INSOLVÊNCIA
APREENSÃO
MASSA INSOLVENTE
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
LISTA DE CRÉDITOS RECONHECIDOS E NÃO RECONHECIDOS
EXECUÇÃO FISCAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO
SENTENÇA
HIPOTECA
PENHORA
DEPÓSITO DO PREÇO
TITULARIDADE
EXECUTADO
TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADE
Sumário


I. O produto da venda dos bens penhorados em processo de execução, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar pago ou repartido entre os credores, para os efeitos do artigo 149.º, n.º 2, do CIRE, com a respectiva entrega.
II. O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgada num processo de execução, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.

Texto Integral


Acordam no pleno das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça

Vilaça & Salema – Construções Imobiliária, S.A., interpôs recurso para o pleno das secções cíveis para uniformização de jurisprudência sob a alegação de que o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça (STJ) em 11-10-2022, já transitado em julgado, no processo n.º 9160/15.5T8VNG-H.P3-A.S1, está em contradição, no domínio da mesma legislação e sobre duas questões fundamentais de direito, com os seguintes acórdãos proferidos anteriormente pelo STJ: com o acórdão proferido em 30-10-2014, no processo n.º 2308/11.0TBACB.C1.S1 (acórdão fundamento 1) e com o acórdão proferido em 30-06-2020, no processo n.º 877/16.8T8AMT-B.P1.S2 (acórdão fundamento 2).

Os fundamentos do recurso expostos nas conclusões foram os seguintes:

1. O presente recurso tem por objeto o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido nestes autos, em 11/10/2022, já transitado em julgado, doravante acórdão recorrido, o qual está em contradição com outros dois acórdãos deste mesmo Supremo Tribunal, anteriormente proferidos e já transitados em julgado, por referência à mesma questão fundamental de direito.

2. Todos os acórdãos em presença foram proferidos no domínio da mesma legislação, não radicando aí (numa eventual diversidade de enquadramento legislativo) o motivo da contradição, sabendo-se e sendo certo que a orientação firmada no acórdão recorrido não está de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

3. Há duas questões fundamentais de direito em que a dita contradição se manifesta e corporiza, no confronto com outros tantos acórdãos, doravante referidos por acórdão fundamento 1 e acórdão fundamento 2.

4. A primeira questão fundamental de direito sobre qual se verifica contradição de julgados consiste em saber se o produto da venda de bens penhorados efetuada em processo de execução fiscal, aí já transitada em julgado a sentença de verificação de créditos, constitui ainda um bem integrante do património do executado, depois declarado insolvente (declarado insolvente depois de realizada a venda no processo e execução fiscal), suscetível de ser apreendido nos termos da norma enunciada no n.º 2 do art.º 149.º do CIRE.

5. A esta questão respondeu o acórdão recorrido afirmativamente, considerando que, apesar da venda realizada no processo de execução fiscal ser anterior à declaração de insolvência e de se achar já transitada em julgado a sentença de verificação e graduação de créditos, o respetivo produto (o produto da venda), no caso de não ter sido ainda entregue aos credores (exequente e reclamantes), deve ser qualificado como bem do insolvente, antes executado, e apreendido, nos termos do n.º 2 do art.º 149.º do CIRE.

6. Já o acórdão fundamento 1, porém, deu a esta mesma questão fundamental de direito uma resposta radicalmente contraditória, como evidencia a leitura do seu sumário: “II - Tendo transitado em julgado a sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo de execução fiscal que correu termos contra os insolventes, ficou determinada a forma pela qual o produto da venda do prédio penhora seria repartido pelos credores. III - Assim, cabendo apenas ao competente serviço de finanças – na qualidade de fiel depositário do preço –, proceder à entrega material dos respectivos montantes, deve aquele processo considerar-se extinto e não pendente para efeitos de apreensão dos bens prevista no art. 85.º, n.º 2, do CIRE. (…) V - Vendido o imóvel e transitada em julgado a sentença de verificação e graduação de créditos, não podem as quantias provenientes da venda ser tidas ainda como património dos executados, devendo antes ser consideradas como propriedade dos credores que viram os créditos por si reclamados ali graduados e reconhecidos, pelo que, nesta situação, não pode ocorrer a apreensão para o processo de insolvência da quantia referente ao produto da venda, nos termos do art.º 85.º, n.º 2, do CIRE”.

7. Quanto a esta (a primeira) questão fundamental de direito, de modo a superar a contradição, deve uniformizar-se jurisprudência no sentido da orientação sufragada no acórdão fundamento 1, decidindo-se que o produto da venda, feita em processo de execução fiscal, é um bem que passa a ser dos credores, ou que, pelo menos, deixa de ser do devedor, não podendo, em qualquer caso ser apreendido no processo de insolvência que, posteriormente, contra ele se inicie e desenvolva.

8. A segunda questão fundamental de direito sobre qual se verifica contradição de julgados consiste em saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, em processo de execução, entretanto apenso ao processo de insolvência do devedor, antes executado, está ou não dispensado de o reclamar neste último.

9. A esta questão respondeu o acórdão recorrido negativamente, considerando que o titular de um crédito reconhecido e graduado em processo executivo por sentença transitada em julgado necessita de observar o regime insolvencial, não estando dispensado do ónus de reclamar esse crédito sobre o devedor insolvente.

10. O acórdão fundamento 2, porém, em flagrante contradição com o acórdão recorrido, dá uma resposta radicalmente diferente (no sentido afirmativo) à mesma questão fundamental de direito (a segunda das duas previamente anunciadas), nele se podendo ler que “tendo havido apensação do processo de execução fiscal, onde o crédito do recorrente estava reconhecido e graduado como privilegiado, estava este dispensado de proceder à sua reclamação formal no processo de insolvência”.

11. Quanto esta (a segunda) questão fundamental de direito, de modo a superar a contradição, deve uniformizar-se jurisprudência no sentido da orientação perfilhada pelo acórdão fundamento 2, decidindo-se que, tendo havido, como houve no caso julgado pelo acórdão recorrido, apensação do processo de execução fiscal ao processo de insolvência, o credor ali reconhecido e graduado, está dispensado de proceder à sua reclamação formal no processo de insolvência.

A massa insolvente de AA, ré no processo onde foi proferido o acórdão recorrido, respondeu. Na sua resposta alegou, em síntese, que não havia contradição entre os acórdãos postos em confronto pela recorrente, pelo que era de rejeitar o recurso para uniformização de jurisprudência, mas que, caso assim se não entendesse, pedia se julgasse improcedente o recurso, negando-se o pedido formulado pela recorrente.

O relator admitiu liminarmente o recurso, considerando:

• Que entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ proferido em 30-10-2014, no processo n.º 2308/11.0TACB.C1.S1, havia contradição no domínio da mesma legislação sobre a seguinte questão fundamental de direito: “saber se o art.º 149.º, 2, do CIRE, em sede de apreensão de bens para a massa insolvente determinada pelo n.º 1 desse art.º 149.º, conjugado com o art.º 85.º, 1 e 2, do CIRE, se aplica – e em que termos se aplica – ou não ao produto da venda de bens efectuada em processo de execução fiscal, uma vez transitada em julgado a correspondente sentença de verificação, reconhecimento e graduação de créditos, considerando-se ou não como um bem integrante do património do executado esse mesmo produto, declarado insolvente depois de realizada a venda desses bens;

• Que entre o acórdão recorrido e o acórdão proferido em 30-06-2020, no processo n.º 877/16.8T8AMT-B.P1.S2, havia contradição no domínio da mesma legislação sobre a seguinte questão fundamental de direito: “saber se a verificação e graduação de um crédito em processo executivo, por sentença transitada em julgado, dispensa o respectivo titular de observar o regime insolvencial de reclamação do seu direito de crédito no processo de insolvência do devedor antes judicialmente executado, atenta a sua pretensão de reconhecimento e graduação desse crédito e consequente pagamento no processo insolvencial”.

O Ministério Público emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado improcedente e de ser uniformizada jurisprudência no seguinte sentido:

1 - Nos termos combinados dos art.ºs 149.º, n.º 2 e 85.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CIRE, deve ter lugar a apreensão para a massa insolvente do produto da venda de bens penhorados realizada em execução fiscal anterior à declaração de insolvência e na qual já se encontravam reconhecidos e graduados créditos, por decisão transitada em julgado, considerando-se como um bem integrante do património do executado esse mesmo produto.

2 - O titular de um crédito reconhecido e graduado, por sentença transitada em julgado, em processo de execução, entretanto apenso ao processo de insolvência do devedor antes executado, não está dispensado de o reclamar neste último.

O processo foi com vista aos juízes que devem intervir no julgamento.


*

Síntese das questões a resolver no recurso:

1. Saber se estão verificados os pressupostos do recurso, visto que decorre do n.º 4 do artigo 692.º do CPC que a decisão do relator de julgar verificada a contradição jurisprudencial, invocada como fundamento do recurso para uniformização de jurisprudência, não vincula o pleno das secções cíveis;

2. No caso de resposta afirmativa à questão anterior, decidir sobre o sentido da uniformização da jurisprudência;

3. Decidir sobre a confirmação ou revogação do acórdão recorrido em função do sentido da uniformização da jurisprudência.


*

Os factos considerados provados pelo acórdão recorrido e pelos acórdãos fundamento foram os seguintes:

Factos considerados provados pelo acórdão recorrido:

1. A 8 de Janeiro de 2016 foi proferida sentença que declarou a insolvência de AA, transitada em julgado a 3 de Fevereiro de 2016.

2. Na sentença foi fixado o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.

3. A sentença foi publicitada, através de editais e anúncios, a 14 de Janeiro de 2016.

4. A 30 de Março de 2016, a administradora da insolvência apresentou a lista de credores reconhecidos e declarou não existirem credores não reconhecidos, juntando, ainda, o comprovativo do cumprimento do disposto no art.º 129.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.

5. A autora não reclamou créditos no processo de insolvência.

6. A autora não foi incluída na lista de credores reconhecidos e não impugnou tal lista.

7. Foi apreendido para a massa insolvente o montante de 2.892.518,72 euros, proveniente da execução fiscal n.º ..............46 (verba n.º 6 do auto de apreensão).

8. O montante referido na alínea anterior é proveniente da venda de imóveis, entre eles os artigos urbanos n.º 5501-F, G, K e O, bem como da penhora de vencimento e contas bancárias.

9. A autora, no âmbito da execução fiscal acima identificada, reclamou um crédito no montante de 142.407,88 euros, garantido por hipoteca voluntária, constituída, nomeadamente, sobre as fracções autónomas indicadas no número anterior.

10. Nos autos de verificação e graduação de créditos n.º 53/11.6..., por apenso à execução fiscal n.º ..............46, a 30 de Novembro de 2013, foi proferida sentença que verificou e graduou os créditos, incluindo o reclamado pela autora, nos termos constantes de fls. 49 verso a 67, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

Factos considerados provados pelo acórdão proferido em 30-10-2014, no processo n.º 2308/11.0TACB.C1.S1.

1. Nos autos de processo de execução fiscal n.º ..............90 e apensos, que correm termos pelo Serviço de Finanças de ..., em que é exequente a Fazenda Nacional e executados os ora insolventes, procedeu aquele serviço de finanças à venda, pelo preço de € 125.100,00 (cento e vinte e cinco mil e cem euros), do seguinte imóvel, propriedade do insolventes, a saber: “Venda do imóvel (Prédio urbano sito em ..., denominado “...”, freguesia de ..., concelho de ..., composto de casa de rés-do- chão, para habitação, com garagem e logradouro, inscrito na matriz predial da referida freguesia no artigo 3153 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., no nº 2014/...) ”.

2. O referido bem imóvel, que era propriedade dos ora insolventes, encontrava-se onerado com hipoteca e diversas penhoras, a favor de diversos credores, tendo sido proferida, em 10.12.2010, sentença de verificação e graduação de créditos no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria (nos Autos de Verificação e Graduação de Créditos n° 330/09.6...), transitada em julgado, mas ainda não foram pagos os credores.

3. Em 26 de Setembro de 2011 foi efectuada a conta nos autos identificados em 2 e, com o trânsito em julgado, foram os autos remetidos ao Serviço de Finanças de ..., em 30 de Novembro de 2011.

4. Por sentença proferida no dia 17 de Novembro de 2011, transitada e julgado, foi decretada a insolvência de BB e CC.

Factos considerados provados pelo acórdão do STJ proferido em 30-06-2020, no processo n.º 877/16.8T8AMT-B.P1.S2:

1. Da lista de credores reconhecidos, elaborada pelo administrador da insolvência junta aos autos em 15/09/2016 e inserta a fls. 3 e verso, consta o crédito do BCP reclamado e reconhecido como comum no valor global de € 51.202,69 [€ 50.266,41 de capital e € 936,28 de juros].

2. A insolvência foi decretada por sentença de 06/07/2016 e, como consequência da mesma, determinado, para além do mais: “(…) a apreensão, para imediata entrega ao administrador(a) da insolvência, dos elementos da contabilidade do(a) devedor(a) e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no nº 1 do artº 150º do CIRE;” Bem como foram os credores advertidos “(…) de que devem comunicar prontamente ao(à) administrador(a) da insolvência as garantias reais de que beneficiem”.

3. Em assembleia de credores realizada em 07/09/2016 [à qual não compareceram nem insolvente nem credores] foi pelo AI informado: “ter conhecimento que terá sido vendido um imóvel pertencente ao insolvente no âmbito de uma execução fiscal. O Sr. Administrador de Insolvência informou ainda ter já solicitado ao serviço de Finanças competente a transferência do produto dessa venda para a conta da massa insolvente, tendo recebido em resposta o ofício que no dia de hoje juntou aos autos.” E perante tal informação foi proferido despacho a determinar: “Atendendo ao que resulta do requerimento apresentado pelo Sr. Administrador de Insolvência, no dia de hoje, e os documentos com o mesmo juntos, mostra-se comprovada a venda no âmbito de uma execução fiscal de um imóvel pertencente ao aqui insolvente, o qual foi adjudicado em 19/01/2016. Resulta ainda do ofício remetido pela Autoridade Tributária e Aduaneira que o produto da venda ainda não terá sido distribuído pelos credores que hajam apresentado reclamação no âmbito de tal execução fiscal e, assim sendo, impõe-se que o produto da venda em causa seja transferido para a conta da massa insolvente identificada no requerimento do Sr. Administrador de Insolvência que antecede aberta no Novo Banco. Mais se impõe a avocação de todos os processos de execução fiscal pendentes contra o insolvente, que serão apensados aos presentes autos, ao abrigo do disposto no art.º 180.º do Código de Procedimento e Processo Tributário e que igualmente se determina. Devendo o presente despacho ser notificado à Autoridade Tributária e Aduaneira competente e concedendo-se um prazo de 30 dias para ser efetuada a transferência em causa, após o que deverá o Sr. Administrador de Insolvência informar os autos, se a mesma foi realizada, no prazo de 10 dias findo aquele prazo.”

4. Em 15/09/2016 foi solicitado nos autos principais ao processo de execução fiscal n.º ..............70 a transferência para a conta da massa insolvente do produto da venda no mesmo ocorrido.

5. Em 11/10/2017, o AI juntou, ao apenso A, o auto de apreensão do produto da venda ocorrida no processo de execução fiscal nº ..............70, no valor de € 56.200.00 (vide fls. 7/8 destes autos).


*

I)

Decisão sobre a verificação dos pressupostos do recurso.

Na resposta a esta questão, importa tomar em consideração o disposto nos artigos 688.º (sobre os fundamentos do recurso), 689.º, n.º 1 (prazo para a interposição) e 690.º, n.ºs 1 e 2 (instrução do requerimento), todos do CPC.

O recurso foi interposto dentro do prazo legal e foi instruído com cópia dos acórdãos anteriormente proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, com os quais alegadamente o acórdão recorrido se encontrava em oposição.

Os fundamentos do recurso também estão verificados. Vejamos.

O artigo 688.º do CPC, sob a epígrafe fundamento do recurso, dispõe:

1. As partes podem interpor recurso para o pleno das secções cíveis quando o Supremo Tribunal de Justiça proferir decisão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito;

2. Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior com trânsito em julgado, presumindo-se o trânsito;

3. O recurso não é admitido se a orientação perfilha no acórdão recorrido estiver de acordo com a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

Decorre do preceito acabado de transcrever que o recurso para uniformização de jurisprudência pressupõe:

• Que o Supremo Tribunal de Justiça profira acórdão que esteja em contradição com outro anteriormente proferido pelo mesmo tribunal;

• Que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação;

• Que ambos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito;

• Que o acórdão anteriormente proferido pelo Supremo (acórdão fundamento) tenha transitado em julgado, sendo de presumir o trânsito;

• Que a orientação perfilhada no acórdão recorrido não esteja de acordo com jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

O Supremo Tribunal de Justiça tem precisado, em várias decisões, o sentido e o alcance dos fundamentos do recurso para uniformização de jurisprudência. Assim, no acórdão proferido em 14-07-2016, no processo n.º 536/14.6TVLSB.L1.S1-A, publicado em www.dgsi.pt., precisou-se que, para se estivesse em presença de um conflito jurisprudencial relevante para efeitos do recurso, era indispensável que as “soluções jurídicas, acolhidas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento - e que, segundo o recorrente se encontram em invocada oposição - tenham uma mesma base normativa, correspondendo a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito…“.

Isso implicava, ainda segundo o mesmo acórdão, remetendo nesta parte para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 2-10-2014, no processo n.º 268/03.0TBVPA.P2.S1-A, publicado também em www.dgsi.pt.:

Que as soluções em conflito teriam de corresponder a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se por isso no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental: este requisito implica, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão para os litígios que cumpria solucionar se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica, não integrando contradição o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respectiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

Que as soluções jurídicas conflituantes deviam ter na sua base situações materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em consideração a natureza e teleologia dos específicos interesses das partes em conflito – sejam análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto;

Que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assumisse ainda um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, ou seja, que integre a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto – não relevando os casos em que se traduza em mero obter dictum ou num simples argumento lateral ou coadjuvante de uma solução já alcançada por outra via jurídica.

Ainda segundo o mesmo acórdão, estavam fora da contradição jurisprudencial tida em vista pelo n.º 1 do artigo 688.º do CPC, as seguintes situações:

Quando as concretas soluções alcançadas pelo STJ, num caso e no outro, radicassem no apelo a normas, figuras ou institutos jurídicos perfeitamente diversificados e autonomizáveis – não representando, por isso, as soluções em alegada oposição interpretações normativas efectivamente conflituantes;

Quando a diversidade de soluções jurídicas alcançadas para a composição dos interesses em litígio, num e no outro caso, assentasse em diferenciações relevantes da matéria litigiosa, decorrendo a solução adoptada no acórdão recorrido inteiramente de especificidades, particularidades ou peculiaridades da matéria de facto subjacente ao litígio que, só por si, justifiquem a adopção de solução diversa – ou seja, não há conflito jurisprudencial quando o modo de composição de certo litígio tiver passado, não por interpretação conflituante de um mesmo regime normativo, mas pela ponderação de especificidades factuais que, na óptica do interesse das partes, não possam deixar de revelar para a forma como o litígio deve ser justamente composto pelos tribunais.

Interpretado o n.º 1 do artigo 688.º do CPC com o sentido e o alcance expostos e considerando as questões decididas nos acórdãos em confronto, a legislação ao abrigo do qual foram resolvidas e o sentido com que o foram, é de concluir que o acórdão recorrido está em contradição com os dois acórdãos anteriormente proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça, indicados pela recorrente, no domínio da mesma legislação e sobre as mesmas questões fundamentais de direito. Vejamos.

Comecemos pela contradição entre o acórdão recorrido e o proferido em 30-10-2014, no processo n.º 2308/11.0TBACB.C1.S1.

O acórdão recorrido tem na sua origem uma acção para separação e restituição de bens (art.º 146.º do CIRE) proposta por apenso a um processo de insolvência. A autora pedia:

a) Se separasse da massa insolvente o produto da venda de duas fracções, realizada no âmbito do processo de execução fiscal, que deveria obrigatória e legalmente constar como património autónomo;

b) Caso assim não se entendesse, se declarasse inconstitucional a norma do art.º 149.º/2 do CIRE por ofensa ao direito de propriedade, consagrado no art.º 62.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa;

c) Caso assim não se entendesse, se ordenasse à administradora da insolvência que, por conhecer os créditos da autora, tinha o dever de os reconhecer ou, no mínimo, de elaborar a lista dos créditos não reconhecidos, pelo menos referente à autora, indicando quais os motivos do não reconhecimento dos créditos e ser a autora de tal notificada;

d) Para garantir que a decisão no processo pudesse ter eficácia prática, que não fosse efectuado qualquer pagamento com o produto da venda das fracções, que se encontrava depositado à ordem do processo de insolvência.

A acção foi julgada improcedente na 1.ª instância.

A autora interpôs recurso de apelação, identificando como questões a resolver:

• O estatuto jurídico do produto da venda de bens penhorados efectuada em execução fiscal antes da declaração de insolvência do devedor;

• Saber se a administradora da insolvência devia ter reconhecido o crédito da recorrente, mesmo não tendo sido reclamado ou, se pelo menos, devia tê-lo incluído numa lista de crédito não reconhecidos;

• A inconstitucionalidade normativa do artigo 149.º, n.º 2, do CIRE.

O recurso foi julgado improcedente.

Inconformada com o acórdão da Relação, a autora interpôs recurso de revista para o STJ. Fundamentou o recurso no regime do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE (com base em oposição jurisprudencial com acórdãos proferidos pelo STJ e pelas Relações relativamente a três questões de direito) e na ofensa de caso julgado.

O recurso com fundamento na ofensa de caso julgado foi julgado improcedente.

Remetidos os autos à formação prevista no n.º 3 do artigo 672.º do CPC, foi proferida decisão que admitiu o recurso de revista excepcional.

As questões a resolver no recurso eram as seguintes:

• Saber qual o âmbito de aplicação do art.º 149.º, 2, do CIRE, em face do produto da venda de bens penhorados e realizada em execução do insolvente e do momento dessa venda em relação à data da declaração de insolvência;

• Saber se o produto da venda de bens penhorados e efectuada em processo executivo antes da declaração de insolvência pode ou não integrar a “massa insolvente” e convocar o procedimento de apensação de acções pendentes e remessa contemplado pelo art.º 85º, 1 e 2, do CIRE;

• Saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, proferida em processo de execução, está ou não dispensado de reclamação desse crédito no processo de insolvência.

O acórdão recorrido respondeu a estas questões no seguinte sentido:

O produto da venda de bens penhorados efectuada em execução do insolvente, realizada antes da declaração de insolvência, constitui parte integrante do património do devedor à data da declaração de insolvência, nos termos dos artigos 36.º, n.º 1, alínea g), e 46.º, n.º 1, do CIRE, para efeitos de apreensão para a massa insolvente – este sim o património autónomo constituído em benefício dos credores da insolvência - de acordo com o artigo 149.º, n.º 1, do CIRE;

Só assim não é se o produto dessa venda haja sido entregue (=pago) aos credores exequentes e/ou aos credores preferentes reconhecidos e graduados na execução, ou dividido ou rateado entre eles para o mesmo efeito. Nesta situação factual e objectiva não se aplica o artigo 149.º, n.º 2, ou seja, a entrega do produto da venda em sede de pagamento e respectivo ingresso na esfera jurídica desses credores (do processo executivo), escapando ao poder de apreensão da insolvência”;

O titular de um crédito reconhecido e graduado em processo executivo por sentença transitada em julgado, proferida em processo de execução, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência do devedor para aí obter, na medida do possível, a sua satisfação.

Estas respostas ditaram a negação da revista e a confirmação do acórdão recorrido.

O acórdão proferido no processo n.º 2308/11.0TBACB.C1.S1. em 30-10-2014 [acórdão fundamento 1] teve na sua origem a seguinte situação.

No âmbito de um processo de insolvência, o administrador da insolvência requereu a notificação de um serviço de finanças no sentido de lhe entregarem a ele, administrador, uma determinada quantia proveniente da venda, em processo de execução fiscal, de um imóvel pertencente aos insolventes (executados no processo de execução), com vista ao seu depósito na conta da massa insolvente. Alegava o administrador que, apesar de, no processo de execução fiscal, já ter sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, os credores ainda não haviam sido pagos, razão pela qual o produto da venda pertencia à massa insolvente.

O juiz da 1.ª instância indeferiu o pedido do administrador da insolvência.

A massa insolvente não se conformou com a decisão e interpôs recurso de apelação. O tribunal da Relação julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou a decisão da 1.ª instância, substituindo-a por decisão a ordenar a notificação do serviço de finanças para proceder à entrega ao administrador da insolvência do produto da venda do bem dos executados, entretanto declarados insolventes.

O Ministério Público e um credor dos insolventes não se conformaram com a decisão e interpuseram recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo se revogasse o acórdão e se mantivesse a decisão proferida na 1.ª instância.

O Supremo Tribunal de Justiça concedeu a revista e revogou o acórdão da Relação e repristinou a sentença proferida na 1.ª instância. As razões da decisão foram, em síntese, as seguintes:

• Uma vez que, na data em que foi declarada a insolvência dos executados, já havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos com trânsito em julgado no processo de execução fiscal, tal significava que já havia sido determinada a repartição do produto da venda pelos credores, encontrando-se, assim, finda a execução fiscal;

• O serviço de finanças competente, como fiel depositário do preço da venda do imóvel, mais não tinha que proceder à entrega material do produto da venda aos respectivos credores já graduados;

• Vendido o imóvel e feita a verificação e graduação dos créditos em data anterior à declaração de insolvência, as quantias resultantes da venda já não eram propriedade dos insolventes, mas sim dos credores que reclamaram o seu crédito naqueles autos.

A exposição acabada de fazer mostra que tanto no acórdão recorrido como no acórdão fundamento estava em causa a interpretação do n.º 2 do artigo 149.º, do CIRE, no segmento que versa sobre o pagamento e repartição do produto da venda entre os credores. Os acórdãos divergiram quanto à interpretação de tal segmento. Segundo o acórdão fundamento, o produto da venda dos bens penhorados devia considerar-se repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo de execução. O acórdão recorrido entendeu que só há lugar ao pagamento ou à repartição com a entrega do produto da venda aos credores.

Vê-se, assim, que à mesma questão de direito e no domínio da mesma legislação – artigo 149.º, n.º 2, do CIRE – os acórdãos em questão deram respostas contraditórias entre si.

As respostas dadas foram decisivas para o sentido da decisão dos recursos. Com efeito, foi por entender que o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal não era de considerar repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, proferida no processo execução fiscal, que o acórdão recorrido julgou improcedente uma das pretensões do recorrente e confirmou a decisão recorrida. E foi por entender precisamente o contrário que o acórdão fundamento concedeu a revista e substitui o acórdão recorrido por decisão a ordenar o levantamento da apreensão do produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal.

Pelo exposto é de concluir no sentido de que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento 1 há contradição jurisprudencial relevante para fundamentar o recurso de uniformização da jurisprudência, quanto à questão de saber se o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal é de considerar repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, proferida no processo execução fiscal, ou apenas é de considerar repartido com a entrega desse produto aos credores.

Passemos agora à contradição entre o acórdão recorrido e o proferido em 30 de Junho de 2020, no processo n.º 877/16.8T8AMT-B.P1.S2, [acórdão fundamento 2].

Este último acórdão teve os seguintes antecedentes processuais.

Num processo de insolvência, num momento em que já havia sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, foi apreendido para a massa insolvente o produto da venda de um bem penhorado em processo de execução fiscal. Um dos credores da insolvência requereu:

a. Se ordenasse ao administrador da insolvência a elaboração da lista de créditos reconhecidos de acordo com a apreensão efectuada em 19-10-2017,

b. Se proferisse nova sentença de graduação de créditos que contemplasse o produto da venda apreendido e procedesse à graduação dos respectivos créditos;

c. Se reconhecesse ao requerente o crédito no montante de 106 456,39 euros, o qual devia ser reconhecido e graduado como crédito garantido sobre o produto da venda apreendido.

Para o efeito alegou:

• Que lhe não havia sido dado conhecimento da apreensão, a favor da massa, daquele produto da venda, só se apercebendo da apreensão aquando da notificação do mapa do rateio final, motivo pelo qual na reclamação de créditos que apresentou na insolvência atribuiu aos seus créditos natureza comum;

• Que a sentença de verificação e graduação de créditos proferida na insolvência não graduou os créditos sobre o produto da venda do imóvel;

• Que reclamou na execução fiscal os seus créditos e em tal execução foi-lhe adjudicado o referido imóvel pelo valor de 56 200,00 euros, que depositou nos autos, razão pela qual não devia ter sido apreendido para a massa insolvente porque não é crédito desta, mas sim propriedade do requerente;

• Que, em 28-03-2016, já havia sido proferida no processo de execução fiscal decisão relativa à graduação de créditos, por força da qual o requerente teria a receber o valor de 55 181,07, razão pela qual, quando reclamou os créditos no processo de insolvência, limitou-se a reclamar o remanescente em dívida, após a adjudicação do imóvel;

• Que, tendo o produto da venda do imóvel sido apreendido para a massa insolvente, não podia o direito do credor hipotecário ser considerado comum, na medida em que os direitos reais se transferem para o produto da venda, nos termos do artigo 824.º do Código Civil;

• Que esta situação obrigava à alteração do crédito do requerente, quer quanto ao valor quer quanto à qualificação, por via de hipotecas constituídas antes da venda executiva, devendo ser considerado o valor de 106 456,39 euros, que corresponde ao montante em dívida antes da adjudicação do imóvel, já que o requerente não foi pago no processo de execução fiscal;

• Que esta alteração das circunstâncias superveniente, quer à elaboração da lista a que aludia o artigo 129.º do CIRE quer à sentença de verificação e graduação de créditos, implicava corrigir as mesmas em conformidade com o auto de apreensão.

A primeira instância, pronunciando-se sobre o requerimento, decidiu o seguinte sentido:

• Em complemento da sentença de verificação e graduação de créditos, proferiu nova decisão que graduou os créditos já reconhecidos pela sentença anterior para serem pagos pelo produto da venda do imóvel, entretanto apreendido para a massa insolvente;

• Indeferiu a pretensão do credor no sentido de lhe ser reconhecido um crédito garantido no montante de 106 456,39 euros para ser pago pelo produto da venda do imóvel.

O credor interpôs recurso para a Relação, que foi julgado improcedente.

O credor interpôs recurso de revista excepcional, pedindo a revogação do acórdão da Relação e a substituição dele por decisão que reconhecesse os privilégios invocados pelo recorrente ou, caso assim se não entendesse, se determinasse que o tribunal a quo notificasse o administrador da insolvência para rectificar a lista do artigo 129.º do CIRE, em conformidade.

O acórdão identificou como questão a resolver, no recurso, a de saber se, apreendido a favor da massa insolvente o produto da venda de um imóvel em execução fiscal, o credor hipotecário aí graduado carecia de apresentar nova reclamação do crédito ou se o administrador oficiosamente devia promover a alteração da lista de créditos em consonância com as garantias já reconhecidas na execução fiscal e, se o não fizesse, devia o juiz ordenar que o fizesse e graduar o crédito de harmonia com a garantia que foi reconhecida.

Na resposta a esta questão, o acórdão entendeu, em síntese, o seguinte:

• Que decorria do disposto no n.º 1 do artigo 129.º do CIRE que o administrador da insolvência tinha o dever de incluir na lista de créditos reconhecidos todos os créditos de que tivesse conhecimento por qualquer forma, isto é, mesmo que não tivessem sido reclamados pelo respectivo devedor;

• Que, por sua vez, o juiz tinha o dever oficioso de corrigir os erros manifestos de que padeciam as listas de créditos, não podendo limitar-se a homologar a lista tal como apresentada pelo administrador; por outras palavras a falta de impugnação da lista não tinha efeito cominatório;

• Que tendo havido apensação ao processo de execução fiscal, onde o crédito do recorrente estava reconhecido e graduado como privilegiado (nota: na realidade, o crédito fora reconhecido e graduado como garantido – artigo 46.º, n.º 4, do CIRE), estava este dispensado de proceder à sua reclamação formal no processo de insolvência, porquanto, sendo a apreensão da quantia obtida com a venda do imóvel posterior à lista de credores e à sentença que a homologou e graduou os créditos, por força da transmissão do direito real de garantia (hipoteca) para o produto da venda do imóvel (artigo 824.º, n.º 3 do CC), impunha-se ao administrador da insolvência promover a alteração às listas de credores e à graduação de créditos anteriormente proferida de acordo com a nova realidade, ou seja, considerando o crédito do recorrente sobre o produto da venda executiva como privilegiado e graduando no lugar que, nos termos legais lhe compete.

Com esta fundamentação, foi concedida a revista e determinada a baixa dos autos à 1.ª instância para aí ser proferida nova sentença de verificação e graduação de créditos que contemplasse o crédito do recorrente com a garantia que, na sequência da caducidade da hipoteca sobre o imóvel vendido na execução fiscal, incidisse sobre o produto da venda apreendido a favor da massa insolvente.

A exposição acabada de fazer mostra que o credor do acórdão recorrido e o do acórdão fundamento não estão exactamente na mesma situação em relação aos processos de insolvência, pois enquanto aquele não reclamou o seu crédito na insolvência, este reclamou aí parte do seu crédito. No entanto, as suas pretensões tinham em comum o seguinte:

• Ambas visavam o reconhecimento, no processo de insolvência, de créditos que não reclamaram - o credor do acórdão recorrido quer ver reconhecido a totalidade do seu crédito; o credor do acórdão fundamento parte do seu crédito;

• Ambas invocavam o facto de os créditos terem sido reconhecidos em processo de execução fiscal e a circunstância de este ter sido apenso ao processo de insolvência;

• Ambas tinham sido determinadas pelo facto de o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal ter sido apreendido para a massa insolvente.

Estes aspectos comuns fizeram com que ambos os acórdãos se tenham pronunciado de modo expresso sobre a questão de saber se, tendo havido apensação ao processo de insolvência de um processo de execução fiscal, onde um credor da insolvência viu o seu crédito reconhecido e graduado, mas que aí não foi pago em virtude de o produto da venda dos bens penhorados ter, entretanto, sido apreendido para a massa insolvente, estava esse credor dispensado de reclamar o seu crédito no processo de insolvência, se nele quisesse obter o pagamento.

Esta questão – que é claramente de direito - obteve respostas diametralmente opostas no acórdão recorrido e no acórdão fundamento: o primeiro deu resposta negativa; o segundo respondeu afirmativamente.

As respostas dadas foram decisivas para o desfecho dos recursos, pois foram elas que determinaram o sentido da decisão final. No acórdão recorrido, a resposta negativa determinou se negasse a concessão da revista; no acórdão fundamento, a resposta positiva levou à revogação da decisão recorrida e à concessão da revista.

As respostas divergentes verificaram-se no domínio da mesma legislação, concretamente dos artigos 85.º, n.º 2, 90.º. 128.º, n.ºs 1 e 5 e 129.º, n.º 1, todos do CIRE.

Pelo exposto é de concluir no sentido de que entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento há contradição jurisprudencial relevante para fundamentar o recurso de uniformização da jurisprudência, quanto à questão de saber se, tendo havido apensação ao processo de insolvência de um processo de execução fiscal, onde um credor da insolvência viu o seu crédito reconhecido e graduado, mas que aí não foi pago em virtude de o produto da venda dos bens penhorados ter, entretanto, sido apreendido para a massa insolvente, estava esse credor dispensado de reclamar esse crédito no processo de insolvência, se nele quisesse obter o pagamento.

Assente que está verificada a contradição jurisprudencial que constitui fundamento do recurso para uniformização de jurisprudência, cabe decidir em que sentido proceder à uniformização.

II)

Decisão sobre o sentido da uniformização da jurisprudência:

Sentido da uniformização da jurisprudência quanto à questão de saber se o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal é de considerar repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, proferida no processo de execução fiscal, ou apenas é de considerar repartido com a entrega desse produto aos credores.

Como resulta do acima exposto, o acórdão recorrido respondeu a esta questão no sentido de que o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal é de considerar repartido entre os credores com a entrega desse produto aos credores, remetendo para o que já havia sido decidido sobre esta questão no acórdão do STJ, proferido em 20-05-2014, no processo n.º 3055/11.9TBBCL-N.G1.S1, e no acórdão deste mesmo tribunal proferido em 27-10-2020, no processo n.º 1383/18.1TBOAZ-B.P1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Os principais fundamentos da decisão foram os seguintes:

• A letra da lei era clara no sentido de que o legislador entendeu que, apesar de o produto da venda executiva de imóveis do insolvente estar afecto àquela finalidade (satisfação do crédito exequendo e/ou dos credores preferentes), a circunstância de ser declarada a insolvência, altera esse fim, passando o produto da venda a integrar a finalidade da declaração de insolvência, ou seja o de permitir, em execução universal, a liquidação do património do devedor e a repartição do produto obtido pelos credores (artigo 1.º do CIRE);

• No mesmo sentido apontava o n.º 1 do artigo 88.º do CIRE, ao prescrever que a declaração de insolvência determinava a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obstar à instauração ou ao prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência;

• Como o produto da venda pertence à insolvente – pois só assim se compreende que se houver saldo da satisfação do crédito exequente e dos créditos preferentes, aquele reverta para o executado – esse produto tem de ser apreendido para a massa, ficando prejudicada a finalidade decorrente da execução para se sobrepor a essa um fim superior na óptica do legislador;

• O artigo 180.º, n.º 1, do Código de Processo Tributário determina que, proferida decisão judicial a decretar a falência, serão sustados os processos de execução fiscal que se encontrem pendentes. Sendo assim, não podia a justiça fiscal dar pagamento ao exequente e/ou aos credores preferentes, pelo produto da venda, o que apenas se compreende se se entender que esse produto passa a estar afecto à satisfação dos credores da insolvência, em prejuízo dos credores exequentes e/ou credores preferentes na execução.”;

• Pela interpretação conjugada dos números 1 e 2 do art.º 149.º do CIRE concluiu-se, claramente, que o legislador considera o produto da venda ainda como património do executado (posteriormente declarado insolvente) e, por isso, como um bem integrante da massa insolvente. E, como decorre do n.º 2 desse artigo, o produto da venda só passará da esfera jurídica do executado/insolvente para a dos credores (exequente ou reclamantes de créditos na execução) através do ato do pagamento. Ou por via da repartição entre os credores do produto da liquidação, na hipótese de cessão dos bens aos credores, nos termos do art.831º do CC, ex vi do art.149º, n.1, al. b) do CIRE (…).

O acórdão fundamento – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-10-2014, proferido no processo n.º 2308/11.0TACB.C1.S1 – decidiu, com a fundamentação acima exposta, no sentido de que o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal era de considerar repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos, proferida em tal processo.

A recorrente pede se uniformize a contradição jurisprudencial no sentido indicado pelo acórdão fundamento não só pelas razões nele expostas, mas também com base nos seguintes argumentos:

• Desde logo, era essa a única solução que, por um lado, desincentivava a fraude e o risco de conluio e que, por outro lado, protegia os credores da lentidão da máquina da administração fiscal e judiciária;

• O que importava, o que era determinante, quanto à determinação do momento em que os bens executados deixavam de pertencer ao devedor, quando houvesse vários credores concorrendo na execução, era, após a definição jurisdicional, através da sentença de graduação, da parte que cabe a cada um, a consumação do ato jurídico da venda executiva e não o momento do simples ato material do pagamento, que é um ato absolutamente devido;

• Ao contrário, por conseguinte, do que se dizia no acórdão recorrido, a recorrente, quando foi declarada a insolvência, não era já credora da insolvência, mas, isso sim, do Estado, depositário do produto da venda [art.º 256.º/1-e) do CPPT], que passou a responder pela satisfação dos créditos verificados e graduados.

Apreciação:

O conflito de jurisprudência que importa solucionar tem, no seu centro, a interpretação do n.º 2 do artigo 149.º do CIRE.

O artigo 149.º versa sobre a apreensão dos bens após ser proferida a sentença declaratória da insolvência.

O n.º 1 estabelece a regra de que, proferida sentença declaratória de insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente.

Massa insolvente que, segundo o n.º 1 do artigo 46.º do CIRE, integra, salvo disposição em contrário, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo.

O n.º 1 do artigo 149.º não se limita, no entanto, a estabelecer a regra da apreensão dos bens integrantes da massa. Precisa que os bens que integravam o património do devedor à data da declaração de insolvência são apreendidos no processo de insolvência, ainda que tenham sido:

a. Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva dos que hajam sido apreendidos, por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social;

b. Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil.

O preceito está directamente relacionado com a alínea g) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE, segundo a qual, na sentença que declarar a insolvência, o juiz decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º.

A regra de que são apreendidos os bens que integravam o património do devedor à data da declaração de insolvência, ainda que tenham sido arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, está em conformidade com outras disposições legais, nomeadamente:

• Com o n.º 1 do artigo 1.º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores;

• Com n.º 1 do artigo 81.º do mesmo diploma, segundo o qual sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência;

• Com o n.º 1 do artigo 88.º do mesmo diploma, segundo a qual a declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente e obsta à instauração ou prosseguimento de qualquer acção executiva intentada pelos credores da insolvência;

• Com o n.º 2 do artigo 85.º do mesmo diploma, segundo a qual o juiz requisita ao tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação ao processo de insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.

A regra enunciada no n.º 1 do artigo 149.º do CIRE não é nova.

O diploma que precedeu o CIRE – o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência [CPEREF] aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril – estabelecia no n.º 1 do artigo 175.º que, proferida a sentença declaratória da falência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens susceptíveis de penhora, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social.

Por sua vez, o diploma que precedeu o CPEREF – o Código de Processo Civil de 1961 – estabelecia no n.º 1 do artigo 1205.º que, declarada a falência, procede-se imediatamente à apreensão da escrituração e de todos os bens do falido, embora estes se achem arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, ficando sempre salvos os direitos dos credores e os de legítima retenção.

Estavam, no entanto, subtraídos à apreensão do processo de falência os bens que tivessem sido penhorados pelas execuções fiscais ou pela Companhia Geral do Crédito Predial (parte final do n.º 2 do artigo 1205.º).

O n.º 2 do artigo 149.º do CIRE – preceito que está na origem da divergência jurisprudencial – vai mais longe na precisão ou concretização dos bens que são apreendidos, estabelecendo o seguinte: “se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso este ainda não tenha sido pago aos credores ou entre eles repartido”.

O preceito tem em vista os casos em que, aquando da sentença declaratória de insolvência, os bens do devedor já tenham sido vendidos em processo de execução ou no âmbito da cessão de bens aos credores e responde à questão de saber qual o destino do produto da venda. A resposta que dá é a seguinte:

• Se, quando é proferida a sentença declaratória de insolvência, o produto da venda ainda não tiver sido pago aos credores ou entre eles repartido, o produto será apreendido para a massa insolvente;

• Se já tiver sido pago ou repartido entre os credores, não há lugar à apreensão para a massa insolvente.

Estas soluções têm subajcente o entendimento de que o produto da venda dos bens do devedor (quer se trate de venda em execução ou de venda em cumprimento da cessão de bens aos credores), enquanto não for pago ou distribuído pelos credores faz parte do património daquele (devedor). E, para efeitos do artigo acima indicado, o produto da venda só é pago ou repartido pelos credores quando lhes é entregue; o pagamento e a repartição não ocorre com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo executivo. Este é o sentido do preceito que observa os critérios de interpretação da lei. Vejamos.

A sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo de execução tem, no essencial, duas finalidades. A primeira é a de declarar se os credores são titulares do crédito que reclamaram e se tal crédito goza das garantias reais que invocaram. A segunda é a de graduar esses créditos com o do exequente para serem pagos pelo produto da venda dos bens penhorados (artigos 788.º, n.º 1, e 791.º, ambos do CPC).

Graduar um crédito significa, para usarmos as palavras de Alberto dos Reis, “estabelecer a ordem segundo a qual os credores hão-de ser pagos pelo produto da venda de cada um dos bens penhorados…” [Processo de Execução Volume 2.º, Reimpressão, Coimbra Editora, Lda, 1982, página 408].

A verificação e a graduação dos créditos pelo produto da venda dos bens penhorados têm a sua razão de ser nos números 2 e 3 do artigo 824.º do Código Civil e nos números 1 e 2 do artigo 604.º do mesmo diploma.

Têm a sua razão de ser nos números 2 e 3 do artigo 824.º porque, na venda em processo de execução, os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem e os direitos de terceiro que não acompanham a coisa vendida transferem-se para o produto da venda. Esta solução justifica-se como escreve Rui Pinto, citando Anselmo de Castro, para “evitar a depreciação do valor dos bens que resultaria de uma alienação com a subsistência dos encargos, em benefício tanto do exequente como do executado” [Manual da Execução e Despejo, 1.ª Edição, Coimbra Editora, página 950].

Daí que o processo de execução comporte uma fase destinada a chamar ao processo os credores que gozem de garantia real sobre os bens penhorados, com o propósito de reclamarem, pelo produto destes, o pagamento dos respectivos créditos [artigos 784.º a 794.º do Código de Processo Civil].

Têm a sua razão de ser nos n.ºs 1 e 2 do artigo 604.º do Código Civil porque as garantias reais conferem preferências de pagamento pelo preço dos bens do devedor, sendo assim necessário, em caso de concurso dos créditos reclamados com o crédito do exequente, estabelecer a ordem de preferência dos pagamentos.

No plano dos efeitos, a sentença de verificação e graduação de créditos opera a transferência para o produto da venda das garantias de que gozavam os credores. Este efeito não é automático, querendo com isto dizer-se que os credores, titulares de direitos reais de garantia sobre os bens vendidos, não vêem os seus direitos transferidos para o produto da venda apenas por serem titulares de direitos reais de garantia. Os credores só beneficiam da transferência a que se refere o n.º 3 do artigo 824.º do Código Civil se reclamarem os seus créditos e se a sua reclamação for atendida. A transferência está, pois, sujeita a estas condições. Se alguma delas não se verificar, os direitos dos credores serão excluídos da transferência prevista no n.º 3 do artigo 824.º do Código Civil.

Já não constitui efeito da sentença de verificação e graduação a transferência da titularidade do produto da venda para os credores nela reconhecidos e graduados. A titularidade do produto da venda mantém-se no executado. Com efeito, é esta titularidade que explica:

• Que na hipótese de o produto exceder o necessário para pagar ao exequente e aos credores, o remanescente lhe será devolvido;

• Que, nos termos do n.º 1 do artigo 81.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, o remanescente do produto de quaisquer bens vendidos ou liquidados em processo de execução ou das importâncias nele penhoradas poderá ser aplicado no prazo de 30 dias após a conclusão do processo para o pagamento de quaisquer dívidas tributárias de que o executado seja devedor à Fazenda Nacional e que não tenham sido reclamadas nem impugnadas;

• Que, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, findo o prazo referido no número anterior, o remanescente será restituído ao executado.

O produto da venda só se transfere para a esfera jurídica dos credores com o pagamento. E o pagamento só se dá depois de liquidada a responsabilidade do executado. É a liquidação que irá determinar quanto irá receber cada credor reconhecido e graduado, pelo produto da venda dos bens penhorados, depois de pagas as custas da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução (artigo 541.º do CPC). Só depois desse apuramento é que o agente de execução ou a secretaria (consoante caiba ao agente de execução ou à secretaria efectuar as diligências do processo executivo – artigos 719.º, n.º 1, e 722.º, ambos do CPC) irá proceder ao pagamento aos credores. E com ele é que o produto da venda se transfere para a esfera jurídica dos credores.

Segue-se do exposto que o pagamento propriamente dito, ou seja, a transferência do produto da venda para a esfera jurídica dos credores, constitui ainda acto do processo de execução.

É por o pagamento constituir ainda acto do processo de execução que o artigo 793.º do CPC permite que qualquer credor obtenha a suspensão da execução, a fim de impedir os pagamentos, mostrando que foi requerida a recuperação de empresas ou a insolvência do executado.

Este preceito revela que, depois de proferida a sentença de verificação e graduação de créditos, depois de depositado o produto da venda dos bens penhorados e mesmo depois de o processo ir à conta para liquidação da responsabilidade do executado, ainda é processualmente admissível suspender a execução, com o fim de impedir os pagamentos aos credores com o produto da venda.

E se a insolvência vier a ser decretada ficarão suspensos o pagamento e quaisquer outras diligências executivas (n.º 1 do artigo 88.º do CIRE) e o juiz onde foi proferida a insolvência requisitará ao tribunal a remessa, para efeitos de apensação aos autos de insolvência, do processo no qual esteja depositado o produto da venda (n.º 2 do artigo 85.º do mesmo diploma).

Segue-se do exposto que o produto da venda dos bens penhorados conserva a qualidade de bem do executado até à transferência dele para a esfera jurídica dos credores. É certo que se trata de um bem que está afecto a uma finalidade especial: ao pagamento das custas da execução, do crédito exequendo e dos créditos reconhecidos e graduados para serem pagos por tal produto. Ainda assim, trata-se de um bem do executado.

Daí que seja de afirmar que, na hipótese de o produto da venda ainda não ter sido transferido para os credores, no momento em que é declarada a insolvência do devedor/executado, tal produto integra a massa insolvente, por aplicação do n.º 1 do artigo 46.º do CIRE. E fazendo parte da massa insolvente é de apreender, agora por aplicação do n.º 2 do artigo 149.º do CIRE.

É, assim, de concluir no sentido de que o pagamento e a repartição do produto da venda entre os credores tidos em vista pelo n.º 2 do artigo 149.º do CIRE não se dão com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos no processo executivo onde foi efectuada a venda; só se dão com a transferência desse produto para a esfera jurídica dos credores, mediante o pagamento por parte do agente da execução ou da secretaria.

A interpretação do preceito com o sentido exposto é o que tem melhor expressão na letra da lei. Como é sabido, a interpretação da lei tem como base e como limite a respectiva letra. A letra é a base visto que é por ela que começa a interpretação. É limite porque, segundo o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, a lei não poderá valer com um sentido que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. Socorrendo-nos das palavras de Manuel de Andrade: “… a letra da lei não servirá apenas para traçar o quadro dos sentidos legais possíveis. Compete-lhe ainda propor uma graduação entre eles. É que uns terão no texto uma expressão bastante natural, desafogada e perfeita; outros, pelo contrário, só uma expressão mais ou menos constrangida, desairosa, inapropriada. Daí uma certa razão de preferência a favor dos sentidos com melhor qualificação literal, mesmo não sendo eles, simultaneamente, os portadores das soluções mais justas” [Sentido e Valor da Jurisprudência, Coimbra 1973, página 26].

Guiados por este entendimento sobre o papel da letra da lei na interpretação, há que reconhecer que o sentido que tem uma expressão desafogada na letra do n.º 2 do artigo 149.º do CIRE é o que lhe foi dado pelo acórdão recorrido. Ao invés, o sentido afirmado pelo acórdão fundamento não tem na letra de tal preceito uma expressão adequada. Com efeito, se, para efeitos do n.º 2 do artigo 149.º do CIRE, o pensamento do legislador fosse o de que o produto da venda era pago ou repartido entre os credores com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no âmbito do processo executivo, os termos mais adequados para exprimir tal pensamento seriam os seguintes. “Se os bens já tiverem sido vendidos, a apreensão tem por objecto o produto da venda, caso ainda não tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos no processo executivo”.

A interpretação que vem sendo exposta é a que está em conformidade com a definição do processo de insolvência como processo de execução universal (artigo 1.º, n.º 1 do CIRE), no sentido de processo que compreende, em regra, todo o património do devedor à data da declaração de insolvência. Esta natureza seria posta em causa se uma parte dele – no caso o produto da venda de bens penhorados - respondesse pelas dívidas do insolvente fora do processo de insolvência.

A interpretação do n.º 2 do artigo 149.º que se acaba de expor tem apoio na jurisprudência e na doutrina.

Na jurisprudência podem citar-se os acórdãos citados na decisão recorrida, acórdão do STJ, proferido em 20-05-2014, no processo n.º 3055/11.9TBBCL-N.G1.S1, e no acórdão deste mesmo tribunal proferido em 27-10-2020, no processo n.º 1383/18.1TBOAZ-B.P1.S2, ambos publicados em www.dgsi.pt

Na doutrina citam-se Catarina Serra, Carvalho Fernandes e João Labareda.

Catarina Serra escreve a este propósito: “Inclusivamente quando os bens já tenham sido vendidos, apreende-se para a massa o respectivo produto, se este ainda não tiver sido entregue aos credores” [Lições de Direito da Insolvência, 2018, Almedina, página 257]. Carvalho Fernandes e João Labareda, escrevem em anotação ao artigo 149.º, n.º 2: “O n.º 2 veio acolher de forma expressa uma solução que, todavia, não podia deixar de ter-se como a única atendível no domínio da lei pregressa, e que igualmente indicáramos na anotação ao artigo 175.º, aliás com apoio na jurisprudência aí citada” [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2008, Quid Juris, página 492].

Em sentido contrário ao entendimento acima exposto, além do acórdão fundamento, encontrámos apenas o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 9-03-2009, no processo n.º 93/03.9TBFCR.C1, publicado em www.dgsi.pt.

O entendimento afirmado no acórdão recorrido era igualmente o da doutrina e da jurisprudência anteriores ao CIRE.

No domínio do CPC de 1961, Lopes Cardoso escrevia em anotação ao artigo 907.º do CPC, que dispunha sobre a caducidade dos direitos reais e cancelamento dos registos em termos semelhantes aos do artigo 824.º do Código Civil, o seguinte "… que os direitos dos credores, a serem pagos pelo produto dos bens, estará constituído pela sentença de graduação de créditos. Até que transite ordem de pagamento de cada um desses créditos, ordem que será a de passagem dos respectivos precatórios, os credores continuam titulares de direito de crédito, mas não são donos de qualquer parte do produto dos bens. Assim, se entretanto for declarada a falência do executado, o referido produto há-de ser apreendido para ser distribuído em harmonia com a graduação a fazer na falência e não com a que for feita na execução” [Manual da Acção Executiva, 3.ª Edição Actualizada, Livraria Almedina – 1964, páginas 626 e 627]. Citou em abono desta interpretação o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Março de 1962, publicado no Boletim do Ministério da Justiça n.º 115, página 379, segundo qual “a declaração de falência do executado, antes de os credores serem pagos na execução, determina a apreensão para a massa insolvente do produto dos bens que em execução tenham sido vendidos".

Pedro de Sousa Macedo escrevia também a este propósito: “Só pelo pagamento o credor recebe a propriedade do seu quinhão no produto da venda” [Manual de Direito das Falências, Volume II, Livraria Almedina Coimbra 1968, página 277]. Citava também em abono deste entendimento o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça acima indicado.

Na jurisprudência anterior pode citar-se, além do acórdão acima referido, o proferido pelo STJ em 26 de Novembro de 1980, publicado no BMJ n.º 301, páginas 384 a 386. No caso julgado por tal acórdão, os bens penhorados haviam sido vendidos e depositados os respectivos preços. Depois deste depósito foi declarada a insolvência da devedora/executada. Apesar da declaração de falência, a exequente requereu o levantamento do que lhe competia. O requerimento foi indeferido na 1.ª instância. A exequente interpôs recurso, mas a Relação julgou-o improcedente. Inconformada, a exequente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça. Nele alegava, além do mais, que o preço da venda não entrava na posse, na propriedade ou domínio do executado, antes ficando, desde logo, afecto ao pagamento do exequente, embora à ordem do juiz, mas apenas para assegurar o pagamento da exequente. O Supremo julgou improcedente o recurso. Com relevância para o caso, afirmou: “…. Sendo a falência um processo de liquidação universal ou de liquidação em benefício dos credores, no qual, sem consideração pela garantia da penhora, é feita uma graduação geral para os bens da massa falida, apenas se respeitando os direitos reais de garantia (…), terão de estar em presença todos os elementos activos e passivos da massa, não seria de permitir que liquidações parciais e antecipadas fossem susceptíveis de defraudar os interesses dos credores”. E pronunciando-se sobre o argumento da recorrente segundo o qual o preço da venda não entrava na posse, na propriedade ou domínio do executado, antes ficando, desde logo, afecto ao pagamento do exequente, afirmou: “O facto de já se ter procedido à venda dos bens quando a falência foi declarada não altera este regime. O produto do preço dos bens vendidos é um valor a liquidar e a adjudicar aos credores do exequente, não um valor que tivesse passado ao património destes e não poderia deixar se entender que a liquidação é a fase última da execução, pressuposto da sua extinção, como resulta claramente do artigo 919.º do Código de Processo Civil”.

No domínio do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de Abril, apesar de nele não haver preceito com teor igual ou semelhante ao do n.º 2 do artigo 149.º do CIRE, também se entendia que, declarada a falência devia ser apreendida para a massa insolvente o produto da venda de bens penhorados em execução pendente em que a falida era executada. Decidiram neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 14 de Janeiro de 1997, cujo sumário foi publicado no BMJ n.º 463, página 637, e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra proferido em 30 de Abril de 2003, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII Tomo III/2003, Maio/Junho/Julho, páginas 8 a 11.

Salvo o devido respeito, contra o entendimento exposto não colhe nenhum dos argumentos da recorrente.

Em primeiro lugar não colhe o argumento de que há o risco de fraude e o de conluio e que é necessário proteger os credores da lentidão da máquina da administração fiscal e judiciária.

É certo que não pode excluir-se o risco de conluio ou de fraude entre o momento da venda e o do pagamento para subtrair o produto da venda ao pagamento dos credores. Porém, a solução para tal conluio ou fraude não é a de considerar que o pagamento aos credores com o produto da venda dos bens penhorados se dá com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação de créditos proferida no processo executivo, mas sim a de responsabilizar os que, em conluio e mediante artifícios fraudulentos, impediram o pagamento dos credores com o produto da venda dos bens penhorados.

Em segundo lugar, também não vale o argumento constituído pela seguinte alegação:

• Que uma vez efetuada, no processo de execução, antes da insolvência do executado, a venda dos bens penhorados e obtido, em resultado dela, o dinheiro suficiente para pagar ao exequente e aos credores reclamantes, estes, sobretudo depois de graduados os créditos (como sucedeu no caso) deixam, em bom rigor, de ser credores do (futuro) insolvente, passando a ser credores ou do agente de execução ou do Estado, por força do disposto no art.º 824.º do CPC;

• Que esta modificação subjetiva da relação creditória (que, do lado passivo, passa a ser ocupada por aquele à guarda de quem é depositado o preço da venda) é particularmente evidenciada pelo âmbito de cobertura do Fundo de Garantia dos Solicitadores, que, segundo o disposto no art. 155.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, é “destinado a responder pelas obrigações assumidas na gestão das contas-cliente de solicitadores e na gestão de arquivos de solicitadores que cessem involuntariamente as suas funções”.

Ao alegarem no sentido exposto, os recorrentes argumentam como se, nas condições por si descritas, o executado deixasse de ser devedor e quem assumisse esta qualidade fossem o agente de execução ou o Estado.

Esta alegação não tem apoio nem no artigo 824.º do Código Civil nem no artigo 155.º do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, nem em qualquer outra disposição do processo executivo.

O artigo 824.º, n.º 3, prevê a seguinte modificação no objecto dos direitos reais de garantia que oneravam a coisa vendida: deixa de ser a coisa para passar a ser o produto da venda dela.

Quanto ao artigo 155.º do Estatuto dos Solicitadores [que prevê que a assembleia geral pode, por proposta conjunta do conselho geral e do colégio dos solicitadores, afetar parte das receitas resultantes da respetiva atividade à criação de um fundo de garantia, destinado a responder pelas obrigações assumidas na gestão das contas-cliente de solicitadores e na gestão de arquivos de solicitadores que cessem involuntariamente as suas funções], não se vê em que é que criação do fundo de garantia é um sinal de que, com o depósito do produto da venda na conta do agente de execução, o devedor da quantia exequenda passa a ser o agente de execução ou o tribunal, nos casos em que tal produto é depositado à ordem do tribunal.

Diga-se, contra a alegação do recorrente, o seguinte. Salvo nos casos expressamente previstos na lei, a transmissão singular de dívidas pressupõe a verificação de alguma das hipóteses previstas no artigo 595.º do CPC, que claramente não abrangem a situação descrita pela recorrente.

Por último também não vale o argumento segundo o qual “Nas “contas-cliente dos executados” são depositadas “todas as quantias recebidas e destinadas ao pagamento da quantia exequenda e aos demais encargos com o processo” – art. 171.º/2 do Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução. Quantias que o n.º 10 do mesmo art. 171.º considera como “património autónomo” – como património autónomo do agente de execução (um património separado, dentro do seu património global, afetado ao pagamento dos credores).

Como se escreveu acima, é certo que o produto da venda está afecto a uma finalidade especial: ao pagamento das custas da execução, do crédito do exequente e dos créditos reconhecidos e graduados para serem pagos por tal produto. Ainda assim, trata-se de um bem do executado até à sua entrega aos credores.

Por todo o exposto, uniformiza-se a jurisprudência no seguinte sentido: o produto da venda dos bens penhorados em processo de execução fiscal, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar repartido entre os credores com a entrega dele aos credores.


*

Sentido da uniformização da jurisprudência quanto à questão de saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito de um processo de execução fiscal, que seja apenso ao processo de insolvência do devedor/executado, está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.

O acórdão recorrido, citando diversa jurisprudência do STJ, respondeu negativamente a esta questão.

O acórdão fundamento, ao invés, respondeu-lhe afirmativamente com a fundamentação já exposta acima.

O recorrente pede se uniformize a jurisprudência no sentido afirmado no acórdão fundamento, ou seja, no sentido de que, tendo havido apensação do processo de execução fiscal ao processo de insolvência, o credor ali reconhecido e graduado, está dispensado de proceder à reclamação formal do seu crédito no processo de insolvência.

Para tanto, além de remeter para a sua fundamentação, argumenta ainda nos seguintes termos.

• Se assim não fosse – ou seja, se a apensação, ao processo de insolvência, do processo de execução fiscal onde foi proferida a sentença de verificação e graduação de créditos - não dispensasse a reclamação do crédito no processo de insolvência - para que serviria afinal a apensação do processo de execução fiscal ao processo de insolvência;

• A apensação não tem o efeito de eliminar o processo apenso nem muito menos as decisões nele proferidas, em particular as que já tenham transitado em julgado;

• A apensação, mantendo a autonomia e a identidade dos processos (do principal e dos apensos), visa precisamente, além dos objectivos de economia processual, evitar decisões contraditórias sobre objectos processuais conexos, e nesse plano é um campo privilegiado de actuação da autoridade do caso julgado.

Apreciação

A jurisprudência é de uniformizar no sentido do acórdão recorrido. Vejamos.

A questão de saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado num processo de execução fiscal (ou noutro processo) que venha a ser apenso ao processo de insolvência do devedor/executado, está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, para obter nele pagamento tem resposta no artigo 90.º do CIRE e nos n.ºs 1 e 5 do artigo 128.º do mesmo diploma.

O artigo 90.º estabelece que os credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência.

Em conformidade com o n.º 1 do artigo 128.º, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento.

Por sua vez, a 2ª parte do n.º 5 estabelece que “mesmo que o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento”.

É certo que nem o artigo 90.º nem os números 1 e 5 do artigo 128.º, ambos do CIRE, excluem a hipótese de o tribunal reconhecer e graduar créditos que não hajam sido reclamados. Com efeito, uma vez que, segundo o n.º 1 do artigo 129.º do CIRE, o administrador da insolvência tem o dever de apresentar na secretaria uma lista de todos os créditos por si reconhecidos e não reconhecidos, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, é bom de ver que, por efeito do cumprimento deste dever, o tribunal poderá vir a reconhecer e graduar créditos não reclamados.

A verdade é que o mais que se pode dizer da hipótese de serem reconhecidos créditos relacionados pelo administrador, que não tenham sido reclamados pelos credores é que, como escreve Catarina Serra, “A necessidade da reclamação deixou de ser uma regra absoluta, sendo hoje possível o reconhecimento de créditos não reclamados, dando azo a que se fale numa espécie de execução oficiosa ou execução sem (exercício de) poder de execução [Lições de Direito da Insolvência, 1.ª Edição, Almedina, página 268]. Porém, como imediatamente a seguir escreve a mesma autora: “Nada disto preclude o entendimento da reclamação como um ónus do credor. De facto, só os créditos reclamados são necessariamente apreciados para efeito do processo de insolvência; os créditos não reclamados podem sê-lo ou não – sê-lo não na eventualidade de o administrador os conhecer”.

Observe-se, no entanto, que o legislador não deixa de olhar com alguma reserva para os créditos reconhecidos pelo administrador, mas que não foram reclamados, visto que lhe impõe o dever de avisar os credores não reclamantes (n.º 4 do artigo 129.º do CIRE). Afigura-se-nos que este aviso se justifica porque o facto de o crédito não ser reclamado é susceptível de lançar dúvidas sobre a existência dele ou sobre a vontade de o credor o reclamar.

E, assim, se é certo que o silêncio dos credores sobre o aviso não determina a exclusão dos respectivos créditos da verificação e graduação, ao contrário do que sucedia no domínio do CEPEREF (n.º 2 do artigo 191.º), também é certo que o facto de o administrador não reconhecer créditos que constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, não confere ao credor não reclamante o poder de exigir que tais créditos sejam verificados e graduados. Como escreve Catarina Serra, “Da conduta que consiste em reclamar o crédito, em alternativa à não reclamação, resulta sempre uma posição de vantagem para o respectivo titular… quem não reclama o seu crédito fica sujeito ao risco da sua não consideração, podendo acabar por não obter o reconhecimento do seu crédito exclusivamente em virtude da sua inacção.” [A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, o Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, Coimbra Editora, 2009, página 275].

Assim, perante os termos claros e inequívocos da 2.ª parte do n.º 5 do artigo 128.º do CIRE, o titular de um crédito reconhecido no âmbito de um processo de execução não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter o pagamento, ainda que o processo de execução, com a sentença de verificação e graduação de créditos, seja apenso à insolvência.

Depõe também claramente neste sentido o n.º 2 do artigo 180.º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, que dispõe sobre o efeito do processo de recuperação da empresa e de falência na execução fiscal. Nos termos do mencionado preceito “o tribunal judicial competente avocará os processos de execução fiscal pendentes, os quais serão apensados ao processo de recuperação ou ao processo de falência, onde o Ministério Público reclamará o pagamento dos respectivos créditos pelos meios aí previstos, se não estiver constituído mandatário especial”.

O entendimento acabado de expor tem claro apoio na jurisprudência e na doutrina.

Na jurisprudência citam-se os seguintes acórdãos do STJ citados no acórdão recorrido: acórdão proferido em 13-11-2018, no processo n.º 128/15.2T8VNG-B.P1.S1 e o proferido em 15-12—2020 no processo n.º 100/13.7TBVCD-B.P1.S1, ambos publicados em www.dgsi.pt.

Na doutrina, além de Catarina Serra, pronunciam-se neste sentido Carvalho Fernandes e João Labareda [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris 2015, página 520], Luís Manuel Teles de Menezes Leitão [Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, 2021, 11.ª Edição, Almedina, página 203], Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Volume I,3.ª edição revista e atualizada, Almedina, página 369].

A favor desta interpretação podem invocar-se ainda os antecedentes legislativos do CIRE.

No domínio do Código de Processo Civil de 1961, o n.º 2 do artigo 1218.º dispunha, em termos semelhantes aos que constam do n.º 5 do artigo 128.º do CIRE, que o credor que tivesse o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não estava dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quisesse obter pagamento.

O n.º 3 do mesmo preceito previa, no entanto, as seguintes excepções à regra acima enunciada:

• Considerava-se reclamado através da petição inicial o crédito do requerente da falência;

• Consideravam-se reclamados os créditos exigidos nos processos a que se referiam o n.º 2 do artigo 1205.º e o n.º 1 do artigo 1198.º, se esses processos fossem apensados ao de falência dentro do prazo fixado para a reclamação.

Os processos referidos no n.º 2 do artigo 1205.º eram aqueles onde tivesse sido feito o arresto, penhora, apreensão ou detenção, salvo quando os bens tivessem sido penhorados pelas execuções fiscais ou pela Companhia Geral de Crédito. Por sua vez, os mencionados no n.º 1 do artigo 1198.º eram aqueles em que se debatiam interesses relativos à massa, salvo se estivessem pendentes de recurso interposto da sentença final, porque em tal caso a apensação só se fazia depois do trânsito em julgado.

Decorria, no entanto, da parte final do 2.º parágrafo do n.º 3 do artigo 1218.º do CPC que os créditos exigidos nos processos acima indicados só se consideravam reclamados com a apensação deles à falência, desde que a apensação tivesse lugar dentro do prazo fixado na falência para a reclamação.

Esta condição fazia com que, na hipótese de tais processos serem apensos ao processo de falência depois do prazo nele fixado para a reclamação, os titulares dos créditos exigidos em tais processos tinham o ónus de os reclamar, na falência, se nela quisessem obter o pagamento.

A este propósito escrevia António Mota Salgado: “Se as acções avocadas chegarem ao tribunal da falência fora do prazo das reclamações, … aos seus autores só resta o processo de verificação ulterior de créditos, regulado nos artigos 1241.º e seguintes”. [Falência e Insolvência Guia prático, 2.ª Edição Actualizada, Editorial Notícias, página 124, nota 16].

As regras do n.º 3 do artigo 1218.º do Código de Processo Civil de 1961 foram reproduzidas no n.º 4 do artigo 188.º do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência aprovado pelo Decreto-lei n.º 132/93, de 23 de Abril, ao dispor: “Consideram-se devidamente reclamados o crédito do requerente da falência bem como os créditos exigidos nos processos em que já tenha havido apreensão de bens do falido ou nos quais se debatam interesses relativos à massa, se esses processos forem mandados apensar aos autos de falência dentro do prazo fixado para a reclamação”.

Como escrevia Catarina Serra “… na vigência do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e da Falência, beneficiavam da equiparação (ou da dispensa da reclamação formal de créditos) não só o credor requerente, como também os titulares de créditos exigidos nos processos em que já tivesse havido apreensão de bens do insolvente ou nos quais se debatessem interesses relativos à massa, desde que estes processos tivessem sido mandados apensar aos autos do processo dentro do prazo fixado para a reclamação e ainda os titulares de créditos reclamados no processo de recuperação que tivesse antecedido o processo de falência (cfr. art.º 188.º, n.º 4, do CEPEREF)” – A Falência no Quadro da Tuela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, O Problema da Natureza do Processo de Liquidação Aplicável à Insolvência no Direito Português, Coimbra Editora, 2009, nota 703, páginas 265 e 266.

Por sua vez Carvalho Fernandes e João Labareda escreviam também a este propósito: “O n.º 4 não dispensa, em rigor, a reclamação dos créditos nele referidos. Pelo contrário, esta considera-se feita, conforme os casos, pelo simples requerimento da falência ou pela petição apresentada pelo credor nos processos em que tenha havido apreensão de bens ou em que, em geral, se debatam interesses relativos à massa, quando, numa situação e noutra, estes processos tenham sido mandados apensar aos autos de falência no prazo fixado para a reclamação – ou, acrescentamos nós, até essa altura” [Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência anotado, Quid Juris, página 428].

No mesmo sentido escrevia Mariana França Gouveia, “Esta dispensa não era, porém, uma verdadeira isenção de reclamar em geral, mas antes uma exoneração de reclamação autónoma” [Verificação do Passivo, Themis, Revista da Faculdade de Direito da UNL, 2005, Edição Especial, Almedina, página 153].

Segue-se do exposto que, tanto no CPC de 1961 como no Código de Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, a hipótese de os créditos se considerarem reclamados através da apensação de acções ao processo de insolvência revestia natureza excepcional e, ainda assim, em termos limitados.

Sucede que o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [CIRE] aprovado pelo Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março, que revogou o CPEREF, deixou de prever tais excepções. Esta omissão conjugada com o artigo 90.º do CIRE e com os números 1 e 5 do artigo 128.º do CIRE aponta claramente no sentido de que a apensação ao processo de insolvência dos processos onde se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens não dispensa os titulares dos créditos reconhecidos em tais processos de os reclamarem no processo de insolvência, se neles quiserem obter o pagamento.

Salvo o devido respeito, contra a interpretação que vem sendo afirmada não colhem os argumentos da recorrente.

Em primeiro lugar, não vale o argumento de que se impunha ao administrador da insolvência promover a alteração à lista de credores e à graduação de créditos. Como resulta do exposto mais acima, é certo que decorre do n.º 1 do artigo 129.º do CIRE que o administrador da insolvência tem o dever de relacionar como reconhecidos os créditos que constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, ainda que não tenham sido reclamados. Porém, já não resulta deste preceito ou de qualquer outro do CIRE que o incumprimento deste dever confere ao credor não reclamante o poder de exigir que tais créditos sejam verificados e graduados.

Em segundo lugar, não se vê qual a relação do caso com o princípio da prevalência da substância sobre a forma e com a regra do n.º 3 do artigo 130.º do CPC da qual decorre que o juiz tem o poder de corrigir oficiosamente casos de erro manifesto.

Em terceiro lugar, não colhe a alegação do recorrente segundo a qual a apensação visa, além de objectivos de economia processual, evitar decisões contraditórias sobre objectos processuais conexos, sendo uma actuação da autoridade do caso julgado.

A razão de ser da apensação era explicada por Pedro Macedo, no âmbito do CPC de 1961, nos seguintes termos: “Em relação aos bens arrestados ou penhorados em outros processos (excepto execuções fiscais), não se faz a apreensão senão após a avocação dos respectivos processos nos termos do n.º 1 do artigo 1198.º. De contrário, haveria a interferência na jurisdição de outro tribunal, uma vez que a penhora ou o arresto com a nomeação de depositário não se compadeceria com a apreensão (situação diferente de nova penhora, em que os bens se mantêm em poder do depositário)” [Manual de Direito das Falências, Volume II, Livraria Almedina Coimbra 1968, página 277].

Esta explicação continua válida, depondo a favor dela o n.º 4 do artigo 150.º do CPC, ao estabelecer que a apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega directa, através de balanço, de harmonia com as regras seguintes: a) se os bens já estiverem confiados a depositário judicial, manter-se-á o respectivo depósito, embora eles passem a ficar disponíveis e à ordem exclusiva do administrador da insolvência.

Assim, a razão pela qual o n.º 2 do artigo 85.º do CIRE prescreve ao juiz o dever de requisitar ao tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação aos autos de insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente não é a de dispensar o credor que tenha o seu crédito reconhecido e graduado no processo a apensar o ónus de reclamar o seu crédito no processo de insolvência. A razão que dita a apensação é a da apreensão para a massa insolvente dos bens aí apreendidos ou detidos. O n.º 2 do artigo 85.º manda requisitar a remessa para efeitos de apensação para proceder à apreensão. Vai neste sentido Alexandre Soveral Martins in Um curso de Direito da Insolvência, Volume I, 3.º edição revista e atualizada, Almedina, página 176, nota 1.

Por todo o exposto, uniformiza-se jurisprudência quanto à 2.ª questão, no seguinte sentido: o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgada num processo de execução fiscal, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.


*

III)

Efeito sobre o acórdão recorrido (artigo 695.º, n.º 2 do CPC).

Considerando que a contradição jurisprudencial foi uniformizada no sentido afirmado no acórdão recorrido, é de manter a decisão nele proferida quanto a ambas as questões que motivaram o recurso para uniformização de jurisprudência.


*

Decisão:

1. Julga-se improcedente o recurso e, em consequência, mantém-se o acórdão recorrido.

2. Uniformiza-se a jurisprudência no seguinte sentido:

O produto da venda dos bens penhorados em processo de execução, no qual tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, com trânsito em julgado, só é de considerar pago ou repartido entre os credores, para os efeitos do artigo 149.º, n.º 2, do CIRE, com a respectiva entrega.

O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgada num processo de execução, apensado ao processo de insolvência do devedor/executado, não está dispensado de reclamar o seu crédito, no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.

3. Publique-se o acórdão na 1.ª série do Diário da República.


*

Responsabilidade quanto a custas:

Considerando a 1.ª parte do n.º 1 do artigo 527.º do CPC e o n.º 2 do mesmo preceito e o facto de a recorrente ter ficado vencida no recurso, condena-se a mesma nas respectivas custas.

Lisboa, 19 de Março de 2024

Emídio Francisco Santos (relator)

Nelson Borges Carneiro

Rui Gonçalves

Luís Correia de Mendonça

Leonel Serôdio

Maria do Rosário Gonçalves

Paula Leal de Carvalho

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração, adiro à que foi apresentada pela Consª. Catarina Serra)

Maria Clara Sottomayor

Maria da Graça Trigo

José Maria Ferreira Lopes

João Cura Mariano

António Barateiro Martins

Fernando Baptista de Oliveira

Luís Espírito Santo

Jorge Arcanjo

Nuno Ataíde das Neves

Ana Paula Lobo

Manuel José Aguiar Pereira

Pedro de Lima Gonçalves

José de Sousa Lameira

Fátima Gomes

Graça Amaral (vencida quanto à admissibilidade da 2.ª questão, nos termos da declaração de voto da Exmª Conselheira Catarina Serra)

Maria Olinda Garcia

Catarina Serra - vencida quanto à admissibilidade da 2.ª questão, nos termos da declaração de voto em anexo

António Oliveira Abreu

António de Moura Magalhães

Ricardo Alberto Santos Costa

Afonso Henrique

Isabel Manso Salgado

Jorge Leal

Maria Amélia Ribeiro


**

RUJ 9160/15.5T8VNG-H.P3-A.S1-A


Declaração de voto

I. Entendo que o RUJ não é admissível quanto à 2.ª questão – “de saber se, tendo havido apensação ao processo de insolvência de um processo de execução fiscal, onde um credor da insolvência viu o seu crédito reconhecido e graduado, mas que aí não foi pago em virtude de o produto da venda dos bens penhorados ter, entretanto, sido apreendido para a massa insolvente, estava esse credor dispensado de reclamar esse crédito no processo de insolvência, se nele quisesse obter o pagamento” – , por faltarem os requisitos da identidade e da essencialidade das questões de direito apreciadas no Acórdão recorrido e no Acórdão-fundamento.

A) As questões essenciais de direito não são idênticas uma vez que:

- no Acórdão recorrido enuncia-se e responde-se à questão de saber se, apensada ao processo de insolvência acção de execução fiscal e apreendido para a massa insolvente imóvel penhorado naquela, o recorrente ficava ou não dispensado do ónus de reclamar o seu crédito – em suma, se um credor que não reclamou de todo o seu crédito tem o direito de exigir que o seu crédito seja reconhecido por mera força daquela apensação / apreensão.

Leia-se, nas palavras do Acórdão-recorrido:

Compete apreciar e decidir sobre: (…) saber se o titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, proferida em processo de execução, está ou não dispensado de reclamação desse crédito no processo de insolvência” ou “se o titular de um crédito reconhecido e graduado no processo executivo por sentença transitada em julgado necessita de observar o regime insolvencial quanto à reclamação do seu crédito”.

Distintamente,

- no Acórdão-fundamento enuncia-se e responde-se à questão de saber se, apensada ao processo de insolvência acção de execução fiscal e apreendido para a massa insolvente imóvel penhorado naquela, o administrador da insolvência tinha ou não o dever de corrigir ou rectificar a lista de créditos reconhecidos e, no caso de este o não fazer, se o juiz tinha ou não o dever de ordenar aquela correcção ou rectificação – em suma, se um credor que reclamou o seu crédito, embora em termos incorrectos, tem o direito de exigir que a lista de créditos reconhecidos seja corrigida em função daquela apensação / apreensão.

Leia-se, nas palavras do Acórdão-fundamento:

Das conclusões acabadas de transcrever decorre que a revista tem por objecto saber se aprendido a favor da massa insolvente o produto da venda de um imóvel em execução fiscal, o credor hipotecário aí graduado, carece de apresentar nova reclamação do crédito ou se o administrador oficiosamente dever promover a alteração da lista de créditos em consonância com as garantias já reconhecidas na execução fiscal e se o não fizer deve o juiz ordenar que o faça e graduar o crédito de harmonia com a garantia que foi reconhecida”.

A diferença entre as duas questões é perceptível logo ao nível do bloco normativo em discussão:

- no Acórdão recorrido interpreta-se, fundamentalmente, a norma do art. 128.º, n.º 1, do CIRE, sobre a reclamação de créditos;

Distintamente,

- no Acórdão-fundamento interpreta-se, fundamentalmente, as normas do art. 129.º, n.º 1, in fine, e n.º 4, sobre a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, e ainda do artigos 130.º, n.º 3, do CIRE, sobre a sentença de verificação e graduação de créditos.

B) Veja-se, agora, quanto à essencialidade das questões de direito que:

- no Acórdão recorrido, a questão de saber se, em resultado da apensação da execução, o recorrente fica dispensado de reclamar o seu crédito no processo de insolvência é a questão de direito essencial para a decisão.

- no Acórdão-fundamento, esta questão não é de todo essencial porquanto o recorrente já havia, in casu, reclamado o seu crédito, pondo-se a questão essencial de direito que veio a ser decidida a montante da fase de reclamação.

C) Torna-se evidente que a dissemelhança das questões essenciais de direito tem origem, no plano lógico-causal, na dissemelhança dos núcleos factuais, ou, como é usual dizer-se, na falta de “identidade substancial” dos dois casos.

Veja-se que:

- no caso do Acórdão recorrido, o recorrente não tinha reclamado o seu crédito e este não constava da lista de créditos reconhecidos;

- no caso do Acórdão-fundamento, o recorrente havia reclamado o seu crédito e este constava da lista de créditos reconhecidos, não obstante com um montante e uma graduação diferentes daqueles que lhe deveriam corresponder.

D) A dissemelhança das questões essenciais de direito repercute-se na dissemelhança das decisões mas sem que esta corresponda a uma oposição de julgados.

- no Acórdão recorrido, a decisão foi:

(…) ‘o n.º 5 do art.128º do CIRE é radical (na sua conjugação com o art. 90º do CIRE) nesta prevalência do regime insolvencial, pois abrange na verificação de créditos «todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento», destacando que «mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento’ (…).

O titular de um crédito reconhecido e graduado por sentença transitada em julgado, proferida em processo de execução, não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência do devedor para aí obter, na medida do possível, a sua satisfação”.

Distintamente,

- no Acórdão-fundamento, a decisão foi:

(…) perante uma reclamação de créditos que saiba ser incorrecta (quer quanto ao montante do crédito, quer quanto à sua classificação), o administrador da insolvência tem o dever de a corrigir para efeitos da lista de créditos.

(….) Por sua vez, o juiz tem o dever oficioso de corrigir os erros manifestos de que padeça a lista de créditos, não podendo limitar-se a homologar a lista tal como apresentada pelo administrador. Por outras palavras: a falta de impugnações da lista não tem efeito cominatório.

(…) impunha-se ao AI promover a alteração à listas de credores e à graduação de créditos anteriormente proferida de acordo com a nova realidade, ou seja considerando o crédito do recorrente sobre o produto da venda executiva como privilegiado e graduando no lugar que, nos termos legais lhe compete.

Ao não proceder deste modo as instâncias, dando prevalência a aspectos formais, em detrimento da substância, fizeram uma errada aplicação da lei, demitindo-se de fazer a justiça do caso concreto e de usar os poderes que a lei lhes confere com vista a atingir tal desiderato, designadamente os conferidos pelo art.º 129º nº 1 e 130º nº 3 do CIRE”.

As decisões são divergentes apenas porque é dissemelhante o quadro factual relevante e, sendo dissemelhante o quadro factual relevante, são necessariamente dissemelhante as questões essenciais de direito a decidir em cada um dos casos.

II. Em conclusão, não há, a meu ver, identidade da questão essencial de direito, logo, o facto de as decisões do Acórdão recorrido e do Acórdão-fundamento serem distintas não configura – não pode configurar – a contradição de julgados que é conditio sine qua non para a admissibilidade do RUJ nesta parte.

III. Sendo admitido o RUJ (também) nesta parte, acompanho a respectiva decisão – de improcedência do recurso.

2024.03.19


Catarina Serra