 5 de maio).
Notifique.
Informe o Tribunal de Execução das Penas.
C.
Para os efeitos tidos por convenientes, nomeadamente para a declaração da cessação da contumácia, informe o Tribunal de Execução das Penas que o arguido já se apresentou no Estabelecimento Prisional ... para cumprimento da pena.
D.
1. Tendo em vista a aplicação do artigo 80.º do Código Penal no cômputo da pena ao arguido, notifique-o e ao seu patrono para, no prazo de 5 dias, informar se sofreu medida de coação ou outra medida de privação da liberdade noutro processo que neste importe descontar.
2. Tendo em vista a mesma finalidade, solicite à Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais que informe se o arguido sofreu prisão ou medida de coação de privação de liberdade que neste processo importe descontar.
3. Decorrido o prazo de 5 dias acima concedido ou antes se entretanto houver resposta, abra vista ao Ministério Público.
*

29.9.2023.»
2.2.2- Circunstâncias relevantes extraídas dos autos.
1-O arguido AA nasceu no dia ../../1982.
2-No âmbito do presente processo, por decisão transitada em julgado a 15.11.2012, o arguido foi condenado pela prática, a 23 de julho de 2006, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.
*


2.3- APRECIAÇÃO DO RECURSO.
A questão essencial que se coloca no presente recurso é a de se o condenado por um crime de roubo simples cometido antes da entrada em vigor do artigo 67º-A do CPP, deve ou não beneficiar da aplicação da Lei n.° 38-A/2023, de 02-08, por força da exclusão do perdão prevista do art.º 7º, nº 1, al. g) desta Lei.
         A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, conforme se diz no seu artigo 1º veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude.
De acordo com o artigo 127º do Código Penal, "a responsabilidade criminal extingue-se ainda pela morte, pela amnistia, pelo perdão genérico e pelo indulto". Nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 128º do Código Penal, "a amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso de ter havido condenação, faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos como medida de segurança"; "o perdão genérico extingue a pena, no todo ou em parte"[1].
A amnistia é um pressuposto negativo da punição, com o mesmo regime jurídico (quanto ao efeito principal) do perdão genérico: pretende-se impedir que o agente sofra a sanção a que já foi (ou pode vir a ser) condenado. Sendo um pressuposto negativo da punição ligada à doutrina da consequência jurídica do crime trata-se de um instituto com significação jurídico substantiva, pertencendo ao direto penal substantivo e por isso sujeito ao princípio da legalidade e à proibição da retroatividade das leis penais desfavoráveis e à aplicação retroativa das leis penais favoráveis. Com efeito na delimitação do seu campo de aplicação as leis de amnistia e perdão, designadamente quando utiliza conceitos ou comportamentos constantes de normas penais, tem de ter em conta o princípio da irretroatividade in peius como também a retroatividade in melius[2].
A amnistia dirige-se à infração enquanto tal, impedindo a sua punição ou extinguindo-a, determinando mesmo a extinção das penas já aplicadas; pelo seu lado, o perdão genérico atinge apenas a sanção aplicada, determinando a sua extinção total ou parcial.
A amnistia ou o perdão genérico não são um mero ato de clemência, antes têm de assentar nalguma racionalidade, conforme disse o Tribunal Constitucional no Ac. TC 347/2000[3] e vários outros acórdãos nesse citados. Tratando-se da definição de direitos individuais perante o Estado, que pela amnistia, como pelo perdão, são dilatados tal como são comprimidos pela aplicação das sanções, a delimitação dos factos abrangidos pela lei de amnistia ou perdão genérico tem de ser feita segundo critérios suscetíveis de generalização, em função de circunstâncias não arbitrárias do ponto de vista do Estado de direito, sob pena de violação do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.
Embora o legislador tenha uma ampla margem de manobra quanto à delimitação do campo de aplicação das medidas de clemência, a verdade é que se não houver qualquer racionalidade nessa delimitação entramos num arbítrio não consentido pelo artigo 13º da CRP.
         O legislador pretendeu exercer este direito de graça da Lei n.º 38-A/2023 por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.
É certo que não se vislumbra qualquer relação da concessão desta amnistia com quaisquer das tarefas de política criminal que devem caber ao direito de graça, designadamente a intervenção como «válvula de segurança» do sistema, evitando a severidade da lei mediante circunstâncias supervenientes nas relações comunitárias ou da situação pessoal do agraciado, mas a verdade é que tem sido ‘tradicional’ entre nós a publicação de leis de amnistia para efeitos de comemoração de eventos festivos ou de visitas ao país de personalidades importantes[4].
Seja como for, a lei está aí e a não ser que a consideremos inconstitucional, o que nos parece não suceder, a mesma será de aplicar.
Antes de procedermos à leitura e interpretação das concretas normas que interessam ao caso dos autos, faremos uma advertência relativa às dificuldades interpretativas que têm surgido na aplicação desta lei ao caso concreto, de que são testemunho não só a dificuldade em identificarmos quais as concretas tarefas de política criminal a que com ela se pretendeu responder, como também os inúmeros acórdãos dos Tribunais da Relação publicados em www.dgsi.pt nos últimos dois meses, pouco depois da sua entrada em vigor. Contabilizámos até ao momento em tal sítio mais de duas dezenas de decisões das Relações e mais quatro do Supremo Tribunal de Justiça. Ora, se considerarmos que apenas são publicados em tal sítio uma pequena parte dos acórdãos proferidos pelas Relações, a que acrescentamos o facto de haver divergências jurisprudenciais significativas, podemos ter uma ideia das dificuldades de interpretação e aplicação que a amnistia e perdão da Lei n.º 38-A/2023 já suscitaram.
Se considerarmos que com todas as leis de amnistia anteriores sucedeu o mesmo, com atividade jurisprudencial intensíssima, facilmente concluiremos que a sua interpretação não será simples, sendo que o ideal das leis simples e claras, em especial neste campo do direito de graça, está cada vez mais distante de ser atingido e que a presunção legal constante do artigo 9º, n.º 3 do Código Civil («Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequado») parece cada vez mais contrária à realidade.
Trata-se de uma questão de Legisprudência, sem a qual a realização de uma jurisprudência penal justa e eficaz se torna quase impossível. Aquela pressupõe e significa bom senso, racionalidade jurídica, domínio da dogmática e da técnica legislativa, rigor e precisão linguísticos. Refere a doutrina que legisprudência é o que não tem acontecido entre nós[5].  
A interpretação deve ser determinada à luz do fim pretendido pela norma, mas passando pela prova de fogo da sua admissibilidade face ao teor literal da lei e aos significados comuns que ele comporta[6].
O fim do legislador com o exercício do direito de graça pela Lei n.º 38-A/2023 foi dar graças[7] pela realização entre nós do evento festivo da Jornada Mundial da Juventude e da visita Papal a ela associada.
A Jornada Mundial da Juventude é um evento religioso instituído pelo Papa João Paulo II em 1985 que reúne milhões de católicos de todo o mundo, sobretudo jovens.
Daí e desde logo que a delimitação do âmbito de aplicação da amnistia e do perdão genérico também pela idade das pessoas abrangidas, até aos 30 anos de idade (artigo 2º, n.º 1), o que tem alguma correspondência com a idade dos destinatários principais das ditas jornadas, não seja destituída de qualquer racionalidade e não viole o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição[8].
O ato de clemência do legislador, a sua disposição para perdoar as ofensas aos bens jurídicos fundamentais da nossa comunidade e/ou minorar os castigos, as penas já aplicadas, não foi de uma tal indulgência que todos os crimes, agentes ou penas fossem abrangidos pela sua bondade. Por um lado, como já referimos, as pessoas com mais de 30 anos de idade não beneficiaram da clemência do legislador e, por outro lado, só se consideraram as infrações cometidas até às 00:00horas de 19 de junho de 2023. Além disso, no artigo 7º, a uma primeira leitura, constata-se que foram consagradas cerca de três dezenas de exceções, umas com base nos tipos ou subtipos de crimes cometidos, geralmente direcionadas para os crimes mais graves ou mais frequentes, outras em razão da natureza das vítimas, outras ainda por força da qualidade dos agentes dos crimes ou natureza das condenações.
Ao atentarmos no rol das exceções, ainda que cuidadosamente, não conseguimos afastar algumas dificuldades de interpretação, pois algumas delas parecem contradizer-se, não deixando fazer uma leitura limpa, clara, lavada que nos permita afirmar com satisfação: Eis aqui um texto legislativo preciso e transparente ao qual é aplicável o adágio in claris non fit interpretativo !
Longe disso. Vejamos então na parte em que diz mais respeito ao caso que enfrentamos nos autos.
No artigo 3º (Perdão de penas), n.º 1 diz-se que sem prejuízo do disposto no artigo 4.º (casos de pena única por força do cúmulo jurídico), é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.
Partindo daqui já sabemos que, por regra, o perdão de 1 ano de prisão é aplicável a todas as penas de prisão até 8 anos, excetuando as exclusões do já referido artigo 7º.
Se lermos o artigo 7º (exceções), n.º 1 na parte que interessa ao crime dos autos, temos a alínea b-i), nos termos da qual não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei, no âmbito dos crimes contra o património, os condenados por crimes de roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal.
Qualquer leitor mediano desta norma, sabendo que o n.º 1 do artigo 210º prevê o crime de roubo simples, o tipo incriminador base, e o n.º 2 do artigo o crime de roubo agravado, extrairá facilmente e com toda a lógica a conclusão de que o crime de roubo simples do n.º 1, não sendo excluído da regra geral de aplicação do perdão de 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, pelo que deste beneficiará quem por tal crime de roubo simples foi condenado.
Só que, continuando a leitura das exclusões, passadas cerca de uma vintena de delas, chegamos à alínea g) onde consta a exclusão dos «condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro».
Aqui chegado, um leitor minimamente interessado no assunto irá procurar saber o que é isso de «vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal». Para tanto abrirá o in folio respetivo e ao ler esse tal artigo 67º-A, com a epígrafe vítima, verá nele inscrito, na parte que interessa ao caso dos autos, o seguinte:
«1 - Considera-se:
(…)
b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social;
(…)
3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1.
(…)»

O nosso leitor, leigo ou jurista, ao ler este artigo 67º-A, aditado ao Código de Processo Penal pela Lei n.º 130/2015, de 04/09, já com várias alterações não relevantes para o caso dos autos, não deixará de ficar meio confuso, com a leitura em conjunto do n.º 3 e da alínea b) do nº 1. Com efeito, se é claro o que se quer dizer quando se afirma que as vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e (…) são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis, ou seja, independentemente dos requisitos da alínea b), já não se entende a expressão «para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1». É que esta alínea b) limita-se a definir o que são vítimas especialmente vulneráveis, não lhe ligando quaisquer outros efeitos. Portanto, não conseguimos perceber o que o legislador quis dizer com a parte final do n.º 3 do artigo 67º-A. É certo que o estatuto de vítima especialmente vulnerável produz determinados efeitos previstos noutras normas, mas não na norma inscrita na dita alínea.
Permanecendo o leitor interessado no descobrir ou desvendar do sentido ou significado norma, especialmente se for jurista e exercer funções como sujeito processual num caso em que procure saber o que está excluído do perdão geral de penas da Lei n.º 38-A/2023, terá forçosamente de procurar no Código Processo Penal o conceito de criminalidade violenta ou de criminalidade especialmente violenta. A procura é fácil, bastando começar pelo princípio do livro, pois logo no artigo 1º, na versão atual, sob a epígrafe ‘Definições legais’ estão lá nas alíneas j) e l) os conceitos que se procuram:
«Para efeitos do disposto no presente Código considera-se:
(…)
j) 'Criminalidade violenta' as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos;
l) 'Criminalidade especialmente violenta' as condutas previstas na alínea anterior puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 8 anos; (…)»
 
Desde 1987 já vamos na 12ª versão deste artigo, mas para o caso que nos interessa a redação manteve-se no essencial a mesma.
O que importa salientar é que enquanto o crime de roubo simples do n.º 1 do artigo 210º do Código Penal integra o conceito de criminalidade violenta, mas não o de criminalidade especialmente violenta, já o crime de roubo agravado do n.º 2 do referido artigo 210º integra ambos os conceitos - criminalidade violenta e de especialmente violenta.
Assim, as vítimas de um crime de roubo (simples ou agravado) são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis nos termos do artigo 67º-A do Código de Processo Penal e como por definição não há crime de roubo sem vítima, o crime de roubo implica necessariamente a existência de uma vítima especialmente vulnerável.
Recapitulando, passo a passo e atendendo às regras da semântica e da lógica comum, as normas que fomos lendo da Lei n.º 38-A/2023, no que ao caso dos autos interessa, temos o seguinte:
1-Estão abrangidas pelo perdão as penas relativas aos crimes praticados até às 00:00horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (artigos 1º e 2º).
Como o crime dos autos foi cometido em 23.07.2006 e o condenado nasceu em ../../1982, tendo 24 anos à data dos factos, a primeira conclusão a retirar é de que lhe é aplicável o perdão de penas.   
2- É perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos (artigo 3º).
Como a pena aplicada ao condenado foi de 1 ano e 6 meses de prisão, sendo por isso inferior a 8 anos, a segunda conclusão que se tira é a de que lhe é aplicável o perdão de 1 ano de prisão.
Assim, até aqui, considerados os pressupostos da data do cometimento dos factos, idade do arguido e pena até 8 anos de prisão, bem como a regra geral de perdão (todas as penas), temos o preenchimento de todos eles.
Mas como ‘não há regra sem exceção’, dito que se aplica comummente às leis feitas no exercício do direito de graça, e com majestosa expressão nesta em que as exceções atingem as três dezenas, avancemos e vejamos se se aplica alguma exceção ao direito ao perdão de pena de que pela regra geral assiste ao condenado, recorrido destes autos.
3- Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei no âmbito dos crimes contra o património, os condenados por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210º do Código Penal (artigo 7º, n.º 1-b).
Um condenado por um crime de roubo, ao ler esta exceção no campo dos crimes para o património sofrerá decerto um ligeiro sobressalto ao ler a palavra roubo, pois que afinal a regra geral do perdão de 1 ano a todas as penas de prisão inferiores a 8 anos não se lhe aplica, ficou excluído do magnânimo direito de graça exercido pelo legislador.
Mas passado o inicial desânimo e as primeiras impressões, se continuar a leitura da exceção logo de seguida lerá que os crimes de roubo foram excecionados, mas a exceção só contempla os roubos agravados do n.º 2 do artigo 210º e não os roubos simples do n.º 1, do Código Penal. Dará graças ao legislador por este no exercício do seu direito de graça ter tido clemência para com os autores de roubos simples, normalmente situados numa área de pequena ou média criminalidade com penas concretas aplicadas entre 1 e 2 anos de prisão, longe sempre do máximo de oito anos previsto na norma.
Se considerarmos por alto as outras exceções à regra geral do perdão, vemos que foram em áreas de grande criminalidade ou criminalidade muito persistente e preocupante (homicídio, sequestro, escravidão, violência doméstica, burla através de falsificação, incitamento ao ódio, incêndio, crimes rodoviários, terrorismo, tráfico de estupefacientes excluindo o de menor gravidade, etc...). Daí que se julgue ter fundamento racional na consideração da realidade social a não exceção dos roubos simples da regra geral do perdão.
Assim e até agora, um condenado em 1 ano e 6 meses de prisão por um crime de roubo simples cometido antes de 19 de junho de 2023, tendo 24 anos à data dos factos, como sucede com o condenado destes autos, beneficia do perdão geral de um ano previsto na lei que analisamos.
Só que parece que as exceções nas leis de perdão de penas e amnistia são como as cerejas, vêm umas atrás das outras, tornando difícil pará-las. Continuando a descer pelos caminhos difíceis da lei deparamos com mais uma.
Ei-la:
4- Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei no âmbito dos crimes contra o património, os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º78/87, de 17 de fevereiro; (artigo 7º, n.º 1-g).
Aqui chegados podemos ver o desespero de um condenado por um crime de roubo simples que tendo sucessivamente passado o crivo da data do crime, da idade à data do cometimento, do montante da pena em que foi condenado, preenchendo todas as condições para beneficiar da regra geral do perdão de 1 ano, mais tendo ainda passado a exceção dos crimes contra o património vem agora quase no final da descida do caminho da lei, na altura em que o ‘portão para a liberdade estava quase aberto’, a esbarrar na inclemência de, por definição legal, o crime de roubo (simples ou agravado) ser sempre um crime contra vítimas especialmente vulneráveis e por isso excecionado do direito de graça concedido pela  Lei n.º 38-A/2023.
Mas não é apenas o desespero de um condenado que nos preocupa, o que já não é pouco e é o mais importante, soma-se ainda agora, após a leitura desta exceção à regra geral do perdão alguma dificuldade de penetrar a racionalidade da lei.  Aprofundemos a leitura e procuremos a candeia que nos há de guiar pelos caminhos cinzentos e misteriosos desta graciosa lei e ver se o ‘portão que leva à liberdade’ está ou não mesmo ‘fechado a sete chaves.’
Avancemos e equipemo-nos devidamente com as regras de leitura dum texto jurídico, comecemos pela letra da lei, procuremos o espírito ou intenção da norma e do legislador, o contexto normativo em que se encontra e avaliemos racionalmente, pois são estes os instrumentos que nos permitirão, esperamos, alumiar o caminho e procurar chegar à solução correta e justa do problema suscitado pelo caso concreto.
A estes instrumentos haverá de se juntar outro que já referimos anteriormente e que está consagrado no artigo 9º, n.º 3 do Código Civil: «Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados».
Da leitura letra da lei, como já fomos dizendo, resulta um problema que a uma primeira aproximação se afigura de difícil solução.
Como vimos, o legislador nas exceções à regra geral do perdão de todas as penas até oito anos afastou expressamente a aplicação ao crime de roubo agravado, não dizendo nada quanto ao crime de roubo simples, o que determina obrigatoriamente a aplicação da regra geral do perdão aos crimes não excecionados, entre eles o roubo simples. Parece-nos insofismável que, partindo do princípio que o legislador é presumidamente razoável, se excecionou especificadamente o roubo qualificado do n.º 2 do artigo 210º, n.º 2, é porque quis aplicar o perdão ao roubo simples do n.º 1 do mesmo artigo.
Só que, mais à frente na lei ao consagrar a exceção de aplicação da regra geral às vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, parece vir contra o que quis e disse anteriormente ao não excecionar o crime de roubo simples, ou seja, mandando aplicar a regra geral, o perdão de penas a este crime.
Ficando-nos por aqui, seriamos forçados a concluir que se verifica uma antinomia na lei. Com efeito, não é possível na mesma lei, com apenas catorze artigos, ainda por cima num mesmo artigo e número deste, só diferindo as alíneas, dizer primeiro que o crime de roubo simples não está excecionado da regra geral do perdão, dele beneficia, para uns passos mais abaixo dizer que o crime de roubo simples não beneficia do perdão porque de acordo com o artigo 67º-A do CPP é um crime cometido contra pessoa especialmente vulnerável e por isso está excluído.
Não tem sentido nenhum, é ilógico que num mesmo e curto diploma o legislador, presumidamente razoável, numa norma conceda e noutra a seguir exclua o benefício do direito de graça, dê e tire o perdão.
Também não tem muita lógica o facto de o legislador excluir duas vezes do perdão o mesmo crime, o que sucede várias vezes, sendo uma delas o crime de roubo qualificado. Este é logo excluído na alínea b) do n.º 1 do artigo 7º e depois outra vez na alínea g) por causa da vítima especialmente vulnerável.
Iluminemos melhor as normas em causa e procuremos, através do auxílio de outras normas, se não haverá solução para o problema da antinomia normativa, da lei que dá e tira, concede e não concede o direito de graça a um mesmo crime. A questão é séria, pois está em causa a redução de uma pena privativa de liberdade, a abertura do portão para o exercício na sua totalidade do direito fundamental à liberdade daquela concreta pessoa que foi condenada.
Até agora partimos do princípio de que há uma norma que diz que só os crimes de roubo agravados é que estão excluídos e que há outra norma que diz que todos os crimes de roubo (simples e agravados) estão excluídos da regra geral do perdão. Tal constitui uma antinomia normativa, uma contradição real ou aparente entre normas que dificulta a sua interpretação e reduz a segurança jurídica. Vejamos então se a contradição é mesmo real ou apenas aparente. Ora, isto poderá não ser bem assim. Poderá não ser correto afirmar que todos os crimes de roubo simples estão excluídos do perdão da Lei n.º 38-A/2023. Sendo esse o caso, a contradição poderá ser apenas aparente e o legislador presumidamente racional na realidade não deu com uma mão e tirou com a outra a graça do perdão.
É que se atentarmos melhor na norma da alínea g), do n.º 1 do artigo 7º da Lei n.º 38-A/2023, veremos que se trata de uma norma remissiva para o artigo 67º-A do Código de Processo Penal. Ora, esta norma só surgiu no nosso ordenamento jurídico e entrou em vigor 30 dias após a publicação da Lei n.º 130/2015, de 04/09. Foi esta norma, aditada em 2015, que veio definir, por remissão para o artigo 1º do Código de Processo Penal, como vítimas especialmente vulneráveis todas as vítimas de crimes de roubo, fossem estes simples ou qualificados.
Anteriormente a tal regra os crimes de roubo não eram classificados como cometidos sobre vítimas especialmente vulneráveis.
O crime dos presentes autos foi cometido anteriormente à entrada em vigor do artigo 67º-A do Código de Processo Penal.
Assim, o crime de roubo simples descrito nos autos, à data da sua prática e também do trânsito em julgado da condenação, não era considerado como cometido sobre vítima especialmente vulnerável, mas a partir de outubro de 2015 passou a ser. Coloca-se, pois, uma questão de aplicação de leis no tempo.
Para o direito penal a questão de aplicação das leis no tempo, deve ser resolvida de acordo com o princípio fundamental da não retroatividade da lei penal, consagrado no artigo 29º da Constituição e artigos 1º e 2º do Código Penal, com a especificação da proibição da retroatividade da lei desfavorável e aplicação da retroatividade da lei favorável ao agente do crime.
Para o direito processual penal, a regra geral é a da aplicação imediata da lei nova aos processos pendentes, sem prejuízo da validade dos atos realizados anteriormente, com apenas duas limitações: quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar   um agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou quebra da harmonia e unidade dos vários atos do processo (artigo 5º do Código de Processo Penal)[9].
Ora, tratando-se o artigo 67º-A de uma norma constante do Código de Processo Penal e por isso formalmente processual penal, dir-se-á a uma primeira aproximação que é de aplicação imediata aos processos pendentes, ficando resolvida a questão de não aplicação do perdão de penas ao condenado dos presentes autos, pois desde outubro de 2015 que a vítima do seu crime de roubo simples passou a ser uma vítima especialmente vulnerável. Só que, no direito por vezes as coisas são assim tão simples.
A doutrina tem vindo a assinalar que «no direito processual penal, há normas que condicionam, positivamente (pressupostos processuais que são verdadeiros pressupostos adicionais da punição: p. e., queixa e acusação particular) e negativamente (impedimentos processuais: p.e, a prescrição do procedimento criminal) a responsabilidade penal»[10].
A partir desta ideia de que há normas processuais que condicionam, seja positiva seja negativamente, a responsabilidade penal concluiu-se que o campo de aplicação do princípio da irretroativadade da lei penal desfavorável é mais amplo do que tradicionalmente definido, invadindo o campo processual penal, pois que estas normas embora formalmente processuais implicam com a responsabilidade penal do agente e assim devem ser consideradas como materialmente normas de direito substantivo ou com uma dupla natureza processual e material. São de dupla natureza, em parte substantiva, em parte processual, desde logo as normas relativas à queixa e acusação particular, prescrição do procedimento e da pena, amnistia (incluindo o perdão genérico),  e indulto. Há assim uma distinção entre normas processuais penais materiais e normas processuais formais[11] que deve ser feita para a aplicação da lei no tempo.
O princípio da proibição da retroatividade da lei penal, ligado ao princípio da legalidade da repressão, tutelando os direitos fundamentais das pessoas contra a arbitrariedade legislativa, judicial ou executiva na função punitiva, aplica-se ao direito penal em sentido amplo ou ordenamento jurídico-penal que abrange para além do direito penal substantivo, o direito processual, adjetivo ou formal, e o direito de execução das penas e medidas de segurança ou direito penal executivo[12].
Do direito penal em sentido amplo, subordinado ao princípio da proibição da retroatividade das leis desfavoráveis, só são excluídas as normas processuais penais que digam respeito aos atos de pura técnica processual, valendo aqui, e só aqui, o princípio da aplicação imediata da lei nova – tempus regit actum -[13].  
Esta regra da não retroatividade da lei penal desfavorável tem aplicação direta ao caso dos autos, pois a aplicação do artigo 67º-A do Código de Processo Penal agrava a posição processual ou a responsabilidade penal do arguido condenado nestes autos, excluindo um pressuposto negativo da puniçãoo direito de graça.  Não fora esse artigo, aparecido no ordenamento jurídico-penal, no direito penal em sentido amplo, em momento posterior à data do cometimento dos factos e a sua situação beneficiaria do perdão geral de penas da Lei n.º 38-A/2023 e veria a redução de um ano na pena que tinha de cumprir. A qualificação jurídica da vítima do crime de roubo simples como pessoa especialmente vulnerável não existia à data da prática dos factos e não haveria exclusão do perdão.
Trata-se, parece-nos certo, pois foi chamada para definir um dos pressupostos negativos da punição, no contexto da Lei n.º 38-A/2023, convertendo uma conduta em princípio, de acordo com a regra geral de aplicação do perdão a todas as penas até 8 anos (artigo 3º, n.º 1 da citada Lei), perdoável em não perdoável, de uma norma processual penal material. Sendo uma norma processual penal material, está sujeita ao princípio não retroatividade da lei penal desfavorável e não poderá portanto ser aplicável ao caso dos autos.
Chegados a este ponto, partindo dum caminho escuro e cinzento da letra da lei, julgamos, respeitando escrupulosamente a letra da lei, não buscando caminhos que fossem além da literalidade, ter deslindado o mistério da solução para o problema da antinomia normativa, da lei que dá e tira, concede e não concede o direito de graça a um mesmo crime. Com efeito, pedindo auxílio ao farol da Constituição e às boias sinalizadoras dos artigos 1º e 2º do Código Penal, ambos os textos feitos em boa altura, no tempo dos grandes Legisprudentes oriundos da Escola Penal e Constitucional Portuguesa, cremos ter conseguido tornar visível no texto legislativo desta lei de perdão e amnistia, as razões porque não se verifica a referida antinomia normativa no seu texto, a qual, afinal, era apenas aparente. Teremos conseguido a partir do texto da lei, auxiliados pela luz dos princípios fundamentais da legalidade e da não retroatividade da lei penal desfavorável, reconstruir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico e a racionalidade presumida de um legislador que não lhe permitiria numa mesma lei de apenas catorze artigos dar e tirar um perdão, conceder e não conceder o direito de graça a um mesmo crime a não ser que houvesse circunstâncias diferentes.
E, afinal de contas, havia-as: era o tempo em que os factos ocorreram.
Assim se compreende que relativamente aos crimes de roubo simples mais antigos, anteriores à entrada em vigor da Lei 130/2015, dado tratar-se de uma criminalidade de relativamente menor importância o legislador entendesse abrangê-los pela clemência do perdão de penas. Já quanto aos crimes de roubo simples mais recentes, terá entendido o legislador que não deveriam ser perdoados.
Também assim se compreende a necessidade de ‘repetição’ da exclusão de aplicação do perdão de penas aos crimes de roubo agravado anteriores a 2015, à entrada em vigor da Lei 130/2015, os quais, dado tratar-se de criminalidade mais grave deveriam ser excluídos do perdão, o que não aconteceria fazendo apelo apenas ao artigo 67º-A, pois que não lhes era aplicável a qualificação das vítimas especialmente vulneráveis, dada a não retroatividade desta qualificação desfavorável.
Vistas as coisas deste modo, afinal não se verifica a antinomia que à primeira vista parecia contagiar as referidas normas da Lei n.º 38-A/2023.

Concluindo, não merece censura a decisão do Juiz do processo na primeira instância que declarou perdoado, à pena aplicada ao recorrido, um ano de prisão, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º 1, da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, decisão que não merece censura e terá de improceder a pretensão do recorrente Ministério Público.
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3- DECISÃO.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso e, em consequência manter a decisão recorrida.

Sem custas.

Notifique
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Porto, 2024-02-21

William Themudo Gilman

Francisco Mota Ribeiro - [Voto vencido pelas seguintes razões:
A referência no art.º 7º, nº 1, al. g), da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08 (diploma que veio estabelecer um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude) às “crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro”, e especificamente a remissão assim efetuada para o art.º 67º-A do CPP, consiste em pura técnica legislativa (remissiva), visando-se com ela, não só “evitar repetição de normas”, mas sobretudo obter rigor na elaboração da própria norma constituenda, e no caso se poder afirmar um conceito de vítima especialmente vulnerável que já se encontra consolidado na ordem jurídica portuguesa, e que a Lei de amnistia adota ou importa, fazendo-o seu, sendo ademais apenas esse conceito, ou “dado normativo”, que é chamado a integrar a hipótese da norma, que não qualquer tipo de estatuição – cf. J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1987, p. 80 e ss. e 105 e ss., respetivamente, sobre a estrutura da norma jurídica, a diferença, assim como a relação, entre a hipótese e a estatuição, e a remissão enquanto expediente técnico-legislativo -, tendo em vista os efeitos ou consequências jurídico-normativas que ela, autónoma e inovadoramente visa introduzir no ordenamento jurídico, definindo o âmbito da amnistia e do perdão genérico, bem como dos seus efeitos para determinadas infrações anteriormente praticadas.
Ou seja, para a definição do âmbito da amnistia e do perdão genérico, serviu-se o legislador daquele “expediente técnico-legislativo” de molde a evitar ter de reproduzir, inutilmente, no caso na al. g) do nº 1 do art.º 7º, da Lei nº 38-A/2023, um extenso corpo de definições conceituais pré-existentes, previstas no art.º 67-A do CPP, e desse modo também contornar as dificuldades prático-hermenêuticas que pudessem advir da adoção de um conceito autónomo ou próprio de vítima especialmente vulnerável. E apenas isso.
Segundo os Professores JJ Gomes Canotilho e Vital Moreira, a amnistia é um “ato essencialmente político – ainda que sob a forma de lei”, e por isso “essencialmente insindicável quanto à sua oportunidade e quanto à sua extensão, bem como quanto à determinação dos seus efeitos” – sublinhado nosso - (J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume II, Coimbra Editora, 4ª edição revista, Coimbra, 2010, p. 292). Teleologicamente concordante com uma tal visão politico-constitucional do ato de amnistia é a doutrina do Acórdão Fixação de Jurisprudência nº 3/94, de 04/11, do Supremo Tribunal de Justiça (Diário da República n.º 255/1994, Série I-A de 1994-11-04), segundo o qual “A amnistia, bem como o perdão, devem ser aplicados nos precisos limites dos diplomas que os concedem, sem ampliações nem restrições. E na determinação do sentido dos mesmos diplomas não é admitida a interpretação extensiva, restritiva ou analógica, mas sim e só a interpretação declarativa.”.
Enquanto ato de graça que é, a amnistia e o perdão genérico, na definição e âmbito de aplicação que lhe são concretamente dados nas várias normas da Lei nº 38-A/2023, e nomeadamente pelas disposições conjugadas dos art.ºs 3º e 7º, na sua conformação jurídica própria, usando as palavras do Professor Jorge de Figueiredo Dias, apresentam-se como “contraface do direito de punir estadual” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 685.
Apresentando-se como “contraface do direito de punir”, não vislumbramos como seja possível entender-se que a adoção nela de determinadas normas possa ser considerada violadora do princípio da não retroatividade da lei penal, previsto no art.º 29º, nº 3 da CRP, em qualquer uma das suas dimensões: porque qualificasse como crime qualquer facto passado; ou levasse à aplicação a crimes anteriores de penas mais graves. Seria, aliás, impossível que o fizesse, por surge precisamente como reverso, o oposto, “do direito de punir estadual”, isto é, para em determinados termos e com uma determinada amplitude ou extensão, que só o legislador pode determinar, extinguir a responsabilidade criminal (art.º 127º, nº 1, do CP), surgindo assim, originariamente, como “pressuposto negativo da punição”, ou obstáculo à punição (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª Edição atualizada, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2021, p. 535) e não como seu fundamento ou agravação.
Os factos que a Lei pretende abranger já eram todos puníveis ou já se encontravam punidos antes da sua entrada em vigor.
Não existia à data em que esses factos foram praticados ou julgados, ou fosse em que data fosse, mesmo naquela em que entrou em vigor o art.º 67º-A do CPP (aditado pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro), ou seja 04 de outubro de 2015, qualquer princípio da confiança que importasse salvaguardar, isto é com o sentido de que “o cidadão deve poder confiar em que aos seus atos, praticados de acordo com as normas vigentes, se ligam os efeitos jurídicos duradouros previstos ou calculados com base nessas mesmas normas” (José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 1987, p. 311.
Disto isto, não vemos como se possa afirmar, como defende a decisão que obteve vencimento, que o princípio da proibição da retroatividade da lei penal imponha a não aplicação do art.º 7º, nº 1, al. g), da Lei nº 38-A/2013, ao estabelecer que Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei os condenados por crimes praticados contra crianças, jovens e vítimas especialmente vulneráveis, nos termos do artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, aprovado em anexo ao Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de fevereiro, aos factos praticados em data anterior a 04 de outubro de 2015, com o fundamento de que uma tal solução significaria a aplicação retroativa de uma lei penal, sendo certo que uma tal lei “penal”, em bom rigor, não existe, porque a que efetivamente se aplica é uma lei de graça, e, seja antes, seja depois dela, ou da data em que foi criada a norma cujos conceitos normativos ela ontogeneticamente importou ou adotou, de uma forma jurídico-normativa originária, não havia qualquer confiança que pudesse ser violada com a sua aplicação ou pelo menos com o sentido de poder vir a classificar como crime um facto anteriormente a ela cometido ou a aplicar uma sanção mais grave, ou um modo mais gravoso do seu cumprimento, ou malograr uma qualquer expectativa anteriormente criada da concessão de uma qualquer amnistia ou perdão futuros.
A complexificação que achamos marcar a fundamentação da decisão que obteve vencimento não encontra razão de ser na lei e cria um resultado normativo na interpretação que faz dos art.ºs 67º-A do CPP e 3º e 7º, nº 1, al. g), da Lei nº 38º-A/2023, que além do mais produz uma discriminação entre os condenados por factos praticados antes de 04 de outubro de 2015 e os condenados por factos praticados posteriormente àquela data, sem qualquer base legal, sendo certo que se fosse o legislador a criar uma norma com um tal resultado jurídico-normativo, ela correria o risco de ser considerada inconstitucional, por estabelecer uma diferenciação de tratamento que não se baseava em razões objetivas, razoáveis ou justificadas e desse modo atentaria contra o princípio da igualdade que a Constituição da República prevê no art.º 13º. Por exemplo, não se compreenderia por que razão alguém que cometesse um crime contra uma pessoa especialmente vulnerável no dia 03 de outubro de 2015 pudesse beneficiar do perdão sobre a respetiva pena, mas quem o praticasse nas mesmas circunstâncias, no dia 05 outubro de 2015 ou posteriormente já não.
Certeza e segurança jurídica na aplicação do direito também poderão estar em causa.
Razão por que, e pelos motivos já expressos no acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, de 10/01/2024 (Processo nº 485/20.9T8VCD.P2), em que fui relator e no qual também interveio, como Adjunta, a Exma. Sra. Juíza Desembargadora, ora 2ª Adjunta no acórdão contra o qual voto vencido, concederia provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público com a consequente revogação da decisão recorrida.

Paula Cristina Jorge Pires [Declaração de voto: Voto favoravelmente a presente decisão, sem que tal coloque em causa posição tomada anteriormente, uma vez que neste caso está também em causa o regime mais favorável ao arguido, por efeito do princípio da aplicação da Lei no tempo.
Circunstância que não ocorria em acórdão anteriormente votado favoravelmente e citado no voto vencido que antecede.]
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[1] Cfr. sobre esta matéria: Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 687-690; Ac. TC 347/2000 e Ac. TC 444/97, in https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000347.html, https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970444.html .
[2] Cfr. sobre estes princípios Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 71; e artigo 29º, n.º 4 da Constituição da República Portuguesa.
[3] https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20000347.html .
[4] Cfr. sobre estes aspetos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 685-687.
[5] Cfr. sobre esta questão da legisprudência, Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 8-9.
[6] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 190-191.
[7] Graças: favor, perdão, benevolência, …; in https://dicionario.priberam.org/gra%C3%A7as .
[8] Cfr. a decisão sumária do TRP de 05-01-2024, proc. 30/21.9SFPRT-B.P1 (William Themudo Gilman), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e2a957f45ab7486080258aa6003995ae?OpenDocument
[9] Cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 5ª ed., 2023, p. 32-33; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Primeiro Volume, Coimbra 1987, p.97 e 112.
[10] Cfr.  Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 210-211.
[11] Cfr.  Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 220-221.
[12] Cfr. sobre a noção ampla de direito penal, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, p. 6-7. Cfr. sobre a aplicação do princípio da não retroatividade a todo o direito repressivo, Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 221.
[13] Cfr.  Américo Taipa de Carvalho, Sucessão de Leis Penais, 1990, p. 222-223